Rodrigo
O acesso ao Poder Judiciário e as ações coletivas: legitimidade

Autor: Rodrigo Machado Coutinho

Juiz Federal Substituto

publicado em 30.10.2013

 

O Currículo Permanente de Direito Constitucional – Módulo V, organizado pela Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região – Emagis, que teve a coordenação científica do Excelentíssimo Desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, conseguiu, de uma só vez, tratar de temas candentes da seara constitucional e reunir um corpo discente da mais alta respeitabilidade no meio acadêmico, como, por exemplo, os Ministros do Supremo Tribunal Federal Dr. Paulo Brossard, Dr. Carlos Velloso e Dr. Nelson Jobim, além de outros tantos juristas de renome nacional.

Portanto, diante dessa plêiade de expressivos juristas, difícil é a tarefa de selecionar um tema a ser abordado neste trabalho, mas, tendo em conta a vinculação da atividade profissional nesta Vara Federal do Sistema Financeiro da Habitação, aponto para a brilhante exposição do Professor Dr. Fredie Souza Didier Júnior, na qual abordou o Mandado de Segurança Coletivo e a Lei nº 12.016/2009: possíveis inconstitucionalidades.

Nessa linha, examinarei a limitação do acesso pleno ao Poder Judiciário no que tange a legitimidade ativa e os direitos tutelados no mandado de segurança coletivo, sob a égide da Lei nº 12.016/2009, bem como outras ações de cunho coletivo.

O acesso ao Poder Judiciário está consagrado no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Logo, é inconstitucional qualquer limitação à busca da tutela judicial, seja na forma individual, seja na coletiva.

A tutela coletiva de direitos não é ou não era da tradição do Direito brasileiro, porquanto somente com o advento da Lei nº 7.347, de 1985, que é a Lei da Ação Civil Pública, tivemos os primeiros passos no direito positivo acerca da resolução coletiva de conflitos.

Adiante, podemos apontar, sem sombra de dúvida, que o grande marco na tutela coletiva de direitos foi o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/1990, o qual trouxe uma ampliação na legitimação ativa, bem como a permissão da tutela coletiva nos direitos individuais homogêneos. Pontuamos a lição da Professora Ada Pellegrini Grinover:

“A legitimação para agir foi ampliada não somente para ensejar o acesso às demandas essencialmente coletivas (art. 81, parágrafo único, nos I e II), como também para permitir a tutela coletiva dos interesses ou direitos individuais ligados entre si pelo vínculo da homogeneidade.

A ampliação foi ao ponto de permitir que as entidades e os órgãos da administração pública direta e indireta, mesmo sem personalidade jurídica, possam ter acesso à justiça desde que especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código (art. 82, nº III). As associações passaram a ter legitimação ad causam pela só autorização estatutária decorrente da enunciação de seus fins institucionais (art. 82, nº IV).” (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. p. 709)

Mais, o legislador positivo foi adiante, ao tempo que ele conceituou e fez, com simplificação, a diferenciação entre os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, verbis:
“Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”

Contudo, ainda que tenhamos trilhado mais de vinte anos desde a Lei da Ação Civil Pública e do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, vejo que a questão atinente à legitimação ativa é tormentosa, sobretudo quando há um interesse conflitante pelo posto de titular do direito de ação, em especial quando temos uma ACP manejada pela Defensoria Pública da União que busca reparar a lesão de direitos individuais e homogêneos, em que o Ministério Público Federal entende que falece legitimidade à DPU. Essa questão, ressalto, já foi abordada por este magistrado na Vara do Sistema Financeiro da Habitação, nos termos da argumentação abaixo.

Por conseguinte, a questão é delicada em se tratando de direitos individuais homogêneos, ou seja, os beneficiados seriam determinados ou determináveis. Quanto aos direitos difusos e coletivos, a doutrina e a jurisprudência vêm admitindo a possibilidade. Nesse sentido, Hugo Mazzili:

“Em suma, nosso entendimento é o de que a Defensoria Pública pode propor ações civis públicas ou coletivas, em defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos de pessoas que se encontrem na condição de necessitados, ou seja, na de pessoas que tenham insuficiência de recursos para custear a defesa individual, mesmo que, com isso, em matéria de interesses difusos (que compreendem grupos indetermináveis de lesados), possam ser indiretamente beneficiadas terceiras pessoas que não se encontrem na condição de deficiência econômica, até porque não haveria como separar os integrantes do grupo atingido.” (A defesa dos interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 305)

Quanto aos interesses individuais homogêneos, não obstante posicionamentos contrários, tenho que é justificável a atuação da Defensoria Pública.

Primeiro, a tutela coletiva, “além de eliminar o custo das inúmeras ações individuais e de tornar mais racional o trabalho do Poder Judiciário, supera os problemas de ordem cultural e psicológica que impedem o acesso à justiça e neutraliza vantagens dos litigantes habituais e dos litigantes mais fortes” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Procedimentos Especiais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 298).

O objetivo da ação civil pública, portanto, é “condensar” a tutela de direitos individuais decorrentes de lesões, ou ao menos risco de lesões, decorrentes da sociedade de massas (reportamo-nos, novamente, à lição de Marinoni e Arenhart, ob. cit., p. 293 e ss.).

Quando a Lei nº 11.448/07 confere à Defensoria Pública legitimidade ativa para ajuizar ação civil pública, está ampliando as possibilidades de tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Amplia-se o campo de legitimação ativa, fato que apenas contribui à tutela coletiva.

Segundo, a Constituição Federal atribui à Defensoria Pública a função institucional de defesa dos necessitados, todavia, a Carta Magna não limita sua atuação. A defesa dos necessitados é função típicada Defensoria, todavia, não se podendo olvidar que esta possui a função atípica de tutelar o interesse do necessitado jurídico, como, p. ex., curador especial no processo civil. Assim, não há que se falar em limitação jurisdicional à atividade da Defensoria Pública.

Poder-se-ia, evidentemente, questionar se a legitimação contrariaria atribuição privativa de outra instituição. Tal questão, como antes dito, é objeto da ADI 3.943, na qual se sustenta que invadiria atribuição do Ministério Público. O referido entendimento não encontra respaldo constitucional. O art. 129 da Carta Constitucional inclui entre as atribuições do Ministério Público o ajuizamento da ação civil pública (inciso III), todavia, não se trata de atribuição exclusiva. A questão fica evidenciada se cotejada com o disposto no inciso I do referido artigo, que atribui ao Ministério Público privativamente a promoção da ação penal pública. Há diferença substancial entre as atribuições.

Não é diferente a situação em relação à legitimação ativa no mandado de segurança coletivo, sobretudo se considerados os direitos e interesses coletivos ali tutelados, como veremos a seguir.

O mandado de segurança coletivo possui assento constitucional no artigo 5º, incisos LXIX e LXX, verbis:

“LXIX – conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;

LXX – o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:

a) partido político com representação no Congresso Nacional;

b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;”

Nada obstante essa previsão constitucional, o writ coletivo não tinha regulamentação infraconstitucional, pois a Lei nº 1.533/1951, que tratava do mandado de segurança, era silente a respeito da legitimação coletiva, e não poderia ser diferente, ao tempo que, como dito acima, na década de cinquenta não pensávamos no direito coletivo. Somente para registro, no ponto, utilizava-se, como base legal, um feixe de normas, um pouco da Lei nº 1.533/1951, outro tanto da Lei da ACP e do Código Brasileiro do Consumidor, mas, apesar da aparente confusão, o mandamus coletivo ia trilhando o seu caminho.

Pois bem. Com a edição da Lei nº 12.016/2009, que trata especificamente do instituto do mandado de segurança, seja individual, seja coletivo, pensou-se: os nossos problemas acabaram! Mas não, ao contrário, os problemas apenas estavam começando. Como disse o i. Professor Fredie Didier, na sua palestra no dia 19 de outubro de 2012, em Curitiba/PR, o legislador ordinário teve uma rara infelicidade, pois errou em quase todos os dispositivos da novel legislação em questão. Entretanto, fico somente na legitimação ativa, que foi o ponto central da exposição.

Transcrevo, para melhor compreensão do tema, o artigo 21 da Lei nº 12.016/2009, que trata da legitimação e dos direitos protegidos no writ coletivo:

“Art. 21. O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária, ou por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo menos, 1 (um) ano, em defesa de direitos líquidos e certos da totalidade, ou de parte, dos seus membros ou associados, na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial.

Parágrafo único. Os direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo podem ser:

I – coletivos, assim entendidos, para efeito desta lei, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica;

II – individuais homogêneos, assim entendidos, para efeito desta lei, os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante.”

De início, registro a total impropriedade, para não dizer inconstitucionalidade, da limitação à legitimação ativa dos partidos políticos, quando se colocou a necessidade de certa pertinência temática; requisito este fora de qualquer propósito e que extrapola o poder regulamentar, pois a Carta Magna, como transcrito acima, não fez qualquer restrição aos partidos políticos. Nessa linha, a posição de Hermes Zaneti Jr.:

“A legitimação dos partidos políticos não se limita apenas à defesa de seus membros, a uma porque não há essa exigência na alínea a do permissivo constitucional, que exige apenas a representação no Congresso Nacional (a limitação aos ‘interesses dos membros’ existe apenas quanto a sindicatos, entidades de classe e associações); a duas, porque, no caso dos partidos, os membros atuam não em benefício próprio, mas em prol de um projeto de sociedade, estabelecido no seu programa partidário (cf. RE 196.184, Bol. Inf. STF 372).” (Ações Constitucionais. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2011. p. 173)

Mas não é somente isso, tratou ainda o legislador ordinário de limitar os direitos protegidos pelo mandamus aos coletivos e aos individuais homogêneos, de forma que os interesses ou direitos difusos não podem ser defendidos pela tutela coletiva do writ, em um total retrocesso, pois vai de encontro à moderna propagação da defesa dos interesses de forma coletiva em Juízo.

Ora, o fundamento de que a exigência da prova pré-constituída – marca indelével do writ – estaria em contraposição com as características dos direitos difusos, nos quais os sujeitos indeterminados estão ligados por peculiaridades fáticas, sem a necessidade de uma prévia relação jurídica, não pode ser admitido, porque é muito simplista a justificativa para afastar essa importante tutela coletiva. A própria Carta Política diz que o mandamus será utilizado para tutelar qualquer direito, exceto aqueles albergados pelo habeas corpus e pelo habeas data.

Herman Benjamin e Gregório Almeida assim arrematam:

“Não é adequado sustentar abstratamente que as características dos direitos ou interesses difusos impedem que eles sejam objeto de prova pré-constituída no mandado de segurança coletivo, cujo procedimento é documentado. Não cabe essa aferição abstrata para restringir as vias de tutela jurisdicional dos direitos difusos como direitos fundamentais. A análise deverá ser diante do caso concreto.” (Legitimidade ativa e objeto material no mandado de segurança coletivo. RT, v. 895, p. 9)

Nessa linha, a omissão na Lei nº 12.016/2009 da proteção dos direitos difusos em mandado de segurança coletivo não pode ser óbice intransponível para a sua utilização, o que deverá ser aferido no caso concreto.

Em conclusão, verificamos que a questão da legitimação ativa nas ações coletivas, em especial no mandamus coletivo, tem encontrado eco nas vozes mais conservadoras, na medida em que o tema não tem conseguido desvencilhar-se das amarras postas por aqueles que ainda possuem uma visão de que a regra são as ações individuais, com o que não podemos concordar, ao tempo que o acesso ao Poder Judiciário deve ser o mais amplo possível, por uma questão de exercício de cidadania. Por isso, a legitimação ampla nas ações coletivas deve ser a regra, bem como os direitos e interesses por elas protegidos não devem ter qualquer limitação posta pelo legislador ou pela jurisprudência.

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., out. 2013. Edição especial 25 anos da Constituição de 1988. (Grandes temas do Brasil contemporâneo). Disponível em:
<>
Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS