Confisco de bens como instrumento de combate à criminalidade organizada: análise dos regimes estrangeiros e de sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro

Autor: João Felipe Menezes Lopes

Juiz Federal Substituto

 publicado em 18.12.2013



Resumo

A sociedade mundial moderna vivencia um contexto de hipercomplexidade nas relações patrimoniais e interpessoais já assimilado há tempos pela criminalidade organizada, o que exige do Estado a qualificação dos instrumentos de combate ao crime, sob pena de perda da efetividade de sua função de pacificação social. No entanto, apesar de necessária, a qualificação tendente ao aumento do poder de repressão ao crime organizado, em especial a seu braço financeiro, entra em choque com direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. A partir da análise dos ordenamentos estrangeiros e em atenção à necessidade de repressão eficiente ao poder econômico do crime, buscou-se apreciar de que forma seria possível implantar um regime mais efetivo de confisco de bens no ordenamento brasileiro, sem que esse regime afronte os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

Palavras-chave: Crime organizado. Confisco de bens. Direitos fundamentais.

Sumário: Introdução. 1 Confisco de bens: normativa internacional. 1.1 Espanha. 1.2 Colômbia. 1.3 Itália. 2 Confisco de bens: características da legislação nacional. 2.1 Evolução dos direitos fundamentais. 2.2 Garantismo penal integral. 2.3 Precedentes jurisprudenciais. 3 Implantação de regimes alienígenas de confisco de bens no Brasil. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

O objetivo deste trabalho é analisar a possibilidade de implantação, no Brasil, de um regime mais efetivo de combate ao poder financeiro das organizações criminosas, fazendo frente ao atual quadro de sofisticação e de integração dos agentes criminosos entre si e com as vias lícitas de circulação de riquezas.

Para tanto, no capítulo primeiro, procedeu-se à análise dos regimes de confisco de bens vigentes em países que tiveram de enfrentar mais incisivamente sociedades criminosas organizadas, como a Espanha, a Colômbia e a Itália.

Em um segundo momento, as regras sobre o confisco de bens no ordenamento jurídico brasileiro foram abordadas e submetidas a uma análise crítica. Nessa abordagem, a leitura dos direitos fundamentais à luz de distintos paradigmas foi apresentada, assim como seus reflexos sobre os axiomas do garantismo penal. A partir de então, apresentou-se como a jurisprudência nacional vem assimilando determinados conceitos surgidos a partir da reinterpretação do Direito Penal à luz de novos paradigmas.

Em arremate, formulou-se uma abordagem crítica a respeito da viabilidade da promoção de algumas alterações legislativas tendentes a tornar mais efetivo o combate ao poder econômico das organizações criminosas que atuam no Brasil, bem como a respeito da compatibilidade dessas alterações com o sistema de direitos e garantias fundamentais previsto no ordenamento jurídico brasileiro.

1 Confisco de bens: normativa internacional

O fenômeno da globalização pode ser conceituado como o processo de integração do espaço mundial, por meio do qual se opera um fluxo intenso de capitais, serviços, produtos e tecnologias entre os países, resultando em um mundo interligado por transações econômicas que movimentam capitais volumosos.

Apesar da inexistência de consenso a respeito de quando surgiu a globalização, estudiosos defendem ter ocorrido nos anos 1980, com a implantação de um modelo econômico neoliberal que permitia uma maior circulação de capital e mercadorias entre os países.

A abertura formal dos mercados, porém, foi precedida por uma circulação paralela de recursos, serviços e produtos entre países pela via criminosa, na qual a informalidade permitia uma metamorfose capaz de adequar as ações dos agentes às demandas do “mercado criminoso”.

Exemplo disso são as máfias italianas, que, muito antes da “globalização oficial” dos mercados, já operacionalizavam grande quantidade de recursos e mercadorias (em sua maioria ilícitas) entre continentes, fartando seus cofres com dinheiro proveniente de atividades criminosas como o tráfico de drogas e de armas, a corrupção, o contrabando e o sequestro, dentre outros.

É o que se extrai de trecho do interrogatório de Antonino Giuffrè, capomafia de Caccamo e componente da cúpula da organização mafiosa italiana Cosa Nostra, prestado na Procuradoria da República de Palermo em 27 de novembro de 2002:

“[...] não é que os americanos se levantaram uma manhã e fizeram a globalização [...] e os outros ficaram ali olhando [...] os outros também a observam, senhor procurador, e trocam gentilezas no âmbito empresarial [...] porque assim como aqui, na Alemanha e na Bélgica também há pacotes de ações [...] e lá vocês também encontram grupos que já não são os mesmos de antigamente, dos imigrantes com a maleta de papelão [...] não [...] esses têm maleta, mas uma maleta cheia de dólares [...].”(1)

Tal constatação parte também das autoridades públicas italianas, conforme se denota do excerto abaixo, extraído de mandado de prisão provisória expedido pelo Tribunal de Palermo em 26 de maio de 2003, no âmbito da operação Igres:

“Assumindo características de um modelo de empresa de sucesso e seguindo as mesmas lógicas de especialização, crescimento e expansão nos mercados internacionais, as organizações criminosas complexas como a Cosa Nostra e a ‘Ndrangheta demonstraram possuir estruturas flexíveis e aptidão para a transformação, capacidade de adaptar-se às exigências do mercado, tendência a maximizar as oportunidades e a minimizar os riscos mediante a comum programação e planificação das atividades ilícitas.”(2)

Diante do quadro de “globalização criminosa”, no qual as organizações operam vultosas quantias de recursos tanto no mercado informal como no formal, gerando prejuízos diretos à ordem econômica e ao sistema financeiro, dentre outros bens jurídicos de igual ou maior relevância, vários países – principalmente aqueles afetados diretamente por grupos ou organizações criminosas, como é o caso da Espanha, da Colômbia e da Itália – mobilizaram-se para atualizar seus ordenamentos jurídicos, com o fim de atingir o lastro financeiro do crime, responsável pela reciclagem e a continuidade das atividades dessas organizações.

São essas alterações legislativas que serão analisadas a seguir.

1.1 Espanha

No ordenamento espanhol, o confisco de bens em decorrência da prática de condutas criminosas é previsto como uma consequência acessória (e não uma pena), seguindo a disciplina prevista principalmente no artigo 127 do Código Penal Espanhol, cujos principais aspectos passo a destacar:

TÍTULO VI.



DE LAS CONSECUENCIAS ACCESORIAS.

Artículo 127.

1. Toda pena que se imponga por un delito o falta dolosos llevará consigo la pérdida de los efectos que de ellos provengan y de los bienes, medios o instrumentos con que se haya preparado o ejecutado, así como las ganancias provenientes del delito o falta, cualesquiera que sean las transformaciones que hubieren podido experimentar. Los unos y las otras serán decomisados, a no ser que pertenezcan a un tercero de buena fe no responsable del delito que los haya adquirido legalmente.

El Juez o Tribunal deberá ampliar el decomiso a los efectos, bienes, instrumentos y ganancias procedentes de actividades delictivas cometidas en el marco de una organización o grupo criminal o terrorista, o de un delito de terrorismo. A estos efectos se entenderá que proviene de la actividad delictiva el patrimonio de todas y cada una de las personas condenadas por delitos cometidos en el seno de la organización o grupo criminal o terrorista o por un delito de terrorismo cuyo valor sea desproporcionado con respecto a los ingresos obtenidos legalmente por cada una de dichas personas.

[...]

3. Si por cualquier circunstancia no fuera posible el comiso de los bienes señalados en los apartados anteriores de este artículo, se acordará el comiso por un valor equivalente de otros bienes que pertenezcan a los criminalmente responsables del hecho.

4. El Juez o Tribunal podrá acordar el comiso previsto en los apartados anteriores de este artículo aun cuando no se imponga pena a alguna persona por estar exenta de responsabilidad criminal o por haberse ésta extinguido, en este último caso, siempre que quede demostrada la situación patrimonial ilícita.

5. Los que se decomisan se venderán, si son de lícito comercio, aplicándose su producto a cubrir las responsabilidades civiles del penado si la Ley no previera otra cosa, y, si no lo son, se les dará el destino que se disponga reglamentariamente y, en su defecto, se inutilizarán. [...]” (sem grifos no original)

A primeira constatação a ser feita, a partir da análise da legislação espanhola, é que a capitulação do confisco de bens como uma consequência acessória tem o efeito de permitir sua decretação mesmo nos casos em que, por exemplo, haja extinção da punibilidade do delito (artigo 127.4).

Este regime indica que, apesar da forma como é intitulado (consequência acessória), o confisco de bens pode ser decretado inclusive nas hipóteses em que não haja a aplicação de uma “pena principal”, o que eleva a efetividade do processo penal, permite o aproveitamento dos atos processuais já praticados e reduz os custos decorrentes de eventual nova ação cível tendente à repatriação de bens (algumas vezes adquiridos pelo agente criminoso com o produto de crimes praticados contra a Administração Pública).

Além disso, no sistema espanhol o confisco de bens é visto como uma medida de caráter real, que se dirige contra o bem em si mesmo, razão pela qual é legítima essa autonomia entre sua aplicação e eventual condenação penal do acusado no processo penal.

Um segundo ponto de destaque da legislação refere-se ao fato de o confisco no direito espanhol poder incidir sobre bens lícitos do condenado, nos casos em que os instrumentos, produtos ou proveitos auferidos pelo agente com a prática do fato criminoso não puderem ser confiscados.

Por fim, o Código Penal Espanhol prevê ainda que, quando o crime for praticado em um contexto de organização ou grupo criminoso ou terrorista, o juiz deverá ampliar o confisco, a fim de que ele atinja todos os membros da organização. Para tanto, o artigo 217.1 dispõe que será considerada de proveniência ilícita a parcela do patrimônio daqueles que forem condenados por delitos cometidos no seio de organização ou grupo criminoso cujo valor seja desproporcional com os respectivos ingressos obtidos legalmente por cada uma dessas pessoas.

O aludido dispositivo permite, após a condenação dos acusados pela prática de delitos em um contexto de organização ou grupo criminoso, a inversão da presunção que vigorou durante o curso do processo penal, para que o confisco possa incidir sobre todo o lastro patrimonial que se apresente desproporcional com os ingressos obtidos de forma lícita pelos autores do delito, cabendo a eles a demonstração da compatibilidade de seu patrimônio com as receitas que tenham auferido mediante o exercício de atividades lícitas.

1.2 Colômbia

A necessidade de enfrentamento direto da criminalidade organizada levou o Estado colombiano a promover reformas recentes em seu ordenamento jurídico, com o fim de atingir mais fortemente o aporte econômico do crime e, por conseguinte, desmantelar os grupos criminosos organizados com atuação em seu território.

Para tanto, foi editada a Ley 793 de 2002 (diciembre 27), criando um sistema de confisco de bens cujas características passo a resumir:

(i) criou-se um rol extenso de situações que justificam a extinção do domínio sobre bens criminosos, o qual abrange inclusive o ‘incremento patrimonial injustificado’, assim entendido aquele que não puder ter sua origem comprovada (artigo 2.1 a 2.7), imputando-se ao interessado a prova, por meios idôneos, da origem lícita do patrimônio afetado pela medida;

(ii) estipularam-se os crimes e demais atividades ilícitas que podem dar azo à aplicação daquele regime confiscatório, dentre os quais se incluem as condutas cometidas em prejuízo do erário, da saúde pública, da ordem econômica e social, do meio ambiente e da seguridade social, dentre outras;

(iii) possibilitou-se que o confisco incidisse sobre bens lícitos de valor equivalente ao dano causado pela conduta lesiva, nos casos em que os instrumentos, produtos ou proveitos auferidos pelo agente com a prática do fato criminoso não pudessem ser confiscados.

A respeito da ação de extinção do domínio, dispõe o artigo 4º da Lei 793/2002:

Artículo 4º De la naturaleza de la acción. La acción de extinción de dominio de que trata la presente ley es de naturaleza jurisdiccional, de carácter real y de contenido patrimonial, y procederá sobre cualquier derecho real, principal o accesorio, independientemente de quien los tenga en su poder, o los haya adquirido y sobre los bienes comprometidos. Esta acción es distinta e independiente de cualquier otra de naturaleza penal que se haya iniciado simultáneamente, o de la que se haya desprendido, o en la que tuviera origen, sin perjuicio de los terceros de buena fe exentos de culpa.

Procederá la extinción del derecho de dominio respecto de los bienes objeto de sucesión por causa de muerte, cuando dichos bienes correspondan a cualquiera de los eventos previsto en el artículo 2º.” (sem grifos no original)

O procedimento de confisco no regime colombiano é jurisdicional, e as decisões são tomadas pelos juízes com jurisdição penal, mas não no bojo de um processo penal (artigo 11 da Lei 793/2002). O caráter real da ação é expresso para realçar a inexistência de pretensão punitiva nessas espécies de demanda, dirigindo-se contra os bens em si, com quem quer que eles estejam.

Disso decorre um importante efeito, a saber, a possibilidade de afetação de terceiros (pessoas físicas ou jurídicas) que estejam no entorno do agente criminoso, salvo quando de boa-fé e isentos de culpa.

De qualquer forma, o mesmo regime de presunção já observado no sistema espanhol é previsto no ordenamento colombiano (cabendo ao afetado a prova da origem lícita dos bens), com a diferença de que não se exige (pelo menos de forma expressa), neste último, a existência de anterior condenação penal do agente.

A alteração legislativa na Colômbia, em especial no ponto em que desvinculou o procedimento de confisco de bens de uma condenação penal do agente criminoso, eclodiu, em parte, para fazer frente a um expediente que as organizações criminosas daquele país passaram a pretender adotar como estratégia de manutenção de seu patrimônio, consistente em assassinar o agente criminoso processado criminalmente para evitar o prosseguimento do processo penal e, com isso, impedir o confisco dos bens da quadrilha adquiridos com a prática dos delitos.

Portanto, a mudança demonstra que as autoridades colombianas se deram conta do conceito de valores vigentes dentro de grupos criminosos, já conhecidos pelas autoridades públicas responsáveis pelo combate e pela repressão da criminalidade no Brasil: o patrimônio das facções criminosas tem valor axiológico maior do que a vida de seus componentes.

1.3 Itália

Um dos principais instrumentos de combate às organizações criminosas italianas foi a Ley Rognoni-La Torre (Lei nº 646, de 13 de setembro de 1982), que incluiu o artigo 416 bis no Código Penal Italiano para tipificar o crime de “associação de tipo mafioso”.

A par da tipificação do crime de associação mafiosa, o legislador italiano preocupou-se em atingir o braço financeiro dessas organizações, levando em conta a importância não só da repressão penal ao crime, mas também da confiscação de seus bens como forma de impedir a perpetuação desses grupos criminosos organizados.

E não sem razão. Segundo dados levantados por Francesco Forgione,(3) o faturamento anual das três principais máfias italianas (‘Ndrangheta, Cosa Nostra e Camorra) gira em torno de 130 bilhões de euros. Deste montante, metade é aplicado na própria atividade criminosa, sendo a outra metade direcionada ao mercado formal, desestabilizando a economia e estimulando práticas anticoncorrenciais, face à enxurrada de recursos criminosos nos meios formais de circulação de riquezas.

Em vista desse quadro, há muito presente naquele país, a população mobilizou-se e o parlamento aprovou importantes instrumentos legislativos tendentes a viabilizar o confisco de bens provenientes da prática dos crimes levados a efeito no contexto de organizações mafiosas.

Com esse propósito foram editadas a Legge 13 agosto 2010, nº 136, que delegou ao Governo a compilação do regramento normativo antimáfia, a Legge 31 maggio 1965, nº 575, prevendo a possibilidade de confisco de bens independentemente da instauração de processo penal, e o Decreto Legislativo 6 settembre 2011, nº 159, que codificou a legislação antimáfia, dentre outros.

As principais características do regime italiano de confisco são: a independência entre a instância administrativa e a penal,(4) viabilizando o perdimento mesmo em caso de morte do investigado/acusado/condenado;(5) a possibilidade de a medida confiscatória abranger terceiros cujos nomes tenham sido utilizados para camuflar os bens do investigado/acusado/condenado;(6) a investigação do patrimônio adquirido pelo investigado/acusado/condenado nos últimos cinco anos anteriores à atuação estatal; a possibilidade de arresto cautelar na via administrativa; a restrição da cognição horizontal do Judiciário nas ações que questionam as medidas administrativas de confisco (que só podem ser questionadas no Judiciário sob o ponto de vista da legalidade, e não quanto ao mérito).

2 Confisco de bens: características da legislação nacional

Após breve análise dos regimes de confisco de bens vigentes em países que tiveram de combater incisivamente associações criminosas organizadas (algumas vezes com braços estabelecidos em diferentes continentes), é o momento de analisar as normas existentes no ordenamento jurídico brasileiro para o enfrentamento da temática.

O mais elementar regramento está previsto na Constituição da República e trata do confisco de glebas onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas, assim como de todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes, nos seguintes termos:

“Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.”

Por outro lado, a norma geral de disciplina do perdimento de bens relacionados à prática de crimes em geral está inserida no Código Penal brasileiro, especificamente em seu artigo 91, que trata dos efeitos da condenação criminal:

“Art. 91 – São efeitos da condenação:

I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime;

II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé:

a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito;

b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso.”

Também no bojo do Código Penal, especificamente no capítulo referente à regulação das penas restritivas de direitos, há disposição que, apesar de muito pouco mencionada quando se trata da temática relativa ao confisco de bens, também pode cumprir a missão de atingir o braço financeiro do crime.

Trata-se da possibilidade, prevista no inciso II do artigo 43 e no § 3º do artigo 45 daquele Codex, de se imputar a penalidade de perda de bens e valores (ainda que lícitos) pertencentes aos condenados, estabelecendo como teto do perdimento o montante do prejuízo causado ou do proveito obtido pelo agente ou por terceiro em consequência da prática do crime. Nesse caso, o perdimento é aplicado como pena principal, em substituição à pena privativa de liberdade, o que diferencia esse regime dos expostos anteriormente.

Apesar de digno de nota, por não exigir prova da ilicitude dos bens sob perdimento, sua aplicação fica bastante prejudicada nos casos que envolvem a prática de crimes em um contexto de organização criminosa, que na maioria das vezes não comportam a substituição de pena corporal por restritivas de direito.

Afora essas disposições, algumas normas específicas foram editadas para tratar de delitos com significativa repercussão patrimonial, disciplinando não só o confisco dos bens, mas também medidas cautelares que visem a sua apreensão no curso do processo.

Nesse sentido, a Lei nº 9.613/1998 prevê, em relação aos crimes de lavagem de dinheiro, a inversão do ônus da prova sobre a licitude da origem de bens apreendidos no curso desses processos (artigo 4º, § 2º).(7) O dispositivo comporta distintas interpretações, prevalecendo na doutrina(8) e na jurisprudência(9) a de que a presunção circunscreve-se apenas à apreensão ou ao sequestro dos bens no curso do processo, não se estendendo ao seu perdimento.

Por fim, cabe o registro de que o Brasil é signatário de convenções internacionais que dispõem sobre a apreensão e o confisco de bens oriundos de práticas criminosas, dentre as quais se destacam a Convenção de Viena,(10) a Convenção de Mérida(11) e a Convenção de Palermo.(12)

Algumas das disposições constantes dessas convenções assemelham-se com regimes vigentes em países estrangeiros, tais como os analisados no capítulo anterior, a exemplo do disposto no artigo 12.7 da Convenção de Mérida:

“Artigo 12

Confisco e apreensão

7. Os Estados-partes poderão considerar a possibilidade de exigir que o autor de uma infração demonstre a proveniência lícita do presumido produto do crime ou de outros bens que possam ser objeto de confisco, na medida em que esta exigência esteja em conformidade com os princípios do seu direito interno e com a natureza do processo ou outros procedimentos judiciais.”

Apesar de estabelecida a possibilidade de inversão do ônus da prova em relação à licitude dos bens sujeitos à medida de confisco ou perdimento, a ressalva constante da parte final do dispositivo demonstra, claramente, o impasse jurídico a ser resolvido caso se pretenda a aplicação de tais dispositivos no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro.

Esse impasse é indicativo de que qualquer pretensão séria de alteração do regime jurídico de confisco de bens no ordenamento pátrio deve, preliminarmente, enfrentar a questão à luz do princípio da presunção de inocência e dos demais axiomas que compõem o garantismo penal cunhado por Luigi Ferrajoli,(13) erigidos à condição de direitos fundamentais do cidadão pela Constituição da República.

Tal enfrentamento, porém, não prescinde da abordagem, ainda que superficial, sobre a evolução da teoria dos direitos fundamentais, de modo a demonstrar que o dinamismo das previsões que veiculam tais direitos é diretamente vinculado às alterações sociais havidas no mundo fenomênico desde a origem das constituições escritas até os dias atuais.

2.1 Evolução dos direitos fundamentais

Sem pretensão de esgotamento da matéria, destaca-se que os direitos fundamentais sempre estiveram ligados ao propósito, ínsito ao próprio constitucionalismo, de delimitar o poder estatal. Sua evolução foi cunhada por diversos fenômenos de causas sociais e econômicas e pelo que parte da doutrina identifica como crise das liberdades. Percuciente o apontamento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho a respeito dessa evolução:

“A doutrina dos direitos fundamentais revelou uma grande capacidade de incorporar desafios. Sua primeira geração enfrentou o problema do arbítrio governamental, com as liberdades públicas; a segunda, o dos extremos desníveis sociais, com os direitos econômicos e sociais; a terceira, hoje, luta contra a deterioração da qualidade de vida humana e outras mazelas, com os direitos de solidariedade.”(14)

Os direitos fundamentais de primeira dimensão,(15) portanto, são marcados pela característica de resistência ao poder estatal, tendo sido declarados no contexto histórico da Revolução Liberal do século XVIII, em que o principal objetivo era a restrição do poder absoluto do monarca. São, entre outros, os direitos à liberdade, à igualdade perante a lei, à propriedade e à intimidade. O papel do Estado na defesa dos direitos de primeira dimensão é acentuadamente passivo (abstenção de violação), já que, para os olhos da sociedade, ele é visto com desconfiança, como uma ameaça aos direitos dos indivíduos. Sem prejuízo, incumbia-lhe, já naquele tempo, a adoção de medidas tendentes a salvaguardar os direitos de liberdade nos casos em que a violação provinha de agente estranho ao poder estatal.

De seu turno, os direitos fundamentais de segunda dimensão surgem em um cenário social de modificação do papel do Estado. Quando a tensão entre o trabalho e o capital chega a seu ápice, em razão da implantação de regimes desumanos impostos aos trabalhadores por força da eclosão da Revolução Industrial, a própria sociedade roga pela atuação pró-ativa do Estado como instrumento de defesa do indivíduo contra o próprio indivíduo. Antes essencialmente liberal, o Estado passa a desempenhar papel ativo na consecução do bem- estar social (welfare state). A Constituição mexicana de 1917 e a alemã de Weimar de 1919 foram as primeiras a prever em seu rol direitos fundamentais de segunda dimensão. São exemplos dos assim chamados direitos de igualdade os direitos à saúde, ao trabalho digno, à educação e à previdência social, dentre outros.

Já os direitos de terceira dimensão (ou direitos de solidariedade), nas palavras de André de Carvalho Ramos,(16) “são frutos da descoberta do homem vinculado ao planeta Terra, com recursos finitos, divisão absolutamente desigual de riquezas em verdadeiros círculos viciosos de miséria e ameaças cada vez mais concretas à sobrevivência da espécie humana”. Deles são exemplos os direitos à paz, à autodeterminação e ao meio ambiente equilibrado. Para sua promoção, Estado e sociedade aliam-se e passam a implementar medidas conjuntas e interligadas.

Alguns doutrinadores, a exemplo de Paulo Bonavides, defendem o nascimento de uma quarta dimensão de direitos fundamentais, que, apesar de relevante, não será aqui tratada em razão de sua impertinência para com os propósitos deste trabalho.

2.2 Garantismo penal integral

A evolução da teoria dos direitos fundamentais ocorreu em um contexto no qual se verificou, além da mudança do papel do Estado na promoção dos direitos – com o consequente reflexo nos textos constitucionais da época –, a emersão de um novo paradigma jurídico. Nas palavras de Dirley da Cunha Júnior(17):

“[...] até a Segunda Guerra Mundial, a teoria jurídica vivia sob a influência do Estado Legislativo de Direito, em que a lei e o princípio da legalidade eram as únicas fontes de legitimação do Direito, na medida em que uma norma jurídica era válida não por ser justa, mas sim, exclusivamente, por haver sido posta por uma autoridade dotada de competência normativa.

O neoconstitucionalismo, ou o novo direito constitucional, como também é conhecido, destaca-se, nesse contexto, como uma nova teoria jurídica a justificar a mudança de paradigma, de Estado Legislativo de Direito, para Estado Constitucional de Direito, consolidando a passagem da lei e do princípio da legalidade para a periferia do sistema jurídico e o trânsito da Constituição e do princípio da constitucionalidade para o centro de todo o sistema, em face do reconhecimento da Constituição como verdadeira norma jurídica, com força vinculante e obrigatória, dotada de supremacia e intensa carga valorativa.”

Praticamente todos os ramos do Direito sofreram os reflexos dessa mudança de paradigma jurídico, passando a assimilar os valores albergados na Constituição da República. Foi assim com o Direito Civil, que incorporou, por exemplo, a função social dos contratos e da propriedade, bem como os deveres anexos às obrigações formalmente pactuadas; com o Direito Administrativo e sua releitura do princípio da supremacia do interesse público; e até mesmo com o Direito Processual Civil, que acolheu a boa-fé objetiva como norte para a disciplina das relações processuais.

Apesar disso, o Direito Penal continua relativamente imune a esses novos influxos. O garantismo penal continua sendo interpretado à luz de um paradigma essencialmente liberal, ignorando completamente as mudanças sociais havidas desde o início do século passado. Resultado disso é uma significativa perda de efetividade do Direito Penal, em prejuízo a direitos fundamentais caros ao constituinte, os quais deveriam ser resguardados por esta que é a última trincheira tendente à manutenção da ordem e da paz sociais.

A teoria do garantismo penal foi desenvolvida levando em consideração um contexto histórico de repressão, no qual era premente a imposição de barreiras à atuação estatal. Ocupando o Estado o papel de vilão social, a consequência advinda é a de que, pelos ideais liberais, o Direito Penal era quase sempre um mal para a sociedade, o braço mais forte do ente a ser contido.

Entretanto, na atualidade, essa ideia comporta algumas contenções.

A evolução social testemunhou a modificação do papel do Estado, em razão da qual ele passou a assumir uma função de garante na promoção dos direitos fundamentais, com a incumbência de impedir a violação desses direitos, pelos meios de que dispunha. Dentre esses meios, está o Direito Penal, a via mais áspera para a punição daqueles que atentam duramente contra direitos de significativa relevância jurídica.

Logo, não se pode ignorar o papel do Direito Penal como um dos instrumentos mais efetivos de proteção de direitos fundamentais. Nesse sentido, merece destaque o voto proferido pelo eminente Min. Luiz Fux no julgamento conjunto da ADI 4424/DF e da ADC 19/DF, no qual teceu considerações sobre o papel do Direito Penal como promotor dos direitos fundamentais das mulheres sujeitas à violência doméstica:

“A partir do Estado Social de Direito, cujo marco é o conhecido welfare state, percebeu-se que a atitude negativa dos poderes públicos era insuficiente para promover, de fato, a igualdade entre as pessoas. Exige-se uma atitude positiva, por meio de políticas públicas e da edição de normas que assegurem igualdade de oportunidades e de resultados na divisão social dos bens escassos. Na lição de Canotilho, não há igualdade no não direito (Direito Constitucional e teoria da Constituição. Almedina, 7. ed., 2003. p. 427).

[...]

Sendo estreme de dúvidas a legitimidade constitucional das políticas de ações afirmativas, cumpre estabelecer que estas se desenvolvem também por medidas de caráter criminal. Uma abordagem pós-positivista da nossa Carta Magna infere dos direitos fundamentais nela previstos deveres de proteção (Schutzpflichten) impostos ao Estado. Como o Direito Penal é o guardião dos bens jurídicos mais caros ao ordenamento, a sua efetividade constitui condição para o adequado desenvolvimento da dignidade humana, enquanto a sua ausência demonstra uma proteção deficiente dos valores agasalhados na Lei Maior.

[...]

Uma Constituição que assegura a dignidade humana (art. 1º, III) e que dispõe que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito das suas relações (art. 226, § 8º), não se compadece com a realidade da sociedade brasileira, em que salta aos olhos a alarmante cultura de subjugação da mulher. A impunidade dos agressores acabava por deixar ao desalento os mais básicos direitos das mulheres, submetendo-as a todo tipo de sevícias, em clara afronta ao princípio da proteção deficiente (Untermassverbot).” (sem grifos no original)

No mesmo sentido, recente julgamento proferido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus nº 104.410/RS, relatado pelo Min. Gilmar Mendes:

HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. (A)TIPICIDADE DA CONDUTA. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. MANDATOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO E MODELO EXIGENTE DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS EM MATÉRIA PENAL. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA DESMUNICIADA. ORDEM DENEGADA. 1. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. 1.1. Mandatos constitucionais de criminalização. A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. 1.2. Modelo exigente de controle de constitucionalidade das leis em matéria penal, baseado em níveis de intensidade. Podem ser distinguidos 3 (três) níveis ou graus de intensidade do controle de constitucionalidade de leis penais, consoante as diretrizes elaboradas pela doutrina e jurisprudência constitucional alemã: a) controle de evidência (Evidenzkontrolle); b) controle de sustentabilidade ou justificabilidade (Vertretbarkeitskontrolle); c) controle material de intensidade (intensivierten inhaltlichen Kontrolle). O Tribunal deve sempre levar em conta que a Constituição confere ao legislador amplas margens de ação para eleger os bens jurídicos penais e avaliar as medidas adequadas e necessárias para a efetiva proteção desses bens. Porém, uma vez que se ateste que as medidas legislativas adotadas transbordam os limites impostos pela Constituição – o que poderá ser verificado com base no princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) –, deverá o Tribunal exercer um rígido controle sobre a atividade legislativa, declarando a inconstitucionalidade de leis penais transgressoras de princípios constitucionais. [...] 3. LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA. Há, no contexto empírico legitimador da veiculação da norma, aparente lesividade da conduta, porquanto se tutela a segurança pública (art. 6º e 144, CF) e indiretamente a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica do indivíduo etc. Há inequívoco interesse público e social na proscrição da conduta. É que a arma de fogo, diferentemente de outros objetos e artefatos (faca, vidro etc.), tem, inerente à sua natureza, a característica da lesividade. A danosidade é intrínseca ao objeto. A questão, portanto, de possíveis injustiças pontuais, de absoluta ausência de significado lesivo, deve ser aferida concretamente, e não em linha diretiva de ilegitimidade normativa. 4. ORDEM DENEGADA.” (HC 104410, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06.03.2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-062 DIVULG 26.03.2012 PUBLIC 27.03.2012)

No plano internacional, também se observa essa releitura do Direito Penal como instrumento de defesa de direitos fundamentais. Exemplo disso foi a condenação proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, em cuja sentença ficou consignado que o país feriu o direito à integridade pessoal dos familiares das vítimas, em sua vertente moral e psíquica, ao entendimento de que a afronta a esse direito deveu-se à falta de investigações efetivas para o esclarecimento dos fatos,à falta de iniciativas para sancionar os responsáveis,à falta de informação a respeito dos fatos, bem como à impunidade em que permanece o caso, que neles provocou sentimentos de frustração, impotência e angústia.

O reposicionamento do Direito Penal como um instrumento de proteção de direitos fundamentais é uma legítima alteração de paradigma a ser assimilada pelos operadores do Direito. Do contrário, a evolução social rumará, inevitavelmente, para uma cristalização da ineficiência desse ramo do Direito, gerando proteção deficiente dos valores que visa a resguardar. Nesse sentido são as lições de Ingo Wolfgang Sarlet(18):

“[...] cumpre sinalar que a crise de efetividade que atinge os direitos sociais, diretamente vinculada à exclusão social e à falta de capacidade por parte dos Estados em atender as demandas nessa esfera, acaba contribuindo como elemento impulsionador e como agravante da crise dos demais direitos, do que dão conta – e bastariam tais exemplos para comprovar a assertiva – os crescentes níveis de violência social, acarretando um incremento assustador dos atos de agressão a bens fundamentais (como tais assegurados pelo direito positivo), como é o caso da vida, da integridade física, da liberdade sexual, do patrimônio, apenas para citar as hipóteses em que se registram maior número de violações, isso sem falar nas violações de bens fundamentais de caráter transindividual, como é o caso do meio ambiente, do patrimônio histórico, artístico, cultural, tudo a ensejar uma constante releitura do papel do Estado democrático de Direito e das suas instituições, também no tocante às respostas para a criminalidade em um mundo em constante transformação.

A partir desses exemplos e das alarmantes estatísticas em termos de avanços na criminalidade, percebe-se, sem maior dificuldade, que à crise de efetividade dos direitos fundamentais corresponde também uma crise de segurança dos direitos, no sentido do flagrante déficit de proteção dos direitos fundamentais assegurados pelo poder público, no âmbito dos seus deveres de proteção [...]. Por segurança no sentido jurídico (e, portanto, não como equivalente à noção de segurança pública ou nacional) compreendemos aqui – na esteira de Alessandro Baratta – um atributo inerente a todos os titulares de direitos fundamentais, a significar, em linhas gerais (para que não se recaia nas noções reducionistas, excludentes e até mesmo autoritárias, da segurança nacional e da segurança pública), a efetiva proteção dos direitos fundamentais contra qualquer modo de intervenção ilegítimo por parte de detentores do poder, quer se trate de uma manifestação jurídica, quer fática, do exercício do poder.” (sem grifos no original)

A interpretação sistemática do próprio rol de direitos fundamentais previsto no artigo 5º da Constituição aponta para a necessidade dessa mudança de paradigma. Ao lado de alguns dos mais importantes axiomas do garantismo penal, o legislador constituinte estabeleceu claros mandados de criminalização, com ordem para punição de qualquer discriminação contra os direitos fundamentais (art. 5º, XLI), do racismo (art. 5º, XLII), da tortura, do terrorismo, do tráfico de drogas e de outros crimes hediondos (art. 5º, XLIII), de modo a deixar claro que valores que visem à preservação da segurança da sociedade (art. 5º, caput) devem ser igualmente tutelados pelo Estado.

Como consequência, a interpretação do garantismo à estrita luz dos ideais liberais deve ser revista, sob pena de institucionalização do fenômeno jurídico que se convencionou denominar garantismo hiperbólico monocular. A expressão é definida nos seguintes termos: “evidencia-se desproporcionalmente (hiperbólico) e de forma isolada (monocular) a necessidade de proteção apenas dos direitos fundamentais individuais dos cidadãos, o que, como visto, não é e nunca foi o propósito único do garantismo penal integral”.(19)

Nesse ponto, é bom que fique claro: a teoria de Ferrajoli, em si, não está a merecer críticas, na medida em que garante ao cidadão sob repressão estatal a garantia de respeito às regras do jogo, como de fato deve ocorrer em um Estado de Direito. As críticas, em verdade, recaem sobre as interpretações dadas à teoria no Brasil, pelas quais se erigem os axiomas do garantismo à condição de direitos quase absolutos, ignorando-se a existência de outros interesses postos em conflito, tão ou mais caros à sociedade.

Se, ao tempo da institucionalização do liberalismo, o Estado era o repressor social mais incisivo e os crimes comumente praticados não tinham traços significativos de complexidade, nos dias atuais, o Estado passou a desenvolver fortemente um papel pró-ativo em defesa dos direitos da sociedade, e a criminalidade organizou-se e passou a operar de forma simbiótica e metamórfica, exigindo dos poderes estatais (em sentido amplo) a mesma capacidade de adaptação.

Essas adaptações só serão válidas na medida em que respeitem os limites estabelecidos pelos direitos individuais e, por outro lado, atentem para a necessidade de proteção de todos os demais bens jurídicos garantidos na Constituição da República e em Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário. Pendendo excessivamente para um dos lados, institui-se um quadro de proteção social deficiente, com perda da efetividade do Direito Penal e sua consequente repercussão sobre a manutenção da paz social; rumando desproporcionalmente para outro, corre-se o risco de instalação de um estado policialesco, no qual as regras do jogo passam a constituir mera formalidade e as garantias individuais são solenemente ignoradas.

Cabe ao Poder Judiciário, nos casos concretos, definir o perfeito equilíbrio dessas forças. E, ao fazê-lo, deve levar em conta o princípio da proporcionalidade em sua dupla perspectiva, qual seja, a da proibição do excesso e a da proibição de proteção deficiente ou insuficiente, de modo a não impor restrições inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais aos direitos fundamentais do acusado, sem deixar, por outro lado, de promover a proteção eficiente e completa dos demais direitos fundamentais previstos na Constituição da República.

Passa-se, então, ao exame de precedentes que retratam como o Judiciário vem se desincumbindo de sua missão de equilibrar tais vetores axiológicos.

2.3 Precedentes jurisprudenciais

A análise de precedentes jurisprudenciais tende a demonstrar que a assimilação dos conceitos expostos neste trabalho é bastante incipiente no Brasil e que a interpretação liberal do garantismo penal ainda é predominante.

Como expressão dessa exegese é possível citar o julgamento proferido pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça no Habeas Corpus 76.686/PR, cujo acórdão foi assim ementado:

“Comunicações telefônicas. Sigilo. Relatividade. Inspirações ideológicas. Conflito. Lei ordinária. Interpretações. Razoabilidade.

1. É inviolável o sigilo das comunicações telefônicas; admite-se, porém, a interceptação ‘nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer’.

2. Foi por meio da Lei nº 9.296, de 1996, que o legislador regulamentou o texto constitucional; é explícito o texto infraconstitucional – e bem explícito – em dois pontos: primeiro, quanto ao prazo de quinze dias; segundo, quanto à renovação – ‘renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova’.

3. Inexistindo, na Lei nº 9.296/96, previsão de renovações sucessivas, não há como admiti-las.

4. Já que não é absoluto o sigilo, a relatividade implica o conflito entre normas de diversas inspirações ideológicas; em caso tal, o conflito (aparente) resolve-se, semelhantemente a outros, a favor da liberdade, da intimidade, da vida privada, etc. É que estritamente se interpretam as disposições que restringem a liberdade humana (Maximiliano).

5. Se não de trinta dias, embora seja exatamente esse, com efeito, o prazo de lei (Lei nº 9.296/96, art. 5º), que sejam, então, os sessenta dias do estado de defesa (Constituição, art. 136, § 2º), ou razoável prazo, desde que, é claro, na última hipótese, haja decisão exaustivamente fundamentada. Há, neste caso, se não explícita ou implícita violação do art. 5º da Lei nº 9.296/96, evidente violação do princípio da razoabilidade.

6. Ordem concedida a fim de se reputar ilícita a prova resultante de tantos e tantos e tantos dias de interceptação das comunicações telefônicas, devendo os autos retornar às mãos do Juiz originário para determinações de direito.” (HC 76.686/PR, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 09.09.2008, DJe 10.11.2008)

Nesse julgamento, a Turma anulou as provas produzidas durante um procedimento apuratório criminal que investigou, nos dizeres do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, uma “intrincada rede de atividades ilícitas”que envolvia a prática de crimes contra a Administração Pública e contra o Sistema Financeiro Nacional, em um contexto de organização criminosa.

No curso dessa intrincada investigação, o juízo monocrático autorizou a interceptação telefônica dos aparelhos de telefonia móvel utilizados pelos investigados por cerca de dois anos, antes de deflagrar a operação que resultou na prisão dos componentes do suposto grupo criminoso.

A legalidade das interceptações foi questionada perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região e, mantida a decisão de primeiro grau, o debate foi levado ao Superior Tribunal de Justiça, que, por seu turno, entendeu pela “evidente violação do princípio da razoabilidade” em decorrências das sucessivas prorrogações das interceptações telefônicas.

Por ocasião do julgamento, mesmo levando em consideração a complexidade das relações criminosas supostamente travadas pelos pacientes, a Turma adotou interpretação restritiva do artigo 5º da Lei nº 9.296/1996,(20) no sentido de não admitir mais de uma prorrogação de interceptações telefônicas, sob pena de nulidade processual.

Sem analisar amiúde os fundamentos que serviram de base para uma ou outra interpretação, é possível afirmar que a decisão da Turma do Superior Tribunal de Justiça parte de um pressuposto de difícil consecução fática: o de que seria viável que investigações criminais envolvendo organizações criminosas pudessem ultimar-se dentro do reduzidíssimo prazo de 30 (trinta) dias.

Como exposto, a evolução do Direito mantém estrita relação com a própria evolução da sociedade, cujo contexto atual de hipercomplexidade não pode ser ignorado, sob pena de descompasso entre o mundo do ser e o do dever-ser. Ante a impossibilidade de os meios formais de produção legislativa acompanharem o ritmo da evolução social nesse contexto de complexidade, cabe ao operador do Direito (e ao Poder Judiciário, portanto) assimilar a função de oxigenar o ordenamento jurídico.

Ao restringir o uso de determinadas técnicas de investigação criminal a períodos de tempo desproporcionais ao contexto de complexidade das organizações criminosas, o próprio Estado estará inviabilizando a defesa de determinados direitos fundamentais da sociedade, ao permitir que grupos criminosos organizados aumentem sua capacidade de atuação à medida que consigam implementar traços de complexidade em suas organização e estrutura, violando, assim, o princípio da proporcionalidade em sua vertente positiva, de proibição de proteção insuficiente ou deficiente.

Há exemplos, porém, de contextualização dos postulados garantistas em pelos menos um julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal, o qual representa, de certa forma, uma mudança paradigmática na interpretação de dispositivos legais e constitucionais afeitos ao Direito Penal.

Trata-se do julgamento da ADI 4424/DF, no qual o Supremo atribuiu interpretação conforme à Constituição aos artigos 12, inciso I, 16 e 41, todos da Lei 11.340/2006(21) (Lei Maria da Penha), assentando a natureza incondicionada da ação penal em caso de lesão corporal praticada mediante violência doméstica e familiar contra a mulher.

Os dispositivos legais impugnados eram expressos ao condicionar à representação da vítima a instauração e o processamento de ação penal pela prática de crime de lesão corporal mediante violência doméstica e familiar. Havia, portanto, em favor do investigado ou acusado pela prática de tais crimes, a garantia de que seu processamento só teria curso caso a vítima assim desejasse.

Por ocasião do julgamento, o STF analisou dados estatísticos alarmantes que espelhavam um retrato do problema social vivido por mulheres submetidas à violência doméstica e familiar, os quais demonstravam que na grande maioria dos casos a vítima acabava por não representar contra seu agressor ou por afastar a representação anteriormente formalizada. Observou, ainda, que tal fenômeno tinha o efeito de estimular a reiteração criminosa por parte do agente, inclusive com o incremento de sua agressividade, como meio de intimidação de novas representações.

Com isso, o Tribunal concluiu que a proteção dada pelos dispositivos questionados ao direito fundamental à proteção da família (que tem a mulher como uma de suas células básicas) era deficiente e que, por isso, violava o princípio da proporcionalidade em sua dimensão positiva.

É de se ressaltar que a interpretação reputada inconstitucional veiculava genuína garantia ao devido processo penal em favor do acusado, um dos postulados básicos do garantismo penal. Sob a ótica liberal, dificilmente haveria espaço para qualquer concessão que visasse à diminuição do espectro de incidência desse postulado. Apesar disso, o intérprete maior da Constituição sinalizou no sentido de que o Direito Penal deve, sim, ser visto como um instrumento de defesa de direitos fundamentais e, mais do que isso, de que os direitos individuais do investigado/acusado no processo penal devem ser sopesados com todos os demais interesses envolvidos na persecução penal, sob pena de perda de efetividade do próprio instrumento repressor do Estado.

3 Implantação de regimes alienígenas de confisco de bens no Brasil

Conforme abordado, alguns países promoveram alterações importantes em seus ordenamentos jurídicos com a finalidade de atingir o lastro financeiro do crime organizado. Assim agiram para fazer frente ao crescimento vertiginoso do poder econômico dessas organizações, que repercutia diretamente em sua capacidade de reorganizarem-se, infiltrarem-se nas esferas públicas de poder e perenizar suas atividades criminosas. Em suma, as alterações foram promovidas quando aqueles Estados atentaram para a necessidade de enfrentamento efetivo do poder paralelo em que haviam se transformado as organizações criminosas espanholas, colombianas e italianas.

Neste tópico, não se pretende indicar especificamente os regimes de confisco de bens a serem importados para o Brasil, mas analisar a viabilidade da promoção de algumas alterações legislativas tendentes a tornar mais efetivo o combate ao poder econômico das organizações criminosas que aqui atuam, bem como a compatibilidade dessas alterações com o sistema de direitos e garantias fundamentais previsto no ordenamento jurídico brasileiro.

A prática forense revela que a regra inserta no artigo 91 do Código Penal não permite que no curso do processo penal brasileiro haja uma efetiva reparação do dano causado pelo agente condenado pela prática de ilícitos penais. Apesar de a perda dos instrumentos do crime ocorrer com relativa frequência, é raríssima a hipótese em que, na sentença condenatória penal, haja disposição sobre o perdimento do “produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso”.

A prova de que determinado bem de titularidade do condenado é fruto da conversão de outros bens ou valores auferidos pelo agente com a prática criminosa já era complexa ao tempo em que a regra foi prevista na legislação penal, no longínquo ano de 1940,(22) quando inexistentes as vias informatizadas de fluxos de capital. Com o advento da informatização e da globalização, o dispositivo tornou-se inócuo, na medida em que as transações tendentes a converter os bens ou valores espúrios obtidos com o crime são, cada dia mais, operadas de modo a apagar os rastros de sua transformação.

Não se ignora a existência de regramentos específicos na Lei nº 9.613/1998, que preveem a inversão do ônus da prova da (i)licitude do bem objeto de sequestro ou apreensão judicial e a possibilidade de decretação de perdimento dos bens objeto da lavagem de capitais.

De qualquer modo, já foi exposto que a posição dominante na doutrina e na jurisprudência tende a limitar a abrangência da regra de inversão do ônus da prova ao sequestro ou à apreensão do bem, não admitindo sua aplicação para fins de decretação do perdimento em si. Por outro lado, a aludida regra tem aplicação para os crimes de lavagem de dinheiro, o que a torna bastante limitada em face à generalidade dos crimes previstos na legislação.

Denota-se, por conseguinte, a insuficiência do regramento pátrio a respeito do confisco de bens auferidos pelas organizações criminosas direta ou indiretamente com a prática delitiva. No particular, é de se registrar que o legislador infraconstitucional perdeu uma grande oportunidade de regular a temática com a edição da Lei nº 12.850/2013, a qual, editada para definir organização criminosa e dispor sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova e infrações penais correlatas, não previu qualquer disposição relativa ao confisco de bens pertencentes a essas organizações.

Da legislação estrangeira é possível extrair regras passíveis de remediar a falta de efetividade do sistema penal brasileiro quanto ao tema, dentre as quais se destacam: i) a possibilidade de o confisco incidir sobre bens lícitos do condenado, nos casos em que os instrumentos, produtos ou proveitos auferidos pelo agente com a prática do fato criminoso não puderem ser confiscados; ii) a possibilidade de ampliação do confisco, quando o crime sob apuração for praticado em contexto de organização ou grupo criminoso ou terrorista, a fim de que ele atinja todos os membros da organização; iii) a desvinculação do processo de perdimento de bens ao processo penal, permitindo que sua decretação ocorra em um feito autônomo, alheio à pretensão punitiva do agente; iv) inversão do ônus da prova da (i)licitude dos bens do condenado e dos demais integrantes das organizações criminosas, para que o confisco possa incidir sobre todo o lastro patrimonial que se apresente desproporcional com os ingressos obtidos de forma comprovadamente lícita pelos autores do delito.

As medidas que implicam inversão do ônus probatório (itens i e iv supra) devem ser analisadas à luz do princípio constitucional da presunção de inocência, pelo qual se garante que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”(artigo 5º, inciso LVII, CF/88).

É crucial, em um ordenamento jurídico minimamente preocupado com a defesa dos direitos fundamentais, a garantia de que todo aquele que for processado criminalmente tenha em seu favor o benefício da dúvida, de modo a impor ao órgão estatal acusatório o ônus de comprovar a prática delitiva imputada.

Por outro lado, pondera-se que as medidas de inversão do ônus probatório previstas na legislação estrangeira poderiam ser trazidas para o ordenamento jurídico pátrio de forma adaptada, impondo ao acusado a comprovação da origem lícita de seu patrimônio somente após sua condenação penal transitada em julgado. De qualquer modo, para garantir um resultado final útil, necessário seria que as atuais disposições sobre a apreensão e o sequestro de bens previstas na Lei de Lavagem fossem estendidas para todos os demais delitos, evitando manobras tendentes à dilapidação do patrimônio por parte do acusado que vislumbrasse possível condenação penal futura.

Por óbvio, tais modificações implicariam abrandamento da força axiológica do direito à propriedade e do princípio da presunção de inocência, que cederiam espaço, proporcional e razoavelmente, a outros direitos alcançados pelas normas penais de interesse da sociedade (nos quais se incluem os das vítimas dos delitos praticados). Tratando-se de direitos relativos, é razoável a previsão de que percam espaço à medida que o processo penal avança (desde o recebimento da denúncia até a prolação da sentença condenatória).

Aliás, essa diminuição gradual da força axiológica do princípio da não culpabilidade já esteve sob análise do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Lei da Ficha Limpa (Ações Declaratórias de Constitucionalidade nos 29, 30 e 4578).

Apesar de não tratar diretamente de medidas de natureza penal (mas das implicações destas sobre os direitos políticos dos candidatos), o abrandamento progressivo da condição absoluta de inculpabilidade do acusado com condenação penal proferida em segunda instância parece bastante claro. Afinal, a migração dos efeitos de decisões condenatórias colegiadas não transitadas em julgado para o âmbito eleitoral, impedindo os candidatos de exercerem seus direitos políticos fundamentais, sob o fundamento de que tais condenações maculam a vida pregressa do pretendente ao cargo público, sem dúvida parte de uma presunção legítima de que as condenações penais de segunda instância têm força o bastante para restringir proporcionalmente o âmbito de alcance daquela garantia individual. O julgamento dá azo a interpretações no sentido de que, depois de vencidas as vias nas quais se permite reapreciação de fatos e provas a respeito da pretensão punitiva, o princípio da presunção de inocência é ombreado com outros direitos fundamentais. Mais do que isso, admitir que esse efeito é possível a partir de um julgamento de segunda instância, mas não de um julgamento monocrático, importa em reconhecimento de eficácia distinta e gradual do princípio da não culpabilidade à medida que se avançam as etapas no curso do processo penal.

Logo, alteração legislativa que viesse a contemplar regras como as descritas nos itens ie iv acima não afrontariam as garantias individuais dos indivíduos, desde que estas fossem interpretadas a partir dos paradigmas expostos no curso deste trabalho.

De outro vértice, a possibilidade de ampliação do confisco, quando o crime sob apuração for praticado em contexto de organização ou grupo criminoso ou terrorista, a fim de que ele atinja todos os membros da organização (item ii), e a desvinculação do processo de perdimento de bens ao processo penal, permitindo que sua decretação ocorra em um processo autônomo, alheio à pretensão punitiva do agente (item iii), são medidas de mais difícil compatibilização ao ordenamento jurídico brasileiro.

Quanto à possibilidade de ampliação do confisco, quando o crime sob apuração for praticado em contexto de organização ou grupo criminoso ou terrorista (a fim de que ele atinja todos os membros da organização criminosa), para que pudesse ser implementada no Brasil, seria necessária a sistematização de um procedimento no qual houvesse previsão acerca da natureza real da medida constritiva, de modo a vinculá-la especificamente ao bem objeto da constrição (e não à pretensão punitiva do agente), o que significaria uma modificação completa do regime hoje vigente. Além disso, a definição prefacial de quais seriam os membros ocultos da organização criminosa, bem como sua diferenciação em relação a terceiros de boa-fé, exigiria concessões maiores com o princípio da presunção de inocência, de mais difícil consecução no Brasil.

Por outro lado, a desvinculação do processo de perdimento à esfera penal até seria viável, desde que não implicasse em uma atuação exclusivamente administrativa por parte do Estado (como ocorre na Itália), inviabilizando ao Judiciário a análise do mérito das medidas restritivas ao direito de propriedade. Havendo garantia expressa da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, da CF/88), seria difícil visualizar de que forma esse regramento poderia ser incorporado ao ordenamento jurídico pátrio sem afrontar a aludida garantia constitucional. Afinal, os operadores do Direito sempre vincularam o conceito de mérito administrativo a atividades típicas do Poder Executivo (tenham elas cunho político ou técnico), sobre as quais havia limitação de apreciação judicial, não se enquadrando as medidas de confisco de bens nesse nicho de exclusão (ou severa limitação cognitiva horizontal) de apreciação judicial.

Conclusão

Da análise dos regimes jurídicos vigentes em países estrangeiros e da sistemática de confisco de bens existente no Brasil, chega-se à conclusão de que, atualmente, o universo normativo que regula a repressão do poder econômico das organizações criminosas atuantes em nosso país é insuficiente, infringindo o princípio da proporcionalidade em sua dimensão positiva, de proibição de proteção deficiente.

Desse modo, tornam-se necessárias alterações legislativas que busquem a retomada da efetividade do Direito Penal como instrumento de prevenção e de repressão às atividades criminosas, levadas a efeito não apenas por meio da aplicação de penas corporais, mas também pela derrocada de um de seus mais importantes pilares de sustentação: sua saúde financeira.

Sem a pretensão de apresentar a solução para os problemas da legislação nacional, este trabalho buscou levar ao conhecimento do leitor regimes jurídicos distintos dos nossos, assim como apontar a forma como tais regimes poderiam compatibilizar-se com o ordenamento jurídico pátrio, sem infringir direitos e garantias dos cidadãos.

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Notas

1. FORGIONE, Francesco. Máfia export: como a ‘Ndrangheta, a Cosa Nostra e a Camorra colonizaram o mundo. Traduzido por Karina Jannini. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. p. 136-137.

2. Idem, p. 55.

3. Ex-deputado que figurou como presidente da extinta Comissão Parlamentar Antimáfia italiana e autor da obra Máfia Export: como a ‘Ndrangheta, a Cosa Nostra e a Camorra colonizaram o mundo. Traduzido por Karina Jannini. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

4. “Decreto Legislativo 6 settembre 2011, nº 159: [...]
Capo IV – Rapporti con i procedimenti penali
Art. 29 – Indipendenza dall'esercizio dell'azione penale
1. L'azione di prevenzione può essere esercitata anche indipendentemente dall'esercizio dell'azione penale.

5. Art. 2º-ter, L. 31 maggio 1965, nº 575: “[...] La confisca può essere proposta, in caso di morte del soggetto nei confronti del quale potrebbe essere disposta, nei riguardi dei successori a titolo universale o particolare, entro il termine di cinque anni dal decesso. [...]

6. Decreto Legislativo 6 settembre 2011, nº 159: “Art. 18. Applicazione delle misure di prevenzione patrimoniali. Morte del proposto
[...] 3. Il procedimento di prevenzione patrimoniale può essere iniziato anche in caso di morte del soggetto nei confronti del quale potrebbe essere disposta la confisca; in tal caso la richiesta di applicazione della misura di prevenzione può essere proposta nei riguardi dei successori a titolo universale o particolare entro il termine di cinque anni dal decesso.

7. “Art. 4º O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou representação da autoridade policial, ouvido o Ministério Público em vinte e quatro horas, havendo indícios suficientes, poderá decretar, no curso do inquérito ou da ação penal, a apreensão ou o sequestro de bens, direitos ou valores do acusado, ou existentes em seu nome, objeto dos crimes previstos nesta Lei, procedendo-se na forma dos arts. 125 a 144 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal.
[...]
§ 2º O juiz determinará a liberação dos bens, direitos e valores apreendidos ou sequestrados quando comprovada a licitude de sua origem.”

8. BALTAZAR JR., José Paulo. Crimes federais: contra a administração pública, a previdência social, a ordem tributária, o sistema financeiro nacional, as telecomunicações e as licitações, estelionato, quadrilha ou bando, moeda falsa, abuso de autoridade, tráfico internacional de drogas, lavagem de dinheiro. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 521-522.

9. TRF4: ACR 2004.71.00.029403-0, Oitava Turma, Relator Élcio Pinheiro de Castro, DJ 25.05.2005; ACR 2005.71.00.019916-5, Oitava Turma, Relator Paulo Afonso Brum Vaz, DJ 05.04.2006; ACR 2004.71.00.031800-9, Oitava Turma, Relator Élcio Pinheiro de Castro, DJ 23.02.2005.

10. Promulgada pelo Decreto nº 154/1991.

11. Promulgada pelo Decreto nº 5.687/2006.

12. Promulgada pelo Decreto nº 5.015/2004.

13. São eles, resumidamente: a) princípio da retributividade; b) princípio da legalidade; c) princípio da necessidade ou subsidiariedade do Direito Penal; d) princípio da lesividade; e) princípio da materialidade; f) princípio da culpabilidade; g) princípio da jurisdicionalidade; h) princípio acusatório; i) princípio do encargo da prova; e j) princípio do contraditório (FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. 4. ed. Madri: Trotta, 2000. p. 93. Tradução livre).

14. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 15.

15. O termo “geração” de direitos fundamentais é criticado por parte da doutrina por transmitir, de forma errônea, uma ideia de sucessão de uma geração por outra, enquanto na verdade elas se complementam, por força da indivisibilidade dos direitos fundamentais. Por isso, neste artigo opta-se pelo termo “dimensão” dos direitos fundamentais.

16. RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 85.

17.Curso de Direito Constitucional. 3. ed. Salvador:JusPodivm, 2009. p. 39.

18. SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. Revista de Estudos Criminais, n. 12, a. 3, 2003. p. 86 e segs.

19. FICHER, Douglas. O que é garantismo penal (integral)? In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (Org.). Garantismo penal integral: questões penais e processuais penais, criminalidade moderna e a aplicação do modelo garantista no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 25 e ss.

20. “Art. 5º A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova.”

21. “Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;
[...]
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
[...]
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.”

22. A regra já estava inserida no artigo 74, inciso II, alínea b, da Parte Geral do Código Penal antes da reforma promovida pela Lei 7.209/1984.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dez. 2013. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS