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publicado em 30.10.2013
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Um dos temas abordados no Módulo de Direito Constitucional do Currírulo Permanente no ano de 2012 foi “O princípio constitucional da segurança jurídica (proteção da confiança) e a jurisprudência do STF. Avanços e retrocessos”, ministrado pelo ilustre conferencista Almiro do Couto e Silva. O tópico trabalhado, conquanto pareça, em um primeiro momento, de maior relevância acadêmica ou científica, bate constantemente às portas do Poder Judiciário como imanente à solução de causas concretas das mais diversas naturezas e sob as mais variadas vertentes. Para os fins destes breves comentários, o princípio constitucional da segurança jurídica será analisado sob o enfoque da teoria do fato consumado, corriqueiramente abordada pelos tribunais pátrios. 1 O princípio constitucional da segurança jurídica A segurança jurídica, muito mais do que um princípio constitucional, é uma decorrência inevitável da própria ideia de Direito, assim entendido, sem qualquer pretensão de rigor científico, como norma de conduta social destinada a promover a paz e a ordem no seio da comunidade em que vigora. O ordenamento jurídico existe justamente para conferir segurança às relações sociais. Essa segurança pressupõe, necessariamente, que os destinatários das normas conheçam o seu teor e que elas de fato incidam sobre o substrato fático e produzam os consequentes efeitos concretos. Por essas razões, não há como, em um Estado de Direito, sua Constituição não encampar o princípio da segurança jurídica, zelando pela preservação do ordenamento posto e pela confiança que os indivíduos nele depositam. No caso específico do Brasil, a segurança já vem estampada no próprio preâmbulo da Constituição como valor a ser assegurado e perseguido pelo Estado, o que se repete no caput do art. 5º, um dos pilares de nosso sistema constitucional, e deve ser entendida em seu mais largo significado, abrangendo, inclusive, a segurança jurídica. Conquanto não existam maiores controvérsias nos âmbitos acadêmico, doutrinário e jurisprudencial a respeito da preservação da segurança jurídica como princípio constitucional, atualmente a Constituição dita claramente a necessidade de que ela – a segurança jurídica – seja um dos principais objetivos a serem alcançados pelo Estado, e notadamente pelo Poder Judiciário. Com efeito, ao dispor sobre o instituto da “súmula vinculante”, o art. 103-A, § 1º, da Carta Magna, incluído pela EC 45/2004, estabelece o seguinte: Os mecanismos processuais acima mencionados constituem uma demonstração de um dos vetores da segurança jurídica, qual seja, o da segurança a respeito do exato teor das normas jurídicas, que deve ser esclarecido, disseminado e aplicado nas relações jurídicas concretas de forma coerente e previsível. Uma perfeita concepção da ideia de segurança jurídica pressupõe, além da definição e da disseminação do conteúdo das normas jurídicas, com a consequente previsibilidade na forma de sua aplicação, a confiança dos destinatários das leis no seu respeito por toda a sociedade. A coercibilidade do ordenamento jurídico, para torná-lo operável e socialmente legítimo, deve atuar somente em hipóteses excepcionais em que um ou alguns de seus destinatários realmente vislumbre a violação de direito subjetivo seu. É preciso que haja um mínimo de afinidade entre as normas jurídicas e os anseios da sociedade em que elas vigoram para que sua força normativa atue principalmente de forma originária e espontânea. Os indivíduos devem acreditar, ao menos em regra, que os membros do grupo a que pertencem obedecem ao direito posto. A confiança é um dos pilares que sustentam um Estado de Direito que realmente atinge seus objetivos de promover a paz e a justiça. A partir do momento em que todo ou qualquer ato jurídico tenha sua validade questionada incontinenti, ou em que haja a necessidade de prévia validação administrativa ou judicial de todas as relações jurídicas operantes no seio de uma sociedade, o Direito torna-se algo absolutamente extrínseco aos seus destinatários e sufoca a liberdade e o bem-estar dos cidadãos, ao invés de protegê-los. Essa confiança na legitimidade social do Direito e na sua operatividade em situações de normalidade é que traz a segurança necessária ao desenvolvimento da vida em sociedade. Se as pessoas deixam de celebrar negócios jurídicos de qualquer natureza por temor de que o outro contratante os descumpra; se os motoristas ficam receosos em seguir em uma via preferencial ou em atravessar um cruzamento com o sinal verde por temerem que outros motoristas não obedeçam às regras de trânsito; se os cidadãos não depositam fé em uma licença do Estado para edificar uma obra, então o Direito realmente não opera por carecer a sua aplicabilidade voluntária de qualquer credibilidade, de confiança. Nesse contexto, não existe segurança jurídica, ainda que o conteúdo das leis seja conhecido e previsível. Para preservar a confiança na situação jurídica de fatos que se consolidaram no tempo sem contestação a respeito de sua validade é que vem sendo construída, principalmente na jurisprudência, a teoria do fato consumado. Trata-se de um mecanismo interpretativo que prestigia a confiança na juridicidade daquilo que ocorreu em detrimento, muitas vezes, do exato teor da lei. Como se pode perceber, existe, na teoria do fato consumado, um conflito potencial intrínseco entre os próprios elementos da segurança jurídica. De um lado está a necessidade de efetiva aplicação da norma jurídica e, de outro, a de preservação de situações que, não obstante estejam em descompasso com essa norma, trouxeram aos seus destinatários a expectativa de que eram válidas e perdurariam no tempo. Se não há segurança jurídica quando as leis não são aplicadas, também não há quando o são após criadas legítimas expectativas de manutenção do status quo. Está aí a dificílima função do Poder Judiciário de sopesar a efetividade das normas jurídicas e a confiança em situações já consolidadas pelo tempo que não afrontaram abertamente o ordenamento jurídico. Em alguns casos, o próprio legislador fez a escolha pela proteção da confiança sobre a da correta e irrestrita aplicação da lei. É o que se dá, por exemplo, por meio dos institutos da prescrição e da decadência. Ainda assim, a riqueza e a diversidade das situações concretas, o longo período de tramitação processual de demandas postas à apreciação dos órgãos jurisdicionais e a constante alteração da jurisprudência são fatores que, dentre inúmeros outros, fazem emergir a constante necessidade de ponderações de valores para preservar a eficácia do Direito e da Constituição, não necessariamente aplicando suas normas individuais a qualquer custo, mas também zelando pela confiança naquilo que eles – Direito e Constituição – permitiram que se concretizasse sem resistência durante o tempo. A teoria do fato consumado, talvez pela própria dificuldade em se estabelecer em que consiste a segurança jurídica e se ela é concretizada por meio da aplicação da lei conforme interpretada pelos juízes em toda ou qualquer situação ou pela manutenção de situações já consolidadas, é objeto de muitas divergências em nossos tribunais. Somente a título exemplificativo, seguem abaixo decisões em que ela foi expressamente afastada, de forma que a segurança jurídica traduziu-se, segundo o decidido, na preservação da força normativa da lei regulamentadora da situação fática, interpretada pelos tribunais. “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. CONCURSO PÚBLICO. PARTICIPAÇÃO EM CURSO DE FORMAÇÃO EM DECORRÊNCIA DE DECISÃO LIMINAR. TEORIA DO FATO CONSUMADO. INAPLICABILIDADE. “ADMINISTRATIVO. PROMOÇÃO AO POSTO DE CAPITÃO POR MEIO DE DECISÃO PRECÁRIA. SENTENÇA CONCESSIVA DA SEGURANÇA REFORMADA EM MENOS DE UM ANO POR ACÓRDÃO COM TRÂNSITO EM JULGADO. TEORIA DO FATO CONSUMADO. INAPLICABILIDADE À ESPÉCIE. Por outro lado, nas decisões que seguem, a teoria do fato consumado serviu para privilegiar, a título de segurança jurídica, uma situação fática já consolidada em detrimento da aplicação da norma jurídica tal qual prevista no ordenamento. “ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. EXAME NACIONAL DE DESEMPENHO DOS ESTUDANTES (ENADE). OBRIGATORIEDADE. COLAÇÃO DE GRAU. SITUAÇÃO FÁTICA CONSOLIDADA. APLICAÇÃO DA TEORIA DO FATO CONSUMADO. “ADMINISTRATIVO. UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. SISTEMA DE COTAS. EGRESSOS DE ESCOLA PÚBLICA. EXCLUSÃO DE ALUNA DO SISTEMA DE COTAS. DECURSO DE ANOS DA CONCESSÃO LIMINAR. TEORIA DO FATO CONSUMADO. No mais, o Supremo Tribunal Federal, em dois julgamentos recentíssimos e emblemáticos, adotou a teoria do fato consumado para estabilizar definitivamente situações a priori juridicamente válidas, mas que vieram a ser reconhecidas como inconstitucionais após considerável período e depois da produção de efeitos concretos de grande relevância pelos atos questionados. O primeiro foi o julgamento proferido na ADI nº 4029, em que decidido que a emissão de parecer por comissão mista de deputados e senadores antes do exame, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das casas do Congresso Nacional (CF, art. 62, § 9º) é fase de observância obrigatória no processo constitucional de conversão das medidas provisórias em leis ordinárias. No entanto, ressalvou a Corte Constitucional que as medidas provisórias até então já convertidas em lei teriam sua validade e eficácia preservadas. O segundo foi o julgamento do pedido de liminar no Mandado de Segurança nº 31.816, no qual se questionava a apreciação, pelo Congresso Nacional, do veto parcial da presidenta Dilma Rousseff ao Projeto de Lei 2.565/2011 (convertido na Lei 12.734/2012), que trata da partilha de royalties relativos à exploração de petróleo e gás natural. A Corte, por maioria, seguiu o voto do Ministro Teori Zavascki, que apontou o descumprimento das regras procedimentais constitucionais para a apreciação dos vetos do Poder Executivo, mas observou que, por outro lado, a manutenção da liminar criaria sérios problemas para a atividade legislativa, uma vez que a imposição do sobrestamento a que se refere a Constituição Federal diria respeito a todas as proposições legislativas, não apenas aos vetos presidenciais. O seguinte trecho do voto condutor do julgado bem demonstra as circunstâncias que levaram o STF a manter a validade de situações e atos que em princípio estariam em desacordo com as regras constitucionais: “Segundo as informações colhidas no processo, trata-se de descumprimento reiterado e antigo, a ponto de se ter atualmente pendentes de apreciação mais de 3 mil vetos, alguns com prazo vencido há 13 anos”, afirmou o Ministro. Para ele, uma rígida aplicação dos princípios constitucionais invocados no MS 31816 com eficácia ex tunc (retroativa) resultaria em um futuro caótico para atuação do Congresso Nacional, pois implicaria paralisar qualquer nova deliberação, e ainda lançaria um “manto de insegurança jurídica” sobre todas as deliberações tomadas pelo Congresso nos últimos 13 anos. Aliás, as permissões legais para que o Supremo Tribunal Federal module os efeitos das decisões proferidas em julgamentos de Ações Diretas de Inconstitucionalidade por Ação ou Omissão (art. 27 da Lei nº 9.868/99) e de Arguições de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (art. 11 da Lei nº 9.882/99) nada mais constituem, na realidade, do que a positivação da teoria do fato consumado no âmbito das referidas ações constitucionais, ainda que mediante a adoção de estreitas balizas. Como a teoria do fato consumado, conquanto constitua uma das vertentes de incidência do princípio da segurança jurídica, acaba por mitigar a aplicação das leis tal qual interpretadas a fatos que a elas estariam subsumidos, aplicação essa que também é, de seu turno, uma medida de preservação do mesmo princípio da segurança jurídica, nessa segunda hipótese, relacionada à certeza de que as leis terão efetividade, é preciso que se busquem elementos, requisitos, critérios para que se decida, em cada caso concreto que demande o enfrentamento dessa questão, qual dos valores albergados pelo dito princípio deve prevalecer: a confiança no fato consumado ou a credibilidade na infalível incidência da lei. Ainda que o tema demande um aprofundado estudo, o que não é objeto destas breves considerações, é válido notar que diversas decisões, principalmente no Superior Tribunal de Justiça, já vêm enfrentando a questão e delimitando critérios e circunstâncias que devem ser considerados para a aplicação da teoria do fato consumado, como, por exemplo, o fato de o litígio estar ou não judicializado ou de uma das partes envolvidas ser a Administração Pública, as consequências sociais e individuais decorrentes da prevalência da lei ou do fato ocorrido em desacordo com ela, dentre outros. Parâmetros para o enfrentamento das vertentes do princípio da segurança jurídica foram positivados em nosso ordenamento jurídico, o que lhes proporciona carga normativa e impositiva, pelo art. 27 da Lei nº 9.868/99 e pelo art. 11 da Lei nº 9.882/99. O primeiro, cuja redação fora encampada também pelo segundo, estabelece o seguinte: A experiência jurisdicional, aliada ao tempo, pode contribuir sobremaneira para a construção de limites e condições seguras para a adoção da teoria do fato consumado, que merece detida e aprofundada análise pelos operadores do direito. |
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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