Eficiência jurisdicional e controle de constitucionalidade

Autor: Eduardo Appio

Juiz Federal

 publicado em 28.02.2014



Palavras-chave:
Estado. Constituição. Poder Judiciário. Controle de constitucionalidade. Aplicação das leis. Princípios constitucionais. Motivação. Eficiência do Poder Judiciário.

Introdução

O Estado contemporâneo pode ser caracterizado pelo marcante papel que as Constituições têm desempenhado na vida de seus cidadãos. A democracia no século XXI já não é mais concebida a partir de um paradigma liberal, centralizado na lei e nos instrumentos tradicionais de representação popular.

O modelo de democracia concebido pelo movimento iluminista já não representa um marco teórico seguro, uma vez que o Estado contemporâneo tem seu papel definido por princípios constitucionais. Se no modelo liberal, de matriz racionalista, a vontade popular estava erigida à condição de verdadeiro dogma, no modelo contemporâneo de democracia constitucional as decisões judiciais podem derrogar a vontade política do legislador. Nesse novo modelo, os juízes estão investidos na função de assegurar a supremacia de princípios constitucionais abertos, os quais se constituem em uma ponte entre a moral e o direito.(1)

A supremacia do texto constitucional foi considerada requisito indispensável de manutenção de um sistema jurídico a partir da obra de Hans Kelsen. Segundo o autor tcheco, as normas de grau inferior iriam buscar na Constituição seu fundamento de validade, no que convencionou denominar “teoria do escalonamento”. À Constituição compete definir os mecanismos adequados de produção das normas jurídicas, segundo a concepção de Hans Kelsen.

O modelo positivista de produção do direito vigente, ainda no início do século XX, buscou respostas nas ciências empíricas – tais como a física e a química – para problemas até então solucionados pela moral e pela religião.(2) A escola do direito positivo teve o mérito de conferir eficácia a normas jurídicas que eram consideradas meros conselhos ao legislador. Nem mesmo as normas que tratavam dos direitos fundamentais eram consideradas, antes dos positivistas, como impositivas da vontade do Legislativo.

Com a separação absoluta entre direito e moral, o positivismo sustentava a necessidade de amparar a conduta humana regulada pelo Estado em normas plasmadas por uma verdadeira ciência jurídica.(3) A busca da cientificidade implicou a retirada de uma fundamentação ética na aplicação do direito, dado que conduziu os juristas contemporâneos à repulsa da separação entre o direito e a moral.

À superação das concepções positivistas do início do século XX os juristas contemporâneos respondem com a necessidade de proteção dos direitos fundamentais do cidadão, especialmente da dignidade da pessoa humana. O direito passa a ser concebido como uma escala flexível de valores que demandam a intervenção judicial para sua concretização.(4) Nesse sentido, uma Constituição principiológica autoriza a transferência de um imenso poder político, o qual migra do Poder Legislativo para o Poder Judiciário, por meio do controle judicial da constitucionalidade das leis.(5)

A prerrogativa de derrogar decisões políticas do Legislativo, amparadas em uma suposta vontade popular, rende ensejo a decisões contramajoritárias de juízes não eleitos pela população. Ao considerar que uma lei é incompatível com a Constituição, qualquer juiz brasileiro pode negar a sua aplicação para o caso concreto que está sendo submetido ao exame. A lei nula não pode ser aplicada, e os juízes estão investidos do poder de negar o exercício de decisões que refletem a vontade das maiorias. Nesse sentido, menciona-se que a intervenção judicial contramajoritária representa um paradoxo da democracia, na medida em que juízes não eleitos fazem prevalecer, hoje, decisões políticas tomadas por gerações passadas.(6)

O presente artigo tem por objetivo desmascarar um sutil processo de construção de um discurso judicial aparentemente fundado na cientificidade e no modelo de subsunção criado pelo positivismo. Esse processo, supostamente forjado na melhor tradição do constitucionalismo contemporâneo, nada tem de positivista. Muito pelo contrário, utiliza-se de uma notável conquista da democracia contemporânea – o controle da constitucionalidade das leis – para negar a aplicação de leis que são incompatíveis com a Constituição brasileira de 1988. A partir de um poder político outorgado pela Constituição, parcela considerável dos juízes brasileiros tem desrespeitado uma garantia constitucional inscrita no art. 93 da Constituição de 1988. Esta regra impõe aos juízes o dever de motivar todas as suas decisões, sob pena de nulidade, do que resulta a necessidade de explicitação de todos os argumentos que conduziram o julgador à decisão adotada.

Sustento, em um primeiro momento, que os juízes brasileiros têm o dever de negar a aplicação de lei inconstitucional e que esta imposição deriva da própria supremacia da Constituição. Trata-se, portanto, de uma prerrogativa política. Em um segundo momento, posiciono-me contra a maneira pela qual boa parcela dos juízes brasileiros tem declarado a inconstitucionalidade de leis, com o fito de assegurar sua não aplicação para o caso concreto, mesmo em casos nos quais consideram essa lei compatível com a Constituição. Irei explicar esse fenômeno a partir da confusão gerada pelo tratamento indiscriminado conferido à lei em sua dimensão política, nas hipóteses em que o caso concreto demanda uma resposta correta. Para concluir, sustento que a lei federal não pode ser aplicada quando o juiz esteja convencido de que sua aplicação, naquele caso concreto, representará verdadeira afronta aos princípios constitucionais prevalentes, mas que esse fenômeno não guarda qualquer relação com o controle de constitucionalidade das leis.

1 A lei e suas nulidades

O controle concentrado de constitucionalidade das leis é uma decorrência da adoção, pelo constituinte de 1988, do modelo austríaco, de matriz kelseniana,(7) na medida em que fundado na premissa de que as leis e os atos normativos vigentes no país retiram seu fundamento de validade da norma fundamental.

No caso específico dos atos normativos, quando, sob o fundamento de regulamentar texto de lei, o administrador desbordar dos limites previsto da lei a ser regulamentada, o caso é de ilegalidade (inconstitucionalidade reflexa), passível de análise na via do controle difuso, e não de inconstitucionalidade direta.(8)

À Constituição cabe definir de que modo as demais normas serão produzidas, de forma que da inobservância dessa regra decorrerá a nulidade da lei ou do ato normativo (este último, nos casos em que for deferida autorização para que o chefe do Poder Executivo normatize determinado tema sem a necessidade de edição de uma lei pelo Poder Legislativo).(9)

A nulidade é uma sanção decorrente da transposição, por parte do legislador ou do chefe do Poder Executivo,(10) dos limites impostos pelo constituinte.(11) O mesmo sucede com o juiz, o administrador público e o particular, os quais estão limitados pelo conteúdo material da Constituição em suas relações.

A retirada da lei/decreto do sistema normativo se dá, basicamente, de duas maneiras. Na primeira modalidade, (i) o juiz declara a nulidade do texto, determinando, por conseguinte, que a lei anterior seja aplicada. Não se trata de um caso de repristinação, na medida em que a lei incompatível com a Constituição é declarada nula e, por conseguinte, não teria produzido qualquer efeito, especialmente a revogação da lei anterior. Em uma segunda modalidade, (ii) o juiz mantém o texto de lei na sua literalidade, mas altera seu alcance por meio da adjudicação de um novo sentido não previsto pelo legislador, mas que se revela necessário para adequar a lei editada com a Constituição. Trata-se da interpretação conforme à Constituição,(12) expressamente prevista na Lei Federal 9.868, de novembro de 1999, a qual regulou o rito das ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Existe, finalmente, uma terceira modalidade de controle, correlata aos casos de omissão do Poder Legislativo, a qual encontra na ação direta de inconstitucionalidade por omissão e no mandado de injunção uma resposta adequada por parte do constituinte de 1988. Neste último caso, não se trata de retirar do ordenamento uma lei inconstitucional, mas sim, contrariamente, fazer incluir no sistema uma lei/decreto necessária para a regulação do exercício de um direito fundamental.

Ao atuar em sede de controle da constitucionalidade das leis, o juiz opera no plano político, a partir de considerações de índole geral e objetiva que nada têm a ver com as peculiaridades do caso concreto.

Recorde-se que o Brasil possui um confuso sistema misto, no qual se combinam institutos de controle concentrado (abstrato) da constitucionalidade das leis – tais como as ações diretas de inconstitucionalidade – com mecanismos de controle difuso ou concreto, os quais permitem que o juiz declare (incidentalmente) a inconstitucionalidade de uma lei, sempre que necessário ao adequado exame do caso concreto que lhe é submetido.

Em ambos os casos – controle concentrado e difuso – a atividade judicial é essencialmente a mesma, uma vez que avulta de interesse um escopo político, qual seja, o de garantir a supremacia da Constituição por meio da declaração da nulidade da lei inconstitucional.

Nesse sentido, um juiz que declara incidentalmente a inconstitucionalidade de uma determinada lei na comarca de Itajaí-SC, com o objetivo de solucionar um caso concreto, está inserido em uma dimensão política tanto quanto um Ministro do Supremo Tribunal em seu gabinete em Brasília. Esta constatação é reforçada pela prerrogativa de o juiz de primeiro grau conhecer de ofício da inconstitucionalidade, já que investido do dever de proteção da Constituição.

A única diferença entre as duas atividades decorre da consequência jurídica no plano da eficácia da decisão judicial, uma vez que a decisão de um órgão do Supremo Tribunal em sede de controle abstrato tem, como regra geral, efeitos erga omnes (contra todos), ao passo que a decisão do juiz de primeiro grau, no controle concreto, tem efeitos inter partes (entre as partes). Em ambas as situações, o julgador parte de uma questão que se situa no plano abstrato e objetivo, ou seja, da (in)compatibilidade da lei com a Constituição. Nessa tarefa, terá de verificar se as formalidades para a edição da lei foram observadas pelo Poder Legislativo (compatibilidade formal), bem como se o conteúdo da lei pode ser compatibilizado com a Constituição (compatibilidade material).

Foi no exame da compatibilidade material da lei com as regras e os princípios da Constituição que surgiram as primeiras dificuldades que conduziram os juristas a injustificáveis equívocos. Ocorre que a proteção da supremacia de princípios constitucionais abertos, pouco densificados pelo constituinte – tais como o da isonomia entre os cidadãos –, demandava o exame acerca do próprio mérito da opção legislativa. A lei passou a ser examinada por meio de técnicas que permitiram um aprofundado exame acerca de sua compatibilidade (material) com a Constituição, tais como a proporcionalidade e a razoabilidade da opção legislativa. Na prática, o mérito do ato político passou a ser confrontado a partir da Constituição, do que resultou a substituição da discricionariedade legislativa pela judicial.

Todavia, o controle da constitucionalidade das leis, mesmo quando adote a compatibilidade material como seu critério, não toma em consideração as circunstâncias específicas do caso concreto. Muito ao contrário, analisa essa questão a partir da adequação, da necessidade e da razoabilidade da medida legislativa enquanto uma resposta (genérica e abstrata) a necessidades de natureza coletiva.(13)

O controle da constitucionalidade das leis é, por conseguinte, operacionalizado em uma dimensão estritamente política, ou seja, enquanto controle de uma decisão do Parlamento que visava atender, de forma genérica e ampla, uma necessidade coletiva. A conclusão necessária é a de que todo controle de constitucionalidade é abstrato, seja no primeiro grau de jurisdição, seja mesmo no Supremo Tribunal Federal. O fato de que a decisão do juiz singular é dotada de uma eficácia inter partes, enquanto a decisão do Supremo, em sede de controle abstrato, possui eficácia erga omnes, em nada desabona esta conclusão.

Note-se, ainda, que mesmo nos casos em que o Supremo Tribunal, em sede de controle abstrato, utiliza-se da interpretação conforme, não está no campo da aplicação da lei, a qual demandaria o exame de uma situação concreta, incompatível com o controle abstrato.

O controle é sempre abstrato, mesmo quando utilizado pelo juiz singular no caso concreto, do que se dessume que não existe, no Brasil, controle concreto da constitucionalidade das leis. O juiz singular, ao rejeitar a aplicação de uma lei federal, porque incompatível com a Constituição, não pode considerar as peculiaridades do caso concreto, mas tão somente aferir da compatibilidade no plano político (objetivo), assim como faria seu colega no Supremo Tribunal, em sede de ação direta de inconstitucionalidade.

Note-se, ainda, que em muitas ações o juiz singular declara (incidentalmente) a nulidade da lei com efeitos erga omnes, como ocorre, por exemplo, nas ações coletivas previstas na Lei Federal 7.346/85 (Lei de Ação Civil Pública), quando necessário à solução da lide. À diferença das ações “diretas” de inconstitucionalidade, as ações coletivas não prescindem de uma situação concreta, razão pela qual se fala em controle subjetivo.

A cega reprodução da dogmática tradicional tem levado os juristas brasileiros a considerar que o controle no caso concreto tem uma natureza diversa do controle realizado nas ações diretas de inconstitucionalidade. Bem por isso, os juristas têm dificuldades de compreender as razões que permitem a qualquer juiz singular declarar a nulidade de uma lei com eficácia erga omnes, quando esta competência é atribuída com exclusividade ao Supremo Tribunal (art. 102, I, a, da CF de 1988).(14)

Afirmo, portanto, que em ambos os casos a atividade judicial é essencialmente idêntica, ou seja, ambos realizam um controle em abstrato, para o qual nada contribui o plano da aplicação concreta da lei.

O modelo de controle concreto da constitucionalidade das leis faz parte da tradição brasileira, e somente em data recente surgiu o controle abstrato no Brasil, seguindo os moldes da construção europeia continental. Contudo, não se pode aceitar a adoção do modelo que se constitui na base da prática judicial norte-americana, uma vez que a Suprema Corte dos Estados Unidos é que define onde se encontra uma verdadeira questão constitucional.

Parte-se, no sistema norte-americano, da aplicação de uma lei para o caso singular, que faz com que uma das partes se insurja contra sua constitucionalidade, do que resulta que a Suprema Corte cria, por meio da indução, uma regra genérica e abstrata passível de aplicação para os casos futuros. Nesse modelo, incumbe aos juízes definir, no caso concreto, se o precedente firmado pela Suprema Corte pode ser aplicado em um caso futuro. Desse modelo de criação judicial resulta a necessidade de que o caso futuro seja plenamente compatível com o precedente, ou seja, que as circunstâncias de fato sejam idênticas. Essa dificuldade de ordem prática impõe à Suprema Corte dos Estados Unidos uma severa limitação em sua margem de controle, na medida em que casos que se revelem excepcionais, por conta da particular condição das partes litigantes, não podem ser admitidos como um paradigma seguro para se criar uma regra (abstrata e genérica) para o futuro.(15)

No modelo norte-americano, a forma como a lei é aplicada por uma das partes não entra no debate acerca de sua (in)constitucionalidade. O controle é feito no caso concreto, mas a partir de considerações de ordem abstrata e objetiva, em face das quais as condições peculiares das partes em nada interferem na decisão judicial. A lei deixará de ser aplicada pelo juiz singular caso se apresente (objetivamente) incompatível com a Constituição. Dessa maneira, invalida-se uma solução legislativa que se mostra objetivamente incompatível com a Constituição, não porque, aplicada no caso concreto, conduz a uma afronta para com a Constituição, mas sim porque, examinada no plano político-abstrato, contraria decisões do constituinte.

O controle é, portanto, sempre abstrato, o que muda de um sistema para outro é a forma como a questão chega até a mais alta Corte do país. Prova disso é que o controle (concreto) feito pela Suprema Corte dos Estados Unidos é idêntico ao controle feito pelo juiz singular, mas em ambos os casos a decisão é resultado de uma atividade política, tradicionalmente fundada na ideia de um tratamento isonômico a todos os cidadãos.

Esta questão não está despida de interesse, do ponto de vista prático, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, por parte do juiz singular, permite a interposição de recurso extraordinário perante o Supremo Tribunal Federal. Está aí um dos grandes temas tratados na reforma do Poder Judiciário, já que o Supremo Tribunal julga milhares de recursos extraordinários todos os meses do ano. Contudo, sustento que, ao julgar a maior parte destes recursos extraordinários, a “Corte Constitucional” brasileira está perdendo seu precioso tempo com questões que não se encontram na esfera de sua competência. Sustento que um dos principais motivos do insucesso do Poder Judiciário brasileiro deriva do fato de que a doutrina brasileira não consegue definir, com a clareza necessária, o que é uma verdadeira questão constitucional.

2 O plano da aplicação

As considerações de ordem subjetiva, fundadas nas peculiaridades do caso concreto e na situação particular das partes envolvidas no litígio, situam-se no plano da aplicação da lei, e não no plano do controle de constitucionalidade. O plano da aplicação não está situado em uma dimensão política, mas sim no plano de uma justificação moral para a solução do caso concreto, que muito se aproxima do conceito aristotélico de equidade.(16) Está, por conseguinte, situado no campo de uma racionalidade prática, para a qual a moral tem uma grande contribuição a prestar, a partir de uma jurisprudência principiológica.

Na definição dos limites da atividade judicial, revela-se importante a distinção estabelecida por Klaus Günther entre os argumentos de fundamentação e os argumentos de aplicação em uma ética discursiva.(17) Segundo o autor, os argumentos de fundamentação se fundam em critérios universalmente aceitos a partir de uma ótica coletiva-política. Os argumentos de aplicação, por sua vez, irão tomar em consideração os dados específicos do caso concreto, do que resulta a necessidade de adequação das normas consideradas válidas às situações contingenciais, tratando-se, por conseguinte, de uma atividade tipicamente judicial.

No plano da aplicação, caso o juiz considere que o resultado prático de sua decisão irá afrontar um princípio constitucional que entende prevalente para aquele caso concreto, deverá rejeitar a aplicação desta lei. Com isso, abre-se a possibilidade de aplicar diretamente o princípio constitucional que reputa prevalente, uma vez que os princípios constitucionais não se constituem em meros mandatos de otimização,(18) mas sim em normas que deontologicamente obrigam uma determinada decisão judicial.

Nesse modelo que sustento, o juiz deveria realizar um duplo teste em cada um de seus julgamentos. Em um primeiro momento, confrontaria a lei, em abstrato, com a Constituição (controle de constitucionalidade). Já em um segundo momento, tendo chegado à conclusão de que a única lei aplicável é constitucional, partiria para um exame no plano da aplicação desta lei. O resultado da aplicação da lei, por sua vez, seria confrontado com os princípios constitucionais que o juiz reputa prevalentes para aquele caso concreto, a partir de considerações de ordem estritamente subjetiva, ou seja, tomando em consideração apenas a condição das partes envolvidas no litígio.

Esse duplo teste permite distinguir, com clareza, o que é uma verdadeira questão constitucional, já que a opção do juiz pela não aplicação da lei federal conduz à possibilidade de interposição do recurso especial (art. 105 da CF de 1988), e não do recurso extraordinário. No plano da aplicação, não existem várias respostas corretas, mas sim uma única resposta correta, do que resulta que a única lei aplicável para aquele caso deve ser preliminarmente tida como compatível com a Constituição para só então ser aplicada no caso concreto.(19)

Além de possibilitar a construção de um discurso judicial comprometido com a eficácia dos princípios constitucionais, superando um anêmico discurso da mera subsunção, essa tese permite um maior controle das partes sobre a atividade judicial. A criação da regra para o caso concreto, a partir da aplicação direta de um princípio da Constituição, não guarda qualquer relação com a atividade de controle judicial da constitucionalidade das leis.

No controle de constitucionalidade, a lei declarada inconstitucional é reputada nula e, por conseguinte, impõe ao juiz que aplique a lei anterior.(20)

Na grande maioria dos casos, os juízes brasileiros optam por declarar (incidentalmente) a inconstitucionalidade de uma lei que sabem ser compatível com a Constituição. Rejeitam, todavia, os resultados práticos que esta lei irá produzir naquele caso concreto, pois a condição pessoal das partes também deve ser examinada, especialmente a partir do princípio da dignidade da pessoa humana.(21) Ao invés de rejeitar a aplicação da lei (constitucional) naquele caso concreto, optam pela solução mais fácil, qual seja, a da declaração incidental da inconstitucionalidade da lei federal. Com isso, acabam alimentando um sistema irracional que não distingue as questões verdadeiramente constitucionais – que renderiam ensejo à interposição do recurso extraordinário – das demais questões situadas no campo da mera (não) aplicação da lei federal, que possibilita o acesso ao recurso especial perante o STJ (Superior Tribunal de Justiça).

A negação de aplicação de lei federal não é, portanto, uma questão constitucional.

Os juízes, portanto, induzem artificialmente um juízo de inconstitucionalidade, ao invés de negarem a aplicação da lei federal, porque acostumados a uma lógica que deriva de sua formação positivista (lógica da subsunção automática).

O vasto volume de recursos que hoje aportam diariamente ao Supremo Tribunal Federal justifica e impõe a rediscussão acerca dos mecanismos de controle de constitucionalidade no Brasil e sua interpretação, com a finalidade de aperfeiçoar os mecanismos de gestão e eficiência dos processos.

Conclusões

1. O controle de constitucionalidade das leis é sempre abstrato e pode ser levado a efeito na via principal ou incidental. No primeiro caso, a eficácia da decisão é erga omnes e, no segundo, inter partes.

2. O controle de constitucionalidade está situado em uma dimensão política e coletiva, o da aplicação em uma dimensão prática e subjetiva.

3. Ao negar a aplicação de uma lei federal, o juiz não está realizando controle de constitucionalidade. Não estando presente uma verdadeira questão constitucional, a parte não poderá levar a causa até o Supremo Tribunal na via do recurso extraordinário.

4. A formação positivista dos juízes brasileiros dificulta a correta identificação dos princípios e objetivos que devem reger sua atividade.

Notas

1. Nesse sentido, vale o alerta de GARZÓN VALDÉS, Ernesto. Derecho y moral. In: GARZÓN VALDÉS, Ernesto; LAPORTA, Francisco. El derecho y la justicia. Madrid: Trotta, 1996. p. 397, no sentido de que mesmo os partidários da separação entre o direito e a moral concordam que os sistemas jurídicos são um reflexo mais ou menos fiel das convicções morais dos que detêm o poder político em uma determinada sociedade. A discussão se centra na possibilidade ou impossibilidade de estabelecer uma relação conceitual entre direito e moral.

2. SILVA, Ovídio Baptista da. Processo e ideologia. São Paulo: Forense, 2004. p. 303 anota que “a redução do Direito ao ‘mundo jurídico’ de tal modo que o ‘jurídico’ isole-se do ‘político’ está centrada neste mesmo objetivo. O Direito, enquanto ciência, deveria ser tratado com a ‘neutralidade’ recomendada para as ciências, sem que os juristas, especialmente o processualistas, se pudessem envolver com valores”.

3. Sobre o tema, KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Traduzido por Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 59 adverte que pretendia conferir autonomia científica ao direito que como a moral é uma ciência do espírito e, por conseguinte, devem ser diferenciados. Também sobre o importante papel do positivismo na Alemanha, ver MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’. Traduzido por Martônio Lima e Paulo Albuquerque. Revista Novos Estudos, CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). São Paulo, n. 58, p. 183-202, nov. 2002.

4. Sobre o tema, a obra de ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derecho, justicia. 4. ed. Madrid: Trotta, 2002.

5. Escrevi sobre o tema no livro Controle de constitucionalidade no Brasil, de acordo com a Emenda à Constituição nº 45, de 08.12.2004. Curitiba: Juruá, 2005.

6. Sobre o tema, duas obras me parecem indispensáveis. GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al gobierno: sobre el carácter contramayoritario del poder judicial. Presentación de Cass Sunstein. Barcelona: Ariel, 1996 menciona de que maneira os juízes têm interferido no modelo de democracia constitucional. Nesse mesmo sentido, o importante artigo de PEÑA FREIRE, Antonio Manuel. Constitucionalismo garantista y democracia. Revista Crítica Jurídica. Curitiba, n. 22, p. 31-65, jul./dez. 2003.

7. KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 304-305. “Antes de entrar em vigor a Constituição de 1920, as cortes austríacas tinham o poder de controlar a constitucionalidade das leis apenas no concernente à sua adequada publicação. Contudo, o poder que tinham de se pronunciar acerca da legalidade e, logo, da constitucionalidade dos decretos não era restringido. Uma revisão judicial da legislação, portanto, só era possível dentro de limites bastante estreitos, e ampliar esta instituição foi um dos objetivos da reforma constitucional de 1920. Não se considerou desejável garantir a toda corte se pronunciar sobre a constitucionalidade das leis. O perigo, antes mencionado, da falta de uniformidade em questões constitucionais era grande demais, pois na Áustria, bem como em outros países do continente europeu, as autoridades administrativas não tinham o poder de controlar a constitucionalidade das leis, sendo obrigadas, portanto, a aplicar uma lei mesmo que um tribunal, por exemplo, a Suprema Corte, a tivesse declarado inconstitucional. (...) o fato mais importante, porém, é que na Áustria as decisões da Corte ordinária mais alta – Oberster Gerichtshof –, concernentes à constitucionalidade de uma lei ou decreto, não tinham força obrigatória sobre as cortes inferiores. Estas não estavam proibidas de aplicar uma lei que o Oberster Gerichtshof tivesse previamente declarado inconstitucional e, portanto, deixado de aplicar em um caso específico. O próprio Oberster Gerichtschof não estava sujeito à norma do stare decisis, de modo que uma lei declarada inconstitucional pela corte em um caso específico podia ser declarada constitucional e aplicada em outro por esta mesma corte. Pelas razões expostas, uma centralização da revisão judicial da legislação era altamente desejável no interesse da autoridade da Constituição. A Constituição austríaca de 1920, nos seus artigos 137-48, estabeleceu tal centralização ao reservar a revisão judicial da legislação a uma corte especial, a assim chamada Corte Constitucional (Verfassungsgerichtschof). Ao mesmo tempo, a Constituição conferiu a essa corte o poder de anular a lei que considerasse inconstitucional.”

8. STF, Pleno, ADI 311 MC/DF. Relator Ministro Carlos Velloso. Julgamento na data de 08.08.1990.

9. O Pleno do STF, em diversas oportunidades, assentou o entendimento de que não cabe a expedição de ato regulamentar no tocante aos direitos de aplicabilidade imediata. Assim ADI 1.946 – DF, relator Ministro Sydnei Sanches. Publicado no DJ de 14.09.2001.

10. CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade das leis. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 233 recorda, ao tratar dos regulamentos expedidos pelo Chefe do Poder Executivo por meio de decreto – “art. 84, IV, da CF de 1988 (Art. 84 – Compete privativamente ao Presidente da República: IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;”) –, que “raramente comportam, também, impugnação por via de ação direta de inconstitucionalidade, já que via de regra envolve questão de ‘ilegalidade’, e não de ‘inconstitucionalidade’. Os regulamentos, todavia, que invadem matéria sob reserva absoluta do legislativo (‘reserva qualificada’), estes sim são impugnáveis, inclusive, pelo controle concentrado, visto envolverem, já, questão constitucional, e não meramente legal”.

11. CALAMANDREI, Piero. La illegittimitá costituzionale delle leggi nel processo civile. Padova: Dott. A Milani, 1950. p. 27 sustenta que, “como a lei é para o juiz que deve aplicá-la uma premissa vinculante de sua vontade jurisdicional, a norma constitucional é para o legislador que deve se inspirar nessa uma premissa vinculante de sua vontade normativa” (tradução livre).

12. Escrevi minha dissertação de Mestrado sobre este tema, a qual acabou sendo publicada. APPIO, Eduardo Fernando. A interpretação conforme à Constituição: instrumentos de tutela judicial dos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2002. Nessa dissertação, cheguei à conclusão de que seria lícito ao juiz da causa atuar, inclusive no primeiro grau, como um “legislador positivo”, atividade que não foi concebida originalmente por Hans Kelsen e que, muito embora seja formalmente rejeitada pelo Supremo Tribunal no Brasil, tem sido adotada na prática diária da Corte.

13. Sabe-se, nesse sentido, que a lei editada com efeitos concretos assemelha-se a um ato administrativo, o qual pode ser revisado pelo Poder Judiciário. Sobre o tema, a obra de CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquart. Discricionariedade administrativa no Estado Constitucional de Direito. Curitiba: Juruá, 2004.

14. Essas dificuldades são compartilhadas, por exemplo, por SCHÄFER, Gilberto. Ação civil pública e controle de constitucionalidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2002.

15. No Brasil, teremos o mesmo problema com a possibilidade de edição de súmulas vinculantes previstas na reforma do Poder Judiciário aprovada pela EC nº 45, de 08.12.2004.

16. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 3. ed. Traduzido por Mário Kury. Brasília: UnB, 1992.

17. GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no Direito e na Moral. Traduzido por Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004. p. 115.

18. Sobre o tema, ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Traduzido por Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 89 (tradução livre). Em outra importante passagem de sua obra (p. 86), o autor recorda, ao tratar das diferenças entre regras e princípios, que “o ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são ‘mandatos de otimização’, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das condições reais como das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado por princípios e regras opostos. Em sentido diverso, as regras são normas que somente podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então deve ser feito exatamente o que ela exige, nem mais, nem menos. Portanto, as regras contêm determinações no âmbito do fática e juridicamente possível. Isso significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa, e não de grau. Toda norma é ou bem uma regra ou um princípio”.

19. Sobre o tema, DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Traduzido por Nélson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

20. No controle incidental da constitucionalidade das leis, muitos juízes acabam aplicando diretamente um princípio constitucional, olvidando que a declaração de nulidade (inconstitucionalidade) da lei posterior implica a aplicação da lei anterior, tida como revogada.

21. Sobre o tema, SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., fev. 2014. Disponível em:
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REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS