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publicado em 30.10.2013
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O direito necessariamente adapta-se às necessidades e mudanças sociais. Novos institutos e nova forma de interpretação são elaborados e utilizados. Nos últimos tempos, por influência de vários aspectos da modernidade, houve um aumento nas relações sociais e jurídicas, com crescente demanda perante o judiciário, especialmente no Brasil a partir de 1988. A legislação sofreu alterações a propiciar a defesa de direitos de forma coletiva. Essas alterações fundaram-se na necessidade de melhor atender a interesses individuais e coletivos, assim como dar eficácia ao princípio constitucional da efetividade, aliado aos princípios da economia processual e da celeridade. A ação coletiva nem sempre satisfaz esses princípios, mormente quando a execução do julgado direciona-se para a forma individual, com a propositura de ações individuais para tanto. Não há legislação que regule a execução coletiva, mas os princípios orientadores, a legislação disponível e a boa administração da justiça indicam que essa forma deve ser prestigiada. Palavras-chave: Modernidade. Conflito. Ação coletiva. Sentença. Legislação. Execução. Sumário: Introdução. 1 Aumento das relações jurídicas, de conflitos, instabilidade social e necessidade de adaptação e concretização das normas jurídicas. 2 Proteção jurídica ao interesse público, interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos. Constituição Federal de 1988 e legislação. 3 O processo coletivo – Projeto de Lei. 4 Da possibilidade, da preferência e da forma do processo executivo coletivo. Conclusão. Introdução O Poder Judiciário depara-se algumas vezes com avalanches de ações em função de determinadas questões jurídicas localizadas ou gerais e do amplo alcance de titulares atingidos, seja por medidas econômicas governamentais, seja por alterações legislativas, situações fáticas comuns a grupos ou coletividades. Pelas facilidades atuais de acesso à prestação jurisdicional, multiplicam-se demandas sobre a mesma questão, contribuindo para o mau funcionamento da estrutura judicial. Há tempos que o ordenamento jurídico nacional vem oferecendo instrumentos processuais para atender a essas demandas, que são as ações coletivas. Todavia, apesar do manuseio desse instrumento pelos legitimados processuais (Ministério Público, defensorias públicas, associações, sindicatos etc.), ainda assim o resultado concreto das ações que visam à satisfação individual dos substituídos processuais não atende a alguns dos mesmos princípios que norteiam as ações coletivas, que são a economia, a efetividade, a celeridade e a racionalidade do processo. Na maior parte das vezes, exige-se que o substituído busque a sua satisfação em ação individual de execução da sentença coletiva. Essa situação pode tornar inócua a própria ideia de ação coletiva, restando a esta apenas a finalidade de acertamento da questão jurídica em relação a todas as pessoas que se encontrem na mesma situação, mas a satisfação concreta de seu direito e do próprio objeto que se busca fica para a comum via judicial individual. Isso se deve, talvez, à falta de disciplina processual própria sobre a forma da execução coletiva de uma sentença em ação coletiva. O presente artigo visa apresentar argumentos que indiquem a necessidade e a plena viabilidade de exigir-se com preferência essa forma de execução, dando total conformação ao ideal de processo coletivo. 1 Aumento das relações jurídicas, de conflitos, instabilidade social e necessidade de adaptação e concretização das normas jurídicas Vive-se um tempo de intensa proliferação das relações humanas, com reflexos sociais, econômicos e, consequentemente, jurídicos. Novos produtos e serviços são criados para atender às necessidades infinitas do homem e, multiplicados e inovados periodicamente, acabam por refletir na demanda pela prestação jurisdicional, dado o aumento evidente de relações sociais em sentido amplo. Nos últimos cinquenta anos, o mundo descobriu, criou e usufruiu mais coisas do que durante toda a sua história por nós conhecida. A sociedade moderna possibilita o surgimento de milhares de relações jurídicas em pouquíssimo tempo e em larga extensão populacional e territorial; o incentivo ao consumo, os meios de comunicação, o transporte, a capacidade de produção e a atuação estatal, assim como outros fatores e interesses, fazem com que parte da população seja estimulada e integrada a relações jurídicas. “(...) os princípios contratuais derivados do liberalismo dos séculos XVIII e XIX, que influenciaram o nosso excelente Código Civil de 1916, foram revisitados pela nova lei, de sorte que estão a merecer do aplicador da lei outra interpretação e compreensão.” Outro exemplo é o tratamento dispensado à propriedade, que passou a ser considerada não somente na sua acepção civil, mas também na constitucional, isso na medida em que se exige obediência à sua função social. Diz o Prof. José Afonso da Silva(3): “Esse conjunto de normas constitucionais sobre a propriedade denota que ela não pode mais ser considerada como um direito individual nem como instituição de Direito Privado.” Sobre a propriedade, também se observam limitações e imposições legais no que se refere à preservação do meio ambiente e ao patrimônio histórico, este, especificamente, quando incidente o tombamento. Diga-se também sobre a poluição sonora e do ar e o uso de mananciais, que eram inerentes ao uso da propriedade e agora têm limitações com contornos muito mais de direito público do que de privado. As relações de consumo de bens e serviços, que eram adstritas ao direito comercial e com alguma excepcional proteção pelas normas de proteção da economia popular, passaram a ser protegidas fortemente por novo regramento jurídico e interpretação do direito. Nesse sentido escreve Claudia Lima Marques(4): “A Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor, entrou em vigor em 11 de março de 1991, representando uma considerável inovação no ordenamento jurídico brasileiro, uma verdadeira mudança na ação protetora do direito. De uma visão liberal e individualista do Direito Civil, passamos a uma visão social, que valoriza a função do direito como ativo garante do equilíbrio, como protetor da confiança e das legítimas expectativas nas relações de consumo no mercado.” Os princípios jurídicos e a interpretação dos institutos jurídicos seguiram as mudanças sociais. Obviamente, na mesma linha também seguiram os estudos sobre o direito processual. Originariamente, os interesses jurídicos a serem apresentados à decisão judicial tinham caráter individual e restrito aos envolvidos na relação, e dessa forma permaneceu a sistemática processual por séculos. A prestação jurisdicional era quase que exclusivamente dirigida às partes envolvidas na relação de direito material. Toda uma forma de delimitação dos efeitos da sentença foi criada para confiná-los. Porém, a modernidade impôs novas formas de prestação jurisdicional. A proposição de uma ação e a decisão judicial passaram a atender também a interesses coletivos e até a difusos, não mais limitada sua eficácia aos integrantes da lide. Até mesmo um efeito regulador, normativo, para um grupo de pessoas passou a ser possível. “Historicamente, a jurisdição foi concebida no pressuposto da ocorrência de litígio, isto é, de conflito entre interessados que disputam o mesmo bem da vida. Sem tal disputa, necessariamente individual, não se admitia a atividade jurisdicional. No século XX, todavia, a ideia de jurisdição assumiu dimensões muito mais amplas, e a tarefa que lhe foi confiada, de manter a paz social sob o império da ordem jurídica, passou a compreender, também, os fenômenos coletivos, em que os interesses transcendem a esfera do indivíduo e, de maneira difusa, alcançam toda a comunidade ou grandes porções dela.” De maneira mais aprofundada e atual, o Juiz Federal Décio José da Silva discorre sobre o direito à prestação jurisdicional na sociedade pós-moderna, a influência do pensamento jurídico ao longo da história em relação ao processo. No que interessa aqui: “Como reação ao movimento autonomista radical, a ciência processual passou a desenvolver a tese da instrumentalidade do processo, ideologia esta calcada nos escopos da jurisdição: jurídico, social e político. A visão instrumentalista, encarando o processo a partir de uma perspectiva teleológica do processo, volta-se mais diretamente aos ideais de justiça, pacificação, liberdade e participação democrática por meio dos instrumentos que a técnica põe à disposição dos jurisdicionados.”(6) O estudo e a evolução do direito processual ganham em importância, portanto, na medida em que se atualiza para dar vazão às necessidades sociais de pacificação e solução das demandas que são postas ao Judiciário. “Na raiz dos problemas, temos a pressão que gera a litigiosidade crescente, cobrando cada vez mais produtividade. Experimentamos, nos últimos tempos, um vertiginoso crescimento da demanda social por justiça. A conflituosidade, que se multiplica em progressão geométrica, produz uma pletora invencível de processos para julgamento.” Com intensas transformações sociais, o Estado não pode ser mero espectador, como não o é. Dentro da nova realidade social, situações outras foram consideradas passíveis de proteção e, consequentemente, novos direitos foram vislumbrados e sugeridos a serem merecedores de amparo jurídico. O cidadão passou a sentir-se titular e apto a reivindicar proteção estatal. Por decorrência, mudanças necessárias também ocorreram nas possibilidades de buscar-se essa proteção. E cabe ao Judiciário dar a resposta adequada em termos de administração da demanda. 2 Proteção jurídica ao interesse público, interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos. Constituição Federal de 1988 e legislação A tendência e a necessidade de imprimir-se a algumas relações até então privadas o caráter de interesse público, ou social, são visíveis nos últimos 50 anos no Brasil, com maior clareza após 1988. Curiosamente, parece ser um paradoxo estender, em tempos de neoliberalismo, o interesse público a relações até então consideradas meramente privadas. Mas isso se explica em parte pelo seguinte: esse neoliberalismo diz respeito, em boa parte, às relações econômicas, em que não há grande preocupação com o mais fraco; o direito, por sua vez, em sentido inverso, tem a missão de equilibrar a relação entre o fraco e o forte; para que isso se dê, tende-se a considerar de interesse social aquelas relações outrora privadas, em que o aspecto econômico possibilitava a preponderância do mais forte. É uma reação da ordem jurídica à ordem econômica. O mesmo diga-se da proteção à prestação jurisdicional. Esse fenômeno não se iniciou nem é próprio só do neoliberalismo, já existindo há tempo. Os interesses ou direitos difusos, coletivos e até os individuais homogêneos já existiam, só que não havia um conceito legal e uma proteção jurídica própria e eficiente, tal como foi dado pela Lei 8.078/90. As Leis 4.717/65 e 7.347/85, que tratam de normas processuais e protegem os direitos difusos e coletivos, tiveram, como já dito, nova feição com a CF-88, a qual ampliou a legitimidade processual ativa, as medidas judiciais e o objeto dessas medidas (arts. 5°, LXXIII, 127 e 129, III). E a Lei 8.078/90 ampliou ainda mais (arts. 82 e 111 e segs.). Mais recentemente, a Lei 12.016/2009 deu nova disciplina ao mandado de segurança, incluindo o mandado de segurança coletivo. Essa lei, todavia, vem sofrendo muitas críticas, sugerindo alguns doutrinadores que houve até mesmo um retrocesso legal.(9) 3 O processo coletivo – Projeto de Lei Está em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei 5.139/2009, que visa disciplinar o processo coletivo no País. Trata-se de importante matéria em discussão e que deveria ser deliberada o quanto antes. Encontra-se atualmente com a tramitação paralisada desde 12.05.2010.(10) “Art. 3º O processo civil coletivo rege-se pelos seguintes princípios: Nesse ponto, o projeto segue toda a base doutrinária e legal produzida a respeito. A opção do inciso IX acima transcrito – “preferência da execução coletiva” – indica a importância do tema na administração das ações na prestação jurisdicional. Essa proposta está a indicar aos operadores do direito o caminho a ser seguido em consonância com opção legislativa. Com relação à legitimidade para ingresso com as ações coletivas e a sua tramitação, sem maiores dificuldades são manejadas em todas as esferas do Poder Judiciário. Sindicatos, associações, defensorias públicas, advocacias públicas, cidadãos e o Ministério Público propõem ações coletivas e não há dificuldades para se chegar a termo. O acertamento jurídico do conflito não guarda dificuldades e deve ser prestigiado. Isso como forma de evitar a multiplicação de ações individuais e dar tratamento igualitário a todos que se encontrem na mesma situação fática e jurídica, ou mesmo quando a questão envolva interesses jurídicos que escapem ao interesse individual do cidadão. “Art. 97. A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82. Está razoavelmente claro que o legislador desejou a integração dos dispositivos para possibilitar a ampliação e o máximo aproveitamento. Nesse sentido, já em obra de 1991, Rodolfo C. Mancuso: “Por outras palavras, o que o art. 83 do Código quer dizer é que as ações previstas em seu Título III não excluem quaisquer outras, desde que compatíveis e idôneas, existentes no arsenal do sistema processual civil brasileiro. (...) No Código de Processo Civil, arts. 475-I e seguintes, que tratam do cumprimento da sentença, não há disciplina a respeito da execução coletiva. Não há dispositivo expresso em lei que discipline essa forma de execução. “Encarregado da defesa da ordem jurídica, não se conceberia que o Ministério Público, nessas condições, se recusasse a promover a execução, para a qual é legitimado. O interesse, transindividualmente considerado, já foi reconhecido e não mais depende de avaliação discricionária. Aqui não mais lhe seria possível não se identificar a hipótese que lhe torna exigível a atuação.”(11) O modelo de execução individual nas ações coletivas, em que cada substituído pede sua satisfação diretamente, pode ser mais cômodo ao réu em um primeiro momento, mas é muito mais trabalhoso para ele e para o Poder Judiciário no decorrer do tempo. A multiplicação de execuções individuais exige muito mais de todos. Conclusão O direito regula a sociedade e, ao mesmo tempo, recebe influência das transformações sociais, o que gera novas concepções, novos institutos e nova interpretação. A legislação brasileira procurou acompanhar as mudanças. A interpretação jurídica dos dispositivos legais seguiu no mesmo caminho. A defesa dos direitos de forma coletiva foi prestigiada de forma a garantir eficiência e amplitude na solução dos conflitos. Referências bibliográficas DIDIER JÚNIOR, Fredie Souza. Palestra: Mandado de segurança coletivo e a Lei 12.016/09: possíveis inconstitucionalidades. In: Currículo Permanente – Módulo Direito Constitucional, Etapa de Curitiba, 19 out. 2012, TRF 4ª Região. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em Juízo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. NERY JUNIOR, Nelson. O Ministério Público e as Ações Coletivas. In: MILARÉ, Édis (coord.). Ação Civil Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. SILVA, Décio José da. O direito à tutela jurisdicional efetiva na sociedade pós-moderna e os meios de controle da atividade judicial no direito brasileiro. In: HIROSE, Tadaaqui; GEBRAN NETO, João Pedro (org.). Curso modular de Direito Constitucional. São Paulo: Conceito, 2010. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004. VAZ, Paulo Afonso Brum. O papel do juiz na construção do direito: uma perspectiva humanista. Revista do Tribunal Regional Federal Quarta Região, Porto Alegre, n. 81, 2012. Notas 1. A esse respeito, interessante análise da modernidade e da pós-modernidade feita em: SILVA, Décio José da. O direito à tutela jurisdicional efetiva na sociedade pós-moderna e os meios de controle da atividade judicial no direito brasileiro. In: HIROSE, Tadaaqui; GEBRAN NETO, João Pedro (org.). Curso modular de Direito Constitucional. São Paulo: Conceito, 2010. 2. NERY JUNIOR, Nelson. O Ministério Público e as Ações Coletivas. In: MILARÉ, Édis (coord.). Ação Civil Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 359. 3. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p. 239. 4. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 26-27. 5. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 38. 6. SILVA, Décio José da. O direito à tutela jurisdicional efetiva na sociedade pós-moderna e os meios de controle da atividade judicial no direito brasileiro. In: HIROSE, Tadaaqui; GEBRAN NETO, João Pedro (org.). Curso modular de Direito Constitucional. São Paulo: Conceito, 2010. p. 237. 7. VAZ, Paulo Afonso Brum. O papel do juiz na construção do direito: uma perspectiva humanista. Revista do Tribunal Regional Federal Quarta Região, Porto Alegre, n. 81, 2012, p. 56. 8. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em Juízo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 18. 9. DIDIER JÚNIOR, Fredie Souza. Palestra: Mandado de segurança coletivo e a Lei 12.016/09: possíveis inconstitucionalidades. In: Currículo Permanente – Módulo Direito Constitucional, Etapa de Curitiba, 19 out. 2012, TRF 4ª Região. 10. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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