Comentário: o Poder Judiciário na abordagem constitucional do meio ambiente

Autor: André de Souza Fischer

Juiz Federal

 publicado em 30.10.2013

 

Em brilhante palestra proferida no dia 19 de outubro de 2012, o Desembargador Federal aposentado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região Vladimir Passos de Freitas tratou do tema em epígrafe.

Sem dúvida alguma, trata-se de matéria de extrema importância na prática jurisdicional, pois cada vez mais se exige, em nome do desenvolvimento econômico e até mesmo social, o exercício de direitos decorrentes da propriedade, conjuntamente com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, com as consequências que um pode gerar sobre o outro quando se configure algum tipo de “conflito” entre os dois.

Sabidamente, a preservação do meio ambiente é questão que igualmente não tem sua importância resumida ao campo do direito ambiental, sendo tema de destaque no plano constitucional brasileiro. A Constituição Federal atual foi a que mais tratou do assunto, se analisada em conjunto com as Cartas anteriores. Essas, essencialmente, cuidavam apenas, quanto ao meio ambiente ou a aspectos diretamente correlatos, da proteção do patrimônio paisagístico, ou mesmo da função social da propriedade, mas não a ponto de relacionar esta com a tutela do meio ambiente, ou seja, de incluir a preservação ambiental como algo integrante da função social da propriedade.

Um dos pontos destacados como de futura discussão, possivelmente inclusive no plano judicial, diz respeito à relativamente recente exploração dos recursos do pré-sal, reserva energética contida na crosta terrestre em profundidade de milhares de metros que permite a extração/produção de petróleo. Se é provável que isso repercuta no meio ambiente, não se pode olvidar que se trata de recursos econômicos importantíssimos, cruciais ao desenvolvimento econômico do Estado. Nesse caso, não se pode simplesmente ignorar a presença de tais recursos em nome de uma proteção extremada e desarrazoada ao meio ambiente, desprovida de argumentos técnicos. Evidentemente que, de outro lado, tampouco se pode justificar toda e qualquer exploração de atividade econômica sobre o direito de propriedade, seja pública, seja particular, se não forem devidamente mensurados os danos que isso pode gerar em termos ambientais. O interesse coletivo poderá estar, conforme o caso, pendendo para um lado – exploração da propriedade – ou para outro – preservação do meio ambiente.

Ao se analisarem casos futuros que possam gerar grande repercussão nacional no que concerne a debates envolvendo a preservação ambiental, de um lado, e a necessidade/utilidade da exploração econômica de reservas naturais, de outro, indubitavelmente o pré-sal se coloca talvez na ponta desse grupo. Trata-se de riquezas minerais localizadas a grande profundidade do mar e a grande distância da costa, parâmetros certamente inéditos no que tange ao impacto ambiental que tal exploração gera e ainda possa vir a gerar. Isso não significa, contudo, que se deva adotar, de antemão, posicionamento que tutele de forma absoluta não só o dano, mas o próprio risco, apenas por causa do ineditismo do caso. É preciso, primeiro, que se dimensionem corretamente todas as consequências que o aproveitamento de tais recursos significa para que então não só os órgãos exploradores, mas principalmente os que tutelam o meio ambiente, tanto administrativamente como judicialmente, casos do Ibama e do Ministério Público Federal, por exemplo, possam analisar as medidas que devem e deverão ser tomadas visando a evitar prejuízo ao meio ambiente.

Partindo de tais premissas, também já me deparei com casos concretos, durante a atividade jurisdicional, em que a preservação do meio ambiente era o foco central da discussão, seja porque alguém pretendia derrubar limitações que órgãos ambientais impunham à sua exploração econômica, seja porque esta, já autorizada por órgãos de fiscalização (ou desacompanhada da devida atuação destes), era questionada por outros que visavam a preservar os locais atingidos por ela.

Um desses casos diz respeito a ação judicial em que determinada empresa possuía imóveis que foram adquiridos para servirem de subsistência às atividades do grupo empresarial, o que seria feito a partir da exploração sustentável das árvores ali existentes, que seria proibida em face de Resolução do Conama então vigente, visando à proteção da Mata Atlântica. Diante disso, a empresa alegava ter ficado absolutamente impedida de realizar qualquer exploração no imóvel, pois toda a sua extensão era coberta pela espécie vegetal araucária angustifólia, integrante daquele bioma.

É justamente na delimitação do real contorno jurídico da propriedade florestal que se encaixava a solução da controvérsia referida. O que precisava ser analisado era se a normatização estatal que restringia a exploração da Mata Atlântica delimitou o direito de propriedade ou se essa restrição impedira por completo a utilização econômica do imóvel, tendo ocasionado desapossamento indevido ou prejuízo suscetível de ser indenizado. A rigor, o ponto central da controvérsia era a identificação do que se considerava por efetiva interferência que causa lesão aos direitos do proprietário e o que se caracterizava como imposição de deveres jurídicos decorrentes da própria definição jurídica de propriedade, decorrentes de sua função social e consignados como pautas do exercício desse direito.

É importante realçar que os comandos constitucionais e a legislação infraconstitucional de modo algum tiveram o condão de proceder a desapropriações dos bens que se encontravam no interior do patrimônio de pessoas jurídicas distintas da União, sendo que os bens florestais permaneceram com a titularidade que ostentavam antes da promulgação da Lei Fundamental. O que ocorreu verdadeiramente é que o legislador ordinário, antecipando-se ao próprio constituinte de 1988, ao afirmar que as florestas e as demais formas de vegetação são bens de interesse comum de todos os habitantes do País, representou a intenção de conciliar as necessidades de intervenção com o resguardo do domínio privado. O proprietário, mesmo diante dos limites estritos do seu imóvel, não tem absoluta disposição da flora, só podendo utilizá-la na forma e nos limites estabelecidos pelo legislador.

Não há dúvida de que a União e os órgãos do Poder Executivo não poderiam permanecer inertes diante de uma cada vez maior ameaça à sobrevivência da Mata Atlântica. Se o próprio texto constitucional, em seu artigo 225, § 4º, ressalva que a utilização desse bioma (aí inclusa a exploração econômica) deveria não só se dar na forma da lei, mas também sempre visando à sua preservação, e o antigo Código Florestal já se antecipara ao plano constitucional, também autorizando a criação de limitações ao direito de propriedade objetivando a tutela ambiental da flora, se, em determinado ponto, constatou-se situação crítica de espécies da flora ameaçadas de extinção no bioma Mata Atlântica, não se podia dizer que era inconstitucional ou ilegal o ato que suspendera temporariamente a autorização para corte e exploração de espécies que a integram.

Paralelamente a isso, porém, é preciso se verificar até onde vai o direito de propriedade assegurado na Constituição Federal. Ele extrapola os limites da preservação do meio ambiente em que está situada área de Mata Atlântica? A meu ver, não. Sendo assim, fica claro que não há direito adquirido, nem mesmo como decorrência do direito constitucional de propriedade, à exploração irrestrita desse tipo de vegetação. Não há sequer um conflito de direitos, pois o de propriedade tem de ser interpretado em conjunto com as limitações que sofre no próprio texto constitucional.

Ora, considerando-se que não há direito adquirido à exploração econômica nociva à Mata Atlântica, pode-se concluir perfeitamente que os proprietários de áreas que delas fizeram uso econômico sempre tiveram não um direito, mas sim uma expectativa de direito de obtenção de autorização para tanto, que no passado acabou se confirmando, mas depois não se verificou porque existia um risco de dano ambiental que o próprio texto constitucional tratou de evitar e por isso colocar a sua necessária inexistência como pressuposto do uso da Mata Atlântica.

Contudo, isso não significa, por si só, dizer que o tipo de limitação que surgiu não seja passível de gerar indenização, pois isso depende da dimensão e do eventual prejuízo que gera a outros direitos, também assegurados no plano constitucional. É que não se pode olvidar que, mesmo sofrendo maiores limitações, o direito de propriedade não pode ser esvaziado ao ponto de que determinada área de terras perca completamente a sua utilidade e o seu valor econômico ao particular que a titula em face de atos normativos supervenientes ao momento em que adquiriu a propriedade.

Outro caso concreto interessante para citação que já enfrentei envolveu decisão um pouco diferente, se considerado que a exploração do meio ambiente, embora desprovida de toda a formalidade necessária, não foi tida como presumivelmente nociva a ele.

Tratava-se de ação judicial do Ministério Público Federal visando a apurar irregularidades praticadas contra o meio ambiente, em face dos barrageamentos do Rio Uruguai, especialmente licitação de concessão ou autorização de uso de potencial de energia hidráulica em corpo de água de domínio da União e o fato de isso não prescindir de obtenção de declaração de reserva de disponibilidade hidráulica. Alegava-se que o desenvolvimento social, mediante construção de hidrelétrica já em andamento, naquela situação, só existiria se houvesse preservação do meio ambiente, não existindo direito adquirido em matéria ambiental quando o seu exercício se revelasse prejudicial à natureza.

Nesse caso, após interpretação da legislação então vigente, concluí pela ausência de declaração de disponibilidade de recursos hídricos, que, desde a Lei nº 9.984/2000, passara a ser obrigatória para se poder licitar a concessão ou autorização de uso de potencial de energia hidráulica em corpo de água de domínio da União. Contudo, como, no caso em tela, a hidrelétrica cuja obra e cujos impactos sobre os recursos hídricos eram questionados estava em construção havia anos, bem como existiam outros elementos probatórios indicativos da probabilidade de haver recursos hídricos disponíveis ao seu funcionamento, isso contribuiu para se negar o pedido de suspensão da concessão do empreendimento hidrelétrico em questão, deferindo-se o menos (prática de atos tendentes à obtenção de declaração de disponibilidade hídrica) em relação ao mais (suspensão da concessão até que fossem praticados tais atos). Se outros elementos concretos colhidos indicavam a disponibilidade hídrica, o que poderia e deveria ser feito era a formalização disso por meio da autarquia competente para tanto, a Agência Nacional de Águas – ANA. Evidentemente que a ANA não ficou obrigada por tal decisão judicial a conceder a declaração de disponibilidade hídrica e sua conversão em outorga de direito de uso de recurso hídrico. Deveria, uma vez recebidas as informações técnicas necessárias, cumprir todas as etapas previstas para, ao final, deliberar sobre a disponibilidade, se houvesse, e, consequentemente, sua automática conversão em outorga de direito de uso desses recursos. Naquele caso, essa conversão passaria a ser automática porque, embora isso somente devesse ocorrer após o recebimento por parte da ANA do contrato de concessão ou do ato administrativo de autorização para exploração de potencial de energia hidráulica localizado no rio em que se declarou a disponibilidade de recursos, no caso em tela já havia a concessão, então a declaração de disponibilidade, se emitida, automaticamente deveria vir acompanhada do ato de outorga. Veja-se, inclusive, outro motivo da importância da declaração de disponibilidade no caso concreto por parte da ANA: esse ato seria preparatório e necessário à posterior outorga do direito de uso, sendo que ele estabelece (a) prazo, (b) eventual revisão em face do advento de plano de recursos hídricos e (c) outras condições específicas para que o outorgado possa fazer uso de tais recursos, que continuam sendo propriedade da União.

Somente então, de posse do resultado dessa decisão administrativa que acima se determinou, é que caberia aos órgãos públicos competentes e ao consórcio vencedor da licitação, devidamente fiscalizados pelo Ministério Público Federal, deliberarem sobre eventual alteração na concessão em questão. Com isso, não se ignorou a importância da exploração dos recursos naturais que ali se visava a realizar, além do estágio em que a obra já se encontrava quando da decisão. Seria de rigor extremo suspender toda a atividade já desenvolvida por causa da falta de um documento “protetivo” quando havia outros elementos probatórios indicativos de que este teria sido emitido caso tivesse havido a provocação e a participação do órgão competente. Embora importante à exploração dos recursos hídricos, entendi que não se poderia adotar uma postura de radicalismo extremo em termos de proteção ambiental, presumindo o dano pelo descumprimento “temporário” de norma administrativa, quando outros fatos indicavam que tal prejuízo não estava ocorrendo ao meio ambiente, ainda que a irregularidade devesse ser sanada – e somente depois, se fosse o caso, efetivamente constatado o dano com a negativa da emissão da declaração referida.

Assim, pela análise de casos como os acima citados, pode-se concluir que o Poder Judiciário enfrenta e tenderá a ser desafiado cada vez mais a se pronunciar e a delimitar o tema relativo a até onde pode e deve o meio ambiente ser afetado pela prática de atividades econômicas. Isso porque, de um lado, não se pode justificar todo e qualquer desmatamento ou dano ambiental em nome do progresso, lançando-se mão, inclusive, da tutela do risco, valorizando-se o princípio da precaução ou da prevenção, mas, de outra banda, muitas vezes o dano ou prejuízo pode ser evitado, contornado ou mitigado a ponto de potencializar a importância que determinada atividade econômica gera para a coletividade, mesmo quando afete o meio ambiente de alguma maneira.

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., out. 2013. Edição especial 25 anos da Constituição de 1988. (Grandes temas do Brasil contemporâneo). Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS