Uma análise da coisa julgada e questões prejudiciais no projeto do novo Código de Processo Civil sob a ótica de um processo efetivo

Autor: Rodrigo Koehler Ribeiro

Juiz Federal

 publicado em 30.08.2013



Resumo

O presente estudo tem por objetivo analisar a coisa julgada como garantia constitucional, bem como os limites a ela inerentes. Também será examinada a alteração proposta pelo projeto do novo Código de Processo Civil, que estendeu a coisa julgada às questões prejudiciais, importando um instituto do common law. A experiência norte-americana demonstra que o sistema por eles utilizado pode tornar o processo mais complexo e demorado, além do que a sua adoção acarretaria problemas em nosso ordenamento jurídico, decorrentes de nosso sistema federativo.

Palavras-chave: Coisa julgada. Limites objetivos. Questões prejudiciais.

Abstract

This study aims at analyzing the res judicata as a constitutional guarantee, as well as its limits. It will also examine the proposal made by the “new Civil Procedure Code”, that extended the res judicata to include issues expressly decided in the judgment, based in a common law institute. The American experience shows that this system can make the actions longer and more complex, as well as that the adoption of this system would bring problems in our legal system, due to our federal system.

Keywords: Res judicata. Objective limits. Decided issues.

Sumário: Introdução. 1 Limites da coisa julgada. 2 Limites objetivos da coisa julgada. 2.1 Eficácia preclusiva da coisa julgada. 2.2 Coisa julgada nas questões prejudiciais. Conclusões.

Introdução

O artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal estabelece que a lei não prejudicará o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Tal regra consubstancia a ideia de segurança jurídica, que está diretamente relacionada à ideia de previsibilidade dos atos estatais. O indivíduo precisa confiar no Estado e nas suas instituições, saber o que pode esperar dele.

A segurança jurídica está expressamente referida no preâmbulo da nossa Constituição Federal, cujo enunciado assim se mostra:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.”

Também não se pode olvidar que, após o advento do constitucionalismo, que trouxe a ideia de que a Constitituição detém alteridade, um conteúdo material que serve de referência e de baliza para todo o ordenamento jurídico, houve uma quebra de paradigma no que tange à interpretação do Direito. Entre tais elementos referenciais estão os direitos fundamentais. As normas constitucionais, entre elas aquelas que arrolam os direitos fundamentais, servem como elementos norteadores da atividade estatal.

As normas que veiculam direitos fundamentais são referentes aos mais diversos ramos do Direito: civil, penal, previdenciário, trabalhista, processual, entre outros. Hoje, ninguém mais nega que a Constituição Federal de 1988 possui também um conteúdo processual, trazendo garantias para serem utilizadas na relação jurídica processual. Há inúmeras garantias previstas na Constituição Federal que podem ser consideradas como de natureza processual, entre elas o acesso à justiça, o juiz natural, o contraditório, a isonomia processual, a proibição da prova ilícita, a motivação das decisões judiciais, o duplo grau de jurisdição, a coisa julgada, entre outros. Diante dessa constatação, pode-se afirmar que as regras do processo civil devem ser interpretadas à luz da Constituição.

Corroborando esse entendimento, cita-se a lição de Sérgio Gilberto Porto e Daniel Ustárroz:(1)

“Tal qual no direito privado, como apontado por Pietro Perlingieri, decorre uma ‘consequência inevitável’: o processo civil passa a ser analisado sob o enfoque de sua ‘legalidade constitucional’. Os ‘pressupostos teóricos’ desenvolvidos pelo ilustre autor italiano merecem aplicação no ramo processual: (a) ‘é preciso reconhecer não só o valor normativo dos princípios e das normas constitucionais, mas também a supremacia deles’ (pois as normas constitucionais, ‘além de indicarem os fundamentos e as justificações de normatividade de valor interdisciplinar tanto das instituições jurídicas quanto dos institutos jurídicos, apontam parâmetros de avaliação dos atos, das atividades e dos comportamentos, como princípios de relevância normativa nas relações intersubjetivas’.”

Assim sendo, como garantia constitucional, as regras que dizem respeito à coisa julgada, que formam seu regime jurídico, levam à conclusão de que tal instituto está submetido a limites de diversas ordens. Tais limites não advêm apenas do Código de Processo Civil, mas também da Constituição Federal. Em outras palavras: o regime jurídico da coisa julgada impõe limites à sua formação, cujo fundamento é o ordenamento jurídico como um todo.

O objetivo do presente estudo é analisar a inserção da coisa julgada como garantia constitucional, bem como os limites a ela inerentes, em especial os limites objetivos. Também se buscará examinar a inovação trazida pelo projeto do novo Código de Processo Civil no que tange aos limites objetivos, fazendo incidir a coisa julgada sobre questões prejudiciais, importando uma característica do sistema da common law. Procurar-se-á analisar o impacto dessa inovação em nosso cotidiano forense, demonstrando as vantagens e as desvantagens decorrentes da adoção dessa nova regra.

1 Limites da coisa julgada

Anteriormente, foi mencionado que a coisa julgada está adstrita a limites, diante de sua natureza de garantia constitucional, limites esses de ordem objetiva, subjetiva, territorial e temporal.

A melhor forma de definir a coisa julgada seria qualificá-la como uma qualidade que adere ao efeito declaratório da sentença, tornando-o imutável. Por outro lado, a doutrina vem dedicando especial atenção ao estudo de sobre qual parte, especificamente falando, da sentença incide a imutabilidade da coisa julgada. A sentença é um ato jurídico complexo, envolvendo motivação, fundamentos de fato e de direito e, muitas vezes, conhecimento de relações jurídicas conexas, prejudiciais ou não. Portanto, importante se mostra analisar a real extensão da norma jurídica declarada pela sentença, com o escopo de estabelecer a real dimensão da lide discutida em juízo. Tal exame refere-se aos limites objetivos da coisa julgada, o qual será objeto do presente estudo.

Também não se ignora que, dependendo do direito posto em causa, a coisa julgada tem alcance diverso no que tange às pessoas que serão atingidas pelo efeito vinculante. A problemática dos limites subjetivos da coisa julgada (quem sofre os seus efeitos) tem íntima ligação com a natureza do direito posto em causa.

Além dos limites de ordem subjetiva e objetiva, à coisa julgada também são impostas restrições de ordem temporal, levando-se, da mesma forma, em consideração o direito versado na causa. Ou seja: a coisa julgada projeta-se para o passado, mas, havendo fatos novos, existirá uma nova causa de pedir, uma nova situação jurídica, pelo que se conclui que também existem limites da coisa julgada em relação ao tempo em que ela foi produzida.

Por fim, salienta-se que há os limites territoriais da coisa julgada, que dizem respeito à área de abrangência do instituto, o que está diretamente ligado à ideia de competência.

Neste trabalho, conforme já anunciado, serão abordadas as restrições ao instituto da coisa julgada no que tange ao aspecto objetivo (sobre que parte específica da decisão incide o selo da imutabilidade), bem como as inovações propostas acerca do tema no projeto do novo Código de Processo Civil.

2  Limites objetivos da coisa julgada

Considerando, conforme já mencionado, que a coisa julgada é melhor conceituada como a qualidade que adere ao efeito declaratório da sentença, tornando-o imutável, há que se investigar qual a extensão desse efeito declaratório mencionado. Tendo em vista que a sentença é um ato jurídico complexo, multifacetado, que pode envolver múltiplas questões de fato e de direito, prejudiciais ou não ao julgamento do caso, é de grande relevância identificar sobre qual ponto da sentença, especificamente, incide a coisa julgada. Isso para que as partes possam ter uma maior previsibilidade acerca de onde investir uma maior atividade probatória. A parte, sabendo que sobre determinada questão discutida no processo recairá a condição de imutabilidade decorrente da coisa julgada, poderá envidar maiores esforços na instrução processual, a fim de buscar a efetiva proteção do seu direito.

Nesse particular, a disciplina dos limites objetivos da coisa julgada oscilou consideravelmente na história do direito processual civil brasileiro. No período compreendido entre o final do século XIX e o início do século XX (especialmente no período anterior ao advento do Código de Processo Civil de 1939), era praticamente uníssona na doutrina nacional a concepção de que a coisa julgada constituiria mera presunção da verdade, ideia essa veiculada por Friederich Karl Savigny. A concepção de Savigny de coisa julgada como presunção de verdade fazia não só concluir que a sentença injusta também se tornava imutável como estendia os limites objetivos da coisa julgada aos motivos da sentença. Frise-se, ainda, que, anteriormente à vigência do Código de Processo Civil de 1939, significativa parcela da doutrina inclinava-se pela admissibilidade da incidência da coisa julgada sobre as questões prejudiciais, desde que efetivamente controvertidas no feito.(2)

O Código de Processo Civil de 1939 disciplinou o tema no artigo 287 e em seu parágrafo único, da seguinte forma:

“Art. 287. A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei nos limites das questões decididas.

Parágrafo único. Considerar-se-ão decididas todas as questões que constituam premissa necessária da conclusão.”

Tais dispositivos do código revogado consistem em uma cópia do artigo 290 do projeto de Código de Processo Civil italiano, de 1929, elaborado pela comissão presidida por Ludovico Mortara. Entretanto, na tradução para a língua portuguesa, foi suprimida a palavra lide na frase “ha forza di legge nei limiti della lite e della questione deccisa”. O parágrafo único também deu margem a interpretações diversas, considerando que estabeleceu que as questões que constituíssem premissa necessária ao julgamento do feito estariam abrangidas pela coisa julgada.

O artigo 468 do Código de Processo Civil tem uma redação quase idêntica àquela do artigo 287 do Código de 1939, diferindo em dois aspectos: reinseriu o termo “lide” no corpo do artigo, tal como redigido no projeto italiano, e suprimiu o parágrafo único da referida regra, trazendo, em substituição, os artigos 469 e 474.

A redação do artigo 287 do Código de 1939, em sua exegese literal, dava a entender que a imutabilidade decorrente da coisa julgada também se estendia a questões prejudiciais suscitadas no processo. Tal conclusão justifica-se não só pelo teor do parágrafo único da regra em comento, mas pela própria supressão do vocábulo lide do corpo do artigo, o que parece estabelecer que a coisa julgada não se restringia aos limites da lide, podendo ser estendida a outros tópicos da sentença. Nas palavras de Ovídio Baptista da Silva, “estariam abertas as portas para a expansão da eficácia da sentença até as questões relativas à lide prejudicial”.(3)

Portanto, o tema referente aos limites objetivos da coisa julgada envolve dois importantes tópicos, os quais serão analisados separadamente: a extensão da coisa julgada às questões prejudiciais constantes na sentença e a denominada eficácia preclusiva da coisa julgada, representada pelo teor do artigo 474 do Código de Processo Civil. Dar-se-á, no estudo, mais ênfase à primeira, considerando a inovação substancial levada a efeito pelo artigo 514, § 1º, do projeto do novo Código de Processo Civil.

2.1 Eficácia preclusiva da coisa julgada

Como já referido, o artigo 468 do Código de Processo Civil estabelece que a sentença tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas e o artigo 474, por sua vez, veicula a regra de que, “passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido”.

Ao analisar conjuntamente ambos os dispositivos, pode-se afirmar que existe uma aparente contradição entre eles. Ao mesmo tempo em que o artigo 468 traz uma ideia de que a sentença (e, por conseguinte, a coisa julgada) restringe-se à lide e às questões decididas, o artigo 474 parece ampliar esse âmbito de aplicação, forçando a conclusão de que a qualidade da imutabilidade não incide apenas sobre o que foi deduzido, mas também sobre o dedutível.

Na tentativa de harmonizar tais dispositivos, pode-se afirmar que o compêndio processual brasileiro determinou que a coisa julgada se produz nos limites das questões decididas, bem como daquelas que poderiam ter sido alegadas e não o foram. Portanto, diante dessa previsão do artigo 474 do Código de Processo Civil, não se pode negar que a figura da coisa julgada traz como elemento a ela inerente um efeito preclusivo, elemento esse cuja extensão ora se analisará.

Podem-se, aqui, arrolar dois exemplos. Primeiramente, uma ação de aposentadoria especial por exposição a ruído, julgada improcedente, pela não comprovação da exposição ao agente insalubre de forma habitual e permanente, conforme exige a legislação. Poderia o segurado, posteriormente, ingressar com nova demanda pleiteando aposentadoria especial, alegando que, além do ruído, se expôs a contato com hidrocarbonetos aromáticos nocivos à sua saúde, ou estaria tal alegação preclusa, em virtude da regra prevista no artigo 474 do Código de Processo Civil?

Outro exemplo seria o caso de uma ação de rescisão de contrato de parceria agrícola, com fundamento em danos causados à propriedade, julgada improcedente. Haveria a possibilidade de, futuramente, o autor ingressar com nova ação de rescisão tendo como fundamento a falta de pagamento de percentual sobre a colheita? Tal demanda tem possibilidade de êxito ou deve ser extinta, sem julgamento do mérito, baseado no artigo 267, V, do Código de Processo Civil?

Fazendo-se uma exegese literal do artigo 474, poder-se-ia afirmar que, diante de ambos os casos acima citados, não haveria possibilidade de renovação das demandas, ainda que fundadas em alegações diversas.

A solução para a problemática referente à extensão da denominada eficácia preclusiva da coisa julgada não prescinde da análise da teoria da causa de pedir adotada pelo nosso ordenamento jurídico.

Juntamente com as partes e o pedido, a causa de pedir é um dos elementos identificadores da ação. Quando se quiser aferir acerca da identificação de uma demanda, seja para verificar a ausência de conexão, de litispendência ou de coisa julgada, não se poderá prescindir da análise dos denominados elementos identificadores da ação e, por conseguinte, da causa de pedir.

No que tange à causa de pedir, foram elaboradas duas teorias, a partir da investigação do conteúdo do objeto litigioso: a teoria da substanciação e a teoria da individualização.

Para os adeptos da teoria da substanciação, a causa petendi consiste no fato jurídico constitutivo do direito afirmado pelo autor. Trata-se, pois, do compêndio dos fatos constitutivos inseridos como fundamentos da demanda judicial.

Já para os prosélitos da teoria da individualização, a causa de pedir nada mais é que a relação jurídica afirmada em juízo, da qual se extrai a consequência jurídica. A principal consequência da adoção da teoria da individualização é a ampliação do conteúdo do objeto litigioso: se considerarmos que a causa de pedir é a relação jurídica afirmada em juízo, e não o fato jurídico que a compõe, isso implica afirmar que a alteração dos fatos deduzidos inicialmente não implicará modificação da demanda. Mais ainda: a sentença proferida acerca da relação jurídica terá repercussão sobre todos os fatos nela contidos, ainda que não alegados pelas partes. Como se pode perceber, isso terá implicação tanto na identificação de demandas quanto na própria coisa julgada: a adoção da teoria da substanciação tem uma tendência a reduzir a eficácia preclusiva da coisa julgada, ao passo que, pela teoria da individualização, o julgamento implícito ganhará contornos maiores.

A concepção da teoria da individualização adveio de elaboração feita por juristas alemães, fruto de uma interpretação exacerbada da autonomia do direito processual, rompendo o liame existente entre processo e direito material. Sobre esse aspecto, afirma José Rogério Cruz e Tucci(4):

“Com declarado intuito de determinar o conceito do enigmático objeto litigioso, boa parte da doutrina processual alemã, valendo-se da teoria da individualização, tende a extirpar do objeto do processo a causa de pedir, ensejando verdadeira cisão entre direito substancial e processo.

Após a contribuição inicial de Arthur Nikisch, o seu compatriota Karl Heinz  Schwab, considerado o principal expoente dentre tais scholars, reserva um matiz eminentemente processual ao objeto do processo, distante de qualquer tonalidade da situação de Direito Material.

Com efeito, na famosa obra Der Streigegenstand im Zivilprozess, estampada em 1954, o jurista alemão expõe a tese pela qual o objeto do processo vem demarcado apenas pelas conclusões do autor (Begehren des Klägers), sem o concurso de qualquer Klagegrund (fundamento). [...]

E isso porque – elucida Schwab – quem instaura um processo tem inegável interesse em que o juiz acolha a sua demanda: ‘Este, portanto, é o efetivo objeto do processo’.

Se, p. ex., o autor reclama do demandado a devolução de um piano, fundando a sua demanda no direito de propriedade, e o réu contesta tal direito, mas afirma que, na verdade, possui o bem reivindicado por força de contrato de locação celebrado com o autor, não haverá nova demanda se o requerente modificar o respectivo fundamento, passando a alicerçá-la no término do contrato de locação.”

Entretanto, o artigo 282, III, do Código de Processo Civil, quando arrola os requisitos da petição inicial, arrola os fatos e fundamentos jurídicos do pedido. Tal fato faz concluir que o Código de Processo Civil brasileiro adota a teoria da substanciação. Isso porque traz, como requisito essencial da petição inicial, o fundamento de fato e o fundamento jurídico do pedido, o que sugere que não há como dissociar, de todo, o direito material do processo.

A conclusão sobre a teoria adotada pelo nosso compêndio processual traz consequências sobre os limites objetivos da coisa julgada, conforme adiante se verá.

A questão sobre a exata extensão da denominada eficácia preclusiva da coisa julgada não é imune a dissenso por parte da doutrina.

O processualista Ovídio Araújo Baptista da Silva, quando aborda o tema, defende que o termo “questões decididas”, na forma prevista pelo artigo 468 do Código de Processo Civil, diz respeito aos contornos da lide da forma que o autor lhe estruturou. Ou seja, a sentença também conterá as alegações referentes àquela lide, sejam elas deduzidas ou não. No clássico exemplo dado pelo professor, a ação de rescisão de contrato de parceria, se o fundamento arrolado na petição inicial foram os danos ocasionados culposamente à colheita, há que se fazer a identificação da causa de pedir da aludida demanda, tendo como fundamento o fato descrito e todos aqueles que sejam com ele compatíveis. Ou seja, os fatos compatíveis com aquele elencado como fundamento para a demanda são aqueles abrangidos pela eficácia preclusiva da coisa julgada.

Analisando a posição acima sustentada, infere-se que ela faz concluir que o Código de Processo Civil não adota, de forma absoluta, nem a teoria da substanciação, nem a teoria da individualização. Há, segundo a lição do Professor Ovídio Araújo Baptista da Silva, a adoção da teoria da substanciação de uma forma mitigada, atenuada, de forma que, em que pese a causa de pedir conter um elemento fático, a ele não se resume. Há a extensão desse elemento fático a outra ordem de fatos que não necessitam, obrigatoriamente, estar narrados na peça exordial. Tal ideia se mostra clara quando afirma que:

“Isso, porém, não será suficiente para conduzir-nos ao extremo oposto de admitir como irrelevantes, sempre, a descrição e a caracterização dos fatos como elementos integrantes da causa petendi. Verdadeiramente, podemos dizer apenas isto: nem todos os fatos serão decisivos para a caracterização da causa petendi.

Na ação de rescisão de contrato parciário, nem se pode considerar como causa petendi o elemento fático danos à colheita em virtude de utilização de sementes impróprias, nem o extremo oposto, ou seja, ‘rescisão do contrato’, quaisquer que sejam os fatos praticados pelo réu. Nem a irrelevância absoluta, nem a completa relevância dos fatos. Hão de haver fatos que entram na individualização da causa petendi; outros, indiferentes, cuja mudança não implica mudança de ação.”(5)

Segundo Silva, nosso ordenamento jurídico estabelece que o efeito preclusivo da coisa julgada se estende à cadeia de fatos similares. Entretanto, não abrangeria fatos que não guardem relação com o material do primeiro processo, o que se amoldaria à teoria do processualista alemão Karl Schwab.(6) Ou seja: o pedido, convenientemente interpretado, mantém relação com os fatos e com o conjunto de fatos correlatos com aquele expressamente deduzido. Exemplifica o professor, novamente com relação à ação de rescisão de contrato parciário com fundamento na ocorrência de danos culposos à colheita, que, sendo esta a alegação da inicial, a causa de pedir seria a “rescisão por infração contratual com base em inaptidão técnico-profissional do réu”. Isso porque a expressão “danos culposos” remete à ideia de culpa, que, por sua vez, nos remete à ideia de inaptidão do contratante, tenha ele agido de forma imprudente, negligente ou imperita. De acordo com a concepção de Karl Schwab, que é aquela que mais se amoldaria às regras previstas pelo nosso ordenamento jurídico, toda demanda futura que discutisse rescisão contratual por culpa do contratado estaria obstaculizada pela coisa julgada. Isso porque, caso admitida, poderia resultar em decisão discrepante com aquela primeira.

Como se pode perceber, há quem entenda que o efeito preclusivo da coisa julgada pode se estender a fatos não expressamente narrados na petição inicial, interpretação essa que estaria autorizada pelo artigo 474 do Código de Processo Civil. Entretanto, há quem defenda uma posição mais restritiva, afirmando que a causa de pedir restringe-se ao fato narrado na inicial, não podendo a coisa julgada se estender a outros fatos que não aqueles que constam na peça vestibular. Com esse entendimento compactuam Barbosa Moreira(07) e Egas Moniz de Aragão.(8)

Com todo o respeito que se deve a quem pense contrariamente, não se pode desvincular o artigo 474 do Código de Processo Civil do teor do artigo 287 do Código de Processo Civil de 1939, que teve forte influência de Francesco Carnelutti. Dessa forma, não se pode olvidar que, quando analisarmos o conteúdo do artigo 474 do Código, comparando-o com o artigo 468, se deve considerar que os limites da lide devem ser observados (artigo 128 do Código de Processo Civil) e que o nosso compêndio processual, reitere-se, adota a Teoria da Substanciação, o que se depreende da exegese do artigo 282, III. Diante disso, as alegações e as defesas que são repelidas no momento do julgamento do mérito são aquelas referentes ao fato jurídico questionado na demanda, ou seja, a preclusão se dá nos limites da causa. Corroborando tal assertiva, cito a lição do processualista José Maria Rosa Tesheiner(9):

“O art. 474 do Código de Processo Civil trata da denominada ‘eficácia preclusiva da coisa julgada material’, ‘coisa julgada implícita’ ou ‘julgamento implícito’. Dispõe que, ‘Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido’. Se o réu se defendeu alegando prescrição apenas, não pode, depois, encontrando recibo passado pelo autor, propor ação de repetição de indébito fundada no fato de que pagou duas vezes. Tem-se por rejeitada a alegação de pagamento, justamente com a da prescrição. Mais difícil é determinar-se que alegações poderiam ter sido feitas pelo autor e que se têm como implicitamente rejeitadas. É preciso que se trate de alegações relativas à mesma causa petendi, porque o art. 474 não destrói a regra fundamental de que, rejeitada uma ação, pode o autor propor outra, com diversa causa de pedir.” (sem destaques no original)

Consigne-se que o artigo 519 do projeto do novo Código de Processo Civil tem redação idêntica à do artigo 474 do Código de Processo Civil.

2.2 A coisa julgada nas questões prejudiciais

O Código de Processo Civil vigente exclui a incidência de coisa julgada sobre questões prejudiciais ao julgamento do feito, o que se depreende da regra expressa do artigo 469, III. Acresça-se a isso que o artigo 470 estabelece que, em as partes querendo a incidência de coisa julgada sobre a questão prejudicial, poderão propor ação declaratória incidental, desde que o juiz seja competente para processar e julgar também a ação de declaração.

Há uma tendência, em países de civil law, de restringir os limites objetivos da coisa julgada, afastando a sua incidência no que tange a questões prejudiciais, tal como se mostra em nosso ordenamento jurídico, tendo em vista os citados artigos 469, III, e 470 do Código de Processo Civil. Essa tendência existe em razão do culto ao princípio dispositivo, segundo o qual somente as partes podem dispor do processo, sendo, pois, suas protagonistas. Nesse aspecto, referem Tesheiner, Gidi e Prates(10):

“O principal argumento empregado pela doutrina brasileira, por ocasião da discussão acerca do art. 287 do CPC de 1939, para afastar a extensão da coisa julgada sobre as questões prejudiciais baseava-se no respeito ao princípio dispositivo. Nesse sentido, correta a constatação feita por Gidi de que a adoção de solução restritiva dos limites objetivos da coisa julgada nos países de civil law decorre da referência ao princípio de que ‘as partes são donas do processo’.

Barbosa Moreira alertava para o fato de que muitas vezes é inconveniente para as partes a extensão do julgamento a relações jurídicas estranhas ao âmbito do pedido. Afinal, as partes podem estar despreparadas para enfrentar uma discussão exaustiva das questões prejudiciais, porque talvez, por exemplo, não seja possível, à época da propositura da demanda, coligir todas as provas necessárias àquela ampla discussão, e, ainda assim, elas podem ter a necessidade de ajuizar desde logo a ação. Defendendo a solução restritiva, Barbosa Moreira ponderava que, quando houver interesse, as partes sempre podem lançar mão da ação declaratória incidental, medida considerada satisfatória e capaz de equilibrar o princípio dispositivo e eventual necessidade de definição das questões prejudiciais. Ademais, poder-se-ia acrescentar, se a regra fosse a da coisa julgada das questões prejudiciais, as partes que não estivessem preparadas para litigar tais questões se sentiriam desencorajadas a propor qualquer demanda, com receio de serem vinculadas em questões meramente incidentais aos seus interesses atuais.

Esse é, precipuamente, o entendimento majoritário de nossa doutrina, adotado pelo Código de Processo Civil de 1973. A exaltação do princípio dispositivo advém de concepção liberal, típica de um conceito de processo calcado no paradigma individualista, como admitem alguns defensores de tal princípio.”

Entretanto, o projeto do novo Código de Processo Civil altera esse quadro, ao prever, no artigo 514, § 1º, a extensão da coisa julgada às questões prejudiciais.(11) O intuito de ampliarem-se os limites objetivos da coisa julgada está diretamente relacionado com as ideias de coerência nas decisões judiciais (evitando-se a prolação de sentenças contraditórias) e de economia processual. Trata-se dos mesmos fundamentos da conexão, do litisconsórcio e da intervenção de terceiros. Diante disso, a ampliação atrai defensores no âmbito dos processualistas contemporâneos. Entretanto, há que se analisar se tal ampliação terá um impacto positivo, atuando efetivamente na consecução dos objetivos almejados (coerência das decisões e economia processual).

Com o intuito de melhor compreender a inovação proposta pelo projeto do novo Código de Processo Civil, é necessário analisar a estrutura da coisa julgada no sistema do common law.

Na tradição do sistema anglo-saxão, no qual a fonte primária do direito é o precedente, não a lei, as decisões judiciais têm efeito vinculante para as próximas decisões. Em outras palavras: além de configurar a lei do caso concreto entre as partes, a coisa julgada tem o efeito de vincular os julgamentos subsequentes. Enquanto no sistema da civil law a coisa julgada tem, em princípio, o conteúdo declaratório da vontade da lei, tornando-a imutável com relação às partes, na common law, além dessa característica, é acrescida outra: a vinculação das demandas futuras quanto ao que foi decidido previamente. É a figura do stare decisis, ou teoria dos precedentes vinculantes – amplamente aceita em países da família da common law, onde se admite que a atividade do juiz não seja meramente declaratória, mas criativa.

A estrutura da coisa julgada no common law possui duas figuras que devem ser analisadas: a claim preclusion e a issue preclusion.

A figura da claim preclusion faz com que a demanda, com o julgamento, seja extinta por completo, fazendo precluir todas as questões pertinentes ao caso que foram ou poderiam ter sido deduzidas na ação. Essa é a definição de claim preclusion dada pelos autores norte-americanos Robert Casad e Kevin Clermont(12):

“Outside the context of the initial action, a party generally may not relitigate a claim decided therein by a valid and final judgment. The judgment extinguishes the whole claim, precluding all matters within the claim that were or could have been litigated in that initial action.”

Já a issue preclusion, por sua vez, segundo os citados autores, impõe à parte, não obstante ter vencido ou não a demanda, a impossibilidade de invocar, em nova demanda, qualquer questão de fato ou de direito que tenha sido essencial para o julgamento da demanda. Assim referem Casad e Clermont ao discorrerem sobre a issue preclusion (13):

“Outside the context of the initial action, regardless of who won the judgment, a party generally may not relitigate any issue of fact or law actually litigated and determined therein if the determination was essential to a valid and final judgment.”

Fazendo uma comparação com o nosso ordenamento jurídico, típico de um sistema de civil law, pode-se verificar que há uma semelhança entre a claim preclusion e a eficácia preclusiva da coisa julgada, prevista no artigo 474 do Código de Processo Civil.

Já a issue preclusion assemelha-se à extensão da coisa julgada à decisão sobre questões prejudiciais que tenham sido essenciais para o julgamento de determinada demanda. Tal ideia não é aceita pelo Código de Processo Civil vigente, o que se pode depreender da análise conjunta dos artigos 469, III, e 470 do aludido compêndio processual. Entretanto, o artigo 514, § 1º, do projeto do novo Código de Processo Civil, ao estabelecer a incidência da coisa julgada nas questões prejudiciais, parece ter incorporado a figura da issue preclusion, típica da família da common law. Não que se vislumbre qualquer problema na migração recíproca entre institutos pertencentes a cada um dos sistemas existentes – common law e civil law. Aliás, essa troca de experiências, que é fruto de um mundo globalizado, pode até vir a ser salutar. O que não se pode fazer é tomar um instituto de um sistema e simplesmente transpô-lo para o outro, sem analisar eventuais impactos negativos que podem vir a ocorrer, seja por problemas que a figura a ser adotada já enfrenta nas cortes estrangeiras, seja pela sua incompatibilidade com o nosso sistema processual e de competências.

Diante disso, propõe-se uma análise da inovação levada a efeito pelo artigo 514, § 1º, do projeto do novo Código de Processo Civil, verificando potenciais problemas que a adoção de figura semelhante à issue preclusion pode acarretar em nosso cotidiano forense.

De acordo com Casad e Clermont, a issue preclusion tem como fundamento o fato de que todas as cortes têm a mesma capacidade de decidir determinada questão.(14) Tal figura baseia-se, conforme já referido acima, nos ideais de economia processual e de segurança jurídica, evitando a prolação de decisões contraditórias.

Entretanto, para que a coisa julgada se projete sobre a questão prejudicial, é necessário que esta tenha sido tida por essencial ao julgamento da demanda, efetivamente controvertida e previsível pelas partes, para que estas tenham a possibilidade de fazer uma prova adequada e suficiente, seja com relação à questão principal, seja com relação à questão prejudicial. Tais requisitos da issue preclusion foram construção doutrinária e jurisprudencial, como forma de observar o princípio do devido processo legal. Em não havendo um contraditório eficiente, não poderia haver a formação da coisa julgada sobre a questão prejudicial.

Não se pode deixar de mencionar que o instituto da issue preclusion, não obstante o louvável fundamento sobre o qual se assenta, não é isento de críticas. Isso porque a parte que o invoca, querendo se valer da issue preclusion para fulminar a segunda demanda, tem o ônus de comprová-la (o que engloba a comprovação de todos os pressupostos do instituto – que a questão foi expressamente decidida, efetivamente controvertida, essencial para o julgamento do feito e com o resultado previsível para ambas as partes). Ou seja, a formação da issue preclusion, na maioria das vezes, não é fácil de se comprovar. Isso faz com que o segundo processo tenha uma tramitação difícil e burocrática, quando não envolve um certo subjetivismo por parte do juiz – se a análise dos requisitos da issue preclusion é complexa, é natural que a decisão não se dê de forma tão objetiva. De acordo com tal assertiva, assim referem Tesheiner, Gidi e Prates(15):

“Tantos requisitos, exceções e flexibilidade tornam a aplicação da issue preclusion extremamente difícil na prática e dependente das peculiaridades fáticas e jurídicas de cada caso. As vantagens perseguidas com a adoção da regra amplexiva dos limites objetivos da coisa julgada – economia processual e respeito pelas decisões judiciais – podem não ser efetivamente alcançadas ou superadas pelas dificuldades apontadas.

Muito pelo contrário, é provável que a discussão sobre todos esses requisitos no segundo processo termine por alongar desnecessariamente o seu andamento. Outra consequência indesejada é que as partes podem aumentar desnecessariamente o esforço empregado na litigância das questões incidentais no primeiro processo, tentando comprovar e controverter todas as questões envolvidas, a fim de evitar prejuízos futuros. Isso torna os processos ainda mais complexos e demorados, o que é contrário ao ideal de economia processual.”

Disso se pode inferir que muitos institutos processuais que têm por escopo a economia, a segurança jurídica e o risco de decisões contraditórias acabam, paradoxalmente, por acarretar o efeito contrário.

Em nosso ordenamento jurídico, podem-se citar, como exemplos, vários institutos processuais que se legitimam com base na economia processual e na coerência entre as decisões: o litisconsórcio ativo facultativo, as modalidades de intervenção de terceiros, a reconvenção. O julgamento de duas ações no mesmo processo, segundo a doutrina clássica, traria economia processual, considerando que se teria apenas uma audiência, uma sentença, para julgamento de duas ou mais ações. Entretanto, na prática, não é isso que ocorre. A existência de duas ações em um mesmo processo acaba por acarretar, na verdade, uma complexidade na demanda que acaba por deixar a tramitação processual mais morosa e burocrática: há uma maior dificuldade na publicidade dos atos judiciais, aumenta-se o número de incidentes, entre outras situações. Tanto isso é verdade que já há uma praxe, por parte dos juízes, de limitar o número de litisconsortes ativos nas ações de massa, com o intuito de simplificar o cumprimento da sentença.

Diante dessa observação da realidade forense nacional, forçoso concluir que a extensão da coisa julgada às questões prejudiciais, da forma analisada acima, acabará por tornar a tramitação do processo mais demorada e complexa – terá o efeito prático inverso daquele a que se originariamente propôs o instituto. A adoção da issue preclusion pelo nosso ordenamento jurídico pode trazer um excesso de litigiosidade e de complexidade para o nosso processo, o que é preocupante.

A realidade demonstra que um processo simplificado, desprovido de tantos ônus e preclusões, pode atender mais aos anseios da economia processual, da coerência e da segurança que um processo que busca centralizar o máximo de demandas em seu bojo.

Mas esse não é o único problema a ser enfrentado pela extensão da coisa julgada às questões prejudiciais.

Referiu-se, anteriormente, que a issue preclusion tem como fundamento o fato de que todas as cortes têm a mesma capacidade de decidir determinada questão. Se houver competência da corte para o conhecimento das demais questões prejudiciais, é passível que sobre elas incida o manto da coisa julgada.

Isso pode se amoldar perfeitamente às cortes inglesas e principalmente às norte-americanas, considerando o sistema de federalismo vigente nos Estados Unidos da América. Entretanto, a estrutura da nossa federação é totalmente diversa da estrutura norte-americana, que se caracteriza pela descentralização. Consigne-se, ainda, que a estrutura de uma federação é o espelho do seu regime de competências, sejam elas administrativas, sejam legislativas, sejam jurisdicionais.

Um sistema de preclusões, adaptado para um sistema federal descentralizado, por certo encontrará dificuldades e incoerências ao ser migrado para um sistema federal centralizado, como é o brasileiro. Isso porque essa migração envolverá problemas no que diz respeito à competência, conforme se passará a analisar.

Tome-se por base o exemplo do direito previdenciário. O sistema previdenciário público brasileiro é composto por um Regime Geral de Benefícios, gerido pela União, destinado aos trabalhadores celetistas, e pelo Regime dos Servidores Públicos, que poderá ser tanto gerido pela União (no que tange aos servidores públicos federais), pelos Estados (referentemente aos servidores públicos estaduais) ou pelos Municípios (os que possuírem regime próprio).

Dessa forma, um dependente de um segurado celetista falecido deverá pleitear pensão por morte na Justiça Federal, uma vez que o réu para essa demanda é o INSS, autarquia federal, na forma do artigo 109, I, da Constituição Federal. O mesmo se dará quando o dependente for de servidor público federal: a União será a ré do processo, e a competência será da Justiça Federal. Porém, se o dependente for de servidor público estadual ou municipal, a ação tendente à obtenção da pensão por morte deverá tramitar na Justiça Estadual.

Para se julgar uma ação que visa à obtenção do benefício previdenciário de pensão por morte, muitas vezes se é compelido a enfrentar a questão referente à qualidade de dependente. Por vezes, a questão da dependência é controversa nos autos: ou a condição de convivente não resta bem esclarecida, ou a dependência econômica não está comprovada.(16)

Considerando que a qualidade de dependente é requisito essencial para a concessão do benefício de pensão por morte, conclui-se que se trata de questão prejudicial a ser enfrentada, essencial ao julgamento da ação. Assim, para que o juiz conclua que a parte-autora tem direito ao benefício de pensão por morte, não pode ele deixar de analisar a questão referente à qualidade de dependente, caso haja controvérsia sobre tal fato no processo.

Segundo o regramento processual vigente, a declaração da existência de união estável, como questão prejudicial ao reconhecimento do direito à pensão por morte, não faz coisa julgada, nos termos do artigo 469, III, do Código de Processo Civil.

Deve-se, em face da proposta vigente no projeto do novo Código de Processo Civil, responder se a questão da qualidade de dependente controversa fará coisa julgada, caso reconhecida, se aprovada a redação do artigo 514, § 1º, do projeto do novo Código de Processo Civil.

Tratando-se de ação que vise ao reconhecimento de direito à pensão por morte no Regime Geral de Previdência Social, movida contra o INSS, tal questão não suscita maiores discussões. A declaração de dependência, no caso, não faria coisa julgada como questão prejudicial, tendo em vista que o Juiz Federal não teria competência para processar e julgar uma ação declaratória de união estável. Ao passo que a competência para processar a ação que visa ao reconhecimento do direito à pensão e ao pagamento das prestações devidas é da Justiça Federal, tendo em vista que movida contra autarquia federal, o juízo competente para processar e julgar a ação declaratória de união estável é da Justiça Estadual. Não tendo o Juiz Federal competência absoluta para processar e julgar a questão prejudicial, o reconhecimento desta no bojo da ação principal não terá o condão de caracterizar coisa julgada, esbarrando no óbice existente no já citado artigo 514, § 1º, III, do projeto do novo Código de Processo Civil.

Por outro lado, pode-se alterar o exemplo em análise. Imagine-se que se trata de uma ação visando à concessão de pensão por morte, mas não relativamente a um segurado do Regime Geral de Previdência Social, e sim referentemente ao óbito de um servidor público estadual. Havendo efetiva controvérsia sobre a qualidade de dependente no caso, tem-se uma questão prejudicial a ser resolvida em âmbito da ação principal (a de concessão de pensão por morte). No caso, a ação da pensão por morte deverá tramitar no Juízo Estadual, tendo em vista que o réu será o instituto responsável pela gestão da previdência pública estadual. E, considerando que o Juízo Estadual também é o competente para a ação declaratória de união estável, pode-se afirmar que, em se tratando de ação visando à concessão de benefício de pensão por morte de servidor público estadual, a questão prejudicial fará coisa julgada (desde que haja efetiva controvérsia sobre ela, naturalmente). Neste caso, não haveria juízo incompetente em razão da pessoa ou da matéria, pelo que seria absolutamente possível a incidência da coisa julgada nessa questão prejudicial.

Em situações como essas, percebe-se que a importação de um instituto do direito estrangeiro, por melhor que isso pareça, pode acarretar incongruências internas dentro do nosso ordenamento jurídico. Nos dois casos acima mencionados, têm-se duas situações ontologicamente iguais (uma questão prejudicial em uma demanda de pensão por morte) que podem receber tratamento diferenciado. A diferença entre as situações reside unicamente no fato de, em uma delas, o segurado instituidor da pensão ser trabalhador celetista ou servidor público federal e, na outra, servidor público estadual ou municipal. A questão prejudicial da qualidade de dependente, caso reconhecida, fará coisa julgada na ação de pensão por morte de servidor público estadual ou municipal e não o fará na hipótese de o segurado instituidor ser vinculado ao Regime Geral de Previdência Social. E isso se dará somente porque o nosso sistema de divisão de competências submete as demandas contra a União, autarquias, fundações e empresas públicas federais à Justiça Federal, tendo a Justiça Estadual a competência para as demandas remanescentes.

Esse tratamento diferenciado para situações idênticas, em sua essência, configura uma incongruência no sistema. Não haveria, por si, razão para que se atribuísse tratamento diferenciado, em se tratando dos limites objetivos da coisa julgada, às questões prejudiciais envolvendo demandas de pensão por morte, levando-se em consideração unicamente o vínculo do segurado instituidor.

Feitas tais considerações, pode-se inferir que a máxima relacionada à figura da issue preclusion (semelhante à regra veiculada pelo artigo 514, § 1º, do projeto do novo Código de Processo Civil), de que todas as cortes têm a mesma capacidade de decidir determinada questão, não se aplica ao sistema brasileiro. As normas de competência jurisdicional, em nosso ordenamento jurídico, são mais detalhadas e específicas, havendo um maior número de justiças especializadas. Tal fato é decorrente, como dito, da estrutura do nosso sistema federativo, totalmente diferente da estrutura federativa norte-americana, que enseja a máxima de que todos os Tribunais têm a mesma capacidade de decidir determinada questão.

Outrossim, parece que a adoção do instituto da issue preclusion (ou algo semelhante a isso) em nosso ordenamento jurídico pode trazer problemas e incongruências internas, o que vai de encontro à própria finalidade do instituto: além de não ensejar a economia processual, por tornar mais complexo o litígio, também não traz a coerência que se espera do sistema, pelas razões acima mencionadas.

Conclusões

Ao inserir a garantia constitucional no rol dos direitos fundamentais, o legislador constituinte outorgou relevância aos valores da segurança e da certeza jurídica. O fundamento dessa garantia é evitar a eterna possibilidade de revisão das decisões judiciais, o que acarretaria grave instabilidade. Aliás, a instabilidade e a falta de previsibilidade são incompatíveis com o Estado de Direito.

A ampliação dos limites objetivos da coisa julgada, estendendo-os às questões prejudiciais, a despeito do nobre intuito de que se reveste (outorgar coerência ao sistema e prestigiar a economia processual), parece não ser adequada ao nosso sistema. A adoção de regras complexas e de efetividade incerta não parece ser uma medida ideal. Não obstante o instituto da issue preclusion seja adotado por países da common law e por alguns países da civil law, é patente que se trata de um instituto complexo, que acaba por complicar a tramitação processual. Outrossim, na prática, não acarreta economia processual, nem mesmo poderia ensejar coerência. A despeito de evitar decisões contraditórias, o instituto acabaria por criar incongruências internas no sistema, decorrentes de nosso sistema de divisão de competências. Paradoxalmente, a busca incessante por economia processual e coerência entre as decisões acaba por ensejar mais demora, complexidade e incoerência na tramitação dos processos.

Por fim, conclui-se que a adoção de um critério restritivo no que tange aos limites objetivos da coisa julgada, tal qual se dá no Código de Processo Civil de 1973, é ainda mais efetiva que a migração da issue preclusion. A legislação processual vigente é mais simples e econômica, outorgando mais efetividade à prestação jurisdicional.

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Notas

1. PORTO, Sérgio Gilberto; USTÁRROZ, Daniel. Lições de direitos fundamentais no processo civil: o conteúdo processual da Constituição Federal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 29.

2. GIDI, Antonio; TESHEINER, José Maria Rosa; PRATES, Marília Zanella. Limites objetivos da coisa julgada no projeto de código de processo civil: reflexões inspiradas na experiência norte-americana. Revista de Processo: RePro, São Paulo, v. 36, n. 194, p. 101-138, abr. 2011.

3. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Sentença e coisa julgada: ensaios. 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 1995. p. 139.

4. CRUZ E TUCCI, José Rogério. A denominada “situação substancial” como objeto do processo na obra de Fazzalari. Revista de Processo: RePro, São Paulo, n. 68, p. 271-281, dez. 1992.

5. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Op. cit., p. 163.

6. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Op. cit., p. 167.

7. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A eficácia preclusiva da coisa julgada material no sistema do processo civil brasileiro. Temas de direito processual – 1ª série. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 104.

8. ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Sentença e coisa julgada. Rio de Janeiro: AIDE, 1992. p. 326.

9. TESHEINER, José Maria Rosa. Elementos para uma teoria geral do processo. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 188.

10. GIDI, Antonio; TESHEINER, José Maria Rosa; PRATES, Marília Zanella. Op. cit.

11. "§ 1º O disposto no caput aplica-se à resolução da questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se:
I – dessa resolução depender o julgamento do mérito;
II – a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia;
III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal.
§ 2º A hipótese do § 1º não se aplica se no processo houver restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial.”

12. CLERMONT, Kevin M.; CASAD, Robert C. Res judicata. A handbook on its theory, doctrine, and practice. Durham: Carolina Academic Press, 2001. p. 11.

13. CLERMONT, Kevin M.; CASAD, Robert C. Op. cit., p. 11.

14. Segundo Casad e Clermont, na obra citada, p. 113, “The doctrine of issue preclusion rests on the premise that one court should be as any other to resolve the issues in dispute”.

15. GIDI, Antonio; TESHEINER, José Maria Rosa; PRATES, Marília Zanella. Op. cit.

16. Nesse caso, refere-se àquelas hipóteses em que a dependência econômica deve ser comprovada para obter a pensão por morte, o que ocorre no caso do ascendente dependente e de colaterais. Cônjuges, companheiros e filhos menores ou inválidos têm a dependência econômica presumida, e essa presunção é absoluta.

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., ago. 2013 . Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS