Tributação do livro eletrônico

Autor: José Carlos Fabri

Juiz Federal Substituto

publicado em 30.10.2013

 

Resumo

O artigo busca discutir a aplicabilidade da imunidade prevista no artigo 150, VI, d, da Constituição Federal ao chamado “livro eletrônico” ou “livro digital”. Para tanto, busca um conceito de imunidade, discute seu método de interpretação, traça a evolução histórica do objeto livro para questionar sobre o enquadramento do “livro eletrônico” no conceito de “livro” para fins de imunidade.

Palavras-chave: Direito tributário. Imunidade. Livro. Livro eletrônico. Livro digital.

Sumário: Introdução. 1 Imunidade tributária – conceito. 2 Imunidade tributária – interpretação. 3 Imunidade do livro na Constituição brasileira. 4 Imunidade do livro eletrônico. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

A Constituição Federal prevê, em seu artigo 150, VI, d, ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.

O objeto livro, em um contexto histórico, já foi feito em pedra, madeira, couro, pergaminho e outros materiais. Nos últimos séculos, foi produzido quase que exclusivamente em papel impresso e encadernado. Na época em que outorgada nossa Constituição, era também confeccionado principalmente em papel.

A evolução tecnológica vivenciada nas últimas décadas, porém, tem transformado sobremaneira os meios de comunicação, e o livro não é exceção. Atualmente, é possível adquirir livros materializados em arquivos de computador, que podem vir gravados em um CD (ou outro dispositivo físico) ou baixados diretamente da Internet, para serem lidos em computadores e similares (tablets, e-readers etc.).

Surge daí a interessante indagação: se o livro impresso em papel tem imunidade tributária, o livro comercializado em arquivo de computador também a teria?

Para responder à questão, é preciso primeiramente compreender o instituto imunidade, o que será discutido nos capítulos 1 e 2, no primeiro, buscando-se seu conceito e, no segundo, a sua forma de interpretação. Em seguida, no capítulo 3, trataremos da evolução histórica da previsão da imunidade em nossos dispositivos legais para, no quarto e derradeiro capítulo, questionarmos sobre o enquadramento do livro eletrônico para efeito de imunidade.

1 Imunidade tributária – conceito

Não há unanimidade na doutrina no tocante à conceituação e à delimitação da natureza jurídica da imunidade,(1) e a classificação de posições doutrinárias não parece ser o caminho mais certeiro para sua correta definição e compreensão.

Em geral, os doutrinadores referem-se à imunidade como limitação constitucional ao poder de tributar, como regra de exclusão de competência tributária, como espécie de não incidência (de qualificação constitucional) ou como norma constitucional de exoneração tributária.

Tenho preferência pelas posições que a analisam sob o enfoque de uma limitação constitucional ao poder de tributar ou como uma regra de exclusão da competência tributária, as quais, a meu ver, não diferem na essência. Limitar o poder de tributar significa retirar a competência do ente que (não fosse essa retirada) teria competência para tributar.

Luiz Felipe Silveira Difini bem analisa a questão:

“A nosso ver, a caracterização do instituto deve se fazer, primeiro (presente o caráter normativo do Direito), à luz de nosso direito constitucional positivo, pois não existe abstratamente, mas só como (e se) posto por determinado ordenamento jurídico. Assim, temo-la por limitação constitucional ao poder de tributar (já que expressamente assim criadas e tratadas pelo texto constitucional), que se expressa sob a forma de exclusão de competência impositiva.

Com efeito, se a Constituição outorga competência impositiva a diversos entes (União, Estados, Municípios), ao editar regra proibindo a instituição de tributos sobre determinadas pessoas e objetos, está ela própria limitando a competência impositiva que outorgou. Não se pode falar em incidência, pois não há norma (porque a Constituição exclui a competência para criá-la) a incidir sobre determinado fato. Não surge, pois, o fato gerador, porque não há incidência.

Diríamos, pois, que imunidade é limitação constitucional do poder de tributar que exclui a competência impositiva de pessoas jurídicas de direito público em relação a determinadas pessoas e objetos, do que resulta particular hipótese de não incidência, caracterizada pela não outorga constitucional da competência à criação da respectiva hipótese.”(2)

Em sentido semelhante é a posição de Ives Gandra da Silva Martins, para quem a imunidade não representa uma renúncia fiscal nem mesmo um favor constitucional, mas sim uma vedação absoluta ao poder de tributar.(3)

A competência tributária pode ser vista como uma autorização ou legitimação para a criação de tributos (aspecto positivo), que simultaneamente contém em si um limite para fazê-lo (aspecto negativo).(4)

Alguns doutrinadores consideram as imunidades tributárias como cláusulas pétreas em nossa Constituição, a exemplo de Ives Gandra da Silva Martins.(5) Essa conclusão baseia-se na afirmação de que as imunidades tributárias constituem garantias asseguradas ao contribuinte, tal como consta na redação do caput do artigo 150 da CF (“Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado...”), e de que tais garantias constituem garantias individuais, enquadrando-se assim na previsão do artigo 60, § 4º, IV, da CF, que determina que não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais.

Em abono desse pensamento, Roque Antonio Carrazza e Heleno Taveira Torres escrevem:

“Impende assinalar, sempre nesse domínio, que os preceitos constitucionais respeitantes às imunidades tributárias das pessoas físicas ou jurídicas beneficiadas conferem-lhes garantias fundamentais e, bem por isso, são diretamente aplicáveis, vinculando, de modo inafastável, a União, os Estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal.

Tais preceitos são, em suma, de eficácia plena e aplicabilidade imediata, independendo, pois, para produzirem seus regulares efeitos, da edição de normas inferiores, que lhes explicitem o conteúdo. Seus comandos endereçam-se tanto ao legislador (que editará normas de alcance geral e, nesse sentido, dará consecução aos mandamentos da Lei Maior) como ao juiz e ao administrador público (que aplicarão essas normas de caráter geral, se e enquanto estiverem conformes à Constituição Federal).

Vem ao encontro de nosso entendimento o § 1º do art. 5º da Constituição Federal, que estipula terem aplicação imediata ‘as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais’.”(6)

No Brasil, a imunidade tributária tem sede constitucional. É a própria Constituição que estabelece as regras imunizantes, delimitando as competências tributárias das pessoas políticas. Isso leva Roque Antonio Carrazza e Heleno Taveira Torres ao seguinte raciocínio:

“Vai daí que as imunidades tributárias têm assento constitucional, motivo pelo qual o tema reclama análise sob a exclusiva óptica da Carta Magna. Deveras, o alcance desses benefícios não deve ser construído com base na normatividade infraconstitucional (v.g., no Código Tributário Nacional), mas, apenas, com apoio na própria Constituição Federal, que há de ser entendida e aplicada de acordo com os princípios e valores que ela consagra.”(7)

Assim sendo, repita-se, no Brasil, o conceito de imunidade tributária não pode ser construído e sua compreensão não pode ser buscada com base nas normas infraconstitucionais. E, por consequência, é possível concluir que os preceitos imunizantes encerram normas de sobredireito, também chamadas regras de estrutura: regras que dispõem sobre a edição de outras regras.(8)

Na lição de Luiz Felipe Silveira Difini,(9) vê-se que a doutrina tem classificado as imunidades em subjetivas ou objetivas e condicionais ou incondicionais.

As objetivas são aquelas que levam em conta o objeto (que seria tributado), que por qualquer especificidade refoge à regra da tributação, ao passo que as subjetivas tomam em consideração as condições pessoais do sujeito (que seria o sujeito passivo da tributação), ou seja, são concedidas em razão de determinadas pessoas.

As imunidades incondicionais, também chamadas de autoaplicáveis, são aquelas previstas em norma constitucional de eficácia plena, logo, autoaplicáveis, ou seja, que não dependem de qualquer outra lei (complementar ou ordinária) para produzir efeitos. As condicionais ou não autoaplicáveis, ao contrário, dependem de normatização infraconstitucional posterior para que possam ter eficácia.

Já adentrando ao objeto específico deste estudo (imunidade do livro), Luiz Felipe Silveira Difini(10) acrescenta que a imunidade prevista no artigo 150, VI, d, da CF é objetiva, “porque concedida em função do objeto excluído da possibilidade de incidência da lei tributária – os produtos acabados livros, jornais e periódicos e o insumo papel de impressão” e também é incondicional, já que “prevista em norma constitucional autoaplicável, a dispensar a edição de lei complementar para produzir eficácia plena”.

Concluímos, pois, que as imunidades estão previstas em normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata (não dependendo de normas infraconstitucionais para ter eficácia), e que elas constituem limitações constitucionais ao poder de tributar, retirando a competência do ente que (sem a retirada) teria competência para tributar.

2 Imunidade tributária – interpretação

Após registrar que as imunidades tributárias têm assento constitucional, que as normas constitucionais que as regulam possuem eficácia plena e aplicabilidade imediata, que elas constituem limitações constitucionais ao poder de tributar e que, por estarem previstas em normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata, seu conceito e sua compreensão não podem ser buscados em normas infraconstitucionais, vejamos agora como se devem interpretar as normas constitucionais sobre imunidades.

O conflito entre direitos e bens constitucionalmente protegidos, anota Alexandre de Moraes,(11) ocorre porque a Constituição protege certos bens jurídicos e, ao protegê-los, pode fazer com que entrem em relação de conflito entre si. Para solucionar tal conflito, busca-se compatibilizar as normas constitucionais para que todas tenham aplicabilidade. E, para tanto, a doutrina aponta regras de hermenêutica constitucional.

Citando lição de Canotilho, Alexandre de Moraes enumera diversos princípios e regras interpretativas das normas constitucionais:

“– da unidade da constituição: a interpretação constitucional deve ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas;

– do efeito integrador: na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deverá ser dada maior primazia aos critérios favorecedores da integração política e social, bem como ao reforço da unidade política;

– da máxima efetividade ou da eficiência: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda;

– da justeza ou da conformidade funcional: os órgãos encarregados da interpretação da norma constitucional não poderão chegar a uma posição que subverta, altere ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido pelo legislador constituinte originário;

– da concordância prática ou da harmonização: exige-se a coordenação e a combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros;

– da força normativa da Constituição: entre as interpretações possíveis, deve ser adotada aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais.”

O Código Tributário Nacional estabelece, em seu artigo 111, II, que se deve interpretar literalmente a legislação tributária que disponha sobre a outorga de isenção.

Cotejando aquele preceito com a situação das imunidades tributárias, Ives Gandra da Silva Martins anota que, sendo a isenção uma desoneração, um favor fiscal, uma renúncia de exercer o poder de tributar por parte de seu titular, nada mais natural que, em relação às desonerações por isenção, anistia, renúncia, não incidência e até mesmo alíquota zero, a interpretação seja uma interpretação não literal, mas até mesmo restritiva. Porém, quando se trata de imunidades, a situação é diversa. As imunidades sempre devem ser interpretadas de forma extensiva. “É que a imunidade, por não ser um favor fiscal, constitui, de rigor, uma absoluta vedação ao poder de tributar, como atrás defendi.”(12)

Ademais, aquele artigo (111 do CTN) não trata de imunidade, mas de isenção, que é instituto diverso, e mesmo que o pretendesse não poderia limitar um conceito constitucional.

Luiz Felipe Silveira Difini defende a interpretação ampla das normas que instituem a imunidade, registrando que tal matéria é praticamente consensual na doutrina e na jurisprudência:

“A interpretação da regra de imunidade é ampla (questão pacífica), no sentido de que não só o método literal, mas também o sistemático, o teleológico, etc. são passíveis de utilização. A interpretação ampla é utilizada de modo que propicia a completa transparência dos princípios nela consagrados.

[...]

Não se pode, por via de hermenêutica restritiva, instituir tributo por interpretação em que o constituinte suprimiu a competência até do legislador ordinário para tal. Interpretação ampla, todavia, não significa estender norma imunitária até onde o constituinte não o fez, suprimindo competência tributária validamente outorgada pela Constituição.”(13)

É certo que as imunidades tributárias têm finalidades nobres. Tutelam o equilíbrio federativo. Protegem as liberdades de expressão, de consciência, de credo e de culto, bem como as de associação político-partidária e sindical. Tutelam os direitos fundamentais dos cidadãos à educação, à assistência social, à cultura e à informação.

Em razão disso, de servir de instrumento de proteção, o critério teleológico, vocacionado à persecução das finalidades e dos valores jurídico-positivos, é o mais importante na interpretação dos dispositivos constitucionais que outorgam imunidades. “Tais dispositivos devem ser lidos e concretizados à luz das suas finalidades, sob pena de o intérprete incorrer em grave equívoco hermenêutico.”(14)

No sentido de se buscar uma atualização da previsão constitucional com base na teleologia de suas normas, escreve Andrei Pitten Velloso:

“Deveras, a Constituição foi criada para perdurar, regulando e amoldando-se à evolução social, de modo que sua força normativa não pereça com o passar do tempo. Não foi criada para engessar a sociedade, impedindo o seu desenvolvimento ou sucumbindo perante ele. Como adverte Klaus Stern, a Constituição é, sem dúvida alguma, uma criação do poder constituinte derivado, mas é uma criação que vive no futuro, inclusive com a vontade do seu criador, que pretendia ver suas normas aplicadas através do tempo.

É mister, portanto, atualizar o alcance dos seus preceitos, à luz da sua finalidade, a fim de que a Constituição não perca a sua força normativa, debilitando-se pelo mero fluir do tempo.”(15)

Não é muito diferente o entendimento de Roque Antonio Carrazza e Heleno Taveira Torres, para quem a interpretação dos preceitos imunizantes há de ser sempre generosa (Geraldo Ataliba), porque tais preceitos expressam a vontade do legislador constituinte de preservar da tributação valores de particular significado político, social ou econômico. Assim sendo, as normas constitucionais sobre imunidades tributárias devem ser interpretadas teleologicamente e da forma mais ampla possível (interpretação extensiva), em sintonia, de resto, com a regra in dubio pro imunitatem. Diante disso, “o exegeta e o aplicador devem, pois, identificar o bem jurídico tutelado pela imunidade e optar pela interpretação que melhor o garanta”.(16)

Concluímos, assim, que a imunidade deve ser interpretada à luz dos dispositivos constitucionais (e não com base na legislação infraconstitucional), e que essa interpretação deve ser ampla e teleológica.

3 Imunidade do livro na Constituição brasileira

Segundo a lição de Valdemar Bernardo Jorge,(17) as imunidades nascem em decorrência de certos valores da sociedade, que acabam sendo protegidos por normas imunizantes por serem valores políticos, educacionais, sociais, econômicos e culturais de relevância para a sociedade, os quais, em determinado momento histórico, reclamam proteção.

As imunidades nascem em razão das ideias políticas vigentes no momento de sua criação, e nascem para preservar certos valores. Ao imunizar, retira-se das mãos do legislador ordinário a possibilidade de atingir determinadas situações.

Visa, pois, a imunidade a preservar valores supremos de uma nação e seu povo, e origina-se da constatação desses valores em uma sociedade em determinado momento histórico. Nada obstante a importância desse aspecto temporal, as imunidades permitem que a Constituição acompanhe a evolução social, e isso se dá por meio da interpretação dos hermeneutas. Para que a compreensão do instituto seja a mais completa possível, é imprescindível examinar o momento histórico pelo qual se passava no momento de sua instituição. Não para que se congele naquele momento o pensamento do legislador (vedando, assim, a evolução), mas sim para que se compreendam os motivos que o levaram a editar a norma, possibilitando assim uma aplicação daquele mesmo motivo à situação atual.

No caso sob apreciação, pois, necessitamos rever o momento histórico pelo qual o Brasil passava no instante do surgimento da norma para que possamos interpretar com maior profundidade a imunidade que visa conservar a liberdade do pensamento, a qual surgiu em uma determinada época, mas deve ser interpretada à luz da realidade atual.

Durante o período do chamado Estado Novo, o Governo dificultou, aos jornais que eram contrários à ditadura de Getúlio Vargas, a importação do papel de imprensa. Era evidente, pois, o cerceamento da liberdade de expressão. Tal arbítrio foi repreendido por um dos maiores escritores brasileiros, o então deputado federal Jorge Amado. Defendendo a liberdade de pensamento e preocupado com tal manifestação de censura, obteve o apoio de seus pares no Parlamento e coibiu a prática, tornando imune à tributação o papel destinado exclusivamente à impressão de jornais, livros e periódicos.

A imunidade, assim, surgiu pela primeira vez no Brasil com a Constituição de 1946, que dispunha, em seu art. 31, V, c:

“Art. 31: À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado:

(...)

V – lançar imposto sobre:

(...)

c) papel destinado exclusivamente à impressão de jornais, periódicos e livros.”

A prática de cercear a manifestação do pensamento mediante proibições diretas (censura direta) e indiretas (v.g., vedação de importação de papel, imposição tributária pesada sobre os veículos de comunicação) não era exclusividade brasileira. Vejamos o que anota Luiz Felipe Silveira Difini(18) sobre o nascedouro da norma:

“Ausente nas Constituições anteriores, surgia a norma por proposta do Deputado Constituinte Jorge Amado, preocupado com o encarecimento do livro, pelo preço da matéria prima papel, então normalmente importado. A assembleia, todavia, tendo presente a necessidade de assegurar o debate político e a crítica pela imprensa, estendeu a imunidade ao ‘papel de imprensa’, destinado a jornais e periódicos. Sem dúvida, na origem das preocupações dos constituintes, estava o recente controle estatal da imprensa, durante o Estado Novo, via contingenciamento do papel importado.

Baleeiro refere que, na Inglaterra, até 1861, incidiam pesados tributos sobre a imprensa, molde a um jornal discriminar o preço e os impostos, que representavam metade do seu preço total; na França, o papel de jornais sofreu tributação em dobro em relação ao destinado a outros fins e, na Áustria, criou-se imposto de selo sobre jornais, com fim de combate político à divulgação de ideias democráticas até 1889.

Na Constituição de 1946 era imune apenas o papel; e papel destinado exclusivamente à impressão de livros, jornais e periódicos. Era a chamada imunidade do ‘papel de imprensa’.”

Tal posicionamento era necessário, prossegue Valdemar Bernardo Jorge,(19) porque o Brasil encontrava-se em situação de total dependência da importação no tocante ao papel de imprensa. E, sendo assim, o Governo sequer precisava impor a censura direta (censurar o conteúdo ou vedar a circulação do jornal) ou mesmo a indireta (por via da proibição de importar o papel). Podia simplesmente aumentar de forma exorbitante a alíquota do imposto de importação, tornando inacessível sua aquisição.

Note-se que mesmo com a criação daquela regra a imunidade ainda era relativa apenas ao papel de imprensa. Não havia, naquele momento, imunidade em relação ao produto acabado em si (o livro, o jornal e o periódico), mas apenas com relação ao papel que seria utilizado na sua confecção.

A imunidade assim criada foi mantida pela Emenda Constitucional 18, de 1965 (art. 2º, IV, d) e foi secundada pelo Código Tributário Nacional (art. 9º, IV, d).

Coube à Carta de 1967 ampliar a norma, dispondo, em seu art. 20, III, d:

“Art. 20. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

III – Criar imposto sobre:

(...)

d) o livro, os jornais e os periódicos, assim como o papel destinado à sua impressão.”

Depois, a regra passou para o art. 19, III, d, da Emenda Constitucional nº 01/69, sem alteração.

Como se vê, a ampliação do texto imunitário, em relação ao de 1946, é evidente. Naquele, o produto acabado não estava imune; apenas o insumo papel de impressão. Neste, a imunidade abrange não apenas o insumo papel como também os produtos acabados (livros, jornais e periódicos).

A regra foi mantida na Constituição de 1988 (art. 150, VI, d), na qual houve alteração apenas redacional, sem qualquer modificação de significado. Dispõe o art. 150, VI, d:

“Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

VI – Instituir impostos sobre:

(...)

d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.”

Nos bastidores dessa norma, porém, há história a contar.

Luiz Felipe Silveira Difini relata que Ives Gandra da Silva Martins, em nome do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), ofereceu à Assembleia Constituinte projeto que dava ao dispositivo uma redação que lhe ampliaria significativamente para constar serem imunes os livros, jornais e periódicos e outros veículos de comunicação, inclusive audiovisuais, assim como papel e outros insumos, e atividades relacionadas com sua produção e circulação. “A sugestão, todavia (e significativamente, a meu ver), não mereceu acolhida no texto aprovado.”(20)

Estão abrangidos pela imunidade: na importação, o Imposto de Importação, o ICMS e o IPI; na exportação, o Imposto sobre a Exportação, o ICMS e o IPI; na comercialização interna, o IPI e o ICMS. Não estão abrangidas as contribuições e os demais tributos devidos pela pessoa física ou jurídica que os produz ou comercializa (por exemplo, o Imposto de Renda, a Contribuição Previdenciária, a Contribuição Social sobre o Lucro etc.).

Conclui-se que a imunidade do livro foi histórica e paulatinamente construída no texto constitucional como forma de proteger certos valores que o constituinte entendeu relevantes.

4 Imunidade do livro eletrônico

Após assentarmos que as imunidades constituem limitação ao poder de tributar, que estão previstas em normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata, que devem ser interpretadas à luz dos dispositivos constitucionais, e que essa interpretação deve ser ampla e teleológica, bem como que a imunidade do livro resulta de paulatina construção constitucional destinada a proteger certos valores que o constituinte entendeu relevantes, chegamos ao ponto central deste estudo: perquirir se, diante da norma constitucional, estaria imune apenas o livro em papel ou também o livro eletrônico.

Importante ressaltar que não é objeto deste trabalho indagar sobre diversas outras preocupações existentes no tocante ao assunto, como de saber se estariam abrangidas pela imunidade também outras formas de publicação, como, por exemplo: livros gravados em áudio e/ou em áudio e vídeo; livros vendidos conjuntamente com material encartado (CDs, DVDs, fitas cassete etc.); sites de notícias na Internet, etc. Por demasiado complexas, cada uma dessas e outras hipóteses ensejaria trabalho específico.

Nosso estudo resume-se, pois, a indagar tão somente sobre a imunidade do que se poderia chamar de livro eletrônico sem maiores questionamentos. Vamos definir com mais precisão o objeto a que nos referimos. Para tanto, imaginemos um livro em papel sobre o qual não haja a mínima dúvida de que de livro se trata. Tomemos como exemplo um livro de literatura, um romance de um escritor nacional consagrado. Já que utilizamos a figura de Jorge Amado ao tratar da instituição histórica da imunidade quanto ao papel de imprensa, continuemos com aquele autor. Sobre sua obra, uma rápida pesquisa na Wikipédia revela(21):

“Jorge Leal Amado de Faria (Itabuna, 10 de agosto de 1912 – Salvador, 6 de agosto de 2001) foi um dos mais famosos e traduzidos escritores brasileiros de todos os tempos.

Ele é o autor mais adaptado da televisão brasileira, verdadeiros sucessos como Tieta do Agreste, Gabriela, cravo e canela e Teresa Batista cansada de guerra são criações suas, além de Dona Flor e seus dois maridos e Tenda dos milagres. A obra literária de Jorge Amado conheceu inúmeras adaptações para cinema, teatro e televisão, além de ter sido tema de escolas de samba por todo o Brasil. Seus livros foram traduzidos em 55 países, em 49 idiomas, existindo também exemplares em braille e em fitas gravadas para cegos.”

Tomemos como exemplo o livro Gabriela, cravo e canela. Sua edição, digamos, comum, normal, feita em folhas de papel encadernadas, não teria qualquer dificuldade para ser considerada livro para fins de imunidade. Suponha-se que essa mesma obra, com exata e estritamente o mesmo conteúdo, fosse disponibilizada à venda em livro no formato digital: um arquivo digital, que poderia ser adquirido mediante download diretamente de algum site na Internet ou poderia vir gravado em um CD, pen drive ou outro dispositivo qualquer, para que seja lido em computadores, tablets, e-readers etc. O conteúdo, repito, seria exatamente o mesmo do livro em papel. Poderia este produto ser considerado livro para efeito de imunidade?

É certo que outras questões podem ser formuladas: e se o mesmo livro, com exatamente o mesmo conteúdo, fosse disponibilizado por meio do chamado audiobook (mediante fita cassete, CD ou outro meio físico contendo gravação da voz de um narrador lendo aquele livro)? O conteúdo ainda seria exatamente o mesmo. E isso poderia ser considerado livro para efeito de imunidade? Pode-se seguir com o mesmo raciocínio para imaginar que o livro poderia ser não apenas narrado, mas, digamos, interpretado pela vozes de diferentes pessoas, como as antigas novelas de rádio, em que cada locutor faria a voz de um personagem. Ou então, progredindo ainda mais, poderia ser contado mediante encenação, com som e imagem, ou seja, praticamente em um filme. Mas em todos os casos, repita-se, exatamente com o mesmo conteúdo do livro, nem mais, nem menos. Tudo isso seria livro para fins de imunidade? Nenhum deles seria? Apenas alguns? Quais? E, principalmente, por quê? São questões para outro estudo, mas é importante ter toda essa complexidade em mente para podermos raciocinar sobre o que seria exatamente um livro. Vê-se que os autores confundem-se nos conceitos e na sua abrangência, ora restringindo obras mediante o conteúdo (falando que livros teriam que ser didáticos, científicos ou literários, por exemplo), ora dizendo que tudo que tiver o mesmo conteúdo seria livro (e aí o conceito incluiria até os filmes).

Não é objeto deste estudo procurar respostas para estas últimas questões. Apenas as coloco para que se possa meditar sobre o cuidado que devemos ter ao afirmar o que seria exatamente livro para fins tributários. Neste estudo, repito, vamos nos ater à estrita e fiel reprodução do conteúdo de um livro em papel mediante arquivo digital para ser lido em computadores e dispositivos eletrônicos em geral. O que se poderia, mesmo no sentido mais estrito possível, ser chamado de livro eletrônico ou livro digital. Nem mais, nem menos.

Pois bem.

Analisando o artigo 150, VI, d, da CF, Tércio Sampaio Ferraz Júnior(22) afirma que ele tem funções primárias e secundárias. A função primária é de bloqueio: o dispositivo torna nula a instituição de tributos sobre os objetos que enumera. Ao fazer isso, porém, acaba por provocar dois outros efeitos, preenchendo outras duas funções secundárias. Uma função de resguardo, pois protege determinadas liberdades individuais (de pensamento, de expressão, de informar e ser informado). E uma função programática, ao visar atingir programaticamente certos objetivos, tais como o interesse social na facilitação da difusão da cultura e o barateamento dos veículos nominados (o livro, o jornal e o periódico).

De forma muito didática, Ives Gandra da Silva Martins(23) decompõe a previsão constitucional atual para demonstrar que ela cuidou de quatro hipóteses de imunidade: 1) livros; 2) periódicos; 3) jornais; 4) papel de imprensa. E ressalta que não está escrito que os livros, os jornais e os periódicos só serão imunes quando forem confeccionados de papel.

Tércio Sampaio Ferraz Júnior é do mesmo pensamento, afirmando que do texto legal se extrai que a imunidade do livro “é autônoma em relação ao papel, embora possa ser reconhecido que a imunidade do papel, porque acessória, não é autônoma em relação ao livro, ao periódico e ao jornal”.(24) O fato de haver destaque para o “papel destinado à sua impressão” não deve nos enganar quanto à proteção primária do próprio livro, jornal ou periódico.

De fato, embora seja verdade que todo texto legal deve ser interpetado, não é menos verdade que, quando o texto é demasiadamente claro, preciso, as possibilidades de interpretação se reduzem significativamente. No texto em apreço (livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão), não é possível, pela simples leitura e compreensão da estrutura gramatical, extrair que os livros só serão isentos se forem confeccionados em papel. O papel sim está vinculado aos livros, pois imune é apenas o papel destinado à impressão de livros, jornais e periódicos. Mas as expressões livros, jornais e periódicos não estão correlacionadas ao papel.

Poderíamos até, por via de interpretação sistemática das normas constitucionais, concluir que os livros só seriam imunes quando confeccionados em papel, mas aí não estaríamos fazendo isso com base isoladamente naquele texto. O texto, em si, não diz que o livro só será imune quando confeccionado em papel; tampouco diz o contrário, que será imune independentemente do meio físico que o contenha.

A solução, pois, não está no próprio dispositivo. A única conclusão que dele se pode extrair é que imunizou livros, ponto.

Precisamos, pois, nos abeberar de todo o sistema de normas estabelecido pela Constituição para desvendar a solução.

Já anotamos, no capítulo anterior, a razão de nascimento da norma. Tendo isso presente, vamos agora nos aprofundar um pouco mais no sistema de normas constitucionais para tentar verificar que valores a imunidade visa proteger.

Para Ives Gandra da Silva Martins,(25) há uma razão teleológica para a desoneração. Afirmando que tal imunidade visa proteger a liberdade de imprensa, a liberdade de veiculação de ideias, a liberdade de difusão cultural, a liberdade no âmbito da educação, conclui que ela evita que o poder, por meio dos tributos, crie tal nível de imposição que acabe por impedir a liberdade de expressão e passe a controlar os órgãos de comunicação social e as instituições de cultura e educação.

Roque Antonio Carrazza e Heleno Taveira Torres(26) entendem que a referida imunidade dá efetividade aos direitos fundamentais à livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV) e de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5º, IX). Objetiva também assegurar a todos o acesso à informação (art. 5º, XIV). Evita que a plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social (art. 220, § 1º) sofra embaraços. Por fim, protege o livro de qualquer censura de natureza política, ideológica e artística (art. 220, § 2º).

Para Andrei Pitten Velloso,(27) essa imunidade objetiva evitar que a tributação embarace o exercício da liberdade de expressão e de pensamento, bem como a realização dos direitos fundamentais à educação, à cultura e à informação. Do ponto de vista do escritor, prossegue, ela protege a liberdade de expressão e de pensamento ao evitar o pesado ônus econômico da tributação. Sob a ótica do leitor, ao baratear as obras, propicia amplo acesso à cultura, à informação, à educação e ao entretenimento. E é nesse aspecto financeiro que Andrei vê uma função que chama de promocional: uma ampla difusão cultural mediante o barateamento dos preços. Em suas palavras:

“Essa função vai além da garantia de direitos e liberdades fundamentais. A imunidade não pretende apenas obstar que a tributação iniba a produção e a circulação de livros, jornais e periódicos. Ela objetiva mais. Almeja baratear os livros, jornais e periódicos e, com isso, contribuir para a sua difusão, a fim de incrementar o nível cultural e educacional da população brasileira.”

Tal objetivo também é reconhecido por Roque Antonio Carrazza e Heleno Taveira Torres,(28) que destacam que o barateamento do livro facilita-lhe a divulgação e, com isso, instrumentaliza a difusão da cultura, a liberdade de pensamento e a educação do povo. Por via reflexa, objetiva também manter em atividade grupos de informação economicamente mais fracos, com o que se assegura mais ainda a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, da CF), bem como a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo (art. 220, caput, da CF).

Prosseguindo, vejamos agora a lição de Andrei Pitten Velloso,(29) que raciocina sobre a evolução histórica do objeto livro:

“O livro não é um objeto cultural estático, que se manteve inalterado desde a sua invenção ou que se perenizou na forma em que nos acostumamos a concebê-lo, um volume encadernado, composto por uma sequência de folhas de papel em cujas faces está gravado texto impresso ou manuscrito. Pelo contrário, é fruto de contínuas inovações técnicas dos suportes de leitura, que repercutem na sua forma, estrutura e funcionalidade.

Nasceu sob a forma de tabuletas de argila ou pedra. Ainda na antiguidade clássica, desenvolveu-se, corporificando-se em cilindros de papiro, denominados volumen ou rotulus, e, em seguida, de pergaminhos, confeccionados em couro. Na Idade Média, o papel começou a tomar o lugar dos pergaminhos e apareceram as primeiras modalidades de impressão. Atualmente, o papel está sendo substituído por suportes eletrônicos, que transformaram o próprio livro, tornando-o digital.

O livro, que já foi composto por pedra e argila, tornou-se um bem imaterial. Transformou-se fisicamente, mas não perdeu a sua essência. Quanto ao seu conteúdo, que lhe confere identidade própria, permaneceu fundamentalmente inalterado ao longo dos séculos. Persiste sendo um texto literário, histórico, científico, informativo, etc., relativamente extenso e organizado.

As transformações a que se sujeitou o livro dizem respeito à sua forma, não à sua essência.”

Roque Antonio Carrazza e Heleno Taveira Torres(30) defendem que a palavra livros está na Constituição não no sentido restrito de livro de papel, mas sim no de veículos do pensamento, isto é, de meios de difusão da cultura. E acrescentam:

“Já não estamos na Idade Média, quando a cultura só podia ser difundida por intermédio de livros. Nem nos albores do Renascimento, na chamada Era de Gutenberg, quando os livros eram impressos, tendo por base material o papel. Hoje temos os sucedâneos dos livros, que, mais dia, menos dia, acabarão por substituí-los totalmente. Tal é o caso dos CD-ROMs e dos demais artigos da espécie, que contêm, em seu interior, os textos dos livros, em sua forma tradicional.

[...]

Aí está: o papel é só um dos suportes materiais possíveis do livro. Mas não o único.

O papel, apenas, foi, por largo tempo, o suporte material por excelência do livro, no sentido considerado pela Constituição, para fins de imunidade: veículo de transmissão de ideias. Inventado pelos chineses e trazido para a Europa nos fins da Idade Média, o papel, sendo muito mais barato, veio a substituir, com vantagens, o papiro, dos antigos egípcios. Mas ninguém em sã consciência sustentará – mesmo nos dias que ora correm – que um papiro, contendo ideias, não é livro.”

Temos, pois, que o livro já teve como suporte de escrita a pedra, a argila, a madeira e o pergaminho, dentre outros. O papel apenas foi o suporte mais usado nos últimos séculos, mas provavelmente não o será por muito tempo, se é que já não foi superado pela tecnologia eletrônica. A função do livro, porém, nunca mudou. Sempre foi e continua sendo um veículo de expressão escrita. Teve vários suportes de escrita, repito, mas na essência, qualquer que tenha sido no passado, ou seja, atualmente o suporte, o livro continua sendo um veículo de expressão escrita.

Tendo em mente a previsão constitucional, os valores que a imunidade pretende preservar, o histórico de evolução do livro e o conceito que formulamos acima (do livro como veículo de expressão escrita), fica fácil compreender que o livro cuja expressão escrita encontra suporte em meio magnético é tão livro quanto aquele cuja escrita é suportada pelo papel.

Não há, pois, razão de exclusão do livro eletrônico da imunidade constitucional.

Para Andrei Pitten Velloso,(31) o próprio conceito de livro digital leva ao reconhecimento da imunidade, pois ele não passa de uma espécie do gênero livro, espécie essa que não se singulariza pelo seu conteúdo (que é o mesmo do livro escrito em papel), mas sim pela sua forma. Assim, o reconhecimento da imunidade fica dentro dos limites da exegese literal, que apenas “explicita e respeita o conteúdo semântico dos vocábulos utilizados pelo legislador”, sem necessidade de interpretação analógica. E arremata:

“É fácil perceber que, se os constituintes, representando a população brasileira, pretenderam impedir que a tributação embaraçasse o exercício da liberdade de expressão e pensamento sob a forma escrita e, para tanto, imunizaram os livros, os jornais e os periódicos, seria um manifesto contrassenso admitir a turbação de tais liberdades pelo mero fato de os livros, jornais e periódicos modernos serem transmitidos aos leitores por meio diverso do tradicional. Isso significaria admitir que o simples progresso tecnológico possa esvaziar a imunidade estampada no texto da Carta Política e, por consequência, mutilar a efetividade da garantia que ela representa para essas liberdades, imprescindíveis à concretização de uma verdadeira democracia.

[...]

Em terceiro lugar, a imunidade do livro digital baseia-se na consagrada diretriz hermenêutica, segundo a qual se deve priorizar a variante interpretativa que propicie a efetividade máxima da Constituição, atualizando-a à evolução social. Se o objeto cultural desonerado pela Constituição evolui em decorrência das inovações tecnológicas, assumindo novos formatos sem perder nada da sua essência, é evidente que o intérprete deve privilegiar a solução hermenêutica que melhor realize a força normativa da Constituição, projetando o âmbito normativo à nova realidade social, mediante a inclusão dos livros em formato digital no âmbito de proteção da imunidade que originalmente era direcionada aos tradicionais livros impressos.”

Tércio Sampaio Ferraz Júnior(32) também assevera que “na verdade o que está em questão é o sentido da mídia escrita e apta a ser lida, não o papel em que ela esteja impressa”.

Após discutir a argumentação jurídica aplicável ao caso e buscar uma reformulação das regras de interpretação, Humberto Bergmann Ávila(33) também conclui que, mesmo aplicando suas considerações ao caso em pauta,

“pode-se afirmar que há mais razões a favor da imunidade dos ‘livros eletrônicos’ do que contra ela: os argumentos sistemáticos contextuais e jurisprudenciais suportam mais enfaticamente a interpretação que inclui o ‘livro eletrônico’ na imunidade dos ‘livros’; os princípios constitucionais estabelecem como devida a realização da liberdade de comunicação, e a imunidade dos ‘livros eletrônicos’ serve à concretização desse fim; o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal tem ampliado o sentido imediato do dispositivo constitucional que prevê a imunidade dos ‘livros’ sempre que ele seja muito restrito em relação à finalidade a cuja realização ele visa a servir.”

Como conclusão final, temos que a previsão constitucional não exige que o livro seja escrito em papel para que seja objeto de imunidade e que a imunidade do livro visa proteger diversos valores constitucionais, dentre os quais avultam a liberdade de expressão e o acesso à informação. Tendo em mente a diretriz hermenêutica de se priorizar a variante interpretativa que propicie a efetividade máxima da Constituição, atualizando-a à evolução social, bem como o histórico de evolução do livro (vale dizer, dos meios físicos de suporte da escrita) e o conceito de livro como veículo de expressão escrita, concluímos que o livro digital (assim entendido o livro cuja escrita tem como suporte um meio magnético no lugar do papel) é tão livro quanto aquele escrito em papel. Logo, não há razão para que seja excluído da imunidade prevista no artigo 150, VI, d, da CF.

Conclusão

As imunidades estão previstas em normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata (não dependendo de normas infraconstitucionais para ter eficácia), e constituem limitações constitucionais ao poder de tributar, retirando a competência do ente que (sem a retirada) teria competência para tributar.

As imunidades devem ser interpretadas à luz dos dispositivos constitucionais (e não com base na legislação infraconstitucional). A interpretação deve ser ampla e teleológica.

A imunidade do livro foi histórica e paulatinamente construída no texto constitucional como forma de proteger certos valores que o constituinte entendeu relevantes, dentre os quais avultam a liberdade de expressão e o acesso à informação.

A previsão constitucional (art. 150, VI, d) não exige que o livro seja escrito em papel para que seja objeto de imunidade.

O livro é um veículo de expressão escrita. Seu conceito não está necessariamente ligado ao papel, que é apenas suporte da escrita.

Tendo em mente a diretriz hermenêutica de se priorizar a variante interpretativa que propicie a efetividade máxima da Constituição, atualizando-a à evolução social, bem como o histórico de evolução do livro (vale dizer, dos meios físicos de suporte da escrita) e o conceito de livro como veículo de expressão escrita, concluímos que o livro digital (assim entendido o livro cuja escrita tem como suporte um meio magnético no lugar do papel) é tão livro quanto aquele escrito em papel. Logo, não há razão para que seja excluído da imunidade prevista no artigo 150, VI, d, da CF.

Referências bibliográficas

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Notas

1. DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Alcance da imunidade de livros, jornais e periódicos. Revista da Ajuris, Porto Alegre, a. XXVII, n. 83, tomo I, set. 2001. p. 261.

2. DIFINI, Luiz Felipe Silveira, op. cit., p. 263.

3. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Imunidade dos meios eletrônicos de comunicação social. Revista Brasileira de Direito Tributário e Finanças Públicas, Porto Alegre/São Paulo, a. IV, n. 20, 2010. p. 69.

4. CARRAZA, Roque Antonio; TORRES, Heleno Taveira. Imunidade do papel destinado à impressão de jornais e periódicos e a prestação de serviços gráficos. Revista Fórum de Direito Tributário, Belo Horizonte, a. 9, n. 54, nov./dez. 2011. p. 11.

5. MARTINS, Ives Gandra da Silva, op. cit., p. 71-72.

6. CARRAZA, Roque Antonio; TORRES, Heleno Taveira, op. cit., p. 13.

7. CARRAZA, Roque Antonio; TORRES, Heleno Taveira, op. cit., p. 9-10.

8. CARRAZA, Roque Antonio; TORRES, Heleno Taveira, op. cit., p. 12.

9. DIFINI, Luiz Felipe Silveira, op. cit., p. 267-268.

10. DIFINI, Luiz Felipe Silveira, op. cit., p. 267-268.

11. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 41-43.

12. MARTINS, Ives Gandra da Silva, op. cit., p. 77-78.

13. DIFINI, Luiz Felipe Silveira, op. cit., p. 263 e 275.

14. VELLOSO, Andrei Pitten. Imunidade tributária do livro digital: fundamentos e alcance. Revista de Estudos Tributários, São Paulo, a. XIV, n. 83, jan./fev. 2012. p. 22.

15. VELLOSO, Andrei Pitten, op. cit., p. 24.

16. CARRAZA, Roque Antonio; TORRES, Heleno Taveira, op. cit., p. 13-14.

17. JORGE, Valdemar Bernardo. As novas relações jurídicas de natureza tributária advindas da informática: comercialização de “softwares” imunidade do livro eletrônico “Internet”. In: Direito Tributário atual. Curitiba: Juruá, 2001. p. 342-345.

18. DIFINI, Luiz Felipe Silveira, op. cit., p. 266.

19. JORGE, Valdemar Bernardo, op. cit., p. 343.

20. DIFINI, Luiz Felipe Silveira, op. cit., p. 267.

21. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_Amado>. Acesso em: 17 abr. 2013.

22. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Livro eletrônico e imunidade tributária. Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 6, n. 22, jan./mar. 1998. p. 33.

23. MARTINS, Ives Gandra da Silva, op. cit., p. 74.

24. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio, op. cit., p. 34 e 36.

25. MARTINS, Ives Gandra da Silva, op. cit., p. 72 e 75.

26. CARRAZA, Roque Antonio; TORRES, Heleno Taveira, op. cit., p. 14.

27. VELLOSO, Andrei Pitten, op. cit., p. 25-26.

28. CARRAZA, Roque Antonio; TORRES, Heleno Taveira, op. cit., p. 16-17.

29. VELLOSO, Andrei Pitten, op. cit., p. 21-22.

30. CARRAZA, Roque Antonio; TORRES, Heleno Taveira, op. cit., p. 20 e 31.

31. VELLOSO, Andrei Pitten, op. cit., p. 29-31.

32. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio, op. cit., p. 35.

33. ÁVILA, Humberto Bergmann. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico. In: TORRES, Ricardo Lobo. et al. Temas de interpretação do direito tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 147.

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., out. 2013. Edição especial 25 anos da Constituição de 1988. (Grandes temas do Brasil contemporâneo). Disponível em:
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Acesso em: .


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PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS