Responsabilidade extracontratual do Estado: das origens históricas à objetivação

Autor: Fábio Soares Pereira

Juiz Federal Substituto

publicado em 30.10.2013



Resumo

A responsabilidade extracontratual do Estado atravessou diversas etapas evolutivas ao longo da história. De uma longa fase da irresponsabilidade, avançou, quando passou a ser explicada por teorias pautadas na culpa – inicialmente civil e, posteriormente, publicizada –, para, enfim, com a teoria do risco, ser finalmente objetivada. No Brasil, sucessivas constituições trataram do tema, mas a responsabilidade objetiva, nos moldes atuais, foi constitucionalizada somente em 1946. A regra geral da responsabilidade objetiva – independentemente de culpa – encontra-se, atualmente, contemplada no art. 37, § 6º, da Constituição Federal. Os requisitos para a responsabilidade extracontratual do Estado são: (a) ação ou omissão estatal; (b) nexo de causalidade (merecendo especial destaque o estudo da relação causal, especialmente no que toca à responsabilidade do Estado por suas omissões); e (c) dano.

Palavras-chave: Responsabilidade civil do Estado. Responsabilidade civil por omissão.

Sumário: Introdução. I Evolução histórica da responsabilidade extracontratual do Estado. 1 Teoria da irresponsabilidade do Estado. 2 Teorias civilistas. 3 Teorias publicistas. 3.1 Teoria da culpa administrativa. 3.2 Teoria do risco administrativo. II Da responsabilidade extracontratual do Estado no Brasil. 1 Breve síntese histórica a partir das constituições do Brasil. 2 Dos pressupostos da responsabilidade extracontratual do Estado. 2.1 Ação ou omissão imputável ao Estado. 2.1.2 A responsabilidade subjetiva do agente público. 2.2 Relação de causalidade entre ação/omissão e dano. 2.2.1 Ainda sobre o nexo causal: concausas e excludentes do nexo causal. 2.2.2 Responsabilidade do Estado por atos omissivos. 2.3 Do dano. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

A responsabilidade extracontratual do Estado (comumente nominada “responsabilidade civil do Estado” ou, ainda, responsabilidade aquiliana) objetiva, nos moldes em que atualmente a conhecemos, resulta de um lento processo evolutivo colorido por marcos históricos importantes, representado por sucessivas teorias que se seguiram ao longo do tempo. 

Dos principais fundamentos de cada uma das teorias que – especialmente embasadas em lições colhidas do direito francês – fundamentaram (e ainda fundamentam) a responsabilidade extracontratual estatal (sobretudo no âmbito europeu) ocupa-se a primeira parte deste capítulo.

No segundo capítulo, o enfoque recai sobre o direito positivo brasileiro. Inicia-se a abordagem a partir de um rápido histórico do tratamento conferido ao tema pelas constituições do país. Após, parte-se para o exame dos pressupostos da responsabilidade extracontratual do Estado: (a) ação ou omissão imputável ao Estado; (b) relação de causalidade; (c) dano indenizável. 

Em relação ao ato (ou omissão) imputável ao Estado, parte-se da abrangência da expressão constitucional agentes públicos para, após, examinar-se a responsabilização subjetiva de tais agentes, bem como os contornos do direito de regresso que compete ao Poder Público.

No que toca ao nexo de causalidade, investiga-se a teoria adotada pelo Brasil, não apenas com base em importantes ensinamentos doutrinários, mas, também, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Após, sobrevém o estudo das concausas e, também, das excludentes do nexo causal. No ponto, destaca-se, por fim, o estudo do regime de responsabilização aplicável (subjetivo ou objetivo) ao Estado por atos omissivos.

Ainda em relação aos pressupostos da responsabilidade civil do Estado, pontuais considerações são traçadas a respeito do dano indenizável.

Ao final, as principais conclusões extraídas deste breve trabalho são sintetizadas, devidamente numeradas, seguindo a ordem de abordagem do tema aqui adotada.

I Evolução histórica da responsabilidade extracontratual do Estado

1 Teoria da irresponsabilidade do Estado


Por ser o Estado o próprio criador do Direito, não poderia, por suas ações ou omissões, violá-lo. Da mesma forma, por possuir soberania, não poderia ser responsabilizado por seus atos, já que cabia aos particulares submeterem-se à vontade do Estado, e não o contrário.

A ideia de que o Estado não pode ter responsabilidade por seus atos, típica de estados absolutos (embora não apenas neles tenha se manifestado),(1) sempre foi bem representada pelas conhecidas máximas “the king can do no wrong” e “l’etat c’est moi(2) (ou, ainda, “le roi ne peut mal faire”). Essas, em essência,(3) eram as bases da teoria da irresponsabilidade.(4)

É verdade que, em determinados momentos históricos, mesmo quando ainda se observava a irresponsabilidade do Estado como regra, os cidadãos nem sempre se viram totalmente desprotegidos diante da atuação estatal, seja porque leis especiais(5) prevendo indenizações gradativamente surgiram, seja porque, como bem observa Celso Antônio Bandeira de Mello, passou a ser possível (ainda que com certas dificuldades) obter “a responsabilidade do funcionário, quando o ato lesivo pudesse ser diretamente relacionado a um comportamento pessoal, seu”.(6)

Não surpreende, por razões óbvias,(7) que a tese esteja, nos dias atuais, totalmente superada.(8) Parece incrível, no entanto, que a teoria da irresponsabilidade do Estado(9) tenha sido aplicada, na França, pelo menos até o século XIX(10) e, nos Estados Unidos e na Inglaterra, tenha sido finalmente abandonada apenas em 1946 e 1947, respectivamente.(11)

2 Teorias civilistas

Antes de finalmente apoiar-se em pilares (preponderantemente)(12) revestidos de normas de Direito Público, a responsabilidade civil do Estado foi fundamentada por teorias tipicamente civilistas.

 Em um primeiro momento histórico, procurava-se distinguir, para fins de responsabilidade, os atos de império e os atos de gestão. Os primeiros, ensina Di Pietro,

“seriam os praticados pela Administração com todas as prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial, exorbitante do direito comum, porque os particulares não podem praticar atos semelhantes; os segundos seriam praticados pela administração em condição de igualdade com os particulares, para a conservação e o desenvolvimento do patrimônio público e para a gestão de seus serviços.”(13)

Diante das dificuldades práticas de definição entre as duas modalidades de atos – distinção que partia, aliás, da premissa equivocada de que o Estado poderia “dividir sua personalidade” (em Estado e Administração)(14) –, a teoria acabou sendo abandonada, mas, ainda, por outra concepção igualmente civilista.

Essa segunda concepção por certo representava uma evolução, por não mais questionar a natureza do ato para definir possíveis responsabilidades, já que, agora, equiparavam-se, com base na lei civil, Estado e particular.

Exigia-se, no entanto, a prova da culpa ou do dolo do agente público(15) (cujos contornos eram extraídos do direito civil comum) para fins de responsabilização.

Não obstante, como observa Cahali,

“também o pressuposto da culpa, como condição para a responsabilidade civil do Estado, acabou se definindo como injustificável pela melhor doutrina; em especial naqueles casos em que o conceito de culpa civilística, por si só ambíguo, já não bastava para explicar o dano que teria resultado de falha da máquina administrativa, de culpa anônima da Administração, buscando-se, então, supri-la por meio de uma concepção publicística.”(16)

3 Teorias publicistas

Diante da insuficiência das concepções baseadas na culpa civil, que ainda não permitiam a adequada e suficiente responsabilização estatal por seus atos, teve início, finalmente, o processo de publicização da responsabilidade civil extracontratual (ou aquiliana)(17) do Estado.

O famoso caso Blanco – famoso não propriamente pela questão de fundo suscitada no processo, mas sobretudo pelo conflito de competência instaurado –, de 08 de fevereiro de 1873, é considerado pela doutrina não apenas o principal marco de publicização(18) da responsabilidade civil do Estado, mas também fundamento do Direito Administrativo Francês.(19)

Na cidade de Bordeaux, na França, em 03 de novembro de 1871, um vagonete (vagão com motorização própria) pertencente à Companhia Nacional de Manufatura de Fumo, conduzido por quatro empregados, ao sair subitamente de dentro do estabelecimento onde estava, atingiu a menina Agnès Blanco, de apenas cinco anos de idade, que atravessava a rua, vindo a feri-la gravemente, com a amputação, inclusive, de uma perna. O pai de Agnès, Jean Blanco, ingressou com uma ação na “Justiça comum”,(20) alegando a responsabilidade civil do Estado por culpa de seus funcionários.

Suscitado conflito de atribuições entre a jurisdição comum (Corte de Cassação) e o contencioso administrativo (Conselho de Estado), o Tribunal de Conflitos, após empate inicial (4 votos a 4), definiu,(21) a partir de voto do Ministro da Justiça Jules Dufaure, presidente da Corte, que a ação deveria ser resolvida pela jurisdição administrativa.

A partir daquela decisão – e não propriamente da solução que foi, ao final, dada ao caso(22) –, começaram a surgir as denominadas teorias publicistas: teoria da culpa administrativa (ou “faute du service" ou culpa anônima) e teoria do risco (com seus desdobramentos – risco administrativo e risco integral).

3.1 Teoria da culpa administrativa

A teoria da culpa administrativa tem sua origem no Direito Francês (“faute du service”). Trata-se, importante destacar, de teoria que ainda se assentaria na culpa, mas não mais na culpa civil comum,(23) e sim em uma culpa anônima ou impessoal, que passa a serimputada ao serviço. Há, pois, responsabilidade do Estado quando o serviço não funciona – devendo funcionar –, funciona mal ou funciona atrasado,(24) possibilitando, assim, a responsabilização estatal por omissão injustificada.

Não se tratava de teoria que visava a fornecer suporte teórico à responsabilização objetiva do Estado, diversamente do que referiu parte da doutrina, provavelmente motivada, como explica Celso Antônio Bandeira de Mello, por uma “defeituosa tradução da palavra faute. Seu significado corrente em francês é o de culpa. Todavia, no Brasil, como de resto em alguns outros países, foi inadequadamente traduzida como ‘falta’ (ausência), o que traz ao espírito a ideia de algo objetivo”.(25)

A constatação de que a teoria evoluiu para, em determinados casos, imputar previamente ao ente estatal uma verdadeira presunção de culpa(26) – como forma de viabilizar, no plano concreto, a reparação do dano(27) – não elidiria, conforme sustenta Celso Antônio Bandeira de Mello, por ainda ser possível a prova de que não houve culpa, “o caráter subjetivo dessa responsabilidade”.(28)

3.2 Teoria do risco administrativo

Depois de um longo período de irresponsabilidade estatal, o instituto da responsabilidade civil do Estado passou por teorias civilistas, publicizou-se, com a teoria da culpa administrativa,(29) e, finalmente, chegou a seu estágio atual de evolução: a responsabilidade objetiva embasada no risco.

A objetivação da responsabilidade decorreu da constatação de que a atuação estatal, por sua natureza, implica proveitos, mas também riscos à coletividade, devendo o Estado, quando o risco invade concretamente o patrimônio jurídico de outrem,(30) assumir os ônus pelos danos causados, pois, como bem observa Di Pietro,“assim como os benefícios decorrentes da atuação estatal repartem-se por todos, também os prejuízos sofridos por alguns membros da sociedade devem ser repartidos”. Daí porque, “quando uma pessoa sofre ônus maior do que o suportado pelos demais, rompe-se o equilíbrio que necessariamente deve haver entre os encargos sociais; para restabelecer esse equilíbrio, o Estado deve indenizar o prejudicado, utilizando recursos do erário público”.(31)

Assim, se a criação do risco decorre do exercício da atividade pública, e não propriamente de dolo ou culpa de seus agentes, não há razão para apreciar o elemento subjetivo para a definição da responsabilidade, bastando, para tanto, o nexo causal entre a atividade estatal e o dano.

Parte da doutrina administrativista entende que a teoria do risco estaria dividida entre risco administrativo e risco integral.(32) No ponto, há, sem dúvida, profunda imprecisão terminológica. De acordo com Di Pietro, no entanto, “tais divergências”(33) seriam

“mais terminológicas, quanto à maneira de designar as teorias, do que de fundo. Todos parecem concordar em que se trata de responsabilidade objetiva, que implica averiguar se o dano teve como causa o funcionamento de um serviço público, sem interessar se foi regular ou não. Todos também parecem concordar em que algumas circunstâncias excluem ou diminuem a responsabilidade do Estado.”(34)

De qualquer sorte, não se pode ignorar – ainda que, para tanto, não seja realmente necessário falar-se em uma teoria diversa do risco administrativo – que há, realmente, algumas hipóteses no Direito brasileiro em que as causas excludentes da responsabilidade do Estado apresentam-se nitidamente mitigadas, como, por exemplo, nas hipóteses de danos causados por acidentes nucleares (art. 21, XXIII, d, da Constituição Federal) e atos terroristas (Lei nº 10.744/2003).

II Da responsabilidade extracontratual do Estado no Brasil

1 Breve síntese histórica a partir das constituições do Brasil


Muito embora a responsabilidade civil possa ter sido, em determinados pontos da história do país, imputada à pessoa do funcionário público,(35) e não propriamente ao Estado, é possível afirmar, amparado em Amaro Cavalcanti(36) e Ruy Barbosa,(37) que o Brasil jamais experimentou uma fase de completa irresponsabilidade.

A Constituição Imperial, de 1824 (art. 179, alínea 29), já contemplava norma expressa a respeito da responsabilidade dos “empregados públicos”, por abusos no exercício de suas funções.(38)

A responsabilidade dos funcionários públicos foi ratificada, com redação muito próxima à anterior, pela Constituição da República, de 1891 (art. 82).(39)

A Constituição de 1934, por sua vez,(40) foi a primeira a prever a responsabilidade solidária entre os funcionários públicos e o Estado (art. 171).(41) O caput do art. 171 da Constituição de 1934 foi ratificado literalmente pela Constituição de 1937 (art. 158, caput).(42)

Apenas em 1946,(43) a “Constituição dos Estados Unidos do Brasil” passou a prever, em seu art. 194,(44) de forma pioneira na história das constituições do país, a responsabilidade objetiva do Estado.

A responsabilidade estatal objetiva foi ratificada pela Constituição de 1967, editada já sob a égide do Regime Militar (art. 105).(45) O panorama não foi alterado pela Emenda 1, de 1969, que ratificou o teor da disposição anterior (art. 107).

Atualmente, a regra geral da responsabilidade objetiva do Estado encontra fundamento no art. 37, § 6º, da Constituição Federal.

2 Dos pressupostos da responsabilidade extracontratual do Estado

De acordo com o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

A partir do texto constitucional, extraem-se, como requisitos da responsabilidade extracontratual objetiva do Estado, no Brasil(46): (a) ação ou omissão imputável ao Estado; (b) relação de causalidade; e (c) dano.(47)

2.1 Ação ou omissão imputável ao Estado

A Constituição Federal prevê a aplicação do regime disciplinado por seu art. 37, § 6º, às pessoas jurídicas de direito público e, também, às de direito privado, desde que prestadoras de serviços públicos. Em linhas gerais, pode-se afirmar que o regime de responsabilidade objetiva alcança

“todas as pessoas jurídicas de direito público interno, vale dizer, a União, os Estados, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações públicas, quando atuem quer sob as regras de direito público, quer sob as de direito privado. Além dessas, também as pessoas jurídicas de direito privado, da administração pública descentralizada ou indireta (i.e., as sociedades de economia mista, as empresas públicas e as fundações de direito privado instituídas ou mantidas pelo Poder Público), sempre que prestadoras de serviços públicos.(48)

Dispõe a Constituição Federal, ainda, que tais pessoas jurídicas responderão pelos danos que “seus agentes, nessa qualidade”,causarem a terceiros.

No ponto, duas observações são importantes. Em primeiro lugar, deve-se ter em vista que o vocábulo agente deve ser interpretado da forma mais ampla possível, para compreender não apenas os agentes públicos (que exerçam cargos, empregos ou funções públicas nos Poderes Judiciário,(49) Legislativo e Executivo), mas também, como bem observa Odete Medauar,

“todas as pessoas que, mesmo de modo efêmero, realizam funções públicas. Qualquer tipo de vínculo funcional, o exercício de funções de fato, o exercício de funções em substituição, o exercício de funções por agente de outra entidade ou órgão, o exercício de funções por delegação, o exercício de atividades por particulares sem vínculo de trabalho (mesários e apuradores em eleições gerais) ensejam responsabilização.”(50)

Já a expressão nessa qualidade”, complementa a autora, “traduz o vínculo que deve existir entre o desempenho de atividades junto à Administração e o evento danoso”.  De fato, atividades exercidas por agentes públicos que em nada se relacionem com suas funções públicas não estão, por certo, abrangidas pelo regime da responsabilidade objetiva.

Não fica afastada a responsabilização do Estado, por outro lado, nas situações em que o agente público excede os limites de suas atribuições (atuando com abuso de poder ou em desvio de função) ou, ainda, qualifica-se como funcionário de fato.

Nem sempre é fácil definir, em situações concretas, quando o agente público age nessa qualidade”.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu, em caso de acidente de trânsito envolvendo veículo oficial, que a a responsabilidade pública se caracteriza, na forma do § 6º do art. 37 da CF, ante danos que agentes do ente estatal, nessa qualidade, causarem a terceiros, não sendo exigível que o servidor tenha agido no exercício de suas funções. Precedente” (RE 294.440-AgR, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 14.05.2002, Primeira Turma, DJ de 02.08.2002).

No mesmo sentido, em caso de agressão praticada por soldado, com a utilização de arma da corporação(51):

“(...) incidência da responsabilidade objetiva do Estado, mesmo porque, não obstante fora do serviço, foi na condição de policial militar que o soldado foi corrigir as pessoas. O que deve ficar assentado é que o preceito inscrito no art. 37, § 6º, da CF não exige que o agente público tenha agido no exercício de suas funções, mas na qualidade de agente público.” (RE 160.401, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 20.04.1999, Segunda Turma, DJ de 04.06.1999)

2.1.2 A responsabilidade subjetiva do agente público

Se as pessoas jurídicas de direito público – e também as de direito privado prestadoras de serviço público – respondem objetivamente por danos que causarem a terceiros, a responsabilidade pessoal do servidor é subjetiva, ou seja, pressupõe, sempre, a atuação com culpa ou dolo.

Diante desse regime híbrido de responsabilização (objetiva para o ente estatal;  subjetiva para o agente público responsável), exsurgem, de imediato, as seguintes questões: seria possível ao particular que se considera vitimado por um dano imputável a um agente estatal (mediatamente) optar contra quem ajuizar eventual demanda? Ou seja, em vez de ajuizar a ação apenas em face da entidade pública (ou privada prestadora de serviços públicos), litigar também contra o agente responsável ou, ainda, apenas contra ele?

A propósito do tema, Celso Antônio Bandeira de Mello entende que“o art. 37, § 6º, não tem caráter defensivo do funcionário perante terceiro. A norma visa a proteger o administrado, oferecendo-lhe um patrimônio solvente e a possibilidade de responsabilidade objetiva em muitos casos”.(52)

A despeito da juridicidade da tese, a resposta às questões inicialmente formuladas revela-se, na linha da orientação do Supremo Tribunal Federal,(53) negativa, já que é firme, naquela Corte, o entendimento no sentido de que o art. 37, § 6º, da Constituição Federal

“consagra, ainda, dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular.” (RE 327.904, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 15.08.2006, Primeira Turma, DJ de 08.09.2006)

No mesmo sentido: RE 470.996-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 18.08.2009, Segunda Turma, DJE de 11.09.2009.

A respeito da denunciação à lide,(54) o Superior Tribunal de Justiça,(55) ao qual vem competindo, em última análise, o exame da matéria, vem reiteradamente decidindo no sentido de que, nas ações fundadas na responsabilidade objetiva do Estado,(56) “não é obrigatória” a denunciação, cabendo ao Estado, a despeito de não requerer a intervenção de terceiros, o direito de regresso em ação própria.   

2.2 Relação de causalidade entre ação/omissão e dano

Ao tratar do nexo causal em matéria de reponsabilidade civil extracontratual do Estado – instituto que, ratifica-se, não nasceu no seio do Direito Público –, os administrativistas valem-se de lições extraídas da responsabilidade civil comum. A doutrina civilista, por sua vez, frequentemente tem buscado no Direito Penal lições a respeito das (inúmeras) teorias que, ao longo do tempo, vêm procurando melhor explicar o fenômeno da causalidade.

A relação de causalidade(57) representa, sem dúvida, um dos pontos mais tormentosos do estudo da responsabilidade civil(58) extracontratual, seja por haver inúmeras teorias – por vezes, com nomes diversos, mas tratamento muito similar à matéria –, seja por não haver, tanto no âmbito doutrinário quanto no jurisprudencial,(59) uniformidade (longe disso, aliás) terminológica.(60)

Não há consenso doutrinário nem mesmo em relação à teoria(61) explicativa da relação de causalidade adotada no direito civil brasileiro. É possível afirmar, no entanto – e nesse aspecto parece não haver qualquer dissonância na doutrina especializada –, que a teoria adotada no direito penal brasileiro (art. 13)(62) – teoria da equivalência dos antecedentes ou conditio sine qua non(63) – não tem aplicabilidade no direito civil e, consequentemente, no direito administrativo.(64)  

O Supremo Tribunal Federal, em decisão datada de 1992,(65) a partir de voto de lavra do então Ministro Moreira Alves, consignou que a teoria do nexo causal adotada no Brasil não seria nenhuma das duas anteriores, mas a teoria do dano direto e imediato(66) (ou “teoria da interrupção do nexo causal”).(67)

Para Sergio Cavalieiri,(68) a teoria adotada no Brasil seria a da causalidade adequada.(69) A conclusão parece ser compartilhada, dentre outros, por Yussef Said Cahali(70) e Almiro do Couto e Silva.(71)

Seja qual for a teoria aplicável,(72) o Supremo Tribunal Federal, atualmente, vem trabalhando apenas com  a ideia de que deve haver “causalidade material(73) entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público” (AI 299.125, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 05.10.2009, DJE de 20.10.2009; RE 109.615, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 28.05.1996, Primeira Turma, DJ de 02.08.1996. Vide: ARE 663.647-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 14.02.2012, Primeira Turma, DJE de 06.03.2012).

No âmbito daquela Corte, a causalidade tem sido apurada casuisticamente, sem suporte específico e recorrente em uma ou em outra teoria:

“(...) A comprovação da relação de causalidade – qualquer que seja a teoria que lhe dê suporte doutrinário (teoria da equivalência das condições, teoria da causalidade necessária ou teoria da causalidade adequada) –, revela-se essencial ao reconhecimento do dever de indenizar, pois, sem tal demonstração, não há como imputar ao causador do dano a responsabilidade civil pelos prejuízos sofridos pelo ofendido. (...)” (RE 481110 AgR, Relator(a): Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 06.02.2007, DJ 09.03.2007 PP-00050 EMENT VOL-02267-04 PP-00625 RCJ v. 21, n. 134, 2007, p. 91-92)(74)

2.2.1 Ainda sobre o nexo causal: concausas e excludentes do nexo causal

Muitas vezes, poderá haver mais de uma causa adequada à produção do dano indenizável.(75) Para que se fale em concausa atribuível ao Estado, entretanto, adverte Almiro do Couto e Silva, deve-se estar diante de “violação, por parte do Poder Público, de um dever jurídico preexistente, porquanto os deveres que tem com relação aos particulares são limitados”. À evidência, nas palavras do autor, “o Estado não tem, por certo, o dever de tudo prover e de tudo cuidar. Apesar de ter muito poder, também não pode tudo”.(76)

Daí porque a responsabilidade do Estado deve ser excluída sempre que houver quebra do nexo causal; ou seja, quando ficar demonstrado que a causa adequada(77) do dano não é atribuível ao Estado, mas exclusivamente a fato da vitima, de terceiro ou, ainda, força maior.(78)

A propósito do fato (ou “culpa”)(79) da vítima, há duas possibilidades: pode ser exclusiva ou concorrente. Se o fato se verificou por conduta imputável exclusivamente à própria vítima do dano,(80) não há nexo causal entre a atuação estatal e o resultado, ficando excluída, evidentemente, a responsabilidade estatal. Se, no entanto, o dano foi produzido (também) pelo Estado, mas com contribuição da vítima, não se pode falar em rompimento total do nexo causal.(81)

Da mesma forma, não há dúvida de que, se o fato foi praticado exclusivamente por terceiro, sem qualquer conexão com a atuação estatal, não haverá, evidentemente, responsabilidade do Estado. Diferentemente, se o Estado contribui (ativa ou passivamente) para a atuação do terceiro, pode-se estar diante de hipótese de concorrência de causas para a produção do dano, aparecendo espaço para se falar em responsabilização estatal.

No que toca à força maior,(82) entende a doutrina que se trata de excludente da responsabilidade do Estado, por também quebrar o nexo causal, pois, como observa Celso Antônio Bandeira de Mello, se o dano “foi produzido por força maior, então não foi produzido pelo Estado”.(83) Não se aplicariam idênticas conclusões, entretanto, à hipótese de caso fortuito.(84) Como refere o autor, “o caso fortuito não é utilmente invocável, pois, sendo um acidente cuja raiz é tecnicamente desconhecida, não elide o nexo”.(85)

Parecem concordes todos, também, no sentido de que o Estado, mesmo em hipótese de força maior, responderá pelos danos sofridos por particulares quando, por omissão ou atuação deficiente, deixe de “realizar obras que lhe seriam exigíveis (ou as realizando de maneira insatisfatória)”, com as quais poderia ter evitado o prejuízo.(86)

2.2.2 Responsabilidade do Estado por atos omissivos

Foi dito, no ponto anterior, que a omissão estatal pode ser considerada causa, nas hipóteses de força maior ou mesmo de evento provocado por terceiro ou pela vítima, quando o Estado, tendo o dever jurídico de agir para evitar o dano (ou, pelo menos, minimizar seus efeitos), não o faz. 

Na definição, entretanto, do regime de responsabilização aplicável –objetivo ou subjetivo  (com base na “culpa anônima” ou culpa administrativa ou, ainda, faute du service) – talvez resida o ponto de maior complexidade de todo o estudo da responsabilidade civil do Estado.

Celso Antônio Bandeira de Mello é, atualmente, no Brasil, um dos principais defensores da tese de que, em atos omissivos, a responsabilidade civil do Estado é subjetiva. Segundo argumenta, “se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. (...) Logo, a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre responsabilidade por ato ilícito”.(87)  

Embora pareça possível afirmar que a maior parte da doutrina ainda vem defendendo a tese de que a responsabilidade estatal por suas omissões seria realmente subjetiva, dependendo, pois, de prova da culpa – citem-se, como exemplos, Lúcia do Valle Figueiredo,(88) Di Pietro,(89) Carlos Velloso,(90) dentre outros –, importantes vozes vêm demonstrando contrariedade ao entendimento referido.

Cavalieiri, por exemplo, sustenta que, em casos de omissão específica, ou seja, “quando o Estado, por omissão sua, crie a situação propícia para a ocorrência do evento em situação em que tinha o dever jurídico de agir para impedi-lo”,(91) deve responder objetivamente: “em nosso entender, o art. 37, § 6º, da Constituição não se refere apenas à atividade comissiva do Estado; pelo contrário, a ação a que alude engloba tanto a conduta comissiva como a omissiva”. Argumenta, por outro lado, que, quando se tratar de omissão genérica,(92) a responsabilidade será subjetiva.

Almiro do Couto e Silva também sustenta que há inúmeras situações em que um dano é causado por uma omissão do Poder Público e, ainda assim, a responsabilidade deve ser tida como objetiva.(93)   

Yussef Sahid Cahali sustenta que,

“ao nível da responsabilidade objetiva – e, consequentemente, da teoria do risco criado pela atividade administrativa –, descarta-se qualquer indagação em torno da falha do serviço ou da culpa anônima da Administração. Em vão, portanto, tentar-se uma superação dessas colocações antagônicas, buscando sua composição por meio de certas especificações ou decomposições da teoria do risco.”(94)

Argumenta, ainda, que a responsabilidade civil por omissão deve ser considerada objetiva, promovendo-se a discussão acerca da falha do serviço não mais no terreno da culpa, mas na esfera (igualmente objetiva) da causalidade:

“É que, deslocada a questão para o plano da causalidade, qualquer que seja a qualificação que se pretenda atribuir ao risco como fundamento da responsabilidade objetiva do Estado – risco integral, risco administrativo, risco-proveito –, aos tribunais se permite a exclusão ou atenuação daquela responsabilidade quando fatores outros, voluntários ou não, tiverem prevalecido na causação do dano, provocando o rompimento do nexo de causalidade, ou apenas concorrendo como causa na verificação do dano injusto.”(95)

O Supremo Tribunal Federal, em alguns casos, afirmou que a responsabilidade do Estado por atos omissivos seria subjetiva;(96) em outros tantos, no entanto, que parecem, inclusive, representar, atualmente, a maioria dos julgados, afirmou tratar-se de responsabilidade objetiva.(97)

Revela-se possível concluir, a partir do exame de inúmeros precedentes, que, para o Supremo Tribunal Federal, mesmo nos casos de omissão, a responsabilidade será inevitavelmente objetiva quando o risco administrativo (risco assumido) for exacerbado pela natureza – ou, em alguns casos, relevância – da atividade exercida.

Refiram-se, como exemplos, decisões que afirmaram a responsabilidade objetiva do Estado, com aplicação da teoria do risco administrativo, pela integridade física de menores sob guarda do Estado;(98) pela morte de detento (há, a propósito, jurisprudência reiterada no âmbito daquela Corte nesse sentido);(99) ou, ainda, por infecção hospitalar, com graves consequências, em estabelecimento público.(100)

De tudo o que foi dito, parece realmente possível considerar – a exemplo do que propõe Cahali, dentre outros – que, também nos casos de omissão, e mesmo sem recorrer às distinções entre omissão genérica e específica, deve ser objetiva a responsabilidade extracontratual do Estado.

A Constituição Federal não limitou (explícita ou implicitamente) a aplicabilidade do regime de responsabilização instituído em seu art. 37, § 6º, às ações (atos comissivos) do Estado. A circunstância de ter sido utilizada a expressão “causarem” (“a terceiros”) não é, diferentemente do que parece sugerir parte da doutrina, motivo idôneo para (apressadamente) concluir-se que, no alcance da norma constitucional, estariam abarcadas apenas as ações estatais, pois a ideia de causalidade deve ser tomada em seu aspecto normativo, e não puramente naturalístico. Assim, tanto a ação quanto a omissão estatal – qualificada (juridicamente) por um dever de agir descumprido – podem ser consideradas causas(101) de um evento.

No mesmo sentido, a falta ou insuficiência da atuação estatal pode (e deve) ser apurada objetivamente (no plano do nexo causal). De fato, se a atuação do Estado não era razoavelmente exigível, ou seja, se o Estado não estava (concretamente)(102) obrigado a evitar o dano, conclui-se que sua omissão não foi causa do resultado. Se, por outro lado, a omissão estatal – seja por não atuação, seja por atuação insuficiente – é passível de censura – ou seja, se, em determinadas circunstâncias, era razoável exigir-se que tivesse agido e, assim o fazendo, teria evitado o dano –, pode ser considerada causa do evento.

O dever de agir – quando descumprido injustificadamente(103) – ingressa na cadeia causal, ainda que associado à eventual ação anterior de terceiro (ou força maior), ligando, assim, o Estado ao dano.

Permanece perfeitamente possível o aproveitamento das valiosas lições da teoria do faute du service, sem prejuízo da constante evolução que experimentou (e ainda vem experimentando) o instituto da responsabilidade civil do Estado, desde que se compreenda que as hipóteses que ensejam a responsabilização estatal – o serviço funciona mal, não funciona ou funciona tardiamente – devem ser avaliadas no plano da causalidade, e não no da culpabilidade.(104)


A ideia de “culpa anônima” (ou “culpa publicizada”),resultante de um histórico esforço hermenêutico sobremaneira meritório, por representar, à época, o necessário divórcio da teoria civilista de culpa, dissociando a responsabilidade do Estado da “culpa” do agente público, apresenta-se desvestida – hoje, pode-se afirmar – de suficiente rigor científico, podendo ser atualmente substituída por critérios objetivos de aferição do dever jurídico de agir.

Não decorre daí, diferentemente do que argumentam os defensores da aplicação da teoria subjetiva nos casos de omissão, excessiva responsabilização do Estado. Seja considerando que a omissão estaria no plano da culpa – responsabilidade subjetiva –, seja deslocando o exame da omissão para o plano da causalidade – responsabilidade objetiva –, parece certo que só há responsabilidade estatal quando havia um dever jurídico preexistente de atuação. 

À evidência, o Estado não poderá ser responsabilizado “se nenhuma participação concorrente lhe pode ser imputada na causação do evento danoso, seja porque razoavelmente não seria de exigir-se do Estado a realização de obras que pudessem evitar ou atenuar os efeitos da natureza, seja porque aquelas realizadas seriam as únicas razoavelmente exigíveis”.(105)

Daí porque, em precedente relativamente recente, decidiu o Supremo Tribunal Federal que

“a qualificação do tipo de responsabilidade imputável ao Estado, se objetiva ou subjetiva, constitui circunstância de menor relevo quando as instâncias ordinárias demonstram, com base no acervo probatório, que a inoperância estatal injustificada foi condição decisiva para a produção do resultado danoso. Precedentes: RE 237561, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ 05.04.2002; RE 283989, rel. min. Ilmar Galvão, Primeira Turma, DJ 13.09.2002. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AI 600652 AgR, Relator(a):  Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, julgado em 04.10.2011)

Em tempo, convém reforçar que a definição acerca da suficiência – ou não – da atuação estatal (ou a relevância da omissão) ficará fatalmente relegada ao exame das circunstâncias de cada situação concreta levada a exame do Poder Judiciário, sempre sob o enfoque – ainda que implícito – do postulado da razoabilidade.(106)

2.3 Do dano

O ponto que aqui merece ser trabalhado diz com a possibilidade – ou não(107) – de responsabilização extracontratual do Estado por atos lícitos, pois, em relação às espécies de danos passíveis de indenização, não parece haver diferenciação em relação ao tratamento (doutrinário e mesmo jurisprudencial) empregado no âmbito do direito civil, sendo indenizáveis, portanto, danos patrimoniais e extrapatrimoniais (e suas respectivas categorias, inclusive as “recentemente” reconhecidas).(108)

Há muito, já afirmava Ruy Barbosa que “a legalidade do ato, ainda que irrepreensível, não obsta à responsabilidade civil da administração desde que haja dano a um direito”.(109) De fato, por vezes, como observa Celso Antônio Bandeira de Mello, “o poder deferido ao Estado e legitimamente exercido acarreta, indiretamente, como simples consequência – não como sua finalidade própria –, a lesão de um direito alheio”.(110)

Essa, aliás, é a linha seguida, nos dias atuais, reiteradamente, pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: “A consideração no sentido da licitude da ação administrativa é irrelevante, pois o que interessa é isto: sofrendo o particular um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, é devida a indenização, que se assenta no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais” (RE 113.587, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 18.02.1992, Segunda Turma, DJ de 03.03.1992).(111)

Há, no entanto, requisitos diversos em relação à responsabilização por atos ilícitos,(112) que exige apenas que o dano (a) seja certo e não eventual, ainda que futuro, e (b) atinja “situação jurídica legítima, suscetível de configurar um direito, ou, quando menos, um interesse legítimo”.

Para que se possa falar em indenização por atos lícitos, além dos requisitos anteriormente referidos, é necessário que o dano se apresente, conforme lições de Weida Zancaner, “anormal e especial, portanto, injusto: (c) ser anormal – exceder os incômodos provenientes da vida societária; (d) ser especial – isto é, relativo a uma pessoa ou a um grupo de pessoas”.(113)

Conclusão

1. A evolução histórica da responsabilidade extracontratual do Estado atravessou diversas fases até, finalmente, objetivar-se. Após um longo período de irresponsabilidade (que vigeu, pelo menos, até o século XIX, na França, dentre outros países europeus), foram concebidas as teorias civilistas. Em um primeiro momento, distinguiam-se, para fins de responsabilização, os atos de gestão e os atos de império e, em um segundo momento, exigia-se, para fins de responsabilização do Estado, a prova da culpa do agente.

2. Diante das inúmeras insuficiências das teorias baseadas no direito civil, surgiram, finalmente, na França, a partir de decisão proferida no conhecido caso Blanco, as teorias publicistas. A primeira delas foi a teoria (subjetivista) do “faute du service” (culpa administrativa), aplicável quando houvesse mau funcionamento (ou não funcionamento) do serviço público. Em um segundo momento, finalmente evoluiu-se para a adoção da teoria (objetiva) do risco administrativo.

3. No Brasil – que, segundo a doutrina, jamais teria experimentado uma fase de completa irresponsabilidade estatal –, a matéria vem sendo constitucionalmente abordada desde a Constituição Imperial de 1824 (que previa a responsabilidade de empregados públicos por “abusos”). A Constituição de 1934, ainda embasada na culpa, foi a primeira a contemplar a responsabilidade solidária entre funcionários públicos e o Estado. A Constituição de 1946, por sua vez, foi a primeira a prever a responsabilização objetiva do Estado, tal como previsto, nos dias de hoje, pela Constituição Federal de 1988.

4. Os pressupostos da responsabilidade objetiva do Estado, no Brasil, são: (a) ação ou omissão imputável ao Estado; (b) relação de causalidade; e (c) dano.

5. A Constituição Federal prevê a aplicação do regime disciplinado por seu art. 37, § 6º, não apenas às pessoas jurídicas de direito público, mas também às de direito privado, desde que prestadoras de serviços públicos.

6. A expressão “agentes”, constante do texto constitucional, deve ser compreendida em acepção ampla. Para que se que se impute responsabilidade ao Estado, basta, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, que o causador do dano atue na qualidade de agente público, ainda que não esteja no exercício de suas funções. A responsabilidade (pessoal) do agente é subjetiva. A propósito, o Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente decidido que não caberia o ajuizamento de ação, pelo particular, diretamente em face do agente, mas apenas da entidade.

7. A respeito do nexo causal, há profundas divergências doutrinárias, não havendo consenso nem mesmo em relação à teoria explicativa da relação de causalidade adotada no direito civil brasileiro (a doutrina, em boa parte, entende que a teoria aplicável seria a da causalidade adequada, havendo, no entanto, posições respeitáveis no sentido de que a teoria adotada seria a do dano direto e imediato). É possível afirmar, no entanto, que a teoria adotada no direito penal (art. 13) – teoria da equivalência dos antecedentes – não tem aplicabilidade em sede de responsabilidade civil. Da mesma forma, é possível afirmar que os Tribunais vêm decidindo a respeito do nexo causal de forma casuística, sem suporte específico e recorrente em determinada teoria. 

8.   Podem excluir a responsabilidade do Estado, por quebrarem o nexo causal, o fato da vítima, o fato de terceiro e a força maior (o caso fortuito insere-se no âmbito do risco assumido pelo Estado e, assim, não descaracteriza a responsabilidade estatal), desde que, exclusivamente, tenham sido as causas do dano. Havendo concorrência de causas, responderá o Estado, mesmo nas hipóteses de fato de terceiro ou de força maior, por omissão, se havia o dever jurídico preexistente (concretamente considerado) de evitar o dano.

9. Discute-se, na doutrina e na jurisprudência, acerca do regime aplicável às hipóteses de omissão do Estado; uns defendem que se trata de responsabilidade subjetiva, com base na teoria da culpa administrativa; outros entendem tratar-se de responsabilidade objetiva, com base na teoria do risco.

10. A Constituição Federal não limitou (explícita ou implicitamente) a aplicabilidade do regime de responsabilização por ela instituído, em seu art. 37, § 6º, às ações (atos comissivos) do Estado. Assim, deslocando-se o exame da relevância do não agir (da culpabilidade, de onde, aliás, provém um conceito de culpa que não se encaixa adequadamente à noção de Estado) para o plano da causalidade (normativa, e não meramente naturalística), conclui-se que a omissão estatal – qualificada pelo descumprimento de um dever jurídico (contraposto) de agir – pode ser considerada causa (ou uma das causas) de um evento danoso. Não subsistem, pois, atualmente, razões para afastar-se a aplicabilidade da teoria do risco também para os atos omissivos.

11. O receio de cometimento de eventuais excessos pela objetivação (também) completa da responsabilidade por omissões do Estado não se justifica, pois, devidamente deslocada a questão para o plano causal, o Estado não poderá ser implicado, por não ter dado causa ao dano, se não tinha o dever jurídico de agir – que deve ser apurado casuisticamente, a partir de critérios pautados na razoabilidade – para evitar o dano.
 
12. A respeito do dano indenizável, não há diferenciação em relação ao tratamento (doutrinário e mesmo jurisprudencial) empregado no âmbito do direito civil, sendo indenizáveis, portanto, danos patrimoniais e extrapatrimoniais (e suas respectivas categorias, inclusive as “recentemente” reconhecidas). Admite-se (ainda que excepcionalmente) a responsabilização do Estado por atos lícitos.

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Notas

1.“A irresponsabilidade, repita-se, não é um traço específico do período absolutista tão somente. Na verdade, mesmo a quebra do absolutismo, como sucedeu na Inglaterra, por força do Bill of Rights (1689), e na França, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), conviveu com a irresponsabilidade por maior ou menor período.” SEVERO, Sérgio. Tratado de responsabilidade pública, p. 15.

2. Em tradução livre, “o Estado sou eu”. Trata-se de frase atribuída ao Rei da França Luís XIV (“Rei Sol”), que reinou entre 1643 e 1715.

3. Yussef Said Cahali acrescenta, ainda, que “os atos contrários à lei praticados pelos funcionários jamais podem ser considerados atos do Estado, devendo ser atribuídos pessoalmente àqueles, como praticados nomine proprio". CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado, p. 21. A observação, embora pertinente, não revela mais do que simples desdobramento da compreensão de que o criador do Direito não pode violá-lo.

4. Não se inserem no âmbito proposto neste trabalho considerações a respeito da (ir)responsabilidade do Estado no Direito Primitivo ou, ainda, no Direito Medieval. A respeito, ver: SEVERO, Sérgio. Tratado de responsabilidade pública.

5. “Em alguns casos admitia-se a responsabilização do Estado, desde que essa responsabilidade fosse prevista em leis especiais, como, por exemplo, a Lei 28 Pluvioso do ano VIII (1800), que tratava da responsabilidade do Estado por conta de obras públicas. Ademais, nessa época, já era possível responsabilizar pessoalmente o servidor público (...). Entretanto, em ambos os casos, o manejo da ação indenizatória dependia de autorização do Conselho de Estado.” CAMPOS, Gabriel de Britto. Evolução histórica da responsabilidade civil do Estado.

6. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p 860.

7. A propósito, criticando fortemente os fundamentos da teoria, Amaro Cavalcanti, em livro publicado em 1906, observava: “Por mais elevado que seja o conceito que se queira formar da soberania do Estado, summum imperium, summa potestas, semelhante conceito não pode ir até ao ponto de excluir a ideia da justiça;  porque o Estado é, antes de tudo, a pessoa de direito por excelência.” CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade civil do Estado, p. 138.

8. “Na doutrina, pôs-se em evidência que a teoria da irresponsabilidade representava clamorosa injustiça, resolvendo-se na própria negação do Direito: se o Estado se constitui para a tutela do Direito, não tinha sentido que ele próprio o violasse impunemente; o Estado, como sujeito dotado de personalidade, é capaz de direitos e obrigações como os demais entes, nada justificando a sua  irresponsabilidade quando sua atuação falha e seus representantes causam danos aos particulares.” CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado, p. 21.

9. A teoria também foi chamada de regalista ou regaliana.

10. “Somente com o início da Revolução Francesa e com o crescimento da concepção do Estado de Direito, a partir do início do século XIX, a teoria da irresponsabilidade civil do Estado teve o início do seu declínio.” CAMPOS, Gabriel de Britto. Evolução histórica da responsabilidade civil do Estado.

11. “Os Estados Unidos e a Inglaterra abandonaram a teoria da irresponsabilidade por meio do Federal Tort Claim Act, de 1946, e do Crown Proceeding Act, de 1947, respectivamente. Nos Estados Unidos, em grande parte dos casos, o particular pode acionar diretamente o funcionário, admitindo-se, em algumas hipóteses, a responsabilidade direta do Estado, porém, desde que haja culpa, apurada da mesma maneira e tão amplamente como a de um particular em iguais circunstâncias. Trata-se de responsabilidade subjetiva. Na Inglaterra, a partir do Crown Proceeding Act, a Coroa passou a responder por danos causados por seus funcionários ou agentes, desde que haja infração daqueles deveres que todo patrão tem em relação aos seus prepostos e também daqueles deveres que toda pessoa comum tem em relação à propriedade. A responsabilidade, no entanto, não é total, porque sofre limitações, não se aplicando aos entes locais nem às empresas estatais.” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 563.

12.“Se hoje os administrativistas timbram em tripudiar sobre a teoria civilista da responsabilidade civil do Estado, buscando transportar o instituto para o âmbito do direito público, não podem eles, contudo, negar os elevados méritos da concepção civilística da responsabilidade estatal, no que terá sido esta a grande contestadora inicial do princípio da irresponsabilidade absoluta; ademais, alguns de seus enunciados merecem ser melhor meditados, ante a evidência de que a teoria da responsabilidade civil do Estado continua ainda jungida a certos parâmetros de direito privado.” CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado, p. 22.

13. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 564.

14. Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 564.

15. Ainda naquele momento histórico, deve-se destacar o surgimento, na Alemanha, com Otto Gierke, da teoria do órgão, aceita até os dias atuais pela doutrina. De acordo com a teoria, “a pessoa jurídica manifesta sua vontade por meio de órgãos, de tal modo que quando os agentes que o compõem manifestam sua vontade, é como se o próprio Estado o fizesse; substitui-se a ideia de representação pela de imputação”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 437. Note-se que, pelas teorias anteriores, do mandato e da representação, o agente público era mandatário ou representante, respectivamente, do Estado. Sempre que excedesse os poderes que lhe foram conferidos, não agia em nome do Estado, mas em nome próprio, inviabilizando, assim, a responsabilização estatal.

16. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado, p. 24.

17. O nomen iuris advém da Lex aquilia de damno, de 286 A.C., que tratava da responsabilidade civil no Direito Romano. “O sistema romano de responsabilidade extrai da interpretação da Lex aquilia o princípio pelo qual se pune a culpa por danos injustamente provocados. Funda-se aí a origem da responsabilidade extracontratual.” VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil, p. 16.

18. Embora, como observa Amaro Cavalcanti, a doutrina do caso não fosse “uma novidade; dela se encontrava exemplo em decisões anteriores, mesmo de data relativamente remota (Caso-Rothschild de 1855); mas grande divergência subsistira sempre entre a Corte de Cassação e o Conselho de Estado: aquela, sustentando nas suas decisões que o art. 1384 do Cód. Civil, que declara os patrões e comitentes responsáveis pelo dano de seus empregados (domestiques) e propostos no exercício das funções que lhes são confiadas, não comportava exceção em favor do Estado (C. C. 11 agosto 1848; 19 dezembro de 1854); este, ao contrario, repelindo sempre e energicamente a aplicação do citado artigo aos atos da administração pública, e afirmando ao mesmo tempo não só que o poder judiciário era incompetente para conhecer da responsabilidade do Estado na sua qualidade de poder público, como também que semelhante responsabilidade devia ser apreciada por outros princípios, que não os do Código Civil”. CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade civil do Estado, p. 337.

19. “Pode-se dizer que a autonomia do Direito Administrativo, ou seja, a sua posição como ciência dotada de objeto, método, institutos, princípios e regime jurídico próprios, começou a conquistar-se a partir do famoso Caso Blaco (...).” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 27.  

20. Convém recordar que a jurisdição francesa é bipartida. Para as ações que envolvem o Estado, invoca-se a atuação do chamado “contencioso administrativo”, representado pelo Conselho de Estado.

21. O teor de parte da decisão pode ser extraído da obra de Amaro Cavalcanti: “Considerando que a ação intentada por Mr. Blanco tem por objeto fazer declarar o Estado civilmente responsável, pela aplicação dos artigos 1382, 1383 e 1384 do Código Civil, o dano resultante do ferimento que a sua filha sofrera por culpa dos operários empregados na administração dos tabacos; que a responsabilidade, que pode recair sobre o Estado pelos danos causados aos particulares em razão de fatos das pessoas empregadas no serviço público, não pode ser regida pelos princípios que são estabelecidos no Código Civil para as relações de particular a particular; que esta responsabilidade não é nem geral, nem absoluta; que ela tem as suas regras especiais, que variam segundo as exigências do serviço e a necessidade de conciliar os direitos do Estado com os direitos privados; que, isto posto, e nos termos das leis acima indicadas (leis de 16 e 24 de agosto de 1790 e 16 fructidor anno III), a autoridade administrativa é a única competente para conhecer da espécie”. Trib. dos Confl. 8 de fevereiro 1873, “Caso – Blanco.” CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade civil do Estado, p. 337.

22. Ratifica-se: é raríssima a menção, na doutrina, ao resultado da ação proposta, podendo-se relatar, no entanto, que o Conselho de Estado, definido como competente para julgar a demanda, atribuiu uma pensão vitalícia à vítima. 

23. “Desse modo, a última Teoria Civilista – Teoria da Culpa Civil – coexistiu por algum tempo com a primeira Teoria Publicista – Teoria da Faute du Service –, sendo aplicáveis cada uma a seu caso. Acerca desse aspecto, observa Oswaldo Aranha que, nos casos em que era provada a culpa ou o dolo do agente público, respondia o Estado com fundamento na regra do art. 1.382 do Código Civil Francês, e, nos casos em que não se verificava culpa ou dolo do agente público, mas sim a desorganização do serviço público como a causa do dano, respondia o Estado com fundamento na Teoria da Faute du Service.” CAMPOS, Gabriel de Britto. Evolução histórica da responsabilidade civil do Estado.

24. O serviço que funciona atrasado funciona mal. De qualquer sorte, a doutrina explica a teoria assentando-a nas três formas de “culpa administrativa” referidas. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 564.

25. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 863.

26. “Em inúmeros casos de responsabilidade pela falta do serviço admite-se a presunção de culpa em face da extrema dificuldade, às vezes intransponível, de se demonstrar que o serviço operou abaixo dos padrões devidos, casos em que se transfere para o Estado o ônus de provar que o serviço funcionou regularmente, de forma normal e correta, sem o que não conseguirá elidir a presunção e afastar sua responsabilidade.” CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil, p. 220.

27. Em lição que justifica a crescente (e necessária) objetivação da culpa no Direito Privado, mas que bem se encaixa ao ponto ora tratado, pelos argumentos expostos, observa Eugênio Facchini Neto: “De fato, o Direito deve permanentemente dar respostas satisfatórias, adequadas, eficientes e justas aos novos problemas e desafios que a sociedade, no seu permanente evoluir, constantemente apresenta. Em razão do crescimento da população urbana e do aumento vertiginoso das atividades econômicas, constantemente o homem, com seu agir, cria riscos para a natureza e para seu semelhante. Vive-se sob o signo da insegurança, em uma verdadeira ‘sociedade de risco’, como batizada pela sociologia francesa. Se o Direito, muitas vezes, sente-se incapaz para evitar e neutralizar os riscos, se os danos são inevitáveis, frutos inseparáveis da convivência social e do desenvolvimento tecnológico, ao menos o Direito deve buscar formas de fornecer segurança jurídica, no sentido de que todo o dano injusto (entendendo-se por dano injusto todo aquele para o qual a vítima não deu causa) deve ser, na maior medida possível, reparado”. NETO, Eugênio Fachhini. A função social do Direito Privado, p. 187.

28. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 863.

29. De acordo com a doutrina, a teoria ainda conviveria, na França, de onde se originou, com a responsabilidade objetiva, sendo aplicável nas hipóteses de omissão. CAMPOS, Gabriel de Britto. Evolução histórica da responsabilidade civil do Estado.

30. “O fundamento da responsabilidade estatal é garantir uma equânime repartição dos ônus provenientes de atos ou efeitos lesivos, evitando que alguns suportem prejuízos ocorridos por ocasião ou por causa de atividades desempenhadas no interesse de todos.” MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 865.

31.  DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 565.

32. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro.

33. Odete Medauar, por exemplo, afirma que “parece inexistir diferença substancial entre o risco integral e o risco administrativo” (368). Embasa-se em Cahali, para afirmar que a diferenciação entre risco administrativo e risco integral “revela-se artificiosa e carente de fundamentação científica”. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno, p. 40.

34. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 566.

35. Para maior aprofundamento do tema, ver: AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional no Brasil.

36. “Mas, muito embora sujeitas ao conhecimento do Contencioso Administrativo as questões diversas, de que acima se fez menção, uma cousa se pode, todavia, assegurar com inteira verdade: é que no Brasil nunca se ensinou ou prevaleceu a irresponsabilidade do Estado pelos atos lesivos dos seus representantes. – Se não havia, nem há uma disposição de lei geral, reconhecendo e firmando a doutrina da responsabilidade civil do Estado; nem por isso é menos certo que essa responsabilidade se acha prevista e consignada em diversos artigos de leis e decretos particulares; e a julgar do teor das suas disposições consagradas, e dos numerosos julgados dos tribunais de justiça, e das decisões do próprio Contencioso Administrativo, enquanto existiu, é de razão concluir – que a teoria, aceita no país, tem sido SEMPRE a do reconhecimento da aludida responsabilidade, ao menos em princípio; ainda que deixando juntamente largo espaço para frequentes exceções, em vista dos fins e interesses superiores, que o Estado representa e tem por missão realizar em nome do bem comum.” CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade civil do Estado, p. 482.

37. “Pelo dano causado ao direito de particulares, não hesitaram jamais as justiças brasileiras em responsabilizar municipalidades, províncias, estados, o governo do império, a república, tendo por ideia inconcussa a de que, no ministro, no presidente, no governador, no prefeito, em todos os que administram, ou servem a uma função administrativa, conta a administração pública verdadeiros prepostos, cuja entidade, pelo princípio da representação, desaparece na do proponente.” BARBOSA, Ruy. A culpa civil das administrações públicas, p. 55.

38. “Os empregados públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões praticados no exercício de suas funções, e por não fazerem efetivamente responsáveis aos seus subordinados.”

39. Antes da Constituição que se seguiu à de 1891, ainda em 1916, o Código Civil, que vigeu até 2003, passou a prever a responsabilidade direta do Estado: “Art. 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano”. O “novo” Código Civil, de 2002, assim prevê (sem contemplar no texto, diferentemente da Constituição Federal, a responsabilidade das entidades privadas prestadoras de serviço público): “Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”.

40. Antes da Constituição de 1934, como lembra Lúcia Valle Figueiredo, o Decreto 24.216/34 procurou afastar a responsabilidade civil quando o Estado tomasse as devidas providências contra o servidor. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo, p. 280.

41. “Art. 171 – Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos. § 1º Na ação proposta contra a Fazenda Pública, e fundada em lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como litisconsorte. § 2º Executada a sentença contra a Fazenda, esta promoverá a execução contra o funcionário culpado.”

42. Houve supressão, no entanto, dos dois parágrafos acima transcritos. 

43. Não se ignora a existência de inúmeros relatos doutrinários no sentido de que, em momentos históricos anteriores, leis especiais previram a adoção da responsabilidade objetiva para reger certas atividades do Estado. Não havia, no entanto, isso é certo, previsão geral, como regra, de responsabilidade objetiva. Veja-se, por exemplo, o caso da responsabilidade civil por eventos ocorridos nas estradas de ferro (exemplo comumente trazido pela doutrina). A leitura mais atenta da “lei” de regência da matéria permite concluir que, na maior parte dos casos, tratava-se de responsabilidade subjetiva, com culpa presumida (Decreto-Lei nº 2.681/1912, artigos 1º e 17): “Art. 1º – As estradas de ferro serão responsáveis pela perda total ou parcial, furto ou avaria das mercadorias que receberem para transportar. Será sempre presumida a culpa e contra esta presunção só se admitirá alguma das seguintes provas (...). Art. 17 – As estradas de ferro responderão pelos desastres que nas suas linhas sucederem aos viajantes e de que resulte a morte, ferimento ou lesão corpórea. A culpa será sempre presumida (...)”. Poder-se-ia falar, quiçá, em responsabilidade objetiva em relação à previsão do art. 26: “Art. 26 – As estradas de ferro responderão por todos os danos que a exploração das suas linhas causar aos proprietários marginais. Cessará, porém, a responsabilidade se o fato danoso for consequência direta da infração, por parte do proprietário, de alguma disposição legal ou regulamentar relativa a edificações, plantações, escavações, depósito de materiais ou guarda de gado à beira das estradas de ferro”.

44. “Art. 194 – As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros. Parágrafo único – Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes.”

45. “Art. 105 – As pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros. Parágrafo único – Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo.”

46. Diante das inúmeras divergências terminológicas em relação à matéria, conforme se verá, este trabalho não se ocupa de transcrever os mais diversos conceitos de “responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado”. O conceito proposto por Celso Antônio Bandeira de Mello, por exemplo, é extremamente amplo: “a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhes sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p 853.

47. O Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente decidido: “Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder Público que tenha, nessa específica condição, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. Precedentes (...)” (RE 481.110-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 06.02.2007, Segunda Turma, DJ de 09.03.2007). No mesmo sentido: AI 299.125, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 05.10.2009, DJE de 20.10.2009; RE 109.615, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 28.05.1996, Primeira Turma, DJ de 02.08.1996. Vide: ARE 663.647-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 14.02.2012, Primeira Turma, DJE de 06.03.2012. A referência à ausência de causa excludente, embora não possa ser tomada como um requisito objetivo da responsabilidade civil do Estado, parece revelar a constante preocupação da Corte no sentido de afirmar, sempre, que a responsabilidade estatal, embora objetiva, admite hipóteses de exclusão.

48. COUTO E SILVA, Almiro do. Responsabilidade extracontratual do Estado no Direito brasileiro.

49. Não apenas as funções administrativas – típicas ou atípicas (quando não exercidas pelo Poder Executivo) – são passíveis de responsabilidade. Embora com certas limitações decorrentes da natureza das atividades desempenhadas, os Poderes Legislativo e Judiciário também são passíveis de responsabilidade civil pelo exercício de suas funções típicas (legislar e julgar, respectivamente).

50. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno, p. 370.

51. No mesmo sentido: “Crime praticado por policial militar durante o período de folga, usando arma da corporação. Responsabilidade civil objetiva do Estado. Precedentes” (RE 418.023-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 09.09.2008, Segunda Turma, DJE de 17.10.2008). No mesmo sentido: RE 213.525-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 09.12.2008, Segunda Turma, DJE de 06.02.2009. Os precedentes citados, que formam a jurisprudência atual da Corte, contrariam entendimento – aparentemente isolado – adotado naquela Corte em caso similar: “(...) Disparo de arma de fogo pertencente à corporação (...). Caso em que o policial autor do disparo não se encontrava na qualidade de agente público. Nessa contextura, não há falar de responsabilidade civil do Estado” (RE 363.423, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 16.11.2004, Primeira Turma, DJE de 14.03.2008).

52. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 893.

53.“Consoante dispõe o § 6º do art. 37 da Carta Federal, respondem as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, descabendo concluir pela legitimação passiva concorrente do agente, inconfundível e incompatível com a previsão constitucional de ressarcimento – direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.” (RE 344.133, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 09.09.2008, Primeira Turma, DJE de 14.11.2008)

54. O cabimento (em tese) da denunciação à lide está no art. 70, I, do Código de Processo Civil:  “Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória: (...) III – àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda”.

55. “1. Nas ações de indenização fundadas na responsabilidade civil objetiva do Estado (CF/88, art. 37, § 6º), não é obrigatória a denunciação à lide do agente supostamente responsável pelo ato lesivo (CPC, art. 70, III). 2. A denunciação à lide do servidor público nos casos de indenização fundada na responsabilidade objetiva do Estado não deve ser considerada como obrigatória, pois impõe ao autor manifesto prejuízo à celeridade na prestação jurisdicional. Haveria em um mesmo processo, além da discussão sobre a responsabilidade objetiva referente à lide originária, a necessidade da verificação da responsabilidade subjetiva entre o ente público e o agente causador do dano, a qual é desnecessária e irrelevante para o eventual ressarcimento do particular. Ademais, o direito de regresso do ente público em relação ao servidor, nos casos de dolo ou culpa, é assegurado no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, o qual permanece inalterado ainda que inadmitida a denunciação da lide. 3. Recurso especial desprovido” (REsp 1089955/RJ, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 03.11.2009, DJe 24.11.2009). No mesmo sentido, dentre outros: AgRg no AREsp 60.305/CE, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 22.11.2011, DJe 01.12.2011; REsp 1187456/RJ, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 16.11.2010, DJe 01.12.2010.

56. A propósito, convém trazer interessante síntese proposta por Di Pietro: “1. quando se trata de ação fundada na culpa anônima do serviço ou apenas na responsabilidade objetiva decorrente do risco, a denunciação não cabe, porque o denunciante estaria incluindo novo fundamento na ação: a culpa ou dolo, não arguida pelo autor; 2. quando se trata de ação fundada na responsabilidade objetiva do Estado, mas com arguição de culpa do agente público, a denunciação da lide é cabível, como também é possível o litisconsórcio facultativo (com citação da pessoa jurídica e de seu agente) ou a propositura da ação diretamente contra o agente público”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 575.

57. “Qualquer que seja o fundamento invocado para embasar a responsabilidade objetiva do Estado (risco integral, risco administrativo, risco-proveito), coloca-se como pressuposto primário à determinação daquela responsabilidade a existência de um nexo de causalidade entre a atuação ou omissão do ente público, ou de seus agentes, e o prejuízo reclamado pelo particular.” CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado, p. 41.

58.Neste particular, nem a doutrina nem a jurisprudência brasileira tomam partido definido quanto aos critérios utilizados para o reconhecimento desse nexo, assim como igualmente, no concernente a essa matéria, nenhuma diferença fazem entre a responsabilidade extracontratual dos particulares e a do Poder Público.” COUTO E SILVA, Almiro do. Responsabilidade extracontratual do Estado no Direito brasileiro.

59. De acordo com Gustavo Tepedino, “os Tribunais fixam o nexo de causalidade de forma intuitiva, invocando alternativamente a teoria da causalidade adequada, a da interrupção do nexo causal e a da conditio sine qua non, sempre na busca de um liame de necessariedade entre causa e efeito, de modo que o resultado danoso seja consequência direta do fato lesivo”. TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre o nexo de causalidade.

60. “Todas realçam aspectos relevantes do problema e seguem mentais semelhantes para atingirem os mesmos resultados, de sorte que, em face do caso concreto, teremos que nos valer das contribuições de todas as teorias que possam nos levar a uma solução razoável. Em última instância, o nexo causal terá que ser examinado e determinado caso a caso.” CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil, p. 47.

61. À evidência, como bem refere Cavalieri, “nenhuma teoria oferece soluções prontas e acabadas para todos os problemas envolvendo o nexo causal”. Idem, Programa de responsabilidade civil, p. 47.

62. “Art. 13 – O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.”

63. Guilherme Nucci: “qualquer das condições que compõem a totalidade dos antecedentes é causa do resultado, pois a sua inocorrência impediria a produção do evento. É a teoria adotada pelo Código Penal (conditio sine qua non)”. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado, p. 133. A teoria não distingue causa (ou seja, o acontecimento que produz o resultado), condição (circunstância que permite à causa produzir o resultado) e ocasião (circunstância acidental que favorece a produção da causa). Conduziria, assim, o elo causal ao infinito. No âmbito penal, as críticas são contornáveis diante da previsão de que somente responde pelo resultado quem a ele deu causa agindo com dolo ou culpa.

64. O limitador do elo causal, no âmbito Direito Penal, é o dolo ou a culpa. Assim, a teoria, evidentemente, não se presta a explicar o nexo causal na responsabilidade objetiva.

65. “(...) Em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no artigo 1.060 do Código Civil, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispositivo da codificação civil diga respeito à impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também à responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência das condições e a da causalidade adequada. (...) Com efeito, o dano decorrente do assalto por uma quadrilha de que participava um dos evadidos da prisão não foi o efeito necessário da omissão da autoridade pública que o acórdão recorrido teve como causa da fuga dele, mas resultou de concausas, como a formação da quadrilha, e o assalto ocorrido cerca de vinte e um meses após a evasão. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (RE 130764, Relator(a):  Min. Moreira Alves, Primeira Turma, julgado em 12.05.1992, DJ 07.08.1992 PP-11782 EMENT VOL-01669-02 PP-00350 RTJ VOL-00143-01 PP-00270)

66. Para Gustavo Tepedino, a teoria adotada pelo Direito brasileiro seria realmente a do dano direto e imediato, ainda que evoluída pelo que chama de “subteoria da necessariedade”: “Para se entender, portanto, o panorama da causalidade na jurisprudência brasileira, torna-se indispensável ter em linha de conta não as designações das teorias, não raro tratadas de modo eclético ou atécnico pelas Cortes, senão a motivação que inspira as decisões, permeadas predominantemente pela teoria da causalidade necessária. Diante de tal dificuldade, formulou-se construção evolutiva da teoria da relação causal imediata, denominada de subteoria da necessariedade da causa, que considera sinônimas e reforçativas as expressões dano direto e dano imediato, ambas identificadas com a ideia da necessariedade do liame entre causa e efeito. Em outros termos, o dever de reparar surge quando o evento danoso é efeito necessário de certa causa. Pode-se identificar, assim, na mesma série causal, danos indiretos, passíveis de ressarcimento, desde que sejam consequência direta (o adjetivo pode ser aqui empregado), porque necessária, de um ato ilícito ou atividade objetivamente considerada”. TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre o nexo de causalidade.

67. À conclusão idêntica, em precedente mais recente, datado de 2006, chegou o então Ministro Carlos Velloso – que possui, aliás, ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado. Em seu voto, que tratava da responsabilidade civil do Estado por um estupro praticado por detento foragido, asseverou: “(...) É dizer, no caso, deveria estar demonstrado o nexo de causalidade entre a fuga do apenado e o lamentável fato ocorrido, certo que há de ser observada a teoria, quanto ao nexo de causalidade, do dano direto e imediato”. Naquele processo, no entanto, sem que fosse infirmada ou confirmada a conclusão do Ministro a respeito da teoria adotada no Brasil, a Corte seguiu, por maioria, voto divergente, proposto pelo Ministro Joaquim Barbosa. O resultado do julgamento foi assim ementado: “(...) Impõe-se a responsabilização do Estado quando um condenado submetido a regime prisional aberto pratica, em sete ocasiões, falta grave de evasão, sem que as autoridades responsáveis pela execução da pena lhe apliquem a medida de regressão do regime prisional aplicável à espécie. Tal omissão do Estado constituiu, na espécie, o fator determinante que propiciou ao infrator a oportunidade para praticar o crime de estupro contra menor de 12 anos de idade, justamente no período em que deveria estar recolhido à prisão. Está configurado o nexo de causalidade, uma vez que, se a lei de execução penal tivesse sido corretamente aplicada, o condenado dificilmente teria continuado a cumprir a pena nas mesmas condições (regime aberto), e, por conseguinte, não teria tido a oportunidade de evadir-se pela oitava vez e cometer o bárbaro crime de estupro. Recurso extraordinário desprovido” (RE 409203, Relator(a):  Min. Carlos Velloso, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, julgado em 07.03.2006, DJ 20.04.2007 PP-00102 EMENT VOL-02272-03 PP-00480 RTJ VOL-00200-02 PP-00982 LEXSTF v. 29, n. 342, 2007, p. 268-298 RMP n. 34, 2009, p. 281-302).

68. Para Cavalieri, “a causa adequada será aquela que, de acordo com o curso normal das coisas e a experiência comum da vida, se revelar a mais idônea para gerar o evento”. Para o autor, a teoria teria sido positivada pelo art. 1.060 do Código Civil revogado, cuja redação foi confirmada pelo art. 403 do atual Código: “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual”. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil, p. 48.

69. A ideia da teoria é bem resumida por Caio Roberto Souto de Moura: “A teoria da causalidade adequada, concebida por Von Bar e aperfeiçoada pelo filósofo alemão Von Kries, no final do século XIX, é a teoria mais aceita pela doutrina e pela jurisprudência, sendo acolhida pelos principais ordenamentos  jurídicos. A conduta considerada como causa do dano, para o fim da reparação civil, é aquela que é adequada para a produção do dano, sendo capaz, por si só, de produzi-lo, em um plano abstrato. Descartam-se aquelas condutas que, isoladamente, não podiam, em um plano ideal, ter dado causa à lesão. Escolhe-se, entre os antecedentes históricos, aquele que, segundo o curso normal dos acontecimentos, é apto a desencadear o resultado. Não basta, portanto, que a conduta seja condição do dano, mas exige-se que seja, também, isoladamente, requisito necessário e suficiente”. MOURA, Caio Roberto Souto de. Responsabilidade civil e sua evolução em direção ao risco no novo Código Civil.

70. Com apoio no jurista argentino Roberto Brebbia, argumenta Cahali: “sempre em função das circunstâncias concretas, impende considerar se o dano sofrido pelo particular vincula-se direta e adequadamente ao ato (comissivo ou omissivo) imputado ao agente da Administração”. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado, p. 79.

71. O autor afirma ser possível “inferir da copiosa jurisprudência dos tribunais sobre responsabilidade civil que, embora muitas vezes sem nomeá-las, as teorias mais prestigiadas são a da causalidade imediata ou direta, com apoio no art. 1.060 do Código Civil, ou a da causalidade adequada”. COUTO E SILVA, Almiro do. Responsabilidade extracontratual do Estado no Direito brasileiro.

72. Em interessante artigo sobre o tema, Igor Volpato Bedone afirma, apoiado em lições de Gustavo Tepedino Rafael Peteffi da Silva: “A rigor, não há substanciais diferenças entre a teoria da causalidade adequada e a dos danos diretos e imediatos. Não há diferença relevante em se dizer que determinado fato foi ‘causa adequada a partir da análise de um princípio de normalidade’ ou que foi ‘causa direta, imediata e necessária’”. BEDONE, Igor Volpato. Reflexões sobre a atualidade do instituto da responsabilidade civil do Estado na conduta omissiva.

73. A expressão “causalidade material” – reiteradamente utilizada pelo Supremo Tribunal Federal – representa a preocupação com que haja o devido elo entre a ação ou omissão e o dano. Não parece, à vista dos inúmeros acórdãos em que é mencionada, estar sendo empregada como representativa de uma ou de outra teoria. Convém reforçar que a causalidade, já foi referido neste trabalho, é, para além de física, jurídica, normativa.

74. Do voto do Ministro Relator, Celso de Mello, extrai-se ainda: “A identificação, em cada situação ocorrente, do nexo causal impõe o exame das circunstâncias concretas evidenciadoras da existência, ou não, da necessária relação que deve haver entre a causa geradora da responsabilidade civil e o prejuízo dela decorrente, de tal modo que, não comprovado esse indispensável liame (...), torna-se incabível imputar, ao causador do dano, a obrigação de indenizar”.

75. Nesse caso, como observa Celso Antônio Bandeira de Mello, “não haverá falar em excludente da responsabilidade estatal. Haverá, sim, atenuação do quantum indenizatório”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de.Curso de Direito Administrativo, p. 883.

76. COUTO E SILVA, Almiro do. Responsabilidade extracontratual do Estado no Direito brasileiro, p. 162.

77. Ou “eficiente”, “necessária”, ou, ainda, “direta e imediata”, conforme a teoria do nexo causal que se venha a aplicar.

78. “Acontecimento imprevisível, inevitável e estranho à vontade das partes, como uma tempestade, um terremoto, um raio.” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 569.

79. Prefere-se “fato”, já que a vítima (ou o prejudicado) pode ter agido sem culpa e, ainda assim, ter dado causa exclusivamente ao evento danoso. De mais a mais, a expressão, como excludente do nexo causal, melhor se amolda à responsabilidade objetiva.

80. A propósito, decidiu o Supremo Tribunal Federal: “A discussão relativa à responsabilidade extracontratual do Estado, referente ao suicídio de paciente internado em hospital público, no caso, foi excluída pela culpa exclusiva da vítima, sem possibilidade de interferência do ente público” (RE 318.725-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 16.12.2008, Segunda Turma, DJE de 27.02.2009). Convém observar que se tratava de caso em que (conforme expressões constantes do voto condutor) “o paciente não era louco nem se achava internado em hospital psiquiátrico”.

81.  Como resultado, observa Cahali, “será mitigada ou atenuada a responsabilidade civil do Estado pela reparação do prejuízo”. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado, p. 64.

82. A distinção entre caso fortuito e força maior não é tranquila na doutrina. A propósito, Romeu Bacellar Filho propõe interessante e didática separação entre as duas espécies: “Em se tratando de caso fortuito, o traço marcante é a imprevisibilidade. Se o evento pudesse ser previsto, certamente teria sido evitado. Já em se tratando de força maior, o que transcende é a irresistibilidade. O evento, em muitos casos, embora previsível, afigura-se inevitável por sua força maior”. BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Responsabilidade civil extracontratual das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, a. 3, n. 25, mar. 2003.  

83. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 883.

84. “(...) não constitui causa externa, entretanto, o caso fortuito. A peça que se desprendeu da máquina de propriedade do Estado, produzindo dano no particular, configura situação que é geralmente compreendida pela noção de falha do serviço, portanto algo que é interno ao Estado, e não externo, como a força maior. Não constitui, assim, fato relevante para excluir ou atenuar a responsabilidade do Estado, nem mesmo quando esta é de caráter subjetivo.” COUTO E SILVA, Almiro do. Responsabilidade extracontratual do Estado no Direito brasileiro.

85. No mesmo sentido, a lição de Di Pietro, para quem apenas a força maior rompe o nexo de causalidade: “na hipótese de caso fortuito, em que o dano seja decorrente de ato humano, de falha da Administração, não ocorre a mesma exclusão; quando se rompe, por exemplo, uma adutora ou um cabo elétrico, causando dano a terceiro, não se pode falar em força maior”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 564.

86. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado, p. 52.

87. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 870.

88.  “Não há como se verificar adequabilidade da imputação ao Estado na hipótese de omissão, a não ser pela teoria subjetiva. Assim é porque, para se configurar a responsabilidade estatal pelos danos causados, há de se verificar (na hipótese de omissão) se era de se esperar a atuação do Estado.” FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo, p. 281.

89. A autora sustenta que, em se tratando de omissão, a responsabilidade é subjetiva, por aplicação da teoria da culpa anônima (ou culpa administrativa ou, ainda, faute du service). Assim – em hipóteses de força maior, fato de terceiro ou da vítima –, a responsabilidade do Estado pode ficar caracterizada, por “culpa do serviço público”, quando ficar demonstrado “seu mau funcionamento, não funcionamento ou funcionamento tardio”.

90. “No direito brasileiro, convive a responsabilidade civil objetiva, com base na teoria do risco administrativo, com a responsabilidade civil subjetiva, na hipótese, por exemplo, de atos omissivos, determinando-se a responsabilidade pela teoria da culpa ou falta do serviço, que não funcionou, quando deveria normalmente funcionar, ou que funcionou mal ou funcionou tardiamente.” VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Responsabilidade civil do Estado, p. 252.

91. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil, p. 231.

92. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil, p. 243.

93. Sustenta o autor que, nas hipóteses de concausas em que a omissão do Estado esteja relacionada com “atividades perigosas por ele desempenhadas (p. ex., exercícios militares) ou com métodos perigosos por ele adotados (p. ex., tratamento de insanos mentais em regime de liberdade) ou com coisas e pessoas perigosas de que tem a guarda (p. ex., explosivos, material radioativo, presidiários)”, haverá, “na maior parte dessas hipóteses, se o dano estiver diretamente relacionado com o risco assumido pelo Estado”,  responsabilidade objetiva. Para o autor, “o comportamento omissivo do Estado só dá ensejo à responsabilidade subjetiva quando for concausa do dano, juntamente com o fato de terceiro ou a força maior”. COUTO E SILVA, Almiro do. Responsabilidade extracontratual do Estado no Direito brasileiro, p. 155.

94. Prossegue o autor: “a questão desloca-se, portanto, para a investigação da causa do evento danoso, objetivamente considerada, mas sem se perder de vista a regularidade da atividade pública no sentido de sua exigibilidade, a anormalidade da conduta do ofendido, a eventual fortuidade do acontecimento, em condições de influírem naquela causa do dano injusto, pois só este merece ser reparado”. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado, p. 35.

95. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado, p. 41.

96. “CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ATO OMISSIVO DO PODER PÚBLICO: DETENTO FERIDO POR OUTRO DETENTO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA: CULPA PUBLICIZADA: FALTA DO SERVIÇO. C.F., art. 37, § 6º. I. – Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por esse ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, em sentido estrito, esta em uma de suas três vertentes – a negligência, a imperícia ou a imprudência –, não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta do serviço. II. – A falta do serviço – faute du service dos franceses – não dispensa o requisito da causalidade, vale dizer, do nexo de causalidade entre ação omissiva atribuída ao poder público e o dano causado a terceiro. III. – Detento ferido por outro detento: responsabilidade civil do Estado: ocorrência da falta do serviço, com a culpa genérica do serviço público, por isso que o Estado deve zelar pela integridade física do preso. IV. – RE conhecido e provido.” (RE 382054, Relator(a):  Min. Carlos Velloso, Segunda Turma, julgado em 03.08.2004, DJ 01.10.2004)

97. “Caracteriza-se a responsabilidade civil objetiva do Poder Público em decorrência de danos causados, por invasores, em propriedade particular, quando o Estado se omite no cumprimento de ordem judicial para envio de força policial ao imóvel invadido.” (RE 283.989, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 28.05.2002, Primeira Turma, DJ de 13.09.2002)
“Professora. Tiro de arma de fogo desferido por aluno. Ofensa à integridade física em local de trabalho. Responsabilidade objetiva. Abrangência de atos omissivos.” (ARE 663.647-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 14.02.2012, Primeira Turma, DJE de 06.03.2012)
“A jurisprudência dos tribunais, em geral, tem reconhecido a responsabilidade civil objetiva do Poder Público nas hipóteses em que o eventus damni ocorra em hospitais públicos (ou mantidos pelo Estado), ou derive de tratamento médico inadequado, ministrado por funcionário público, ou, então, resulte de conduta positiva (ação) ou negativa (omissão) imputável a servidor público com atuação na área médica. Servidora pública gestante, que, no desempenho de suas atividades laborais, foi exposta à contaminação pelo citomegalovírus, em decorrência de suas funções, que consistiam, essencialmente, no transporte de material potencialmente infecto-contagioso (sangue e urina de recém-nascidos). Filho recém-nascido acometido da ‘Síndrome de West’, apresentando um quadro de paralisia cerebral, cegueira, tetraplegia, epilepsia e malformação encefálica, decorrente de infecção por citomegalovírus contraída por sua mãe, durante o período de gestação, no exercício de suas atribuições no berçário de hospital público. Configuração de todos os pressupostos primários determinadores do reconhecimento da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, o que faz emergir o dever de indenização pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido.” (RE 495.740-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 15.04.2008, Segunda Turma, DJE de 14.08.2009)

98. “O Estado responde objetivamente por danos sofridos por detentos, no caso, menores sob sua guarda. Teoria do risco administrativo. Configuração do nexo de causalidade em função do dever constitucional de guarda (art. 5º, XLX). (RE n. 481.110-AgR). 4. In casu, o acórdão recorrido assentou: ‘RESPONSABILIDADE CIVIL – danos morais e materiais – Dano causado a menor detido em instituição Estadual – Responsabilidade do Poder Público – Estando o autor interno em reformatório para menores infratores, com óbvia custódia e proteção direta do Poder Público, este é responsável por sua integridade física – Artigo 5º, XLIX, da CF – Redução dos danos morais – 13º salário – Exclusão – Recursos parcialmente providos’. 5. Agravo regimental desprovido.” (AI 782903 AgR-segundo, Relator(a):  Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 13.03.2012)

99. “Morte de detento por colegas de carceragem. Indenização por danos morais e materiais. Detento sob a custódia do Estado. Responsabilidade objetiva. Teoria do Risco Administrativo. Configuração do nexo de causalidade em função do dever constitucional de guarda (art. 5º, XLIX). Responsabilidade de reparar o dano que prevalece ainda que demonstrada a ausência de culpa dos agentes públicos” (RE 272.839, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 1º.02.2005, Segunda Turma, DJ de 08.04.2005). No mesmo sentido: AI 756.517-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 22.09.2009, Primeira Turma, DJE de 23.10.2009; AI 718.202-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 28.04.2009, Primeira Turma, DJE de 22.05.2009; AI 512.698-AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 13.12.2005, Segunda Turma, DJ de 24.02.2006. Vide: RE 170.014, Min. Ilmar Galvão, julgamento em 31.10.1997, Primeira Turma, DJ de 13.02.1998. Curiosamente, em outro caso de preso assassinado dentro da cela por outro detento, parece o Supremo ter decidido enfocado na culpa: “Preso assassinado na cela por outro detento. Caso em que resultaram configurados não apenas a culpa dos agentes públicos na custódia do preso – posto que, além de o terem recolhido à cela com excesso de lotação, não evitaram a introdução de arma no recinto –, mas também o nexo de causalidade entre a omissão culposa e o dano. Descabida a alegação de ofensa ao art. 37, § 6º, da CF” (RE 170.014, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 31.10.1997, Primeira Turma, DJ de 13.02.1998). Vide: RE 272.839, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 1º.02.2005, Segunda Turma, DJ de 08.04.2005.

100. RE 495.740-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 15.04.2008, Segunda Turma, DJE de 14.08.2009, cuja ementa foi citada na nota 95.

101. No âmbito do Direito Penal, a omissão é considerada “penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”. Na forma do art. 13, § 2º, do CP, “o dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”. Se, no Direito Penal, que representa a ultima ratio, quem não age quando deveria agir dá causa ao resultado, por que não seria assim no âmbito do Direito Civil e/ou Administrativo?

102. Emprega-se o termo em contraposição à abstração que decorre dos deveres gerais impostos ao Estado.

103. Procurando desprender a culpa do conceito de ato ilícito (tomado em sentido amplo), refere Cavalieiri: “o ato ilícito, na moderna sistemática da responsabilidade civil, não mais se apresenta sempre com o elemento subjetivo (culpa), tal como definido no art. 186 do Código Civil. Há, também, o ilícito em sentido lato, que se traduz na mera contrariedade entre a conduta e o dever jurídico imposto pela norma, sem qualquer referência ao elemento subjetivo ou psicológico, e que se serve de fundamento para toda a responsabilidade objetiva (...)”. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil, p. 230. Em momento anterior da obra aqui referida, observava o autor: “o conceito estrito de ato ilícito, tendo a culpa como um de seus elementos, tornou-se insatisfatório até mesmo na responsabilidade subjetiva. Em sede de responsabilidade objetiva, cujo campo de incidência é hoje vastíssimo, só tem guarida o ato ilícito lato sensu, assim entendido como a mera contrariedade entre a conduta e a ordem jurídica, decorrente da violação de dever jurídico preexistente” (idem, p. 10).

104. Dois exemplos hipotéticos elucidam a proposta: 1º) Um particular é assaltado, em um local ermo, durante a madrugada. Não haverá responsabilidade do Estado por omissão, e não porque não agiu com culpa, mas porque o dever de segurança que se lhe impõe, por ser limitado, não tem o condão de evitar todo e qualquer evento. 2º) Um particular é assaltado em frente a dois policiais, que conversam entre si, sem intervir, enquanto o fato ocorre. Nesse caso hipotético, a omissão do Estado gerará responsabilidade, não porque a omissão teria sido específica ou simplesmente porque os policiais foram negligentes (tiveram culpa), mas porque, nas circunstâncias narradas, era exigível que houvesse atuação estatal no sentido de evitar o dano.

105. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado, p. 53.

106. “O postulado da razoabilidade aplica-se, em primeiro, como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral.” ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, p. 121.

107. Em posição que parece não encontrar maior eco na doutrina, Marçal Justen Filho adota “o entendimento de que, ressalvadas hipóteses em que houver solução legislativa diversa, somente é possível responsabilizar o Estado quando a ação ou omissão a ele imputável for antijurídica”. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, p. 797.

108. “Na doutrina do direito privado, sob influência do direito francês, admitem-se como indenizáveis o dano consistente na perda de uma chance e o dano por ricochete, e não vemos óbice à responsabilização desses prejuízos quando causados pelo Estado.”COUTO E SILVA, Almiro do. Responsabilidade extracontratual do Estado no Direito brasileiro, p. 159.

109. BARBOSA, Ruy. A culpa civil das administrações públicas, p. 67.

110. O autor cita exemplo clássico extraído da obra de Oswaldo Antônio Bandeira de Mello. Trata-se de hipótese de nivelamento de rua, realizado dentro de padrões esperados, que acaba por implicar alagamento de casas. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 854.

111. No mesmo sentido: “(...) É da jurisprudência do Supremo Tribunal que, para a configuração da responsabilidade objetiva do Estado, não é necessário que o ato praticado seja ilícito. Precedentes” (RE 456.302-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 06.02.2007, Primeira Turma, DJ de 16.03.2007).

112. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado, p. 69. A expressão “ilícito”, como referido por Cavalieri (nota 102), não pressupõe a “culpa” do Estado, mas o comportamento contrário ao Direito.

113. ZANCANER, Weida. Da responsabilidade extracontratual da Administração Pública, p. 66.


Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., out. 2013. Edição especial 25 anos da Constituição de 1988. (Grandes temas do Brasil contemporâneo). Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS