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publicado em 28.02.2014
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O presente trabalho trata do problema do excesso de processos em tramitação no Poder Judiciário brasileiro, procurando enfocar o tema da demanda, isto é, das razões pelas quais há uma demanda excessiva no Brasil pelo Poder Judiciário, tema este que não tem sido enfrentado com muita frequência, já que a doutrina normalmente trata do tema sob o ponto de vista da oferta dos serviços judiciais. Assim é que as soluções mais comumente sugeridas para a solução do problema da lentidão do Poder Judiciário são o aumento do número de juízes, de servidores e de equipamentos e a diminuição do número de recursos no Código de Processo Civil. Nesse estudo, sugerem-se soluções para a redução do número de ações ajuizadas, cuidando-se mais especificamente de três pontos que, ao sentir da autora, contribuem significativamente para o grande número de ações em andamento no Poder Judiciário brasileiro: a inadequada interpretação dos institutos da assistência judiciária gratuita e do interesse de agir e a falta de estabilidade da jurisprudência brasileira. Palavras-chave: Assistência judiciária gratuita. Interesse de agir. Estabilidade da jurisprudência. Sumário: Introdução. 1 O acesso à Justiça e o Poder Judiciário. 2 A assistência judiciária gratuita. 3 O interesse de agir. 4 A importância da estabilidade da jurisprudência. Síntese conclusiva. Introdução Muito se tem falado, no Brasil, sobre a duração excessiva dos processos e a lentidão do Poder Judiciário, e diversas reformas já foram feitas no Código de Processo Civil, nos últimos anos, com o intuito de se alcançar maior celeridade. Tais reformas, porém, não têm surtido o efeito almejado. Daí o tema continuar atual em nosso país, tendo sido tratado no curso de Planejamento e Gestão no Poder Judiciário, principalmente pelos palestrantes Mônica Bonetti Couto, Vera Lúcia Feil Ponciano e Rodolfo de Camargo Mancuso. Em geral, as soluções propostas para se dar maior celeridade ao processo tratam da deficiência da estrutura judicial (poucos juízes, poucos servidores, informatização deficiente, entre outros), do grande número de recursos existentes no processo civil brasileiro e da necessidade de implementação pelo Poder Judiciário de métodos modernos de gestão, inclusive para a gestão de processos. Tem-se buscado a solução para o problema também nas ações coletivas e na sumarização dos procedimentos (vide Juizados Especiais). Embora tais discussões sejam todas relevantes, elas, por si sós, não parecem suficientes para resolver o problema. Quanto à estrutura do Poder Judiciário, aquela que seria necessária para que realmente se atingisse a duração razoável do processo, dado o grande número de processos em tramitação no Poder Judiciário brasileiro, seria por demais onerosa, sendo difícil imaginar que haveria recursos suficientes no orçamento para tal, não se podendo olvidar que há diversos problemas mais urgentes no Brasil, além de não ser desejável que os gastos orçamentários com o sistema judicial se agigantem demais, já que se trata de setor da economia que não produz riqueza nova. No que se refere aos recursos, tem havido diversas alterações das normas processuais para a redução de seu número, assim como para a redução do acesso às instâncias superiores do Poder Judiciário (por exemplo: institutos da relevância da questão constitucional e das súmulas vinculantes no Supremo Tribunal Federal) e para a otimização do serviço no que diz respeito aos recursos repetitivos, o que, conquanto relevante, não parece suficiente para a solução do problema, além de deixar de lado a questão das instâncias inferiores, onde se faz presente, da mesma forma, o problema da lentidão. A gestão do Poder Judiciário como um todo também tem sido melhorada, sobretudo desde a instalação do Conselho Nacional de Justiça, que tomou diversas medidas nessa área, sendo a mais conhecida a famosa Meta 02 de 2009, segundo a qual deveriam ser julgados todos os processos distribuídos até 31.12.2005 em todos os graus de jurisdição. Outra medida essencial nessa área de gestão, a qual talvez possa ser considerada a mais importante de todas, foi o surgimento do processo eletrônico, que praticamente acabou com o chamado “tempo morto” do processo (aquele tempo gasto com os serviços de cartório), solução essa que merece ser adotada em todas as esferas e instâncias do Poder Judiciário brasileiro. Do mesmo modo, as ações coletivas são instituto jurídico da maior relevância. No entanto, não são aptas a resolverem, por si sós, o problema, mesmo porque não basta apenas que o processo de conhecimento se desenvolva de forma coletiva. É preciso que a execução, igualmente, seja feita de modo coletivo, sob pena de o problema do grande número de processos continuar existindo. Eles somente deixam de ser processos de conhecimento e passam a ser processos de execução. Destarte, considerando-se que todas as estratégias adotadas até o momento não se revelaram suficientes para a diminuição significativa do número de processos em andamento e que muitas delas implicam uma redução da qualidade dos julgamentos (a exemplo do chamado julgamento “em série” de processos repetitivos, quase como se se estivesse em uma linha de produção), mais recentemente se passou a estudar o problema sob um outro ângulo: o da necessidade de redução do número de processos que chegam ao Poder Judiciário, já desde a sua 1ª instância. Note-se que essa é uma grande alteração da abordagem do problema, uma vez que, ao invés de se tratar da questão sob o prisma da oferta de serviços judiciais, passa-se a tratar do problema sob o prisma da demanda dos serviços judiciais. Vale dizer, ao invés de serem verificados meios apenas de se ampliar a oferta dos serviços judiciais e de se resolver o problema do grande estoque de processos atualmente existente, passa-se a verificar se a demanda não estaria exagerada, ou seja, se o acesso à Justiça não estaria sendo confundido com o acesso ao Judiciário, causando o estrangulamento deste. Nessa direção, têm-se estudado bastante os meios alternativos de resolução de conflitos (arbitragem, mediação, conciliação), questão que, em que pese se reconhecer sua grande importância, não se pretende abordar neste espaço, porque já há diversos estudos recentes sobre o tema na doutrina brasileira. No presente estudo se pretende cuidar de três pontos que não demandam necessariamente a alteração da legislação, mas apenas da jurisprudência, a saber: a assistência judiciária gratuita, o interesse de agir e a estabilidade da jurisprudência. Acredita-se que uma alteração da cultura jurídica predominante no Brasil sobre esses três temas poderia colaborar muito para a redução do número de ações que são ajuizadas diariamente em nosso país. É preciso deixar claro, porém, que essas três questões não são mais importantes do que todas as demais acima indicadas, mas podem, em conjunto com elas, promover uma alteração da cultura jurídica nacional, para que se deixe de ver o exercício do direito de ação como um exercício de cidadania e o acesso universal e sem barreiras ao Poder Judiciário como o único meio de acesso à Justiça. O trabalho foi desenvolvido de forma bastante simples, até porque não se trata de um estudo de fôlego sobre a matéria, mas apenas de uma modesta contribuição para o debate. Na primeira seção, procura-se demonstrar que há necessidade de uma alteração da postura do Poder Judiciário em relação ao tema do acesso à justiça e da sua função (do Poder Judiciário) no sistema. Nas seções seguintes, discorre-se sobre os três temas destacados. Na segunda seção, traz-se à discussão o instituto da assistência judiciária gratuita. Na terceira, cuida-se do interesse de agir. Na quarta, o estudo se volta para a importância da estabilização da jurisprudência no Brasil. 1 O acesso à justiça e o Poder Judiciário Segundo notícia constante do site do Conselho Nacional de Justiça no dia 15.10.2013, o relatório da pesquisa Justiça em números 2013, divulgado nesse mesmo dia, revela que o número de processos em trâmite no Judiciário brasileiro cresceu 10,6% nos últimos quatro anos e chegou a 92,2 milhões de ações em tramitação em 2012. Consta desse relatório, ainda, de acordo com a notícia, que o aumento no volume de processos ocorre apesar da melhoria da produtividade de magistrados e servidores e resulta, principalmente, do aumento de 8,4% no número de casos novos em 2012 e de 14,85 no quadriênio.(1) Há, ainda, notícia do dia 15.10.2013 no site do Superior Tribunal de Justiça de que, “Mesmo com aumento de 51% na produtividade, acúmulo de processos no STJ cresce o dobro do Judiciário”.(2) No site do Supremo Tribunal Federal, colhe-se a seguinte notícia, publicada no dia 09.10.2013: “Ministro alerta para ônus gerados por causas de pouca relevância no Supremo O ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou recurso que pretendia levar à apreciação da Corte matéria sobre indenização por danos morais e materiais em função da aquisição de um pacote de pães de queijo no valor de R$ 5,69. (...) (...) Na decisão, o ministro Teori Zavascki deixou registrado que a existência do instituto da repercussão geral ainda propicia caminhos processuais que permitem a chegada, ao STF, de casos como o presente – em que a recorrente alega ‘grande frustração’ pessoal por não ter podido consumir imediatamente alguns pães de queijo –, as quais claramente deveriam ter sido resolvidas em outras instâncias ou por mecanismos extrajudiciais. (...) (...) É preciso que haja também uma mudança de cultura, uma séria tomada de consciência, inclusive pelos representantes judiciais das partes – defensores públicos, advogados públicos e privados, Ministério Público –, de que a universalização de acesso ao STF, antes de garantir justiça, contribuirá ainda mais para a inviabilização do nosso sistema de justiça, sustentou o ministro.”(3) Essas notícias foram transcritas porque ilustram precisamente a ideia central desse estudo, a de que é imperativo que se altere a cultura jurídica nacional, distinguindo-se o acesso à Justiça do acesso ao Poder Judiciário, cabendo ao próprio Poder Judiciário usar os mecanismos que estão à sua disposição para acelerar essa necessária mudança de cultura, uma vez que ela dificilmente ocorrerá pela simples tomada de consciência dos operadores do Direito, sem um estímulo externo, e a instituição que está em melhor posição para criar esse estímulo é o Poder Judiciário, ao menos ao ver da autora, como justamente se procura demonstrar no presente estudo. Nessa mesma direção, Rodolfo de Camargo Mancuso, na obra Acesso à Justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas, procura mostrar que a crise numérica de processos que assola o Poder Judiciário não pode mais ser vista somente sob o prisma de seus efeitos. Faz-se necessário pesquisar a causa dessa crise, que ele vincula a diversos fatores: “Neste passo, pode-se tentar uma sistematização dos fatores que, operando como concausas, resultam no excesso de demanda por justiça estatal: (a) desinformação ou oferta insuficiente quanto a outros meios, ditos alternativos, de auto e heterocomposição de litígios, gerando uma cultura da sentença, na expressão de Kazuo Watanabe; (b) exacerbada juridicização da vida em sociedade, para o que contribui a pródiga positivação de novos direitos e garantias, individuais e coletivos, a partir do texto constitucional, projetando ao interno da coletividade uma expectativa (utópica) de pronto atendimento a todo e qualquer interesse contrariado ou insatisfeito; (c) ufanista e irrealista leitura do que se contém no inciso XXXV do art. 5º da CF/1988 – usualmente tomado como sede do acesso à Justiça –, enunciado que, embora se enderece ao legislador, foi sendo gradualmente superdimensionado (ao influxo de motes como ubiquidade da justiça, universalidade da jurisdição), praticamente implicando em converter o que deveria ser o direito de ação (específico e condicionado) em um prodigalizado dever de ação!; (d) crescimento desmesurado da estrutura judiciária – oferta de mais do mesmo sob a óptica quantitativa –, com a incessante criação de novos órgãos singulares e colegiados, e correspondentes recursos humanos e materiais, engendrando o atual gigantismo que, sobre exigir parcelas cada vez mais expressivas do orçamento público, induz a que esse aumento da oferta contribua para retroalimentar a demanda.”(4) Realmente, é preciso pensar em tratar da causa do número excessivo de processos em nosso país, procurando contestar a ideia amplamente difundida de que o ajuizamento de ação judicial constitui exercício de cidadania ou de que qualquer restrição ao direito de ação se configura como restrição ao acesso à Justiça, confundindo-se o acesso à Justiça com o acesso ao Poder Judiciário. Ainda seguindo com a lição de Rodolfo de Camargo Mancuso,(5) defende ele que as contraposições entre interesses sujeitam-se a uma certa escala para sua resolução, iniciando-se com a renúncia, que ocorre quando o titular da pretensão opta por não a exercer, em geral em função de uma análise custo-benefício, em que se conclui que o custo para exercer o direito é superior ao benefício que se espera dele. Em um segundo degrau tem-se a desistência, em que o titular da pretensão desenvolve certo esforço para alcançar seu direito, mas, não obtendo sucesso em curto prazo, opta por desistir dele, às vezes até por considerar que a demonstração de contrariedade já é suficiente naquele determinado caso. O próximo degrau é o da autocomposição, em que as partes, por conta própria, chegam a um acordo sobre o exercício do direito. Menciona o autor, ainda, a possibilidade de admissão isolada da causalidade do dano, seja em relação aos fatos, seja em relação à sua consequência jurídica. Em seguida se tem a heterocomposição não judicial, com a intervenção de um terceiro, que pode ser um mediador, um conciliador ou um juiz de paz. Finalmente, como última possibilidade, a ser adotada somente quando todas as demais tenham se revelado insuficientes e quando, em uma análise custo-benefício, se conclua que a pretensão é suficientemente valiosa para justificá-lo, tem-se o processo judicial. Essa é a sequência que deveria ser seguida para a resolução dos conflitos de interesse. No entanto, qualquer operador do Direito sabe que, no sistema brasileiro, o processo judicial se tornou o primeiro passo para a resolução de conflitos (quando deveria ser o último), com as consequências por todos conhecidas: um Poder Judiciário assoberbado de processos, aos quais não consegue atender adequadamente. Daí a urgente necessidade de se repensar o sistema como um todo, não sendo mais possível se ater ao combate das consequências desse sistema inoperante. 2 A assistência judiciária gratuita Um dos temas que se pretende abordar nesse trabalho, por se entender que ele está relacionado com o número abusivo de ações judiciais que ingressam todos os dias na 1ª instância do Poder Judiciário, é o da assistência judiciária gratuita. Conquanto a assistência judiciária gratuita seja essencial para possibilitar que aquelas pessoas que não têm condições de pagar as custas processuais tenham acesso ao Judiciário, ela não pode ser estendida àqueles que preferem “economizar” o valor das custas e que pretendem litigar sem ônus. Portanto, a assistência judiciária gratuita deve ser concedida aos reconhecidamente “pobres”, e não à classe média, como se dá atualmente. Quer-se crer que a posição excessivamente larga da jurisprudência quanto ao tema decorra da ideia arraigada no Direito brasileiro de que o acesso ao Poder Judiciário se confunde com o acesso à Justiça, o que, como procura demonstrar Rodolfo de Camargo Mancuso, não corresponde à verdade. O acesso à Justiça é muito mais amplo do que o simples acesso ao Poder Judiciário, que é somente um dos meios para o acesso à Justiça, devendo ser resguardado como o último meio para tal, sendo de serem privilegiados os demais meios de acesso à Justiça (os chamados meios alternativos). Ensina o autor: “Cuidar-se-ia, no limite, do fracasso do sucesso, oxímoro aparentemente impactante, que leva a refletir sobre a natureza e a finalidade da prestação judiciária estatal, a qual deve ser ofertada, mas não incentivada ou generalizada, sob o risco de a propalada ‘facilitação do acesso’ se degradar em um descabido e perigoso convite à litigância, que subverte a paz social, desserve a vera cidadania e engolfa o Judiciário em uma crise numérica de processos quase inadministrável.”(6) E prossegue o processualista, logo adiante: “É tempo de uma revisão, atualizada e contextualizada, do que hoje se deva entender por facilitação do acesso à Justiça, cabendo, para tanto, dar o devido peso à elevada contenciosidade que permeia a contemporânea sociedade de massa, em face da (sempre insuficiente) capacidade instalada do Judiciário para recepcionar o volume crescente de lides. No azo, caberia também fazer uma releitura do sentido da litigiosidade contida, em ordem a fixar critérios para identificação das demandas que, realmente, reclamam passagem judiciária, extremando-as daquelas que possam enquadrar-se em uma razoável faixa de tolerância que cumpre reconhecer como parâmetro de convivência em toda sociedade civilizada (de minimis non curat praetor) e, bem assim, daquelas pendências suscetíveis de encaminhamento a outros órgãos e instâncias capazes de resolvê-las com justiça, em tempo razoável, fora e além da estrutura judiciária estatal.”(7) É com esse novo norte em mente que se deve examinar a legislação que trata da assistência judiciária gratuita, a qual, na forma como tratada hoje pela jurisprudência brasileira, acaba tendo o condão de alargar em demasia o acesso ao Poder Judiciário, inclusive para aqueles que não vêm propriamente em defesa daquilo que consideram ser um direito seu, mas sim em busca da sorte no que se poderia chamar de “loteria judiciária”, o que é propiciado pelo direito de litigar sem ônus decorrente da assistência judiciária gratuita. Com efeito, os estudos da corrente chamada Law and Economics, que pesquisa as relações entre o Direito e a Economia, chamam a atenção para o fato de que é característica do comportamento humano a “ponderação entre custos e benefícios no momento de se tomar uma decisão, com vistas à obtenção dos maiores ganhos possíveis”,(8) comportamento esse que não é diferente nas relações processuais. Partindo desse pressuposto, Fabio Tenenblat alerta: “Contudo, pode-se dizer que percentual significativo da abusividade na utilização da via judicial no Brasil decorre da esperada racionalidade dos agentes econômicos, já que os custos suportados individualmente pelos litigantes são, na maioria das vezes, irrisórios ou, mesmo, inexistentes em decorrência da gratuidade processual. Por conseguinte, qualquer expectativa de ganho (chance de sucesso), por mínima que seja, faz com que um agente de comportamento racional opte pela propositura de uma ação judicial.”(9) É preciso, pois, garantir o acesso ao Poder Judiciário de forma gratuita para os realmente necessitados, porém sem possibilitar que essa gratuidade se transforme em um meio para se litigar sem ônus. Para tal, é necessário que os juízes verifiquem efetivamente as reais condições da parte, de modo a deferir o benefício da gratuidade somente para aqueles que devam ser considerados hipossuficientes. Isso é o que decorre do art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal de 1988: “Art. 5º (...) LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Note-se que a Constituição determina seja prestada assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, e é com base nessa norma que deve ser interpretada a Lei nº 1.060/50, que assim dispõe: “Art. 4º A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família. (Redação dada pela Lei nº 7.510, de 1986) § 1º Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais. (Redação dada pela Lei nº 7.510, de 1986) § 2º A impugnação do direito à assistência judiciária não suspende o curso do processo e será feita em autos apartados. (Redação dada pela Lei nº 7.510, de 1986) (...) Art. 5º O juiz, se não tiver fundadas razões para indeferir o pedido, deverá julgá-lo de plano, motivando ou não o deferimento dentro do prazo de setenta e duas horas. (...)” Como se vê, embora o caput do art. 4º determine que o benefício será concedido mediante simples afirmação no bojo da petição inicial de que não se está em condições de pagar as custas do processo, o seu parágrafo 1º diz que se presume pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, e o art. 5º faz referência à hipótese de o juiz ter fundadas razões para indeferir o pedido. Por conseguinte, uma interpretação sistemática dessas normas, sobretudo em se considerando o texto do art. 5º, LXXIV, da CF/88, leva à conclusão de que a afirmação no bojo da petição inicial de que a parte não tem condições de arcar com os custos do processo produz presunção relativa de necessidade, a qual se desfaz ante a existência de provas ou indícios em sentido contrário. Presentes estes, cabe ao juiz determinar a juntada de documentos aptos à comprovação da real necessidade da parte, interpretação essa que atualmente vem sendo adotada, majoritariamente, pelo Superior Tribunal de Justiça.(10) Mas, além de se verificar a efetiva existência de indícios em contrário nos autos, há que se estabelecer um parâmetro adequado para a consideração da existência de real necessidade do benefício da assistência judiciária gratuita, de forma a se evitar que esse benefício se transforme em meio de se litigar sem ônus, o que é extremamente prejudicial para qualquer sistema judicial, visto que instiga o ajuizamento de ações abusivas (aquelas ajuizadas sem maior cuidado quanto à plausibilidade jurídica do “direito” invocado ou quanto ao efetivo enquadramento do litigante na situação de fato à qual se aplica o direito invocado). Qual seria esse parâmetro? Considerando-se que as custas judiciais são tributo da espécie taxa, afigura-se evidente que o parâmetro há de ser encontrado no sistema tributário, uma vez que, a rigor, o que se está a perquirir é a capacidade contributiva da parte, no aspecto do chamado mínimo vital, que é o limite mínimo de renda, abaixo do qual se considera não haver capacidade contributiva, porquanto a renda seria toda consumida apenas para a sobrevivência. Nesse passo, impende observar que, em que pese a letra da lei (do art. 145, § 2º, CF/88) fazer referência expressa aos impostos, a doutrina tributária entende majoritariamente que o princípio da capacidade contributiva é aplicável a todas as espécies tributárias. Veja-se, a propósito, a lição de José Marcos Domingues de Oliveira, que justamente faz menção expressa às custas judiciais: “Malgrado a característica remuneratória das taxas, submetem-se elas, por ‘aplicação natural’, segundo VALDÉS COSTA, ao cânone da capacidade contributiva, em primeiro lugar, determinando ele a intributabilidade daqueles que, por incidência delas, estariam tendo o seu mínimo de existência digna comprometido (exemplo desta aplicação do princípio é a chamada justiça gratuita ut artigo 5º, LXXIV, da Constituição, que decorre da sua conjugação com os direitos de petição e de ação previstos nos incisos XXXIV e XXXV), entendendo-se como redistribuído pela comunidade mais favorecida economicamente a parcela não suportada pelos administrados mais modestos.”(11) Outrossim, o Supremo Tribunal Federal já entendeu que referido princípio seria aplicável às custas judiciais (tributo da espécie taxa), ao considerar constitucional o sistema de cobrança das custas judiciais sobre o valor da causa, o que implica a adoção do princípio da capacidade contributiva, e não só do parâmetro do custo do serviço (que não varia conforme o valor da causa), para as custas judiciais.(12) Assim, estabelecido que às custas judiciais é aplicável o princípio da capacidade contributiva, o que significa que elas somente devem ser cobradas quando esteja presente renda acima do mínimo vital, é preciso saber no que consistiria esse mínimo vital. Denomina-se mínimo vital o valor mínimo necessário para a sobrevivência do indivíduo e de sua família, que é considerado o limite mínimo para a tributação. Considera-se que não faz sentido exigir-se contribuição para a manutenção do Estado daqueles que não auferem renda suficiente sequer para garantir a sua manutenção e a de sua família. Daí se estabelecer que só será cobrado tributo daqueles que possuírem renda acima do mínimo vital. Põe-se, então, a questão de saber qual a faixa de renda a ser considerada como enquadrada no mínimo vital. No Brasil, existe na legislação um parâmetro para o mínimo vital, que corresponde ao limite de isenção da legislação do imposto de renda, atualmente fixado em R$ 1.710,78 (um mil, setecentos e dez reais e setenta e oito centavos). Quem aufere rendimentos superiores a esse valor mensal está sujeito ao pagamento de imposto de renda da pessoa física, por se considerar presente capacidade contributiva acima do mínimo vital, a justificar a tributação, não sendo demais lembrar que nunca foi declarada a inconstitucionalidade dessa norma. Se é assim, não se vê como se possa considerar que, para o efeito de tributação na espécie “taxa”, essa mesma pessoa não teria capacidade contributiva, valendo observar que as custas são pagas uma única vez em cada instância (a não ser que seja necessária a produção de prova pericial) e visam ao custeio de um serviço público específico e divisível, que está sendo efetivamente utilizado pelo cidadão, diversamente do que acontece com os impostos. Desse modo, se quem aufere renda acima do mínimo vital é chamado a contribuir para o custeio das despesas do Estado, com muito maior razão essa pessoa deve ser compelida a contribuir para uma despesa específica, de seu estrito interesse (que é no que consistem as custas judiciais), quando resolver ajuizar uma ação judicial. Essas considerações são de grande relevância, pois o que vem acontecendo é que as partes requerem o benefício da assistência judiciária gratuita não para deixarem de pagar as custas, e sim para litigarem sem ônus, já que a assistência judiciária gratuita no Brasil inclui a não sujeição da parte aos ônus da sucumbência. Isso, contudo, não pode ser admitido, sob pena de inviabilizar o funcionamento do Poder Judiciário, visto que, como parece evidente, as pessoas tendem a ajuizar ações em excesso (e sem maior cuidado com a plausibilidade jurídica do “direito” invocado), quando lhes é dado litigar sem custo e, sobretudo, sem ônus (sem risco). O que se tem aí é uma cômoda situação, em que a parte autora não tem ônus nenhum, sendo que, no máximo, irá “perder a demanda” (ou seja, sujeita-se apenas a deixar de ganhar). Ocorre que essa situação está gerando um número de demandas ao qual o Poder Judiciário não tem condições de responder, o que prejudica a qualidade do serviço prestado e sua credibilidade com a população. Por essa razão é que o conceito de “pobreza” deve ser aplicado nos estritos termos da lei, para possibilitar acesso ao Judiciário àquela parcela da população que realmente não tem condições de pagar as custas processuais, o que não é o caso da chamada classe média. Nesse diapasão, há que se repensar igualmente a proposta de inteira gratuidade dos Juizados Especiais, ainda que somente na 1ª instância. É que o fato de haver limite para o valor da causa nas ações de competência do Juizado não significa que as partes que lá postulam sejam todas carentes financeiramente, sendo que valem para os Juizados as mesmas razões que instigam o excesso de litigância na Justiça Comum. Os litigantes não farão um juízo de custo-benefício adequado se o serviço for oferecido de forma totalmente gratuita e sem a possibilidade de qualquer pagamento de honorários de sucumbência ao final, o que levará as pessoas a ajuizarem ações abusivas (no sentido já anteriormente esclarecido), assim como a pleitearem seus supostos direitos independentemente do valor financeiro envolvido e ainda que esse valor seja muito menor do que o custo do processo, custo esse que, ao fim e ao cabo, será suportado por esses mesmos litigantes (por meio do pagamento de tributos).(13) 3 O interesse de agir Outro instituto jurídico cuja natureza deve ser repensada pelo Poder Judiciário é o do interesse de agir, condição da ação representada, em síntese, pelo binômio necessidade/utilidade da tutela jurisdicional e cuja interpretação, excessivamente ampla, é de ser revista. Acerca desse tema, Rodolfo de Camargo Mancuso leciona: “Na perspectiva de uma revisão do conceito de acesso à justiça, caberia incluir nessa mesma pauta um repensar sobre o que hoje se deva entender como interesse de agir, já que, no contemporâneo ambiente de jurisdição compartilhada, torna-se plenamente sustentável a proposta de que aquela condição da ação deve consentir a exigência de prévio esgotamento de outros meios auto e heterocompositivos, como um prius à judicialização da demanda. Até porque, como é cediço, o interesse de agir tem entre seus elementos a necessidade da propositura da ação, e esse predicativo não se pode considerar atendido quando a controvérsia fora passível de resolução entre os próprios contraditores, ou com auxílio de algum agente facilitador.”(14) É preciso, realmente, repensar o interesse de agir, em primeiro lugar, levando-se a sério a exigência, em matéria de Direito Público (especialmente Direito Administrativo, Direito Previdenciário e Direito Tributário), de que tenha havido prévia manifestação da Administração Pública sobre o direito pleiteado em juízo, sem o que não se pode falar na existência de lide. Esse requisito, conquanto básico, é seguidamente desconsiderado sob o fundamento de que o réu, ente público, contestou o mérito da ação. Ora, diante do princípio processual da eventualidade, não se vê como o réu possa deixar de contestar o mérito da ação, sempre que isso seja possível e ainda que o faça em tese. É essencial que o Poder Judiciário não se deixe impressionar com esse fato ou com o argumento da “economia processual”, segundo o qual sempre que o autor venha a juízo é o caso de apreciar o mérito de seu pedido, para evitar que ele tenha de fazer o prévio requerimento administrativo e eventualmente voltar ao Poder Judiciário, no caso de o seu pedido vir a ser indeferido, posteriormente, pelo ente estatal. Esse tipo de raciocínio, que certamente serve muito bem para resolver o caso concreto, cria um problema para o sistema judicial, pois as partes, muitas vezes, preferem se dirigir diretamente ao Poder Judiciário, principalmente se puderem gozar do benefício da assistência judiciária gratuita, ao invés de dirigir o seu pedido previamente à Administração, o que acaba por transformar o Poder Judiciário quase que em uma repartição administrativa em algumas áreas, com graves consequências em relação ao incremento do número de processos em tramitação.(15) Mas, para além disso, é preciso que se passe (ou se volte) a considerar como inseridos no interesse processual a exigência do esgotamento da via administrativa e mesmo a necessidade de uma prévia utilização de outros meios de resolução da demanda, como a mediação, que vem sendo muito estimulada pelo Conselho Nacional de Justiça (vide Resolução CNJ nº 125/2010) e também pelo Superior Tribunal de Justiça, o qual, inclusive, entregou ao Senado recentemente propostas de estímulos à arbitragem e à mediação de conflitos.(16) Note-se que a Constituição não veda esse entendimento do que seja o interesse de agir, já que seu art. 5º, XXXV, somente dispõe que: “Art. 5º (...) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Dessa norma não se extrai que o acesso ao Poder Judiciário deva se dar como primeira opção, na forma como vem acontecendo atualmente. A lei não deve excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, mas nada impede que se considere presente a lesão ou a ameaça a direito apenas quando não seja possível garantir-se sua fruição por outras vias, sejam as instâncias administrativas, sejam as chamadas vias alternativas de resolução de conflitos, entre as quais se destacam a conciliação e a mediação. Nesse sentido, a recente ênfase que vem sendo dada pelo Conselho Nacional de Justiça à conciliação como forma de resolução de conflitos, consubstanciada na Resolução CNJ nº 125/2010, é um primeiro passo muito interessante, que merece ser ampliado, de modo a ser incorporado ao requisito do interesse processual, tornando-se o primeiro meio de resolução dos conflitos, reservando-se a ação judicial somente para os casos que efetivamente não possam ser tratados por meio da conciliação/mediação. Entretanto, para que essa medida funcione, é preciso cuidado para que a conciliação não seja transformada em mera etapa burocrática para se chegar à fase judicial, o que, dado o atuar econômico do ser humano, no sentido atribuído ao termo pela corrente Law and Economics,(17) deve ser feito por meio do desestímulo ao ajuizamento de ações judiciais, tornando-as suficientemente onerosas (mormente para a parte que perder a demanda) a ponto de não ser interessante recorrer ao Poder Judiciário, a não ser após realmente esgotados todos os demais meios para a solução do litígio e quando a lide seja suficientemente valiosa (seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista moral) a justificar a atuação (sempre bastante onerosa em termos de orçamento público) do Poder Judiciário. Esse ponto é muito importante. Não há como desconhecer que tanto a exigência de prévio esgotamento da via administrativa como a exigência de prévia utilização das vias alternativas de resolução de conflitos (como condicionantes do direito de agir) podem se tornar mecanismos meramente burocráticos. Vale dizer, pode acontecer que as partes, ao invés de verem esses mecanismos como um meio efetivo de resolução do conflito, vejam-nos como mera etapa burocrática a ser vencida para se chegar ao Poder Judiciário, o que certamente não ajudará a solucionar o problema do acúmulo de processos judiciais. Acredita-se, no entanto, que, para evitar que isso venha a acontecer, o acesso ao Poder Judiciário deva ser dificultado, concedendo-se o benefício da justiça gratuita apenas a quem realmente dela necessite, nos termos do raciocínio desenvolvido na seção anterior, e tornando mais gravosa a sucumbência, que, além do reembolso das custas e dos honorários de sucumbência, deve englobar também, de lege ferenda, multa de no mínimo 20% do valor da ação, sendo o caso, talvez, ainda, de os juros de mora serem superiores aos de mercado. Enfim, é preciso criar mecanismos para que as partes passem a cumprir voluntariamente suas obrigações, por ser essa atitude economicamente mais inteligente do que a de se utilizar do Poder Judiciário como política de gestão empresarial, como se vê acontecer atualmente com as pessoas jurídicas de direito público e com as grandes empresas. 4 A importância da estabilidade da jurisprudência Outro ponto de vital importância para a redução do número de processos em tramitação no Poder Judiciário é a necessidade de se ter uma jurisprudência estável, em que as decisões dos Tribunais superiores sejam alteradas somente em casos excepcionais, sendo, como regra, vinculantes para os membros do próprio Tribunal, assim como para as instâncias inferiores do Poder Judiciário. Além de essa postura atender ao princípio da isonomia, fazendo com que as ações iguais sejam decididas da mesma forma e com que sempre que um direito seja reconhecido pelo Poder Judiciário para uma pessoa, ele seja igualmente reconhecido para todas as demais pessoas em igual situação, ela ainda propiciaria a redução do número de processos em tramitação. Com efeito, se uma vez decidida uma matéria pelos Tribunais superiores, essa decisão fosse obrigatoriamente adotada por suas câmaras (ou turmas), assim como pelos Tribunais inferiores e pelos juízes de 1ª instância, as partes seriam desestimuladas de recorrer nos casos em que a jurisprudência do Tribunal lhes tivesse sido aplicada, porque saberiam que não haveria possibilidade de alteração do posicionamento da Corte sobre aquele determinado assunto. A médio prazo, as partes deixariam de ajuizar ações quando a jurisprudência não lhes fosse favorável e provavelmente passariam a cumprir voluntariamente suas obrigações quando a jurisprudência lhes fosse desfavorável.(18) Não é isso, porém, o que acontece atualmente no Brasil, em que a cada alteração da composição das turmas dos Tribunais a jurisprudência já firmada passa a ser revista, o que faz com que valha a pena para as partes recorrer das decisões, esperando que a jurisprudência seja revista no momento do julgamento de seu processo. Enfim, diante de uma jurisprudência desfavorável, as partes tentam a sorte, contando com uma alteração dessa jurisprudência até o dia de ser julgado o seu processo. A título de exemplo, veja-se o que acontece na Alemanha. Joachim Bornkamm, em palestra proferida no Curso de Direito Comparado Brasil-Alemanha realizado pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região em Recife no ano de 2010, mencionou que há apenas 40 advogados habilitados a advogar perante o Superior Tribunal de Justiça Cível alemão e que esses advogados muitas vezes aconselham a parte a não recorrer. Ora, isso só é possível em um sistema em que os “prejulgados” tenham força, ou seja, em que as Cortes superiores não revejam sua jurisprudência a cada alteração de sua composição. Perguntado sobre a força dos prejugaldos na Alemanha, outro palestrante, o Professor Doutor Rolf Stürner, disse que não há uma previsão legal sobre essa força, mas que essa não é uma questão importante na Alemanha, porquanto os Tribunais não desconsideram decisões anteriores, a não ser com fundamentos realmente relevantes, o que é muito excepcional, tanto que ele não saberia mencionar um exemplo de alteração da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça Cível na Alemanha.(19) Em uma situação como essa, poder-se-ia cobrar dos advogados que deixassem de interpor recursos sobre diversas matérias, inclusive com aplicação de multa para os que insistissem nessa conduta. Mas como cobrar dos advogados brasileiros esse tipo de conduta, sabendo-se que, qualquer que seja o entendimento da jurisprudência, sempre é possível sua alteração, bastando que seja alterada a composição da turma julgadora? Luiz Guilherme Marinoni, na obra Precedentes obrigatórios, trata da importância da estabilidade da jurisprudência como meio de se dar efetividade ao princípio da segurança jurídica. O autor começa demonstrando que os sistemas da common law e da civil law acabaram se aproximando. No primeiro, não se tem mais o Direito criado, apenas, pelos costumes e pelo Poder Judiciário, havendo um grande número de leis, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos. No segundo, de outro lado, já não se imagina mais que o juiz seja apenas a “boca da lei”. Sabe-se que as leis precisam ser interpretadas e que, nesse processo, o Poder Judiciário cria também o Direito. Sendo assim, da mesma forma que o sistema da common law passou a utilizar leis escritas, editadas pelo Poder Legislativo, o sistema da civil law precisa adotar o sistema de precedentes, de forma a se ter estabilidade e segurança jurídica nesse sistema, requisitos esses fundamentais para que se tenha realmente um Estado de Direito. Diz Marinoni que a falta de um sistema de precedentes no Brasil “se volta contra o próprio sistema, na medida em que estimula a propositura de ações, o aumento da litigiosidade, o acúmulo de trabalho e o aprofundamento da lentidão do Poder Judiciário”.(20) Mais adiante, o processualista prossegue afirmando que: “As decisões do Superior Tribunal de Justiça não são respeitadas nem no âmbito interno da Corte. As Turmas não guardam respeito pelas decisões das Seções e, o que é pior, entendem-se livres para decidir casos iguais de forma desigual. Resultado disso, como não poderia ser diferente, é o completo descaso dos juízes de primeiro grau de jurisdição e dos Tribunais Estaduais e Regionais Federais em relação às decisões tomadas pelo Superior Tribunal de Justiça.”(21) De fato, esse triste relato corresponde ao que se passa hoje no âmbito do Superior Tribunal de Justiça brasileiro,(22) Corte cuja função constitucional é a de uniformizar a interpretação da lei federal, função esta, contudo, que não vem sendo desempenhada a contento e que precisa urgentemente ser resgatada, dada sua essencialidade. A existência de decisões díspares sobre a mesma questão de direito fere profundamente os princípios da segurança jurídica e da isonomia, dois pilares do chamado Estado de Direito, sobre cuja importância se acredita não haver necessidade de discorrer. O princípio da segurança jurídica, em que pese não se tratar de princípio constitucional expresso, é reconhecido pela unanimidade da doutrina e da jurisprudência brasileiras como um dos pilares de nosso sistema constitucional, tanto que, na verdade, vem previsto em nossa Constituição, por exemplo, ao se proteger o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI, CF/88) ou no princípio da irretroatividade no Direito Penal (art. 5º, XXXIX e XL, CF/88) ou, ainda, nos princípios da irretroatividade e da anterioridade no Direito Tributário (art. 150, III, a, b e c, CF/88). Sem segurança jurídica não há ambiente adequado para os negócios e nem mesmo para a vida civil, que não pode ser organizada se não se sabe quais as regras aplicáveis às diversas relações jurídicas que se passam diariamente no âmbito civil. A doutrina tem reconhecido expressamente, também, que o princípio da segurança jurídica é aplicável não só ao Legislativo e ao Executivo, mas igualmente ao Judiciário. Do mesmo modo, o princípio da isonomia é um dos pilares dos Estados democráticos, sendo princípio expresso da Constituição brasileira, diversas vezes repetido (art. 5º, caput, I; art. 7º, XXX, XXXI, XXXII, XXXIV; art. 150, II, CF/88, entre outros) e incluído entre as cláusulas constitucionais pétreas (art. 60, § 4º, IV), insuscetíveis de reforma pelo Poder Constituinte derivado. O princípio da isonomia, conforme conceito de Rui Barbosa, amplamente divulgado pela doutrina nacional, não significa “tratar a todos igualmente”, mas sim “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”. Para se investigar quem são os iguais e quem são os desiguais, de forma a se dar aplicação concreta ao princípio, é interessante a teorização de Celso Antônio Bandeira de Mello, exposta em sua obra O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. Diz o autor que, para se pesquisar se uma determinada diferenciação é legítima, em primeiro lugar, há que se verificar qual o elemento tomado como fator de desigualação. A seguir, cabe investigar se há relação lógica entre esse fator e o tratamento jurídico estabelecido em função desse elemento. Finalmente, é preciso analisar se a relação lógica existente guarda consonância com os valores constitucionais. É possível sustentar que, diante de hipóteses fáticas iguais ou assemelhadas em todas as características essenciais, o Poder Judiciário possa proferir decisões diversas sem ofender esse princípio? A resposta a essa questão é bem evidente e demonstra o tamanho do problema gerado pela cultura jurídica brasileira, que insiste em não dar importância à estabilização da jurisprudência, apesar dos claros problemas que isso tem gerado para o sistema judiciário, já que as pessoas não conseguem entender (e nem deveriam) como é possível que uma pessoa veja seu direito negado pelo Poder Judiciário, enquanto seu vizinho (ou conhecido ou familiar) teve o mesmo direito reconhecido. Além disso, essa conduta “caótica” do Poder Judiciário leva a um ajuizamento exacerbado de ações, visto que os advogados não têm como orientar as partes sobre qual a norma concreta que o Judiciário irá aplicar a seu caso, o que, em geral, dependerá mais da sorte (ou do azar), uma vez que cada juiz e cada turma dos diversos tribunais brasileiros aplicará o direito como lhe parecer mais adequado na ocasião, sem qualquer compromisso com as suas próprias decisões anteriores nem com a jurisprudência dos tribunais,(23) justamente porque não há algo que se possa adequadamente chamar de “jurisprudência” no Direito brasileiro, no sentido de um conjunto estável de precedentes que será inexoravelmente aplicado ao caso pelos tribunais que estabeleceram esses precedentes. Em suma, além da necessidade de haver estabilidade da jurisprudência como meio de se trazer mais segurança jurídica ao Direito brasileiro e isonomia aos jurisdicionados, essa estabilidade, por si só, tenderá a diminuir muito o número de ações ajuizadas no Brasil, assim como o número de recursos interpostos pelas partes. Síntese conclusiva Essas breves linhas foram escritas tão somente com o intuito de se lançarem algumas ideias para o debate, mas sem nenhuma pretensão exauriente. São as seguintes as conclusões extraídas do presente estudo: 1. O problema do congestionamento do Poder Judiciário não pode mais ser visto apenas sob o prisma da oferta de serviços. É preciso passar a verificar as causas desse congestionamento, pesquisando as razões da excessiva demanda dos serviços judiciários que existe em nosso país. 2. Nesse prisma, um dos conceitos que precisa ser revisto é o de acesso ao Poder Judiciário, que não deve ser confundido com o acesso à Justiça. Da mesma forma, não se deve confundir o ajuizamento de ações com o exercício de cidadania. 3. Um dos temas que precisa ser melhor examinado pelo Poder Judiciário é o da assistência judiciária gratuita, a qual deve ser concedida tão somente aos reconhecidamente pobres e desde que essa condição esteja efetivamente comprovada nos autos, já que esse benefício, por isentar a parte também dos honorários de sucumbência, possibilitando que a parte litigue sem qualquer ônus, é grande estimulador do exagerado ajuizamento de ações, sem qualquer preocupação de verificação do respectivo custo-benefício ou da plausibilidade jurídica do “direito” invocado ou mesmo do efetivo enquadramento do litigante na situação de fato à qual se aplica o direito invocado. De lege ferenda, seria o caso de se revisar a gratuidade irrestrita atualmente em vigor para os Juizados Especiais. 4. Outro tema que tem o condão de influenciar o número de ações ajuizadas é o do interesse de agir. Há que se verificar a efetiva necessidade e utilidade da tutela jurisdicional pleiteada, examinando-se, na seara do Direito Público, se houve prévio requerimento administrativo, de modo a se poder realmente falar na existência de lide. A par disso, há duas condicionantes que se entende devam ser (re)introduzidas no exame do interesse de agir: o esgotamento da instância administrativa e a obrigatoriedade de utilização prévia da conciliação/mediação. De lege ferenda, essas medidas deveriam ser conjugadas com a criação de maior ônus à parte sucumbente no processo judicial (juros de mora mais gravosos, multa administrativa). 5. Tema igualmente essencial para a redução do número de ações ajuizadas é o da estabilidade da jurisprudência. A excessiva alteração da jurisprudência que se vê acontecer no Brasil, além de ferir os princípios da segurança jurídica e da isonomia, estimula o ajuizamento de ações e o recurso sempre até a 3ª ou a 4ª instâncias, que passam a ser transformadas em meras instâncias recursais. Por fim, é preciso frisar que não se imagina que a alteração da postura do Poder Judiciário quanto a essas três questões seja suficiente para resolver-se o problema do enorme número de processos atualmente em tramitação. Todavia, acredita-se que essas medidas, em conjunto com algumas medidas relativas ao processo de execução (que precisa impreterivelmente passar a ser mais efetivo) e à coibição do abuso do processo (praticado em larga medida pelas pessoas jurídicas de direito público e pelas grandes empresas, conduta que pode ser coibida com a instituição e a efetiva aplicação de multas gravosas), bem como com as demais medidas que já vêm sendo tomadas, relativas à gestão de processos (com destaque para o processo eletrônico), à gestão do próprio Poder Judiciário (com a utilização dos recursos financeiros de forma mais racional, o que vem sendo implementado pelo CNJ) e à diminuição do número de recursos e do acesso às instâncias especiais (STF, STJ, TST, TSE, STM), possam efetivamente, a médio prazo, possibilitar a redução do número de processos novos ajuizados a cada ano, com a consequente redução paulatina do estoque de processos, tornando-se concreto o direito previsto no artigo 5º, inciso LXXVII, da Constituição Federal, à razoável duração do processo. Referências bibliograficas ALTERNATIVAS ao Judiciário chegam ao Congresso. Jornal Brasil Econômico, São Paulo, 03 out. 2013, p. 9. Disponível em: <http://brasileconomico.ig.com.br/epaper/contents/paper13807593324.pdf>. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: RT, 1984. BORNKAMM, Joachim. Palestra proferida no Curso de Direito Comparado Brasil-Alemanha, realizado pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região em Recife no ano de 2010 (07 a 09.10.10). CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Número de processos em trâmite no Judiciário cresce 10% em quatro anos. Brasília, 15 out. 2013. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/ MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. São Paulo: RT, 2011. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed. São Paulo: RT, 2013. OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Capacidade contributiva: conteúdo e eficácia do princípio. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. STÜRNER, Rolf. Palestra proferida no Curso de Direito Comparado Brasil-Alemanha, realizado pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região em Recife no ano de 2010 (07 a 09.10.10). SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Mesmo com aumento de 51% na produtividade, acúmulo de processos no STJ cresce o dobro do Judiciário. Brasília, 15 out. 2013. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/ SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministro alerta para ônus gerados por causas de pouca relevância. Brasília, 09 out. 2013. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/ TENENBLAT. Limitar o acesso ao Poder Judiciário para ampliar o acesso à justiça. Revista CEJ, Brasília, a. XV, n. 52, jan./mar. 2011, p. 23-35. Notas 1. CNJ, notícia constante do site no dia 15.10.2013. Link indicado nas referências bibliográficas. 3. STF, notícia constante do site no dia 09.10.2013. Link indicado nas referências bibliográficas. Negritou-se. 10. Há, porém, decisões preocupantes do STJ que parecem atribuir peso excessivo à declaração da parte na petição inicial (a título de exemplo, vejam-se os seguintes arestos: AgRg nos EDcl no REsp1239626/RS, Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Recurso Especial 2011/0041820-9, 2ª T. STJ, DJe 28.10.2011; AgRg no REsp 1208487/AM, Agravo Regimental no Recurso Especial 2010/0150799-4, 1ª T. STJ, DJe 14.11.2011). 11. Aut. cit. Capacidade contributiva: conteúdo e eficácia do princípio. p. 95-96. Itálicos do texto, negritos nossos. 12. Ver ADIMC 1926-4/PE, TP, DJU de 10.09.99, p. 2; ADI 2040/PE, DJU de 25.02.00, p. 51; AgrAg nº 170.271/SP, 1ª T. STF, DJU de 01.12.95, p. 41.697. 13. Nesse sentido, é muito ilustrativo o exemplo citado na seção 1, da parte que ajuizou demanda para obter indenização relativa à aquisição de um pacote de pães de queijo no valor de R$ 5,69. 15. Isso aconteceu e ainda acontece, em grande medida, no que se refere às lides previdenciárias, em que o Poder Judiciário, atualmente, praticamente se confunde com o “balcão do INSS”, mormente desde a instalação dos Juizados Especiais Federais. 16. Conforme notícia do dia 03.10.2013 do jornal Brasil Econômico, p. 09. Link disponível nas referências bibliográficas. 17. Análise de custo-benefício em todos os atos humanos, inclusive no ajuizamento de ações, consoante exposto na seção 2. 18. É claro que para isso acontecer seria necessário que se tomassem também medidas para desestimular o abuso do processo e a litigância contumaz. 19. A pergunta, feita ao professor no mesmo curso referido no parágrafo anterior, dizia respeito à aplicação do princípio da segurança jurídica às alterações da jurisprudência sobre determinado assunto, matéria que o professor afirmou não ser objeto de discussão na Alemanha, uma vez que não costuma haver alterações da jurisprudência já firmada. |
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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