Execução coletiva da sentença proferida em ação coletiva – efetividade, celeridade e economia processual na prestação jurisdicional, direitos constitucionais a serem assegurados pelo Poder Judiciário

Autor: Marcos César Romeira Moraes

Juiz Federal, pós-graduado em Direito Civil, ex-Promotor de Justiça

publicado em 30.10.2013



Resumo

O direito necessariamente adapta-se às necessidades e mudanças sociais. Novos institutos e nova forma de interpretação são elaborados e utilizados. Nos últimos tempos, por influência de vários aspectos da modernidade, houve um aumento nas relações sociais e jurídicas, com crescente demanda perante o judiciário, especialmente no Brasil a partir de 1988. A legislação sofreu alterações a propiciar a defesa de direitos de forma coletiva. Essas alterações fundaram-se na necessidade de melhor atender a interesses individuais e coletivos, assim como dar eficácia ao princípio constitucional da efetividade, aliado aos princípios da economia processual e da celeridade. A ação coletiva nem sempre satisfaz esses princípios, mormente quando a execução do julgado direciona-se para a forma individual, com a propositura de ações individuais para tanto. Não há legislação que regule a execução coletiva, mas os princípios orientadores, a legislação disponível e a boa administração da justiça indicam que essa forma deve ser prestigiada.

Palavras-chave: Modernidade. Conflito. Ação coletiva. Sentença. Legislação. Execução.

Sumário: Introdução. 1 Aumento das relações jurídicas, de conflitos, instabilidade social e necessidade de adaptação e concretização das normas jurídicas. 2 Proteção jurídica ao interesse público, interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos. Constituição Federal de 1988 e legislação. 3 O processo coletivo – Projeto de Lei. 4 Da possibilidade, da preferência e da forma do processo executivo coletivo. Conclusão.

Introdução

O Poder Judiciário depara-se algumas vezes com avalanches de ações em função de determinadas questões jurídicas localizadas ou gerais e do amplo alcance de titulares atingidos, seja por medidas econômicas governamentais, seja por alterações legislativas, situações fáticas comuns a grupos ou coletividades. Pelas facilidades atuais de acesso à prestação jurisdicional, multiplicam-se demandas sobre a mesma questão, contribuindo para o mau funcionamento da estrutura judicial. Há tempos que o ordenamento jurídico nacional vem oferecendo instrumentos processuais para atender a essas demandas, que são as ações coletivas. Todavia, apesar do manuseio desse instrumento pelos legitimados processuais (Ministério Público, defensorias públicas, associações, sindicatos etc.), ainda assim o resultado concreto das ações que visam à satisfação individual dos substituídos processuais não atende a alguns dos mesmos princípios que norteiam as ações coletivas, que são a economia, a efetividade, a celeridade e a racionalidade do processo. Na maior parte das vezes, exige-se que o substituído busque a sua satisfação em ação individual de execução da sentença coletiva. Essa situação pode tornar inócua a própria ideia de ação coletiva, restando a esta apenas a finalidade de acertamento da questão jurídica em relação a todas as pessoas que se encontrem na mesma situação, mas a satisfação concreta de seu direito e do próprio objeto que se busca fica para a comum via judicial individual. Isso se deve, talvez, à falta de disciplina processual própria sobre a forma da execução coletiva de uma sentença em ação coletiva. O presente artigo visa apresentar argumentos que indiquem a necessidade e a plena viabilidade de exigir-se com preferência essa forma de execução, dando total conformação ao ideal de processo coletivo.

1 Aumento das relações jurídicas, de conflitos, instabilidade social e necessidade de adaptação e concretização das normas jurídicas

Vive-se um tempo de intensa proliferação das relações humanas, com reflexos sociais, econômicos e, consequentemente, jurídicos. Novos produtos e serviços são criados para atender às necessidades infinitas do homem e, multiplicados e inovados periodicamente, acabam por refletir na demanda pela prestação jurisdicional, dado o aumento evidente de relações sociais em sentido amplo. Nos últimos cinquenta anos, o mundo descobriu, criou e usufruiu mais coisas do que durante toda a sua história por nós conhecida. A sociedade moderna possibilita o surgimento de milhares de relações jurídicas em pouquíssimo tempo e em larga extensão populacional e territorial; o incentivo ao consumo, os meios de comunicação, o transporte, a capacidade de produção e a atuação estatal, assim como outros fatores e interesses, fazem com que parte da população seja estimulada e integrada a relações jurídicas.

Esse fenômeno iniciou-se há mais de cem anos, mas a intensificação nas últimas décadas não é comparável a nenhuma outra época. O direito, como não poderia deixar de ser, busca adaptar-se ao moderno, fazendo um misto de interpretação, adequação e criação de institutos, conceitos e normas.(1)

O direito considera o fato social, mas a ele, por óbvio, não se submete simplesmente. Difícil é a tarefa dos juristas e legisladores porquanto, ao utilizarem-se desse fato social para ditar ou aplicar a norma, precisam dessa mesma norma para que não se extrapolem os limites do razoável e para que as mudanças não atropelem a segurança social. Ao mesmo tempo em que se tem um ponto de referência do que seja razoável, faz-se necessário considerar periodicamente novos parâmetros, nova realidade, para então reconsiderar o que deve ser bom socialmente. Esses são os avanços do direito em prol da sociedade.

Mudanças de compreensão e interpretação no direito são uma constante na história.

O direito civil, em passado próximo, era tido como direito eminentemente privado, cujas normas em maioria eram destinadas a regular as relações jurídicas de ordem privada, pois o seu enfoque e a sua reiteração assim o permitiam. Diga-se o mesmo do direito comercial. Institutos como o da propriedade, da compra e venda, do uso do solo etc. eram vistos como mera relação privada. Aos poucos, a vida moderna foi exigindo uma tutela jurídica diferenciada para as mesmas relações sociais. A proteção a essas relações não se mostrou mais suficiente em face da amplitude social e de suas consequências. Advieram, com isso, não só novas normas, mas, sobretudo, novo enfoque e nova compreensão das necessidades sociais. É o que aconteceu, p. ex., com as relações comerciais de consumo, que receberam contornos quase que de direito público. Comenta o Prof. Nelson Nery Junior(2):

“(...) os princípios contratuais derivados do liberalismo dos séculos XVIII e XIX, que influenciaram o nosso excelente Código Civil de 1916, foram revisitados pela nova lei, de sorte que estão a merecer do aplicador da lei outra interpretação e compreensão.”

Outro exemplo é o tratamento dispensado à propriedade, que passou a ser considerada não somente na sua acepção civil, mas também na constitucional, isso na medida em que se exige obediência à sua função social. Diz o Prof. José Afonso da Silva(3):

“Esse conjunto de normas constitucionais sobre a propriedade denota que ela não pode mais ser considerada como um direito individual nem como instituição de Direito Privado.”

Sobre a propriedade, também se observam limitações e imposições legais no que se refere à preservação do meio ambiente e ao patrimônio histórico, este, especificamente, quando incidente o tombamento. Diga-se também sobre a poluição sonora e do ar e o uso de mananciais, que eram inerentes ao uso da propriedade e agora têm limitações com contornos muito mais de direito público do que de privado. As relações de consumo de bens e serviços, que eram adstritas ao direito comercial e com alguma excepcional proteção pelas normas de proteção da economia popular, passaram a ser protegidas fortemente por novo regramento jurídico e interpretação do direito. Nesse sentido escreve Claudia Lima Marques(4):

“A Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor, entrou em vigor em 11 de março de 1991, representando uma considerável inovação no ordenamento jurídico brasileiro, uma verdadeira mudança na ação protetora do direito. De uma visão liberal e individualista do Direito Civil, passamos a uma visão social, que valoriza a função do direito como ativo garante do equilíbrio, como protetor da confiança e das legítimas expectativas nas relações de consumo no mercado.”

Os princípios jurídicos e a interpretação dos institutos jurídicos seguiram as mudanças sociais. Obviamente, na mesma linha também seguiram os estudos sobre o direito processual. Originariamente, os interesses jurídicos a serem apresentados à decisão judicial tinham caráter individual e restrito aos envolvidos na relação, e dessa forma permaneceu a sistemática processual por séculos. A prestação jurisdicional era quase que exclusivamente dirigida às partes envolvidas na relação de direito material. Toda uma forma de delimitação dos efeitos da sentença foi criada para confiná-los. Porém, a modernidade impôs novas formas de prestação jurisdicional. A proposição de uma ação e a decisão judicial passaram a atender também a interesses coletivos e até a difusos, não mais limitada sua eficácia aos integrantes da lide. Até mesmo um efeito regulador, normativo, para um grupo de pessoas passou a ser possível.

Resume o prof. Humberto Teodoro Júnior(5):

“Historicamente, a jurisdição foi concebida no pressuposto da ocorrência de litígio, isto é, de conflito entre interessados que disputam o mesmo bem da vida. Sem tal disputa, necessariamente individual, não se admitia a atividade jurisdicional. No século XX, todavia, a ideia de jurisdição assumiu dimensões muito mais amplas, e a tarefa que lhe foi confiada, de manter a paz social sob o império da ordem jurídica, passou a compreender, também, os fenômenos coletivos, em que os interesses transcendem a esfera do indivíduo e, de maneira difusa, alcançam toda a comunidade ou grandes porções dela.”

De maneira mais aprofundada e atual, o Juiz Federal Décio José da Silva discorre sobre o direito à prestação jurisdicional na sociedade pós-moderna, a influência do pensamento jurídico ao longo da história em relação ao processo. No que interessa aqui:

“Como reação ao movimento autonomista radical, a ciência processual passou a desenvolver a tese da instrumentalidade do processo, ideologia esta calcada nos escopos da jurisdição: jurídico, social e político. A visão instrumentalista, encarando o processo a partir de uma perspectiva teleológica do processo, volta-se mais diretamente aos ideais de justiça, pacificação, liberdade e participação democrática por meio dos instrumentos que a técnica põe à disposição dos jurisdicionados.”(6)

O estudo e a evolução do direito processual ganham em importância, portanto, na medida em que se atualiza para dar vazão às necessidades sociais de pacificação e solução das demandas que são postas ao Judiciário.

Ressalte-se o fenômeno hodierno do aumento da litigiosidade, especialmente no Brasil após a Constituição Federal de 1988. Nas palavras do Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz(7):

“Na raiz dos problemas, temos a pressão que gera a litigiosidade crescente, cobrando cada vez mais produtividade. Experimentamos, nos últimos tempos, um vertiginoso crescimento da demanda social por justiça. A conflituosidade, que se multiplica em progressão geométrica, produz uma pletora invencível de processos para julgamento.”

Com intensas transformações sociais, o Estado não pode ser mero espectador, como não o é. Dentro da nova realidade social, situações outras foram consideradas passíveis de proteção e, consequentemente, novos direitos foram vislumbrados e sugeridos a serem merecedores de amparo jurídico. O cidadão passou a sentir-se titular e apto a reivindicar proteção estatal. Por decorrência, mudanças necessárias também ocorreram nas possibilidades de buscar-se essa proteção. E cabe ao Judiciário dar a resposta adequada em termos de administração da demanda.

2 Proteção jurídica ao interesse público, interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos. Constituição Federal de 1988 e legislação

A tendência e a necessidade de imprimir-se a algumas relações até então privadas o caráter de interesse público, ou social, são visíveis nos últimos 50 anos no Brasil, com maior clareza após 1988. Curiosamente, parece ser um paradoxo estender, em tempos de neoliberalismo, o interesse público a relações até então consideradas meramente privadas. Mas isso se explica em parte pelo seguinte: esse neoliberalismo diz respeito, em boa parte, às relações econômicas, em que não há grande preocupação com o mais fraco; o direito, por sua vez, em sentido inverso, tem a missão de equilibrar a relação entre o fraco e o forte; para que isso se dê, tende-se a considerar de interesse social aquelas relações outrora privadas, em que o aspecto econômico possibilitava a preponderância do mais forte. É uma reação da ordem jurídica à ordem econômica. O mesmo diga-se da proteção à prestação jurisdicional. Esse fenômeno não se iniciou nem é próprio só do neoliberalismo, já existindo há tempo.

Apesar do conceito de interesse público então conhecido, ainda restavam situações que mereciam tratamento peculiar dessa mesma categoria. Nesse sentido, surgiu uma nova linha de definição de interesse público frente ao interesse privado. Segundo Hugo Nigro Mazzilli,(8) a partir de 1974, Mauro Cappelletti concebeu a existência de interesses coletivos que estavam entre o interesse público e o privado, mas que deviam ter proteção jurídica própria do primeiro (público). O Brasil seguiu a doutrina, distinguindo na legislação os interesses difusos e, de forma expressa, com a Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), titulando e normatizando os interesses individuais homogêneos. Diga-se logo que estes últimos não se confundem com o interesse privado.

Em sede constitucional, foi importante a promulgação da Constituição Federal de 1988 para a tutela dos direitos coletivos. Basta uma rápida comparação entre a Constituição de 1967 e a Constituição de 1988 para notar o avanço rumo à democracia e à valorização do homem.

Enquanto na Constituição de 1967 a força do Estado brasileiro era predominante, incluindo aí a preponderância do Executivo, a tributação, as forças armadas, as limitações possíveis aos direitos individuais, na Constituição de 1988 tem-se em normas iniciais um extenso rol de direitos e garantias que são acrescidos em todo o restante do texto, com marcante inflexibilidade no que diz respeito a esses direitos; na Constituição de 1988, buscou-se proteger o cidadão da força do próprio Estado, sem que, com isso, evidentemente, aquele possa sobrepor-se à autoridade e ao poder do último. Houve grande ênfase nos direitos fundamentais e sociais, além da proteção econômica e tributária. No capítulo sobre a ordem econômica, a Constituição Federal reconheceu a necessidade de proteger-se a parte fraca das relações, ao mesmo tempo em que reafirma a economia de mercado, a livre concorrência etc.

Em resumo, a CF-88 proporcionou ao Brasil a possibilidade de se viver um Estado democrático de direito, em que as pessoas têm garantidos os seus direitos em todos os aspectos e esferas. Exclua-se da presente discussão a realidade do poder econômico e as suas nuanças e ligações com o poder estatal e com a mídia, que seriam objeto de longos comentários que aqui não são pertinentes.

A nova ordem jurídica criada pela CF-88 propiciou o surgimento de novas normas protetoras de direitos, além do que deu maior respaldo às que já existiam, como a Lei 4.717/65 (Ação Popular), a Lei 6.938/81 (Danos Ambientais) e a Lei 7.347/85 (Ação Civil Pública para reparação de danos). Muitas leis foram editadas para possibilitar o exercício dos direitos e a proteção dos interesses previstos na Constituição.

De maneira especial, e que nos interessa para este trabalho, salienta-se a já mencionada Lei 8.078/90, que criou uma nova realidade nas relações de consumo, estabelecendo conceitos, direitos, deveres, sanções civis e penais, regras processuais e estrutura administrativa de defesa e política, tudo para regulamentar o inciso XXXII do art. 5° da CF-88 (“o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”). A inovação processual é a que realmente chama a atenção e merece desenvolvimento interpretativo, como se busca neste trabalho.

A Lei 8.078/90 definiu, em seu art. 81, parágrafo único:

“I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”

Os interesses ou direitos difusos, coletivos e até os individuais homogêneos já existiam, só que não havia um conceito legal e uma proteção jurídica própria e eficiente, tal como foi dado pela Lei 8.078/90. As Leis 4.717/65 e 7.347/85, que tratam de normas processuais e protegem os direitos difusos e coletivos, tiveram, como já dito, nova feição com a CF-88, a qual ampliou a legitimidade processual ativa, as medidas judiciais e o objeto dessas medidas (arts. 5°, LXXIII, 127 e 129, III). E a Lei 8.078/90 ampliou ainda mais (arts. 82 e 111 e segs.). Mais recentemente, a Lei 12.016/2009 deu nova disciplina ao mandado de segurança, incluindo o mandado de segurança coletivo. Essa lei, todavia, vem sofrendo muitas críticas, sugerindo alguns doutrinadores que houve até mesmo um retrocesso legal.(9)

3 O processo coletivo – Projeto de Lei

Está em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei 5.139/2009, que visa disciplinar o processo coletivo no País. Trata-se de importante matéria em discussão e que deveria ser deliberada o quanto antes. Encontra-se atualmente com a tramitação paralisada desde 12.05.2010.(10)

Dentre as diversas questões que traz o PL 5.139/2009, está a proposta do art. 3º:

“Art. 3º O processo civil coletivo rege-se pelos seguintes princípios:

I – amplo acesso à justiça e participação social;

II – duração razoável do processo, com prioridade no seu processamento em todas as instâncias;

III – isonomia, economia processual, flexibilidade procedimental e máxima eficácia;

IV – tutela coletiva adequada, com efetiva precaução, prevenção e reparação dos danos materiais e morais, individuais e coletivos, bem como punição pelo enriquecimento ilícito;

V – motivação específica de todas as decisões judiciais, notadamente quanto aos conceitos indeterminados;

VI – publicidade e divulgação ampla dos atos processuais que interessem à comunidade;

VII – dever de colaboração de todos, inclusive pessoas jurídicas públicas e privadas, na produção das provas, no cumprimento das decisões judiciais e na efetividade da tutela coletiva;

VIII – exigência permanente de boa-fé, lealdade e responsabilidade das partes, dos procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo; e

IX – preferência da execução coletiva.”

Nesse ponto, o projeto segue toda a base doutrinária e legal produzida a respeito. A opção do inciso IX acima transcrito – “preferência da execução coletiva” – indica a importância do tema na administração das ações na prestação jurisdicional. Essa proposta está a indicar aos operadores do direito o caminho a ser seguido em consonância com opção legislativa.

Infelizmente, como ainda não há legislação processual própria e completa que discipline a forma e a tramitação das ações coletivas no Brasil, cabe ao intérprete e ao aplicador da lei promover as devidas composições de forma a dar viabilidade à proteção jurídica prevista constitucionalmente (por exemplo, artigos 5º, incisos XXI, LXX e LXXVIII, 8º, inciso III,  e 129, inciso III) e em várias normas infraconstitucionais.

4 Da possibilidade, da preferência e da forma do processo executivo coletivo

Com relação à legitimidade para ingresso com as ações coletivas e a sua tramitação, sem maiores dificuldades são manejadas em todas as esferas do Poder Judiciário. Sindicatos, associações, defensorias públicas, advocacias públicas, cidadãos e o Ministério Público propõem ações coletivas e não há dificuldades para se chegar a termo. O acertamento jurídico do conflito não guarda dificuldades e deve ser prestigiado. Isso como forma de evitar a multiplicação de ações individuais e dar tratamento igualitário a todos que se encontrem na mesma situação fática e jurídica, ou mesmo quando a questão envolva interesses jurídicos que escapem ao interesse individual do cidadão. 

Quando a ação chega ao fim na sua fase de conhecimento, tem-se início a fase do cumprimento do julgado, em sentido amplo, a fase de apuração e concretização do objeto da ação a ser entregue ao vencedor. No caso da ação coletiva, o objeto pode ser devido a uma coletividade de pessoas determinadas ou não, de forma individualizada a cada um dos substituídos ou não.

Se o objeto perseguido na ação é concretizado de forma única a toda uma coletividade, como, por exemplo, a cessação de atividade poluidora, o cumprimento do julgado, por óbvio, só poderia ter um caráter coletivo. Eventualmente a prestação jurisdicional esgota-se em uma tutela mandamental que beneficiará um grupo de pessoas de determinada região.

Quando o objeto da ação é divisível a cada substituído processual e for possível determinar-se uma coletividade, o cumprimento do julgado pode ser de forma individual ou coletivo.

Entende-se, aqui, que o cumprimento do julgado deve ser dirigido a uma execução coletiva com preferência, ou seja, a entrega concreta da prestação jurisdicional deve ser feita de forma coletiva para todos os destinatários possíveis do título judicial. São muitas as hipóteses em que isso é possível, especialmente nas ações em que se forma um título condenatório de pagar a substituídos processuais. Tem-se como exemplo uma coletividade de segurados da Previdência Social em caso de revisão do valor dos benefícios. Da mesma forma uma ação coletiva contra um banco, na qual a sentença determina o pagamento de diferenças de rendimentos em contas bancárias de poupança. Uma decisão condenatória e sua execução devem resultar na satisfação material aos interessados substituídos processualmente.

A fórmula utilizada costumeiramente nas ações coletivas é a de cada interessado substituído buscar sua satisfação individualmente, mediante apresentação da sentença, seu trânsito em julgado e a comprovação de sua condição de substituído, que é a demonstração de interesse jurídico, conforme prevê o artigo 98 do Código de Defesa do Consumidor. Nesses casos, tem-se início, então, a uma ação executiva individual do título judicial da ação coletiva. Esse procedimento é extraído da legislação, mas não se pode dizer ser a única, racional e adequada forma em termos de administração da Justiça. Dispõe o referido artigo 98 que a “execução poderá ser coletiva”, podendo ser interpretado no sentido de que a regra é a execução individual pelos substituídos processuais. Pelo que foi exposto neste trabalho, parece não ser a melhor e moderna interpretação. A execução coletiva é possível e deve ser prestigiada, insista-se. Nem se diga que não há provisão legal e, portanto, que isso não é passível de exigir-se das partes.

As Leis 7.347/85 e 8.078/90 (CDC), que regulam integrativamente o processo coletivo no País, não estabelecem rito processual para a execução da sentença coletiva. Isso não implica, por óbvio, a sua inviabilidade, mas, ao contrário, deve ser prestigiada pela Administração do processo. Todas as normas relativas à defesa dos interesses coletivos devem ser interpretadas de forma a viabilizar a máxima proteção, a qual induz pensar também na forma mais cômoda, econômica e processualmente eficaz sob o enfoque das partes e, em especial, do Poder Judiciário.

As ações coletivas trazem a ideia de economia processual e de economia de recursos materiais e humanos na busca dos direitos dos substituídos. Ausente legislação própria que discipline todo o processo coletivo, da inicial à satisfação material do substituído, torna-se necessária a integração e até mesmo a adequação das normas de que se dispõe no ordenamento, e para isso há amparo legal, constitucional e doutrinário.

O Código de Defesa do Consumidor dispõe de forma explícita a forma de defesa dos direitos coletivos, e uma norma que se destaca é a do artigo 83, a qual autoriza que "Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela".

Dispõe também, no artigo 90: "Aplicam-se às ações previstas neste Título as normas do Código de Processo Civil e da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições".

A Lei 7.347/85, em seu artigo 21, por sua vez, dispõe expressamente: "Aplica-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da Lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor”.

Em continuação, dispõe o CDC:

“Art. 97. A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82.

Art. 98. A execução poderá ser coletiva, sendo promovida pelos legitimados de que trata o art. 82, abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiverem sido fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções.”

Está razoavelmente claro que o legislador desejou a integração dos dispositivos para possibilitar a ampliação e o máximo aproveitamento. Nesse sentido, já em obra de 1991, Rodolfo C. Mancuso:

“Por outras palavras, o que o art. 83 do Código quer dizer é que as ações previstas em seu Título III não excluem quaisquer outras, desde que compatíveis e idôneas, existentes no arsenal do sistema processual civil brasileiro. (...)

Portanto, o enunciado bastante largo do art. 83 está conforme à extensão e compreensão notavelmente elástica da expressão ‘defesa do consumidor’, como bem esclarece Eduardo Pólo:

‘A defesa e a proteção do consumidor constituem-se hoje em dia em um dos temas mais extraordinariamente amplos e que afeta e se refere a casos de todos os setores do ordenamento jurídico. A variedade das normas que tutelam – ou deveriam tutelar – o consumidor, pertencentes não somente ao direito civil e comercial, como também ao direito penal e ao processual, ao direito administrativo e inclusive ao constitucional, determinou que os limites desse setor de interesses sejam pouco precisos e, por que não se dizer, vagos e difusos (...).’”

No Código de Processo Civil, arts. 475-I e seguintes, que tratam do cumprimento da sentença, não há disciplina a respeito da execução coletiva. Não há dispositivo expresso em lei que discipline essa forma de execução.

Todavia, está claro que todos os dispositivos legais pertinentes podem e devem ser utilizados de maneira a dar sustentação. É bastante satisfatória a legislação existente para possibilitar com preferência a liquidação e a execução coletivas, não havendo incompatibilidade, mas, sim, necessária integração e boa utilidade.

Dessa forma, a legislação permite e os princípios orientadores das ações coletivas impõem que deve ser promovida, quando possível, a execução do julgado de forma coletiva, bem assim o réu deve submeter-se a ela.

Apenas para ilustrar, na edição de 1991, Hugo Nigro Mazzilli entendia, baseado na legislação (Lei 7.347/85 e Lei 8.078/90), que o Ministério Público tinha o dever de executar a ação coletiva em caso de abandono da execução por parte de associações. Afirmava o professor:

“Encarregado da defesa da ordem jurídica, não se conceberia que o Ministério Público, nessas condições, se recusasse a promover a execução, para a qual é legitimado. O interesse, transindividualmente considerado, já foi reconhecido e não mais depende de avaliação discricionária. Aqui não mais lhe seria possível não se identificar a hipótese que lhe torna exigível a atuação.”(11)

O modelo de execução individual nas ações coletivas, em que cada substituído pede sua satisfação diretamente, pode ser mais cômodo ao réu em um primeiro momento, mas é muito mais trabalhoso para ele e para o Poder Judiciário no decorrer do tempo. A multiplicação de execuções individuais exige muito mais de todos.

Outro aspecto a ser considerado é a onerosidade ao réu, porquanto fatalmente incidiriam honorários advocatícios em cada execução individual, e a onerosidade poderia também afetar o substituído em função da contratação de advogado para patrocinar sua demanda individual de execução.

Dúvidas poderiam surgir quanto à liquidação da sentença e à realização de cálculos. Para a liquidação, tanto réu como autor devem dispor dos dados necessários e colaborar com os cálculos. A falta de disposição legal do procedimento a ser seguido não impede que o juiz discipline razoavelmente a forma de liquidação, diante do regramento já existente, e garanta o contraditório com a especificidade que o julgado exigir. Compete ao juiz exigir das partes a colaboração necessária para o cumprimento do julgado.

É dever da administração da Justiça proporcionar às partes o melhor caminho sob o ponto de vista da onerosidade. O acesso à Justiça está diretamente ligado à questão do custo financeiro do processo para as partes.

Cabe ao Juízo dirigir ambas as partes para que cumpram com os princípios orientadores do processo coletivo em todos os seus termos, especialmente ao fim a que se destina.

Conclusão

O direito regula a sociedade e, ao mesmo tempo, recebe influência das transformações sociais, o que gera novas concepções, novos institutos e nova interpretação.

A modernidade proporcionou o aumento de bens e serviços, de comunicação, de relações econômicas e, de consequência, o incremento de relações jurídicas. Dessas relações, houve o aumento dos conflitos.

O Brasil recebeu e sentiu as transformações sociais em todos os sentidos, sendo que, a partir de 1988, uma nova fase foi inaugurada para a democracia, em que se tornou possível, em tese, exercício pleno dos direitos pelo cidadão. O Poder Judiciário brasileiro passou a ser exigido cada vez mais para dar solução aos conflitos crescentes, em todas as áreas.

A legislação brasileira procurou acompanhar as mudanças. A interpretação jurídica dos dispositivos legais seguiu no mesmo caminho. A defesa dos direitos de forma coletiva foi prestigiada de forma a garantir eficiência e amplitude na solução dos conflitos.

A boa administração da Justiça impõe a melhor utilização dos meios de defesa coletiva. A solução nas ações coletivas deve seguir os mesmos princípios informadores do início ao fim, de maneira que não só se deve prestigiar a propositura da ação coletiva, mas também o momento importante da prestação jurisdicional, qual seja, a satisfação material da coletividade alcançada pela decisão.

A solução jurídica formal do conflito, que se dá com a sentença transitada em julgado, por si só não é suficiente e não atende muitas vezes à finalidade da ação coletiva, especialmente, para efeito deste estudo, quando os substituídos devem ingressar com ações executivas individuais do título judicial coletivo.

Não há previsão legal que discipline a execução coletiva e que lhe dê preferência de utilização. Porém, pelos princípios orientadores atuais do direito, pela legislação disponível e pela finalidade dos institutos envolvidos, é perfeitamente possível e até necessário que se exija, quando possível, que a execução dos julgados em ações coletivas seja igualmente de forma coletiva.

Referências bibliográficas

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Notas

1. A esse respeito, interessante análise da modernidade e da pós-modernidade feita em: SILVA, Décio José da. O direito à tutela jurisdicional efetiva na sociedade pós-moderna e os meios de controle da atividade judicial no direito brasileiro. In: HIROSE, Tadaaqui; GEBRAN NETO, João Pedro (org.). Curso modular de Direito Constitucional. São Paulo: Conceito, 2010.

2. NERY JUNIOR, Nelson. O Ministério Público e as Ações Coletivas. In: MILARÉ, Édis (coord.). Ação Civil Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 359.

3. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p. 239.

4. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 26-27.

5. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 38.

6. SILVA, Décio José da. O direito à tutela jurisdicional efetiva na sociedade pós-moderna e os meios de controle da atividade judicial no direito brasileiro. In: HIROSE, Tadaaqui; GEBRAN NETO, João Pedro (org.). Curso modular de Direito Constitucional. São Paulo: Conceito, 2010. p. 237.

7. VAZ, Paulo Afonso Brum. O papel do juiz na construção do direito: uma perspectiva humanista. Revista do Tribunal Regional Federal Quarta Região, Porto Alegre, n. 81, 2012, p. 56.

8. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em

Juízo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 18.

9. DIDIER JÚNIOR, Fredie Souza. Palestra: Mandado de segurança coletivo e a Lei 12.016/09: possíveis inconstitucionalidades. In: Currículo Permanente – Módulo Direito Constitucional, Etapa de Curitiba, 19 out. 2012, TRF 4ª Região.

10. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=
432485
>.

11. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em Juízo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 212.


Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., out. 2013. Edição especial 25 anos da Constituição de 1988. (Grandes temas do Brasil contemporâneo). Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS