Reflexões sobre o princípio constitucional da igualdade

Autora: Maria Isabel Pezzi Klein

Juíza Federal

 publicado em 30.10.2013



Resumo


O objetivo do estudo consiste em uma reflexão sobre um possível significado para o princípio constitucional da igualdade, capaz de autorizar as discriminações no contexto da sociedade política organizada pelo Direito, sem afetar a coerência e a justiça que se esperam de suas instituições. A partir da contribuição doutrinária de Ronald Dworkin, compreendemos a importância da virtude da fraternidade na construção de uma perspectiva constitucional que afeta tanto a atividade legislativa e judiciária quanto a própria atitude da cidadania ativa, imantando o princípio da igualdade e revelando que as desigualdades, no tratamento jurídico das questões que desafiam os muitos âmbitos da vida das relações sociais, podem concretizar o que, na bela lição de Amartya Sen, se chama de justiça focada em realizações. Analisamos dois julgamentos do Supremo Tribunal Federal os quais tiveram por fundamento o princípio constitucional da igualdade, em uma visão substancial, justificando o acerto das inovações legislativas que, abrindo exceções às disciplinas jurídicas focadas na igualdade tão somente formal, permitiram a superação de modos de viver que corresponderam a décadas de injustiças irreparáveis.

Palavras-chave: Princípio constitucional da igualdade. Virtude da fraternidade. Igualdade formal e igualdade substancial. Cidadania ativa. Justiça focada em realizações. Superação de injustiças concretas.

Sumário: Introdução. 1 A igualdade como virtude política. 2 Integração. 3 Fraternidade. 4 Justiça e realizações. 5 Dois casos concretos. Conclusão. Obras consultadas.

Introdução

A Constituição Federal de 1988 consagra o princípio da igualdade em vários de seus artigos, valendo menção ao art. 3º,(1) quando o coloca entre os objetivos fundamentais da República e, especialmente, ao art. 5º, caput e inciso I,(2) em que afirma o principio da igualdade de todos na e perante a lei. Sendo assim, o referido princípio atua nivelando a totalidade dos cidadãos diante do Direito positivo vigente. Além disso, impõe ao legislador o claro dever de editar leis com ele compatíveis. Quanto aos magistrados, o princípio da igualdade deles exige soluções jurídicas para os casos concretos que lhes são submetidos a julgamento que guardem sintonia com uma estrutura política e jurídica uniforme e coerente de justiça substantiva. Afinal, não pode haver dúvidas de que, em um Estado Democrático de Direito, a legislação e as decisões judiciais devem dispensar tratamento equânime a todas as pessoas.

Essas assertivas aparentemente tão simples e indubitáveis, no entanto, deixam tanto legisladores quanto aplicadores do Direito com um sério problema, quando o questionamento avança sobre a fronteira concreta que separa, na vida real, os iguais dos desiguais, admitindo possíveis diferenciações que, teoricamente, seriam inaceitáveis. Neste breve texto, perguntamos sobre um significado realisticamente aceitável para o princípio da isonomia constitucional. A indagação é difícil e passa, necessariamente, pela busca de, ao menos, um critério que, sem afrontar o princípio constitucional da igualdade, possa autorizar distinções de pessoas em grupos específicos, concedendo-lhes tratamentos jurídicos diferenciados, não raro, atribuindo-lhes vantagens em relação aos demais cidadãos. Que critério seria esse capaz de dar densidade real ao significado do princípio da igualdade? A resposta que tentamos oferecer é uma reflexão possível sobre o conteúdo do princípio da igualdade à luz da noção de fraternidade, capaz de autorizar que se façam distinções sem malferir a solidez deste princípio que está na base que fundamenta a concepção de democracia constitucional.
 
Se, por um lado, o princípio da isonomia matrizado na Carta Constitucional de 1988 proíbe tratamento desuniforme às pessoas, por outro, a legislação ordinária vem dispensando tratamentos desiguais, discriminando situações e pessoas em regimes jurídicos diferentes. Não é por outra razão que o Supremo Tribunal Federal está sendo sempre provocado para se manifestar sobre eventuais afrontas aos valores e princípios mais caros que fundamentam nosso sistema constitucional. Afinal, como decidir quais seriam as discriminações juridicamente intoleráveis e quais as que seriam constitucionalmente admissíveis? A nosso ver, e este é o objetivo central do presente estudo, estaríamos diante de um renovado modo de se refletir sobre o conteúdo jurídico do princípio da igualdade.

Nessa linha de raciocínio, faremos análise de dois julgados exemplares do Supremo Tribunal Federal, como o são a decisão na Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) nº 19, de 09.02.2012 (a qual assentou a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha)(3) e a decisão no Recurso Extraordinário – RE nº 428.864 (a qual assentou a constitucionalidade do disposto no art. 302, parágrafo único, da Lei nº 9.503/1997 – Código de Trânsito Brasileiro).(4)

No primeiro deles, a Corte Máxima, ao confirmar a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), reiterou a ideia de que o Diploma veio conferir efetividade ao art. 226, § 8º, da Constituição Federal de 1988.(5) Sendo assim, os dispositivos legais avaliados guardam simetria de boa lógica jurídica com o princípio da igualdade, atendendo a Ordem Jurídica Constitucional, no que diz respeito ao combate ao desprezo às famílias e à condição feminina. Ao tomar o gênero da vítima humilhada pela agressão como elemento de diferenciação, o legislador criou mecanismos específicos para impedir e prevenir agressões domésticas contra as mulheres, estabelecendo medidas especiais de proteção, assistência e punição, assim atendendo ao fim traçado pelo próprio legislador constituinte. Segundo a Corte, mesmo que o legislador tenha utilizado o sexo como critério de diferenciação, tal eleição não foi desproporcional ou inconstitucional, na medida em que a mulher é, por suas próprias características, vulnerável aos constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofridos no âmbito privado.

O outro julgado refere-se à avaliação da inconstitucionalidade do art. 302, parágrafo único, da Lei nº 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro), o qual dispensou tratamento jurídico mais rigoroso à hipótese de homicídio culposo causado em acidentes de veículos. A situação excepcional retratada nos alarmantes números de vítimas fatais ou gravemente feridas, na sua grande maioria tornadas inválidas, por decorrência de excessos ao volante, seja de velocidade, seja da combinação letal de álcool ou outras drogas com negligência e imperícia na condução de veículos automotores, nas vias e rodovias públicas, corresponde ao elemento de diferenciação que levou a tratamento diverso das consequências jurídicas, com majoração das margens penais em comparação ao tratamento dado ao homicídio culposo pelo art. 121, § 3º, do Código Penal Brasileiro.    

Como se vê, é possível uma proposta de significado jurídico para o princípio da igualdade, quando levamos em consideração não apenas a correlação lógica que vincula o elemento de diferenciação e a desigualdade de tratamento jurídico respectiva, mas, principalmente, quando há compatibilidade da correlação com o contexto valorativo do nosso sistema normativo constitucional. E, para avaliar a consonância ou dissonância da correlação lógica com as finalidades tidas por valiosas pelo Texto Magno, será necessário recorrer a algum critério que guarde ligação íntima com os valores e princípios constitucionais. Pois não será qualquer fundamento lógico que terá aptidão para autorizar a desigualdade, mas, tão somente, aquele que se orienta na linha de interesses, prestigiados na Ordem Jurídica, sob pena de inegável afronta à isonomia constitucional. Nossa escolha recaiu na defesa de uma proposta de constitucionalismo fraterno, tendo por inspiração o próprio compromisso assumido pelos legisladores constituintes, já anunciado no Preâmbulo do Documento Máximo,(6) de construir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
 
De fato, são muitos os desafios que, sobretudo, juízes e legisladores enfrentam no cotidiano de suas atribuições funcionais. O giro veloz da vida mundana está sempre provocando e exigindo novas soluções que, em uma sociedade politicamente organizada sob o império das leis, não raro, deixam os juristas quase sem saída. Se a pretensão for a de construir uma sociedade democrática na qual haja real possibilidade de se estabelecer um sistema concreto de justiça substantiva, então as soluções aos casos difíceis que são trazidos diante dos legisladores e dos juízes precisam ser mais do que respostas jurídicas ou políticas, avançando sobre os âmbitos dos princípios morais e das virtudes.

Nenhum deputado ou juiz poderá apresentar uma solução jurídica supostamente neutra sem antes passar por uma sólida fundamentação moral. Quem conseguiria, por exemplo, resolver um caso relacionado às pesquisas genéticas, sem antes refletir profundamente sobre princípios e virtudes morais que tocam o mais íntimo de nossa condição humana? Sem dúvida, a proposta do constitucionalismo fraterno não é um sonho de idealistas, mas uma exigência presente das sociedades modernas, nas quais as relações humanas se tornam cada vez mais e mais complexas, provocando indagações inquietantes sobre temas com os quais temos sérias dificuldades de lidar.   

Para levar adiante a proposta reflexiva deste sintético estudo, recorremos aos aportes doutrinários de Ronald Dworkin e Amartya Sen. De Dworkin, consultamos as obras O império do Direito(7) e A virtude soberana.(8) Já em relação a Amartya Sen, consultamos o livro A ideia da justiça.(9) A escolha destes autores não foi aleatória, nem, tão somente, motivada pelo imenso respeito que temos pelos referidos pensadores e seus trabalhos, mas porque compartilhamos muitas das ideias por eles veiculadas a respeito do princípio da igualdade e da concepção de justiça. Dworkin, especificamente, apresenta o princípio da integridade, pontuando que este serve à virtude da fraternidade, e, assim sendo, considera que isso revela o Direito em sua melhor luz.(10) É, não se pode negar, uma proposta de abordagem da ordem jurídica, aí incluídas as suas práticas, de forte apelo liberal igualitário, que tem por pressuposto uma concepção contratualista de se perceber a dinâmica das relações políticas e sociais. Contudo, sua teoria do Direito, ao avançar sobre o âmbito da moralidade política e das melhores virtudes humanas, ganha em densidade, revelando a coerência de sua contribuição para os juristas que se preocupam com a concretização de uma prática constitucional, seja jurídica, seja política, voltada à promoção do que melhor há em todos nós, individualmente e como cidadãos.

Se Dworkin deu um grande passo, o que dizer de Amartya Sen? Sen propõe investigações baseadas em realizações que analisam os avanços e retrocessos da justiça em sociedades reais. Nessa linha, sua pergunta é sobre os modos de se promover a justiça, no lugar da clássica pergunta da tradição modernista sobre o que seriam instituições perfeitamente justas. Ao se valer da via comparativa sobre sociedades concretas, Amartya Sen observa as realizações que nelas ocorrem, em vez de focar apenas as instituições e as regras. Isso representa uma mudança radical na formulação de uma teoria sobre a justiça, com fortes repercussões nas práticas jurídicas e políticas. Sendo assim, a indagação central consiste em saber se a análise da justiça necessita ficar limitada ao acerto das instituições básicas e das regras gerais, ou se se deve olhar atentamente para o que se passa no plano dos fatos. O que Amartya Sen propõe é um exame do que surge nas sociedades, incluindo os tipos de vida que as pessoas podem, de fato, levar, dadas as instituições e as regras e, também, outras influências, como os comportamentos reais que afetam, inevitavelmente, suas vidas. Sua perspectiva sobre a justiça comparativa, portanto, descortina outras possibilidades reais de vivência do princípio da igualdade.(11)

Ronald Dworkin, ao tratar o tema da igualdade como ideal político por excelência, propõe modos de superação das desigualdades atuais que fortaleçam a moralidade constitucional, segundo a perspectiva da fraternidade. Amartya Sen, por sua vez, mostra-nos a necessidade de compreendermos a justiça segundo uma visão que vai além da escolha das instituições ou da identificação dos arranjos sociais ideais, por mais importante que isso seja. Sua concepção de justiça baseada nas realizações está relacionada ao argumento de que a justiça não pode ser indiferente às vidas que as pessoas podem realmente levar. Segundo Sen, a concretização da justiça não é apenas uma questão de julgamento das instituições e regras, mas de julgar as próprias sociedades. No lugar de buscarmos, incessantemente, o que é perfeitamente justo, assumimos uma postura mais humilde e realista, tornando factível a possibilidade de prevenirmos as injustiças manifestas no mundo que tanto afetam a concretização do princípio da igualdade.

Sendo assim, iniciaremos nosso itinerário comentando, brevemente, a contribuição de Ronald Dworkin à construção de um significado possível para o princípio da igualdade, seguindo-se uma necessária análise de sua compreensão do princípio da integridade, que, imantado pela virtude da fraternidade, é capaz de revelar o Direito de uma comunidade política da melhor maneira. Seguiremos com o estudo de uma pequena parte do legado de Amartya Sen. Este doutrinador nos oferece uma concepção de justiça focada em realizações que tem por pressuposto a comparação de sociedades realmente existentes, o que permite ver, com um pouco mais de realismo, as vidas humanas sem tantas exclusões e desigualdades. Por fim, voltaremos a atenção para os dois julgamentos do Supremo Tribunal Federal supramencionados, reveladores de significados para o princípio da igualdade que fortalecem as instituições de nossa jovem democracia.

1 A igualdade como virtude política

Ronald Dworkin considera a igualdade como um ideal político ameaçado de extinção. Apesar disso, defende a tese segundo a qual a consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política. Na sua perspectiva, um governo só será legítimo se demonstrar igual consideração pelos destinos de todos os cidadãos. Para o autor, a desigualdade na distribuição das riquezas coloca sob suspeita a capacidade do governo de respeitar o referido princípio da igual consideração, pois a distribuição seria produto de uma ordem jurídica. Para ele, a riqueza dos cidadãos depende muito das leis promulgadas em sua comunidade. Quando as instituições oficiais optam por um determinado corpo legislativo em lugar de outro, muitos cidadãos têm as suas vidas modificadas, não raro, para pior. A estas alturas, caberia perguntar sobre o significado do princípio da igual consideração em Dworkin. Este é precisamente o tema central do livro A virtude soberana (a teoria e a prática da igualdade).(12)

O autor inicia referindo que o princípio da igual consideração é o pré-requisito da legitimidade política. Sendo assim, a meta legítima de uma comunidade política exige um debate sério sobre o tema da igualdade, e não apenas discussões sobre como atenuar as desigualdades. Nessa linha de ideias, Dworkin defende que a igual consideração demanda que o governo aspire a uma forma de igualdade material que ele chama de igualdade de recursos. Isso porque sua teoria da igualdade é de forte apelo liberal e se apoia sobre dois princípios do individualismo ético: o primeiro deles é o princípio da igual importância, o segundo é o da responsabilidade especial. Por igual importância é possível entender o quanto é valioso, do ponto de vista objetivo, que a vida humana seja bem-sucedida, em vez de desperdiçada. Mais ainda, esse fato é igualmente importante, de novo, objetivamente, para cada vida humana. Quanto à responsabilidade especial, de fato, somos responsáveis por nossas próprias vidas. Podemos dizer que a resposta que o pensador oferece ao desafio da consideração igualitária é dominada por esses dois princípios agindo em conjunto.(13)

Na realidade, ele tenta integrar a igualdade à liberdade com as exigências factuais de uma sociedade concreta, estabelecendo uma terceira via de pensamento à tradicional forma, pretensamente neutra, de compreender a igualdade de modo puramente abstrato. Pelo princípio da igual importância, os governos devem adotar leis e políticas públicas que garantam os destinos dos cidadãos, independentemente de histórico econômico, sexo, raça, especializações ou deficiências. Além disso, pelo princípio da responsabilidade especial, os governos devem se empenhar em tornar os destinos dos cidadãos sensíveis às opções de vida que, voluntariamente, fizerem.

Segundo o autor, o princípio da igualdade, abstratamente considerado, estipularia que os governos deveriam agir para melhorar as vidas de seus cidadãos, com igual consideração pela vida de cada um deles. Tal princípio, na prática cotidiana, no entanto, não bastaria. Afinal, há problemas concretos que desafiariam as escolhas entre diversas interpretações ou concepções de igualdade abstrata. Apesar disso, a interpretação escolhida teria aptidão para influir não só nos projetos de todas as instituições fundamentais, mas, também, nas decisões oficiais. Se assim o é, como o princípio abstrato da igualdade se aplicaria à questão fundamental da distribuição do poder político dentro da comunidade? Ou, perguntando de outro modo, que instituições e processos políticos uma comunidade igualitária deveria ter? Ou, ainda, qual forma de democracia seria a mais adequada a uma sociedade igualitária? Para tentar responder às perguntas que ele mesmo faz, Dworkin propõe uma interessante análise da concepção de democracia dependente e da concepção separada de democracia.(14)

Segundo a concepção dependente, a melhor forma de democracia seria aquela que tivesse mais probabilidade de produzir as decisões substantivas que tratam todos os membros da comunidade com igual consideração. Sendo assim, a comunidade na qual o voto é generalizado e a expressão é livre teria mais probabilidade de distribuir recursos materiais e outras oportunidades e valores de modo equânime. Nos casos controversos, ela reclamaria o teste das consequências, avaliando a decisão que melhor promovesse as metas igualitárias substantivas. Já a concepção separada de democracia exigiria que se julgasse a equidade ou o caráter democrático de determinado processo político, examinando as características do próprio processo. Nesse enfoque, o que ela pergunta é se o poder foi distribuído de modo igual, e não quais os eventuais resultados produzidos. Por decorrência, diante das questões controvertidas, a pergunta estaria voltada para os detalhes do processo político, avaliando qual seria a melhor decisão para aumentar ainda mais a igualdade do poder político.

Dworkin diz que a concepção separada de democracia é bastante atraente, pois tem a aparência de neutralidade. Afinal, na sociedade, as pessoas divergem – e muito – sobre as questões relacionadas à justiça substantiva. Como ele mesmo pontua, “discordam, por exemplo, se o imposto de renda progressivo é um roubo oficial (...). Questões divergentes como essas precisam ser resolvidas por processo político, e já que se espera que os perdedores do processo aceitem a decisão tomada, mesmo que a achem injusta, parece correto que cada cidadão tenha controle igual sobre qual seja a decisão”.(15)

No entanto, entre a concepção separada e a dependente, ele propõe um terceiro modelo misto de democracia, que contenha as características de ambas. Segundo o autor, uma sociedade igualitária deseja que seus cidadãos se interessem pelos destinos políticos de sua comunidade. Sendo assim, os cidadãos devem ter um interesse compartilhado e intenso pela justiça dos resultados dos processos políticos, de tal modo que as decisões distributivas tratem a todos com igual consideração. Além disso, em um modelo social igualitário, os cidadãos devem ter o maior espaço possível para estender à atividade política as suas próprias experiências morais e de vida.(16)

Mais adiante, na segunda parte do livro A virtude soberana,(17) já tratando de temas práticos da realidade americana que também são comuns à sociedade brasileira, como o alto custo da saúde, a liberdade de expressão, as ações afirmativas, as experiências genéticas e o suicídio assistido, Dworkin pontua que, segundo a 14ª Emenda à Constituição americana, a liberdade, o direito ao devido processo legal e a cláusula que garante a igual proteção das leis correspondem a direitos constitucionais fundamentais que nem mesmo a maioria pode atacar. Em especial, a cláusula da igual proteção exige que os estados americanos não discriminem com injustiça os direitos e as liberdades dos cidadãos. Todas elas são interpretadas de modo a conceder às pessoas um espaço próprio para que tomem suas próprias decisões morais. Mas, na prática, assim como se observam julgados que autorizam as mulheres a praticar aborto no princípio da gravidez, outros, no entanto, proíbem os médicos de assistir no suicídio de pacientes com doenças terminais. Os exemplos servem para mostrar o quanto a dura realidade torna difícil precisar o alcance da igualdade, não apenas quando os congressistas votam as leis, mas, principalmente, quando os juízes têm de aplicá-las. Dworkin pergunta: “como deveriam os juízes decidir quais liberdades a cláusula do devido processo trata como fundamentais, e quais tipos de discriminação a cláusula da igual proteção trata como injustos?”(18)

Como se pode ver, já contamos com ideias poderosas que nos levam a refletir sobre como o princípio da igualdade pode dirigir, no dia a dia, as nossas vidas, mesmo que possamos argumentar que não ligamos para essas discussões típicas de políticos ou de acadêmicos. De fato, não podemos dar as costas para a igualdade, procurando manter uma suposta posição de imparcialidade diante dos conflitos e desafios diários que a vida comunitária nos apresenta. Mesmo que a opção de determinado cidadão seja a de viver sua individualidade no mais estrito sentido que isso possa ter, ele ainda é um cidadão e vai ser afetado, queira ou não, por decisões políticas que podem interferir diretamente nas suas escolhas, e não raro modificá-las.

Não pretendemos aqui eleger o princípio da igual consideração, proposto por Ronald Dworkin, como um isolado e eficientíssimo critério de avaliação de nossas instituições sociais, entre elas, o Direito. É Amarty Sen quem adverte para o perigo da arbitrária redução de princípios múltiplos e potencialmente conflitantes a um único e solitário sobrevivente, afastando os demais critérios avaliativos.(19) Concordamos com o referido autor no sentido de que uma teoria sobre a justiça e sobre o direito está na dependência de um processo de argumentação racional sobre assuntos que, muitas vezes, é bastante difícil trazer para a pauta de discussões. A igualdade, um princípio em relação com o qual qualquer cidadão leigo pode simpatizar facilmente, tem, no entanto, aptidão para suscitar questões praticamente impossíveis de se responder, como os exemplos supramencionados, citados na obra de Dworkin (como os relacionados às pesquisas genéticas e à eutanásia). Não é fácil pensar sobre um significado possível para a igualdade de respeito diante de uma pessoa que, não suportando mais suas dores, acredita que tem o direito de abreviar a sua vida. No mesmo sentido, como ficam os apelos contra a discriminação em um tipo de sociedade no qual as experiências no campo da genética apontam para um futuro próximo no qual os pais vão sempre preferir filhos mais que perfeitos?

Amartya Sen diz que existem duas linhas básicas e divergentes de argumentação racional sobre a justiça: o institucionalismo transcendental, de um lado, e a concepção da justiça focada em realizações, de outro. O institucionalismo transcendental está relacionado ao modo contratualista de pensar, cujo foco é identificar a natureza do justo, do ponto de vista institucional. Precisamente, a identificação de instituições justas corresponde ao objeto central das modernas teorias da justiça. Por sua vez, a concepção de justiça ligada às realizações se concentra no comportamento real das pessoas, no lugar de supor que todas devam seguir um idealizado caminho. Sen, adepto desta última, prefere que as comparações se deem entre sociedades realmente existentes, sendo que os esforços devem se voltar à erradicação das injustiças concretas no plano da realidade da vida.(20)

Embora possamos concordar com a perspectiva de Amartya Sen, que aposta na via comparativa, avaliando, no plano da realidade, os avanços e retrocessos da justiça, preferimos assumir uma posição intermediária, entre ele e Dworkin. Pois, na nossa visão, é extremamente valiosa a investigação feita nos moldes do institucionalismo transcendental, a qual resulta em análises bastante esclarecedoras sobre os imperativos morais, políticos e jurídicos que podem ser considerados como paradigmas para o comportamento social. Os resultados dos estudos permitem o acerto não apenas dos arranjos institucionais, mas, também, dos modos de se viver em sociedade. Sobretudo, juízes sabem da importância prática de teorias que permitem a identificação de regras e instituições justas. Não foi por outra razão que escolhemos refletir, neste texto, sobre um possível conteúdo para o princípio constitucional da igualdade, um princípio de sustentação do sistema constitucional brasileiro e que guarda nuances políticos, morais e jurídicos.

Tal perspectiva, no entanto, não nos afasta da necessária compreensão de que regras, princípios, valores e teorias sobre a justiça e sobre o Direito não podem ser indiferentes às vidas que as pessoas podem viver de fato. A jovem esposa que foi alvejada por disparos de arma de fogo, tornando-se inválida, lutou pela aprovação de uma lei (Lei Maria da Penha) que, introduzindo um elemento de discriminação no tratamento jurídico entre homens e mulheres, tornou concretamente possível ambientes familiares menos desiguais. O corajoso legislador que, criando exceção à dosimetria das penas relacionadas aos acidentes de trânsito com vítimas fatais, aparentemente, feriu a igualdade formal do tratamento jurídico dispensado ao homicídio culposo, na prática, chamou a atenção da sociedade para o flagelo diário das perdas de vidas decorrentes da má condução de veículos automotores. Esses são belos exemplos de como uma concepção de justiça centrada na realidade pode minimizar a exclusão e a indiferença na vida dinâmica das relações sociais, levando em consideração as capacidades reais que as pessoas possam ter, dando um sentido moralmente denso ao princípio da igualdade. E, nesse enfoque, Amartya Sen está absolutamente certo, quando fala na necessidade de avaliarmos nossas melhores instituições sociais segundo uma perspectiva mais ampla e inclusiva de uma concepção de justiça real e realizada, imbricada, ao mundo humano, tal como ele é.

Por mais importante que seja apostar em uma concepção ideal de justiça para julgar nossos arranjos institucionais, precisamos julgar o que, de fato, ocorre nas sociedades concretas. Portanto, ao lado do institucionalismo transcendental, tão caro aos juristas de modo geral, abre-se, em igual importância, a perspectiva de uma justiça focada em realizações que nos permita compreender a importância de prevenir as injustiças que, concretamente, estão presentes na realidade da vida mundana. E, com essa integração, o princípio constitucional da igualdade ganha força e desempenha papel relevante, quando imantado pela noção de fraternidade.

Nessa linha de raciocínio, e já avançando nossa reflexão sobre o princípio da integridade, observamos que este, em Dworkin, mostra a importância de que normas públicas sejam criadas e aplicadas, como a expressão de um sistema único e coerente de justiça e equidade, na correta proporção. Especificamente, quando aplicado no contexto da ação legislativa, ele impõe aos poderes oficiais o dever de se empenhar em proteger, para todos os cidadãos, aquilo que eles entendem como seus direitos morais e políticos, de tal modo que a ordem jurídica corresponda a um sistema coerente de justiça e equidade. Quanto aos juízes, a perspectiva do Direito como integridade pede que eles admitam que a ordem jurídica é moldada por um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal e que cada jurisdicionado tenha seu caso avaliado sob essas condições, viabilizando a concretização de uma comunidade de princípios. Afinal, queremos que nossas autoridades, sejam elas legisladores, governantes ou juízes, nos tratem como uma sociedade política regida por princípios em relação aos quais prestamos adesão. Portanto, os princípios fundamentais que regem o sistema constitucional democrático e suas inter-relações pretendem ser uma resposta decente à complexidade do mundo real.

Sendo assim, o governo comprometido com a igualdade substancial tende a adotar programas que favoreçam os segmentos sociais de modo uniforme. As decisões oficiais dos governos democráticos, nesse sentido, dependem, sem dúvida, de estratégias políticas. São ações que pertencem, na verdade, ao âmbito da política. Mas, em uma sociedade politicamente engajada, os princípios constitucionais, entre eles o da igualdade, sempre vão servir como um teste essencial para aferir a qualidade do tratamento dispensado aos cidadãos. Por decorrência, o princípio da integridade aplicado à base motivadora das ações oficiais do aparelho estatal servirá à concretização da igualdade material entre os cidadãos, especialmente quando imantada pela virtude da fraternidade.

2 A integração

A estas alturas, já cabem, portanto, algumas considerações sobre o princípio da integridade na lição de Ronald Dworkin. Na sua obra mais conhecida – O império do Direito – , o referido autor já começa perguntando sobre o modo como a lei poderia comandar os destinos dos cidadãos em determinada comunidade política, quando os textos jurídicos emudecem ou são obscuros, e não raro, ambíguos. A resposta é que o raciocínio jurídico é um exercício de interpretação construtiva. Portanto, na visão de Dworkin, o Direito deve se constituir na melhor justificativa do conjunto das práticas jurídicas respectivas, sendo que ele é a narrativa que faz dessas práticas as melhores possíveis.(21)

Ronald Dworkin, na realidade, propôs uma teoria sobre a estrutura da ordem jurídica e sua interpretação construtiva. Esta última ele considera como a melhor justificativa para as práticas jurídicas, na medida em que se traduz em uma interpretação imantada pelo princípio da integridade nos moldes do chamado “romance em cadeia”. Seu trabalho é uma forte crítica tanto ao positivismo jurídico quanto à exagerada discricionariedade judicial. Sendo assim, ele se afasta da concepção de ordem jurídica como apenas um conjunto convencional de regras estabelecidas pelo Poder Legislativo ou por outra fonte de autoridade oficial. Para o autor, a prática jurídica é muito mais complexa do que um sistema ordenado de regras a partir das quais os magistrados, com amplo poder discricionário, podem decidir os casos, especialmente os casos difíceis, e, assim, criar o Direito.

Distanciando-se do positivismo jurídico convencional e do utilitarismo econômico, Dworkin joga luzes novas sobre a complexidade das relações sociais modernas. Estabelece, assim, uma teoria alternativa que, pelo princípio da integridade, se preocupa com como as pessoas podem ter outros direitos, além daqueles criados por uma decisão ou prática expressa. Na sua proposta de um liberalismo igualitário moralmente denso, Dworkin sustenta que a integridade corresponde à vida do Direito, tal como o conhecemos. Nesse enfoque, a integridade constitui um ideal político, quando se exige do Estado ou da comunidade que ajam, como agentes morais, por meio do conjunto único e coerente de princípios, ainda que os cidadãos estejam divididos quanto aos princípios de justiça e de equidade.

Para o pensador, a integridade atinge tanto a atividade legislativa quanto a atividade judiciária. Ele pede aos legisladores coerência com os princípios fundamentais do sistema constitucional no momento da criação das leis. Do mesmo modo, ele quer coerência com os princípios da parte dos aplicadores da lei (juízes, especialmente). Nesse sentido, a integridade política personifica a comunidade de uma forma atuante, escolhendo seus próprios princípios, tomando parte na elaboração do Direito que quer ter, um Direito como integridade, por cuja criação torna-se plenamente responsável. Na defesa do princípio legislativo da integridade devemos entender que a argumentação deve considerar a comunidade como um agente moral. Isso enfatiza a integridade como algo que contribui para a eficiência do Direito.

Quanto à integridade na atividade jurisdicional, na sua perspectiva, esta incentiva a integridade política, na correspondência da ativa participação da comunidade que se engaja nos princípios da equidade, da justiça e do devido processo legal adjetivo. Por conseguinte, a integridade promove a união moral e política dos cidadãos que se comprometem com a concretização da justiça na vida das relações sociais. Em síntese, para ele, o princípio da integridade representa a tradição compartilhada por uma comunidade de princípios. Com a integração política da comunidade não vamos eliminar as desigualdades, mas, com certeza, vamos potencializar e muito a vivência das igualdades substantivas. Sendo assim, um juiz, ao aceitar a integridade e decidir um caso difícil, buscará encontrar, no conjunto coerente de princípios sobre os direitos e deveres das pessoas, a melhor interpretação possível que seja, ao mesmo tempo, compatível com a estrutura política e a doutrina jurídica aceita por sua comunidade.

Segundo Ronald Dworkin, “uma sociedade política que aceita a integridade como virtude política se transforma, desse modo, em uma forma especial de comunidade, especial em um sentido que promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva”. Nesse sentido, enquanto as diretrizes políticas, no sentido estrito, estabelecem os objetivos dos governos nos âmbitos políticos, sociais, econômicos, por exemplo, os princípios representam a tradição compartilhada por uma comunidade organizada política e juridicamente que afirma, assim, a sua própria legitimidade política. Esse é um ponto vital em sua teoria, na medida em que este autor promove a ligação necessária da legitimidade política à virtude da fraternidade, tornando moralmente mais densa a sua concepção de liberalismo igualitário.

3 Fraternidade

Dworkin define a legitimidade política como o direito de uma comunidade política de tratar seus membros como tendo obrigações decorrentes de decisões coletivas da própria comunidade.(22) No entanto, a melhor defesa que se pode oferecer para a aceitação da legitimidade política, segundo ele, não será encontrada nos argumentos filosóficos relacionados às teorias contratuais ou às teorias da justiça, mas, sim, no campo fértil da fraternidade. Segundo ele, “as pessoas que pertencem a comunidades políticas têm obrigações políticas, desde que sejam atendidas as outras condições necessárias às obrigações de fraternidade – devidamente definidas para uma comunidade política”.(23) A pergunta central que ele faz, a essas alturas, é sobre como uma sociedade política pode se tornar uma forma verdadeira de associação fraternal. O autor não está preocupado só com questões fáticas relacionadas às atitudes, instituições ou tradições que são necessárias para criar ou proteger a estabilidade política, por mais importantes que tais análises possam ser, mas, também, com a questão de fundo que indaga sobre os interesses e as responsabilidades mútuas que as práticas políticas devem expressar para justificar uma comunidade realmente fraterna.

Após analisar os três modelos gerais de associação política (modelo da associação de fato, modelo comunitário das regras e modelo comunitário dos princípios), ele se detém no estudo do modelo de comunidade de princípios. Nele, o pensador encontra um padrão mais aproximado de uma sociedade moralmente pluralista, na qual estão bem claras as responsabilidades da cidadania ativa. Aqui, as pessoas tornam pessoais as responsabilidades da cidadania. Nas suas palavras, isso “faz com que essas responsabilidades sejam inteiramente pessoais: exige que ninguém seja excluído; determina que, na política, estamos todos juntos para melhor ou pior; que ninguém pode ser sacrificado, como os feridos em um campo de batalha, na cruzada pela justiça total”.(24) Como bem pontuou o autor, em tal modelo o interesse é verdadeiro e constante, começando na ação política e mantendo-se na legislação que rege a prestação jurisdicional e sua aplicação. Nesse enfoque, a ação política, em sentido amplo, tanto aquela praticada no âmbito institucional quanto a que é inerente à vida das relações sociais, fica fortemente comprometida com a igualdade substancial.

É, na lúcida visão de Dworkin, a exigência de sacrifícios não apenas dos perdedores, mas, também, dos poderosos que teriam a ganhar com o tipo de conluio e soluções oportunistas que o princípio da integridade rejeita. Respeitadas as naturais divergências que as pessoas têm, a base racional de tal proposta potencializa o princípio da igualdade, tanto da perspectiva formal quanto, principalmente, da material. A integridade política, na realidade, pressupõe que cada pessoa é tão digna quanto qualquer outra e deve ser tratada com o mesmo interesse, de acordo com uma concepção coerente do que isso possa significar. Na leitura que fizemos do autor, ficou-nos a impressão de que é precisamente nesse ponto que a fraternidade imanta o princípio da igualdade. Nos seus termos:

“Uma comunidade de princípios, fiel a essa promessa, pode reivindicar a autoridade de uma verdadeira comunidade associativa, podendo, portanto, reivindicar a autoridade moral – suas decisões coletivas são questões de obrigação, não apenas de poder – em nome da fraternidade. Essas reivindicações podem ver-se frustradas, pois até mesmo as verdadeiras obrigações associativas podem entrar em conflito com a justiça, devendo às vezes ceder diante dela. Mas qualquer outra forma de comunidade, cujos dirigentes rejeitem esse engajamento, perderia já de início qualquer pretensão à legitimidade sob um ideal de fraternidade.”(25)

Nesse sentido, o modelo social pautado por princípios não despreza o importante papel que as regras têm na construção de um mundo comum. Contudo, uma comunidade política genuína vai muito além, pois pressupõe uma íntima ligação aos princípios compartilhados. Sendo assim, a própria atividade política se renova segundo diretrizes mais democráticas. Os cidadãos têm espaço para debater quais os princípios mais condizentes com a sua realidade, como comunidade política, bem como quais as concepções de justiça, equidade e devido processo legal devem adotar. Se for possível compreender as práticas políticas como adequadas ao modelo social de princípios, à compreensão mesma da importância de partilhar os destinos da sociedade política à qual pertencemos, fica mais fácil entender a legitimidade das instituições respectivas e as obrigações que elas nos impõem como uma questão de fraternidade. Para Dworkin, “essa defesa é possível em tal comunidade porque um compromisso geral com a integridade expressa o interesse de cada um por tudo que é suficientemente especial, pessoal, abrangente e igualitário para fundamentar as obrigações comunitárias segundo as normas de obrigação comunitária que aceitamos em outros contextos”.(26)

Ronald Dworkin afirma que, na sua visão, o Direito não se esgota em um catálogo de regras ou princípios, tampouco em uma lista de autoridades e seus poderes de decisão sobre partes de nossas vidas. Antes de tudo, o império do Direito é visto por ele como uma atitude que deve estar presente nas vidas das pessoas, e não apenas nos tribunais. Essa atitude exige muito de cada cidadão, que passa a estar comprometido com a sua comunidade política fundada em princípios. Nas suas palavras, “uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o Direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter”.(27)

4 Justiça e realizações

A doutrina de Dworkin é, sem dúvida, valiosa, quando se debate sobre o princípio da igualdade. Acreditamos ter encontrado, nesta proposta de reflexão que aqui fazemos, um possível significado para o princípio da igualdade, que adquire densidade moral na virtude da fraternidade, influenciando não apenas as atividades institucionais, mas, decididamente, a ação dos cidadãos de uma comunidade politicamente organizada pelo Direito. Talvez esta seja uma renovada forma de relacionar os âmbitos do Direito, da Política e da Moral. Uma concepção poderosa que empresta ao princípio da igualdade a força e a coerência necessárias para justificar as difíceis decisões que exigem aparentes discriminações, quando é necessário encontrar soluções que superem ou, ao menos, minimizem as desigualdades materiais, que são muitas e de diferentes naturezas. E por diferentes naturezas podemos lembrar a moderna questão da justiça distributiva relacionada à partilha de riquezas, e recursos e à erradicação da pobreza extrema. Contudo, por mais importante que seja essa discussão, neste momento, voltamos nossa atenção às desigualdades que se situam em outros planos também valiosos, como a preservação da saúde emocional das relações familiares, ou a proteção das vidas que anualmente se perdem em acidentes de trânsito fatais, em números alarmantes. São os dois exemplos de julgamentos célebres do Supremo Tribunal Federal que citamos no início deste estudo.

Ronald Dworkin nos ajudou a compreender a importância de uma investigação a respeito do caráter justo ou injusto de nossas instituições sociais, entre elas, o Direito, revelando o valor da ligação das virtudes morais aos princípios jurídicos e políticos que devem não apenas fundamentar as ações dos poderes oficiais, mas, especialmente, influenciar a cidadania ativa que se compromete em construir o Direito de sua própria comunidade política.
Sua análise pode ser vista como uma percepção muito refinada da justiça, do direito e da política, focada em arranjos que se referem tanto ao comportamento correto que se espera das pessoas, quanto ao modo de atuação justo das instituições respectivas. Contudo, a busca por teorias sobre o direito e sobre a justiça que nos permitam identificar os modos idealizados que servem de paradigmas aos comportamentos dos cidadãos e das instituições da comunidade política, embora importante, não é suficiente.

O alerta vem de Amartya Sen, que propôs uma mudança radical na formulação de uma teoria sobre a justiça. Para o pensador, não basta investigar o acerto ou desacerto das instituições básicas e das regras gerais. Devemos, também, examinar o que surge nas sociedades reais, voltando o olhar para as vidas que as pessoas, de fato, conseguem viver, no contexto das instituições e regras concretas, além de outras influências, incluindo os comportamentos reais que afetam sempre o dia a dia das pessoas. Sem cair no perigoso terreno do relativismo, Sen pontua que o cerne do problema de tentar encontrar uma solução imparcial única para a escolha de uma sociedade perfeitamente justa está na possível sustentabilidade de razões de justiça plurais e concorrentes, todas elas pretensamente imparciais, mesmo que diferentes e, não raro, rivais entre si.

A crítica é forte e aponta para a necessidade de entendermos a justiça para além da escolha de instituições ou da identificação de arranjos sociais ideais, vale repetir, por mais importante que isso seja no nosso ponto de vista. A concepção de justiça baseada em realizações, para Sen, está relacionada ao argumento de que a justiça não pode ser indiferente ao que se passa no mundo real, nesse mundo tão humano e falho onde temos de viver e conviver. Nessa linha, a capacidade de oferecer razões e de escolher se torna aspecto significativo da vida humana. Se as realizações sociais concretas são avaliadas com relação às capacidades que as pessoas têm mesmo, alguns pontos iniciais significativos mudam muito, e é precisamente aí que o princípio da igualdade tem seu papel relevante. Pois, quando levamos em consideração as liberdades substantivas que as pessoas realmente desfrutam, fica difícil justificar, com coerência, qualquer teoria utilitária ou de promessa de felicidade futura que ignore a existência concreta de preconceitos, exclusões, discriminações, violência, enfim, tudo aquilo que o princípio da igualdade, em um significado fraterno, rejeita. Sendo assim, a perspectiva das realizações sociais, nela assimiladas, também, as capacidades reais que as pessoas possam ter, nos permite indagar, com mais sinceridade, sobre diversos problemas que são centrais quando pretendemos avaliar a intensidade da justiça que existe concretamente na comunidade política à qual pertencemos.

O que Amartya Sen nos ensina é sobre a necessidade de avaliarmos os papéis das instituições, das regras e das organizações, importantes como são, da perspectiva mais ampla e inclusiva de uma concepção de justiça realizada que está, inevitavelmente, ligada ao mundo que, de fato, emerge, e não apenas às instituições ou regras que idealizamos. Portanto, a questão da justiça não é apenas a de julgar as instituições sociais, jurídicas e políticas, mas, muito especialmente, a de julgar as sociedades concretas, avaliando o grau de igualdade que elas comportam na prática diária da vida das relações. Em vez de buscar o que é perfeitamente justo, a perspectiva da justiça focada nas realizações viabiliza a compreensão da importância de prevenir as injustiças manifestas no mundo com toda a carga de desigualdade, violência e menosprezo à condição humana que elas carregam. Nas suas palavras:

“A justiça é uma ideia de imensa importância que moveu as pessoas no passado e continuará a movê-las no futuro. E a argumentação racional e o exame crítico podem realmente oferecer um grande auxílio para ampliar o alcance e refinar o conteúdo desse conceito fundamental. No entanto, seria um erro esperar que todos os problemas decisórios com os quais a ideia de justiça tenha alguma relação concebível fossem resolvidos por meio do exame arrazoado. E também, como dissemos antes, seria um erro supor que, já que não é possível resolver todas as disputas através do exame crítico, então não teríamos bases sólidas suficientes para utilizar a ideia de justiça nos casos em que o exame racional leva a um juízo conclusivo. Vamos até onde podemos razoavelmente ir.”(28)

5 Dois casos concretos

Vamos, agora, passar a analisar dois julgamentos do Supremo Tribunal Federal que tocam de perto o drama da violência humana que atinge a vida das relações sociais de modo amplo. Um deles pontua o que acontece no espaço tipicamente privado dos lares; o outro, o que ocorre no espaço tipicamente público das vias e rodovias. Ambos revelam a brutalidade e a crueza da ação humana e oferecem, na nossa interpretação, uma possibilidade de concretização do princípio da igualdade pela prática do constitucionalismo fraterno. O que defendemos é que a percepção fraterna da ordem jurídica como um todo é capaz de não apenas influenciar os modos como legisladores propõem seus projetos de lei, ou como juízes julgam os seus casos, mas, principalmente, de conscientizar a cidadania sobre seu papel decisivamente ativo na construção de uma comunidade política, organizada pelo Direito, com chances reais de desenvolvimento do melhor da condição humana: o amor.

Começando pela Lei 11.340, de 07.08.2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, a qual criou mecanismos jurídicos que pretendem coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, assim dando concretização ao mandamento constitucional contido no art. 226, caput e parágrafo 8º, da Constituição Federal de 1988 e em várias convenções e tratados de que o Brasil é signatário. Podemos citar, como exemplos, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Nosso Diploma ordinário, entre outras providências, dispôs sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, alterou o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal.

Tão importante lei foi alvo da Ação Direta de Constitucionalidade 19, ajuizada em 19.12.2007, por iniciativa da Presidência da República, perante o Supremo Tribunal Federal, sendo distribuída ao Ministro Marco Aurélio. A ADC pretendeu questionar, especificamente, o art. 1º, o art. 33 e o art. 41, para confirmação de suas compatibilidades com a Carta Máxima. Especificamente, o referido art. 1º da Lei Maria da Penha estabeleceu a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Já o art. 33 propôs que, enquanto os juizados especializados na matéria não fossem criados, a competência para processo e julgamento dos feitos respectivos fosse atribuída às varas criminais da Justiça comum. E, ainda, no art. 41, restou excepcionado o tratamento jurídico dado aos crimes contra a mulher, independentemente do quantitativo das penas cominadas, impedindo a aplicação da Lei nº 9.099, de 26.09.1995 (Lei dos Juizados Especiais).

Ainda que os indicados dispositivos possam conter elementos de discriminação, a inicial da ação declaratória de constitucionalidade teve por fundamento central a aplicação do princípio constitucional da isonomia. Sendo assim, sob o ângulo da igualdade, o autor da ação salientou o princípio, também de estatura constitucional, de proteção do Estado à família, afirmando que o objetivo da Lei Maria da Penha foi impedir a violência doméstica e familiar contra as mulheres. O elemento de discriminação, segundo o gênero das pessoas integrantes do clã familiar, pretendeu ser um ponto de reequilíbrio das relações subjetivas internas. Quanto às questões de dimensão processual, relacionadas à própria organização da estrutura judiciária dos Estados da Federação brasileira, com a criação dessa nova modalidade de Juizados especializados em razão não só da matéria, mas do gênero do jurisdicionado, o autor da ação tentou demonstrar que não houve invasão da competência legislativa dos entes federativos para dispor sobre suas Justiças correspondentes.

A União Federal, ao legislar propondo a criação dos Juizados Especiais qualificados, pretendeu, na verdade, disciplinar, de modo uniforme, certas questões de fato e de direito que afetam a República Federativa brasileira como um todo e que dizem respeito ao essencial combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Nesse enfoque, a Lei Maria da Penha teria estabelecido tão somente uma nova regulação de matéria processual que diria respeito à especialização do Juízo, para o fim de conferir maior celeridade e efetividade aos processos respectivos. Além disso, a exceção quanto à aplicação da já tradicional Lei dos Juizados Especiais, vigente entre nós desde os idos de 1995, se justificaria no fato de que a Lei nº 9.099, de 1995, introduziu tratamento jurídico mais brando aos crimes considerados de menor potencial ofensivo, viabilizando transações e composições cíveis que, na prevenção e no combate à violência contras as mulheres, seriam medidas absolutamente ineficazes.

Após a tramitação, sobreveio o julgamento de mérito da ação, sendo que o Tribunal, em sua composição plenária, por unanimidade e nos termos do voto do então Relator, Ministro Marco Aurélio, deu pela sua procedência para declarar a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei nº 11.340, de 2006. Em síntese, esse julgamento assentou a disposição clara de nossos Ministros de fazer valer uma legislação que prestigiasse a igualdade não apenas sob o aspecto formal, mas, principalmente, sob o aspecto substancial, revelando o fortalecimento de nossas melhores instituições democráticas. Mesmo que, para muitos de nós, casos como o da sofrida Maria da Penha possam soar tão distantes, vale sempre lembrar a lição de Amartya Sen, quando ele fala sobre as vidas que as pessoas realmente podem levar e que, de fato, levam, estas sim muito afastadas das concepções e teorias idealizadas que possamos ter sobre a Justiça e o Direito. Como ele bem pontuou:

“No entanto, a filosofia também pode contribuir para trazer mais disciplina e maior alcance às reflexões não só sobre os valores e prioridades, mas também sobre as negações, subjugações e humilhações que os seres humanos sofrem no mundo. As teorias da justiça têm como compromisso comum levar essas questões a sério e ver o que podem fazer quanto a uma reflexão da razão prática sobre a justiça e a injustiça no mundo. Se a curiosidade epistêmica em relação ao mundo é uma tendência comum a muitas pessoas, o interesse pelo bom, certo e justo também tem uma presença importante – explícita ou latente – em nosso espírito. As diferentes teorias da justiça podem divergir quanto ao direcionamento correto dessa preocupação, mas compartilham a característica significativa de se dedicarem ao mesmo objetivo.”(29)

A decisão do STF foi precedida de intensos debates sobre o significado possível do princípio da igualdade no julgamento da ação. Ao afirmar a constitucionalidade do mencionado art. 1º, acrescentou que o legislador, mesmo recorrendo ao elemento de diferenciação segundo o gênero das pessoas envolvidas, valeu-se de meios adequados e necessários para concretizar os fins colimados pelo art. 226, § 8º, da CF de 1988. A eleição de tal critério – o sexo – não seria desproporcional ou ilegítima, na exata medida da vulnerabilidade da mulher (física, moral e psicológica) no âmbito privado. Inclusive, foi reconhecida a compatibilidade da Lei Maria da Penha com o disposto no art. 7º, item c, da Convenção de Belém do Pará(30) e com outros tratados ratificados pelo Brasil. Sob o enfoque constitucional, a norma em tela seria corolário da incidência do princípio da proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais. De fato, a Lei Maria da Penha representa movimento legislativo favorável às mulheres agredidas, que podem buscar acesso efetivo à reparação, à proteção e à justiça. Nesse sentido, a Corte reconheceu que o legislador ordinário, em diversos momentos, editou novos microssistemas importantíssimos, a fim de conferir tratamento distinto e proteção especial a outros sujeitos de direito em situação de fragilidade e hipossuficiência, como, por exemplo, o conhecido Estatuto do Idoso e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). E o fez com o claro objetivo de proteger direitos fundamentais, à luz do princípio da igualdade no seu aspecto substancial.

Do mesmo modo, ao afirmar a constitucionalidade do art. 33, a respeito da estrutura judiciária especial para processo e julgamento dos casos, a Corte entendeu que não houve ofensa ao art. 96, inciso I, alínea a nem ao art. 125, § 1º, ambos da Constituição Federal de 1988, na medida em que a Lei Maria da Penha não implicaria obrigação, mas faculdade de criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, como disposto nos seus arts. 14, caput, e 29. Além disso, nossa órdem jurídica pátria comporta possibilidades idênticas, como as previstas no art. 145 do ECA e no art. 70 do Estatuto do Idoso. Até porque cabe à União Federal, de modo privativo, disciplinar questões relacionadas à matéria processual, nos termos do art. 22, caput e inciso I, da CF de 1988, o que lhe confere autoridade para editar normas que influenciam a atuação dos órgãos jurisdicionais locais. A conclusão foi a de que a Lei Maria da Penha não criou varas judiciais. Apenas facultou a criação dos referidos juizados qualificados, atribuindo ao juízo da vara criminal a competência cumulativa de ações cíveis e criminais envolvendo violência doméstica contra a mulher, uniformizando, por conseguinte, as formas de tratamento jurídico às vítimas em toda a Nação.

Vale enfatizar, ainda, que, na mesma época, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4424/DF, também da Relatoria do Ministro Marco Aurélio, esta de proposta do Procurador-Geral da República, para atribuir interpretação conforme a Constituição aos artigos 12, inciso I, 16 e 41, todos da Lei nº 11.340/2006, e, assim, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal praticado mediante violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo a Corte, a Constituição comportaria princípios explícitos e implícitos, sendo que caberia ao STF, enquanto intérprete máximo dos dispositivos constitucionais, definir se a previsão normativa a submeter crime de lesão corporal leve praticado contra a mulher, no espaço privado dos ambientes domésticos, ensejaria tratamento igualitário, consideradas as lesões de mesma natureza praticadas de modo geral, bem como se haveria necessidade de representação prévia da vítima como condição para o ajuizamento da ação penal correspondente.

Os ministros tiveram sensibilidade para, diante dos dados estatísticos que refletem a realidade das mulheres brasileiras que já foram, de algum modo, agredidas, entender que, na maior parte dos casos, as lesões corporais são de natureza leve, razão pela qual as ofendidas acabam não apresentando peças de representação, ou, o que é mais comum, retirando as que já formalizaram. No entanto, a gravidade está na reiteração da conduta do agressor, que, sem ferir gravemente a vítima, consegue, no entanto, estabelecer com ela um vínculo de distorção psíquica que pode se prolongar indefinidamente. Daí a necessidade da intervenção estatal corretiva, com base na dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF de 1988), na igualdade (art. 5º, inciso I, da CF de 1988) e na proibição constitucional expressa a qualquer discriminação que afete direitos, liberdades e garantias fundamentais (art. 5º, inciso XLI, da CF de 1988). Especificamente, o Tribunal assentou o dever do Estado de assegurar a assistência às famílias, criando os mecanismos pertinentes e necessários que impeçam o crescimento da violência no espaço doméstico. Por essas razões, a Corte entendeu que, dado o próprio círculo doentio que se estabelece, no correr dos anos, entre a vítima e o agressor, não seria mais possível aceitar que o tratamento jurídico das lesões leves praticadas contra as mulheres em seus lares fosse igual àquele que o Código Penal dispensa ao crime de lesão corporal leve.

De fato, deixar às mulheres humilhadas por maus tratos, especialmente físicos, o poder de decisão a respeito do momento de instaurar a ação penal, na prática, correspondia a uma desigualdade material de difícil reparação, dados os fatores psicológicos imbricados à questão que atingem não só a esposa, mas, de modo irremediável, as crianças e os adolescentes integrantes do clã. Sendo assim, a conclusão foi de que não são aplicáveis, aos crimes previstos na Lei Maria da Penha, as previsões da Lei nº 9.099/1995, de tal modo que, em se tratando de lesões corporais, ainda que de naturezas leves ou culposas, praticados contra a mulher no âmbito familiar, a ação penal cabível só pode ser pública e incondicionada. 

Passamos, agora, a analisar o segundo exemplo por nós já anunciado no início deste estudo, precisamente, o julgamento do Recurso Extraordinário 428.864-8/SP, pelo STF, relacionado à discussão sobre a constitucionalidade do art. 302, parágrafo único, da Lei n° 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro). A questão jurídico-constitucional levada ao escrutínio dos ministros seria a aparente discriminação de tratamento dada pelo mencionado dispositivo ao cominar pena-base variável de 2 (dois) a 4 (quatro) anos de detenção, além da suspensão ou proibição de se obter a permissão ou autorização de habilitação para conduzir veículos automotores, quando o art. 121, § 3º, do Código Penal Brasileiro prevê a pena-base variável de somente 1 (um) a 3 (três) anos de detenção. O tratamento jurídico diferenciado seria, na argumentação do recorrente, uma expressa violação do princípio da igualdade (art. 5º, caput, da CF de 1988), na medida em que atribuiria pena maior a quem praticou homicídio culposo quando na direção de veículo automotor em comparação a outras situações que correspondem à pratica da modalidade culposa do homicídio. A Corte afirmou a constitucionalidade do art. 302, parágrafo único, do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/1997) e, ainda que tenha sido um provimento em sede de controle difuso, este se tornou um paradigma de forte influência nos modos como a sociedade organizada passou a tratar o flagelo diário decorrente da violência na condução de veículos automotores. Vale transcrever a ementa do julgado:

"DIREITO PENAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. HOMICÍDIO CULPOSO. DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. CONSTITUCIONALIDADE. ART. 302, PARÁGRAFO ÚNICO, LEI 9.503/97. IMPROVIMENTO.
  1 – A questão central, objeto do recurso extraordinário interposto, cinge-se à constitucionalidade (ou não) do disposto no art. 302, parágrafo único, da Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), uma vez que passou a ser dado tratamento mais rigoroso às hipóteses de homicídio culposo causado em acidente de veículo.
2  – É inegável a existência de maior risco objetivo em decorrência da condução de veículos nas vias públicas – conforme dados estatísticos que demonstram os alarmantes números de acidentes fatais ou graves nas vias públicas e rodovias públicas –, impondo-se aos motoristas maior cuidado na atividade.
3 – O princípio da isonomia não impede o tratamento diversificado das situações, quando houver elemento de discrímen razoável, o que efetivamente ocorre no tema em questão. A maior frequência de acidentes de trânsito, com vítimas fatais, ensejou a aprovação do projeto de lei, inclusive com o tratamento mais rigoroso contido no art. 302, parágrafo único, da Lei nº 9.503/97.
4 – A majoração das margens penais – comparativamente ao tratamento dado pelo art. 121, § 3º, do Código Penal – demonstra o enfoque maior no desvalor do resultado, notadamente em razão da realidade brasileira envolvendo os homicídios culposos provocados por indivíduos na direção de veículo automotor.
5 – Recurso extraordinário conhecido e improvido.”

O voto-relator, acolhido por unanimidade, pautou-se no julgamento do Tribunal de São Paulo que confirmou a constitucionalidade do hostilizado dispositivo, condenando o autor do delito às penas respectivas, razão da insurgência pela via extraordinária. Na realidade, o art. 302, parágrafo único, do Código de Trânsito Brasileiro, ao estabelecer pena maior para o homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor, não é inconstitucional. O legislador, ao aprovar o referido Diploma, quis deliberadamente estabelecer punições mais rigorosas aos motoristas que, por imprudência ou imperícia, causam milhares de mortes anuais nas vias e rodovias públicas em todo o país.

Até o advento da Lei nº 9.503/1997, as punições, quando ocorriam, eram muito brandas e desconsideravam o fato de que um acidente de trânsito se caracteriza, na maior parte das vezes, como crime de lesões corporais graves ou mesmo crime de homicídio culposo. Hoje, diante do avanço nefasto do consumo indiscriminado de álcool e outras drogas perversas, a questão comporta uma avaliação ainda mais lúcida a respeito do dolo eventual assumido por todo aquele usuário de substâncias entorpecentes que se aventura a pilotar veículos automotores, indiferente aos reais riscos que corre de provocar acidentes graves com mortes. Sendo as infrações penais relacionadas ao trânsito de veículos automotores um dos sérios problemas de criminalidade urbana, o legislador atendeu aos justificados anseios da comunidade brasileira ao criar novos tipos penais, a eles estabelecendo tratamento diferenciado, levando em consideração, justamente, as condutas mais frequentes que mereciam ser destacadas, para fins penais, pelo seu caráter antissocial de menosprezo à vida humana.

Conclusão

Esses dois julgados do Supremo Tribunal Federal revelam a importância da cidadania ativa na construção de uma sociedade concretamente melhor, não só quanto às suas instituições políticas, jurídicas e sociais, mas, especialmente, quanto ao aumento real de boas oportunidades de vida que as pessoas podem levar. Como bem disse Amartya Sen, “é difícil escapar da conclusão geral de que o desempenho econômico, a oportunidade social, a voz política e a argumentação racional pública estão profundamente interrelacionadas”.(31)

O autor fala sobre o drama da discriminação das mulheres indianas, que é, de longe, muito mais grave e arraigado à cultura tradicional daquele povo do que qualquer cidadão ocidental possa imaginar. Mas, guardadas as abissais diferenças que existem entre a sociedade política brasileira e a indiana, as lições do pensador são valiosas, quando se busca por significados concretos para as liberdades, os direitos e as garantias fundamentais que os tornem promotores da justiça social, minimizando o quanto possível as desigualdades materiais que corroem as melhores promessas das democracias constitucionais.

Nesse sentido, Sen acentuou a importância dos esforços políticos substanciais que tentam reduzir a assimetria de tratamento jurídico, político e social entre os gêneros naquele país, oportunizando às mulheres voz ativa na participação política. Nas suas palavras, “a Índia ainda tem um longo caminho a percorrer na eliminação das desigualdades na situação das mulheres, mas o crescente envolvimento político no papel social das mulheres tem sido um desenvolvimento importante e construtivo na prática democrática indiana”.(32)

As questões que esses dois julgamentos trazem mostram a imensa importância de investirmos nossos esforços na formação de uma moralidade no espaço da sociedade política que inclua os melhores valores, princípios e virtudes, prevenindo e atenuando os efeitos da violência. Esse investimento que tanto viabiliza o funcionamento dos sistemas democráticos passa por processos políticos de educação que priorizem a vida das relações pautada pela tolerância, pelo respeito e pela fraternidade. Se, por um lado, é valioso o transcendentalismo institucional e sua busca incessante por padrões idealmente justos, o vigor da política democrática se revela na prática diária, não apenas nos corredores do Congresso Nacional ou nas tribunas de nossas Cortes, mas, também, nas escolhas claras que as pessoas fazem, seja no espaço oculto de suas casas, onde a vida privada realmente acontece, seja no espaço público de interação da cidadania ativa nas sociedades politicamente organizadas pelo Direito. Com toda a razão Amartya Sen, ao dizer que:

“O êxito da democracia não consiste meramente em ter a estrutura institucional mais perfeita que podemos conceber. Ele depende inelutavelmente de nossos padrões de comportamento real e do funcionamento das interações políticas e sociais. Não há nenhuma possibilidade de confiar a matéria às mãos ‘seguras’ do virtuosismo puramente institucional. O funcionamento das instituições democráticas, como o de todas as outras instituições, depende das atividades dos agentes humanos que utilizam as oportunidades para as realizações razoáveis.”(33)

Tanto a Lei Maria da Penha quanto as inovações ao Código de Trânsito Brasileiro, na realidade, fazem-nos pensar nas difíceis questões que legisladores e juízes têm de enfrentar na construção de uma sociedade concretamente democrática. Os desafios exigem dos agentes públicos, de modo geral, e da sociedade, como um todo, aquilo que Ronald Dworkin tão bem pontuou em O império do Direito, quando propôs sua teoria do Direito.  É mesmo tarefa árdua, senão impossível, apresentar uma definição completa sobre esse fenômeno tão essencial às nossas vidas e tão cheio de mistérios. Como explicá-lo? Por que nos submetemos à sua autoridade?  Não há respostas últimas.  Mas, ainda assim, é importante ver o Direito, antes de tudo, como uma atitude que nos torna responsáveis, todos nós, cidadãos e autoridades, pelo tipo de sociedade política e jurídica que queremos construir, apoiada nos melhores princípios e virtudes sobretudo esta, tão especial que dá ao princípio constitucional da igualdade uma densidade de significado tão eficazmente humana: a fraternidade.

Obras consultadas

ARENDT, Hannah. A condição humana. Traduzido por Roberto Raposo. Lisboa: Relógio D’Água 2001.

______. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Traduzido por Jussara Simões. Revisão técnica e da tradução Cícero Araújo e Luiz Moreira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

______. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 2002.

DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Traduzido por Jefferson Luiz Camargo. Revisão técnica Gildo Rios. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

______. Uma questão de princípio. Traduzido por Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FRANKENBERG, Günther. A gramática da Constituição e do Direito. Apresentação Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

FREITAS, Juarez. Sustentabilidade. Direito ao Futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

RAWLS, John. O liberalismo político. Traduzido por Dinah de Abreu Azevedo. Revisão da tradução Álvaro de Vita. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000.

SEN, Amartya. A ideia de Justiça. Traduzido por Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Notas

1. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05.10.1988. Art. 3º, caput e incisos III e IV: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

2. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05.10.1988. Art. 5º, caput e inciso I: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

3. Informativo STF nº 654, de 2012. Brasília, 06 – 10.02.2012. ADC nº 19/DF, Relator Ministro Marco Aurélio, 09.02.2012.

4. Recurso Extraordinário nº 428.864-8/SP. Relatora Ministra Ellen Gracie, 2ª Turma, data do julgamento 14.10.2008. Publicado no site eletrônico www.stf.jus.br.

5. Constituição Federal de 1988. Art. 226, caput e § 8º “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 8º – O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

6. Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. PREÂMBULO. “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.”

7. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Traduzido por Jefferson Luiz Camargo. Revisão Gildo Rios. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

8. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Traduzido por Jussara Simões. Revisão Cícero Araúko e Luiz Moreira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

9. SEN, Amartya. A ideia da justiça. Traduzido por Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

10. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Capítulo VI, p. 213-331. Especificamente na página 228, o autor diz: “mostrarei que uma sociedade política que aceita a integridade como virtude política se transforma, desse modo, em uma forma especial de comunidade, especial em um sentido que promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva. Este não é o único argumento em favor da integridade, ou a única consequência de reconhecê-la que poderia ser valorizada pelos cidadãos. A integridade protege contra a parcialidade, a fraude ou outras formas de corrupção oficial, por exemplo. (...) Contudo, uma comunidade que aceite a integridade tem um veículo para a transformação orgânica, mesmo que este nem sempre seja totalmente eficaz, que de outra forma sem dúvida não teria”.

11. SEN, Amartya. Ob. cit., p. 425. Nas palavras do autor, “a fome significa que muita gente não tem comida suficiente para comer, o que, em si, não é prova de que não haja alimentos suficientes. As pessoas que saem derrotadas na luta pelo alimento, por qualquer razão que seja, podem ter maior controle no mercado em prazo bastante curto, graças a várias medidas de geração de renda, inclusive com a contratação para serviços públicos, atingindo assim uma distribuição menos desigual dos alimentos na economia (meio de prevenir as fomes coletivas que agora é bastante usado, da Índia à África). (...) É necessária uma argumentação racional pública, em lugar de uma rejeição sumária das opiniões contrárias, por mais implausíveis que estas possam parecer à primeira vista e por mais verborrágicos que possam parecer os protestos crus e grosseiros. Um engajamento aberto na argumentação racional pública é absolutamente fundamental na busca da justiça”.

12. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade.

13. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. p. 3-399.

14. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. Capitulo 4, p. 253-329.

15. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. p. 260.

16. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. p. 273.

17. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. p. 431-645.

18. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. p. 647.

19. SEN, Amartya. Ob. cit., p. 31-57. No pungente exemplo das três crianças e uma flauta, Sen nos faz ver que “pode de fato não haver nenhum arranjo social identificável que seja perfeitamente justo e sobre o qual surgiria um acordo imparcial”.

20. SEN, Amartya. Ob. cit., p. 40. Nas suas palavras, “um exercício da razão prática envolvendo uma escolha real exige uma estrutura para comparar a justiça na escolha entre alternativas viáveis, e não uma identificação de uma situação perfeita, possivelmente inacessível, que não possa ser transcendida: esse é o problema da redundância da busca de uma solução transcendental. (...) Esse segundo componente da divergência diz respeito à necessidade de focar as realizações e os feitos, em vez de apenas o que se identifica como as instituições e as regras certas. O contraste aqui se relaciona, como mencionado anteriormente, a uma dicotomia geral – e muito mais ampla – entre uma visão da justiça focada em arranjos e uma compreensão da justiça focada em realizações”.

21. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Capítulo I, p. 3-54.

22. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. p. 249-250.

23. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. p. 250.

24. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. p. 257.

25. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. p. 258.

26. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. p. 260.

27. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. p 492.

28. SEN, Amartya. Ob. cit., p. 436.

29. SEN, Amartya. Ob. cit., p. 448.

30. CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ. “Art. 7º. Os Estados-Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em: (...) c) incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis.”

31. SEN, Amartya. Ob. cit., p. 385.

32. SEN, Amartya. Ob. cit., p. 385.

33. SEN, Amartya. Ob. cit., p. 388-389.

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., out. 2013. Edição especial 25 anos da Constituição de 1988. (Grandes temas do Brasil contemporâneo). Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS