A divulgação nominal da remuneração dos servidores públicos à luz dos princípios constitucionais da publicidade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada: uma análise da Lei 12.527/2011 e da sua regulamentação pelo Decreto 7.724/11 e pela Resolução nº 151 do Conselho Nacional de Justiça

Autor: Roberto Adil Bozzetto

Juiz Federal Substituto, Especialista em Direito do Estado pela UniRitter

 publicado em 28.02.2014



Resumo

Por meio do presente estudo, pretende-se analisar a Lei 12.527/11, denominada Lei de Acesso à Informação, e a constitucionalidade da divulgação nominal, em sítios da Internet, da remuneração de servidores públicos, frente aos princípios da publicidade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Far-se-á um estudo do conflito entre os bens jurídicos tutelados e apresentar-se-á uma solução para o caso concreto à luz da Constituição Federal, bem como uma análise do atual entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.

Palavras-chave: Informação. Transparência. Remuneração. Servidores. Divulgação nominal. Privacidade. Vida privada.

Sumário: Introdução. 1 A Lei de Acesso à Informação e a publicação da remuneração dos servidores públicos. 2 Dos princípios constitucionais em colisão. 3 Da natureza dos princípios e do seu modo de aplicação. 4 Do conflito entre princípios e da interpretação constitucional. 5 Da compatibilidade da Lei 12.527/11 com os princípios constitucionais da publicidade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada. 6 Da regulamentação da Lei 12.527/11 e da determinação de publicação individualizada da remuneração dos servidores. 7 Da posição do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria. Conclusões. Referências bibliográficas.

Introdução

Com o advento da Lei 12.527/11, restou legalizado, em linhas gerais, o direito de acesso do cidadão às informações mantidas pela Administração Pública, remetendo aos entes federados o dever de criar legislação própria em atenção aos ditames da lei geral acima referida.

De todos os pontos tratados pela legislação federal, a divulgação dos dados referentes à remuneração dos servidores públicos é, sem dúvida, a questão que mais tem gerado repercussão na mídia e no Poder Judiciário. Para fins deste trabalho, utilizar-se-á somente a expressão servidores públicos para designar todos aqueles abrangidos pela nova lei.

A divulgação da remuneração dos servidores públicos alcançou o interesse maior da população e da mídia após a regulamentação da lei, no âmbito do Poder Executivo Federal, pelo Decreto 7.724, de 16 de maio de 2012, bem como, no âmbito do Poder Judiciário, pela Resolução nº 151 do Conselho Nacional de Justiça, que determinaram a identificação nominal das remunerações. Nesse estudo, analisar-se-ão somente as duas regulamentações em comento, haja vista que representativas da controvérsia.

Nessas condições, é imperioso que se faça uma análise da compatibilidade da publicação nominal/individualizada da remuneração dos servidores com os princípios constitucionais da publicidade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada.

1 A Lei de Acesso à Informação e a publicação da remuneração dos servidores públicos

Publicada em 18 de novembro de 2011, a Lei de Acesso à Informação veio regulamentar o inciso XXXIII do artigo 5º, o inciso II do parágrafo 3º do artigo 37 e o parágrafo 2º do artigo 216, todos da Constituição Federal de 1988.

Para melhor compreensão da matéria, transcrevo os dispositivos constitucionais citados:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;”

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(...)

§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente:

(...)

II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII;”

“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

(...)

§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.”

Desde já, ressalte-se que a própria Carta Magna determina a observância do contido no inciso X do seu artigo 5º, o qual explicita direito fundamental do cidadão, verbis:

“X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”

Como se verifica, com o advento da Lei de Acesso à Informação, a regra passou a ser a publicidade dos dados guardados pela Administração Pública. O sigilo, por sua vez, passou a ser exceção dentro do novo regime legal. A ideia básica que norteou toda a regulamentação da matéria reside no objetivo de permitir à sociedade brasileira conhecer o destino dos recursos oriundos dos tributos e, assim, possibilitar o controle do uso do dinheiro público.

A questão que mais tem gerado debates, no entanto, é a possibilidade de divulgação do salário dos servidores públicos.

Nesse sentido, dispôs a Lei 12.527/11:

“Art. 6º Cabe aos órgãos e entidades do poder público, observadas as normas e procedimentos específicos aplicáveis, assegurar a:

I – gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação;

II – proteção da informação, garantindo-se sua disponibilidade, autenticidade e integridade; e

III – proteção da informação sigilosa e da informação pessoal, observada a sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso.”

Consoante se depreende disso, a Lei não determina expressamente a divulgação nominal das informações atinentes à remuneração dos servidores, mas tão somente dos registros das despesas do órgão público, de forma genérica. No mesmo sentido, a disposição do artigo 8º, verbis:

“Art. 8º É dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas.

§ 1º Na divulgação das informações a que se refere o caput, deverão constar, no mínimo:

I – registro das competências e estrutura organizacional, endereços e telefones das respectivas unidades e horários de atendimento ao público;

II – registros de quaisquer repasses ou transferências de recursos financeiros;

III – registros das despesas;

IV – informações concernentes a procedimentos licitatórios, inclusive os respectivos editais e resultados, bem como a todos os contratos celebrados;

V – dados gerais para o acompanhamento de programas, ações, projetos e obras de órgãos e entidades; e

VI – respostas a perguntas mais frequentes da sociedade.

§ 2º Para cumprimento do disposto no caput, os órgãos e entidades públicas deverão utilizar todos os meios e instrumentos legítimos de que dispuserem, sendo obrigatória a divulgação em sítios oficiais da rede mundial de computadores (Internet).”

Depreende-se, pois, de forma cristalina, que não há previsão legal expressa determinando a publicação do nome e da remuneração do servidor, de forma individual. Ou seja, a lei silenciou quanto a este aspecto.

Outro fator de controvérsia reside na falta de delimitação objetiva a respeito da abrangência do conceito de “informação pessoal”, cuja divulgação é restringida pelo art. 6º, III, da Lei 12.527/11, supracitado.

Não obstante isso, fato é que os Poderes Executivo e Judiciário, administrativamente, regulamentaram a lei por meio do Decreto nº 7.724/2012 e da Resolução nº 151 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), respectivamente. É nessa regulamentação que se encontra, expressamente, a determinação de divulgação individualizada das remunerações.

Dispõe o Decreto 7.724/2012, verbis:

“Art. 3º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

(...)

V – informação pessoal – informação relacionada à pessoa natural identificada ou identificável, relativa à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem;

Art. 7º É dever dos órgãos e entidades promover, independentemente de requerimento, a divulgação em seus sítios na Internet de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas, observado o disposto nos arts. 7º e 8º da Lei nº 12.527, de 2011.

§ 1º Os órgãos e entidades deverão implementar em seus sítios na Internet seção específica para a divulgação das informações de que trata o caput.

(...)

§ 3º Deverão ser divulgadas, na seção específica de que trata o § 1º, informações sobre:

(...)

VI – remuneração e subsídio recebidos por ocupante de cargo, posto, graduação, função e emprego público, incluindo auxílios, ajudas de custo, jetons e quaisquer outras vantagens pecuniárias, bem como proventos de aposentadoria e pensões daqueles que estiverem na ativa, de maneira individualizada, conforme ato do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão;

(...)”

Por sua vez, a Resolução nº 151 do CNJ determinou, em seu artigo 1º, a alteração do inciso VI do artigo 3º da Resolução nº 102/2009, que em seu caput já determinava: “Sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, os órgãos referidos no caput do art. 1º publicarão, nos respectivos sítios eletrônicos na rede mundial de computadores, e encaminharão ao Conselho Nacional de Justiça”:

“Art. 1º O inciso VI do artigo 3º da Resolução nº 102, de 15 de dezembro de 2009, do Conselho Nacional de Justiça, passa a vigorar com a seguinte redação:

VI – as remunerações, diárias, indenizações e quaisquer outras verbas pagas aos membros da magistratura e aos servidores, a qualquer título, a colaboradores e a colaboradores eventuais, ou deles descontadas, com identificação nominal do beneficiário e da unidade na qual efetivamente presta os seus serviços, na forma do Anexo VIII.”

Em seu anexo, a Resolução nº 151 do CNJ também determina que na planilha de divulgação devam constar informações como “nome” e “lotação”.

Do teor do decreto e da resolução, depreende-se que a regulamentação da Lei 12.527/11, no âmbito dos Poderes Executivo e Judiciário, restringiu direito fundamental do cidadão/servidor público, tendo um alcance maior do que a própria lei permitiu, exorbitando, assim, do poder regulamentar.

No que tange aos limites do poder regulamentar, importante a lição de José dos Santos Carvalho Filho(1):

“O poder regulamentar é subjacente à lei e pressupõe a existência desta. É com esse enfoque que a Constituição autorizou o Chefe do Executivo a expedir decretos e regulamentos: viabilizar a efetiva execução das leis (art. 84, IV).

Por essa razão, ao poder regulamentar não cabe contrariar a lei (contra legem), pena de sofrer invalidação. Seu exercício somente pode dar-se secundum legem, ou seja, em conformidade com o conteúdo da lei e nos limites que esta impuser. Decore daí que não podem os atos formalizadores criar direitos e obrigações, porque tal é vedado em um dos postulados fundamentais que norteiam nosso sistema jurídico: ‘ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’ (art. 5º, II, CF).”

Enfim, a regulamentação da Lei 12.527/11 criou obrigações e restringiu direitos dos servidores públicos, ao arrepio da lei de regência, que, como já salientado, não impôs a divulgação nominal da remuneração, ao contrário, excetuou as informações pessoais da publicidade.

Não obstante isso, ainda que se entendesse que o decreto não inovou no mundo jurídico, bem como que a lei permitisse a divulgação nominal da remuneração, ainda assim, a respectiva legislação não passaria pelo crivo da Lei Maior, porquanto salta aos olhos a intransponível colisão entre dois princípios constitucionais, quais sejam, o da publicidade/transparência (artigo 37 da CF/88) e o da intimidade/vida privada (artigo 5º, X, da CF/88), colisão que, obviamente, deve ser solucionada mediante interpretação que preserve o núcleo essencial dos bens jurídicos tutelados, como se verá adiante.

2 Dos princípios constitucionais em colisão

A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 5º, inciso X, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Acerca do conceito de intimidade e vida privada, importante transcrever o escólio de Alexandre de Moraes(2):

“Os direitos à intimidade e à própria imagem formam a proteção constitucional à vida privada, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas. A proteção constitucional refere-se, inclusive, à necessária proteção à própria imagem diante dos meios de comunicação em massa (televisão, rádio, jornais, revistas etc.).

Os conceitos constitucionais de intimidade e vida privada apresentam grande interligação, podendo, porém, ser diferenciados por meio da menor amplitude do primeiro, que se encontra no âmbito de incidência do segundo. Assim, o conceito de intimidade relaciona-se às relações de trato íntimo da pessoa humana, suas relações familiares e de amizade, enquanto o conceito de vida privada envolve todos os relacionamentos da pessoa, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo etc.”

Já Uadi Lammêgo Bulos refere(3):

“É grande a ligação entre a intimidade e a vida privada. Mesmo o constituinte tendo apartado uma expressão da outra, não há como dissociar o direito à intimidade do direito à privacidade. Intimidade e privacidade são sinônimos e devem ser considerados valores humanos supremos, conexos ao direito de ficar tranquilo, em paz, de estar só. O que se busca tutelar são o segredo e a liberdade da vida privada.”

Por outro lado, o artigo 37 da Constituição Federal elenca como um dos princípios regentes da Administração Pública o da publicidade. Trata-se de princípio que vigora para todos os setores da atividade administrativa.

Odete Medauar, citando Celso Lafer, observa que,(4)

“‘em uma democracia, a visibilidade e a publicidade do poder são ingredientes básicos, visto que permitem um importante mecanismo de controle ex parte populi da conduta dos governantes... Em uma democracia, a publicidade é a regra básica do poder, e o segredo, a exceção, o que significa que é extremamente limitado o espaço dos segredos de Estado’ (A ruptura totalitária e a reconstrução dos direitos humanos, 1988, p. 243-244).”

Entretanto, a publicidade contém ressalvas. Uma delas encontra-se na preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, declaradas invioláveis pela Constituição no inciso X do artigo 5º, hipóteses nas quais o sigilo predomina sobre a publicidade.

De pronto, verifica-se que a publicidade dos atos da administração encontra seus limites, entre outros aspectos, no direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada do cidadão/servidor.

Acerca da origem do conflito, bem salienta Alexandre de Moraes,(5) verbis:

“O conflito entre direitos e bens constitucionalmente protegidos resulta do fato de a Constituição proteger certos bens jurídicos (saúde pública, segurança, liberdade de imprensa, integridade territorial, defesa nacional, família, idosos, índios etc.), que podem vir a envolver-se em uma relação de conflito ou colisão.”

Saliente-se que não há direito absoluto à luz da Constituição Federal, razão pela qual nem a publicidade, nem a intimidade e a vida privada estão imunes a restrições. Ambos comportam exceções. Mas essas, é bom que se diga, jamais podem suprimir totalmente o bem jurídico tutelado.

3 Da natureza dos princípios e do seu modo de aplicação

Inicialmente, faz-se necessária uma breve digressão sobre as lições de Dworkin e Alexy a respeito da natureza dos princípios e do seu modo de aplicação.

Dworkin ressalta serem os princípios um conjunto de padrões que não são regras.(6) Trata-se de “um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”.(7)

Os princípios não determinam de modo absoluto a decisão, mas contêm fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios.(8) Daí decorre a afirmação de que os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm, qual seja, a dimensão de peso ou importância,(9) que se demonstra nas hipóteses de colisão entre princípios, ocasião na qual prevalecerá o princípio com peso relativo maior ao outro, sem que isso importe na perda de sua validade.

Diversamente da diferenciação proposta por Dworkin, para Robert Alexy, os princípios, assim como as regras, também são normas, porquanto ambos se formulam com a ajuda de expressões deônticas fundamentais, como mandamento, permissão e proibição.(10) Trata-se de espécie de norma jurídica por meio da qual são estabelecidos deveres de otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas.(11)

Para Alexy, os princípios são “mandamentos de otimização”, mas, sobretudo, normas, normas de otimização, cuja característica principal é a de poderem ser cumpridas em distinto grau e em relação às quais a medida imposta de execução não depende apenas de possibilidades fáticas, senão também de possibilidades jurídicas.(12)

Feita essa pequena digressão, passa-se à análise acerca da solução para o conflito entre princípios, cerne da discussão referente à divulgação nominal da remuneração dos servidores públicos.

4 Do conflito entre princípios e a interpretação constitucional

Em determinadas circunstâncias concretas, quando dois ou mais princípios entram em rota de colisão, um cede ao outro, preponderando aquele que tiver mais peso. Mas isso não importa dizer que aquele que prepondera em um caso prevalecerá em outro, haja vista que o caso concreto pode determinar solução contrária. Somente a aplicação dos princípios diante dos casos concretos é que os concretiza mediante regras de colisão.(13)

Ou seja, é na interpretação da Constituição no caso concreto que se encontrará a melhor solução jurídica.

Para tanto, Canotilho, citado por Moraes, enumera diversos princípios e regras interpretativas das normas constitucionais, a saber:

“– da unidade da Constituição: a interpretação constitucional deve ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas;

do efeito integrador: na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deverá ser dada maior primazia aos critérios favorecedores da integração política e social, bem como ao reforço da unidade política;

da máxima efetividade ou da eficiência: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda;

da justeza ou da conformidade funcional: os órgãos encarregados da interpretação da norma constitucional não poderão chegar a uma posição que subverta, altere ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido pelo legislador constituinte originário;

da concordância prática ou da harmonização: exige-se a coordenação e a combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros;

da força normativa da Constituição: entre as interpretações possíveis, deve ser adotada aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais.”

Ainda, Jorge Miranda, citado por Moraes, complementa esses princípios interpretativos com algumas regras(14):

“– a contradição dos princípios deve ser superada, ou por meio da redução proporcional do âmbito do alcance de cada um deles, ou, em alguns casos, mediante a preferência ou a prioridade de certos princípios;

– deve ser fixada a premissa de que todas as normas constitucionais desempenham uma função útil no ordenamento, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade;

– os preceitos constitucionais deverão ser interpretados tanto explicitamente quanto implicitamente, a fim de colher-se seu verdadeiro significado.”

Por fim, Konrad Hesse leciona(15):

“A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). (...) A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes em uma determinada situação.”

Estabelecidas essas premissas, passa-se a analisar a adequação ao texto constitucional da Lei 12.527/11 e dos seus regulamentos. Para tanto, far-se-á uma divisão por tópicos de análise, a fim de facilitar a compreensão.

5 Da compatibilidade da Lei 12.527/11 com os princípios constitucionais da publicidade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada

Desde já, estabelecida a premissa de que a remuneração do servidor consubstancia informação pessoal, verifica-se que a Lei de Acesso à Informação, como dito alhures, não contém previsão expressa de publicação da remuneração dos servidores nominalmente identificados, mas somente dos registros das despesas do órgão público, de forma genérica, conforme se verifica do artigo 8º, III.

Pelo contrário, a lei dispõe expressamente acerca do trato das informações pessoais dos servidores, consoante se verifica do artigo 31 e seus parágrafos, senão vejamos:

“Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais.

§ 1º As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem:

I – terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e

II – poderão ter autorizada sua divulgação ou seu acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem.

(...)

§ 4º A restrição de acesso à informação relativa à vida privada, à honra e à imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância.”

Outro não é o sentido do artigo 6º, III, que dispõe que cabe às entidades do poder público assegurar a proteção da informação sigilosa e da informação pessoal, observadas a sua disponibilidade, a sua autenticidade, a sua integridade e eventual restrição ao seu acesso.

Destarte, pelo menos em dois dispositivos a novel legislação assegurou a proteção à informação de caráter pessoal, em estrito cumprimento do inciso X do art. 5º da CF/88. Em que pese no inciso III do art. 6º da lei citada ocorrer uma nítida diferenciação entre informação sigilosa e informação pessoal, a demonstrar que a informação pessoal, por si só, não é sigilosa, ainda assim, restou protegida a informação, bem como eventual restrição de acesso.

Nessas condições, da leitura da Lei de Acesso à Informação, é possível constatar que ela logrou êxito em harmonizar dois princípios constitucionais, o da publicidade e o da vida privada, mantendo o núcleo essencial de ambos.

Mesma sorte, entretanto, não teve a regulamentação da legislação, como se passa a analisar.

6 Da regulamentação da Lei 12.527/11 e da determinação de individualização da remuneração dos servidores

Já vimos que a lei geral não disciplina expressamente a obrigatoriedade de se publicar a remuneração do servidor de forma nominal, bem como que harmonizou os bens jurídicos publicidade e vida privada.

Entretanto, regulamentando a matéria, o Decreto 7.724/12 e a Resolução nº 151 do CNJ determinaram a identificação nominal do beneficiário, conforme artigos já citados alhures.

Como se depreende disso, tanto o decreto quanto a resolução exorbitaram do poder regulamentar que lhes é ínsito ao ir além do que previu a lei ordinária.

Em que pese o conflito possa se resolver somente no campo da legalidade, haja vista que o regulamento extrapola o que autoriza a lei, é de se ter em conta a controvérsia entre ser ou não a informação referente à remuneração do servidor considerada informação pessoal. Entendendo-se que não, haveria compatibilidade entre o regulamento e a lei, passando a solução da questão jurídica para o campo constitucional, razão pela qual se passa a abordar também esse aspecto.

De pronto, questiona-se: a divulgação nominal da remuneração dos servidores, em atenção ao princípio da publicidade, é compatível, igualmente, com a proteção à intimidade e à vida privada?

Como já afirmado acima, há dois bens jurídicos constitucionalmente protegidos que se encontram em conflito, publicidade e intimidade/vida privada. Nem se fale quanto à segurança, haja vista que a disparidade de remunerações poderia levar a diferentes conclusões sobre esse aspecto. Há, ainda, outros princípios que também poderiam ser atingidos, como sigilo fiscal e bancário, igualmente assegurados constitucionalmente.

Pois bem, da maneira como a lei foi regulamentada no âmbito dos Poderes Executivo e Judiciário, o bem jurídico intimidade/“vida privada”, no que se refere aos servidores públicos, foi sacrificado.

O sigilo bancário restou fragilizado, haja vista que qualquer pessoa pode ter acesso ao valor depositado mensalmente na conta do servidor nominalmente identificado, podendo, inclusive, saber o dia de depósito. O sigilo fiscal, igualmente. Apenas exemplificativamente, suponha-se um servidor recém- ingressado no serviço público e que não tenha bens móveis ou imóveis. Basta a qualquer pessoa somar os valores obtidos mensalmente pelo servidor para se saber como é a sua declaração de bens e rendimentos. É o próprio fim do sigilo fiscal para essa parcela da população. Não tardará o dia em que empresas especializadas já oferecerão ao servidor, de antemão, a sua declaração de imposto de renda preenchida com base nos dados públicos disponíveis.

Nesse sentido, o escólio de João Gaspar Martins(16):

“Ademais disso, a remuneração ou o subsídio dos servidores são depositados em contas correntes no sistema financeiro, e a exibição dos respectivos contracheques implicaria, por um movimento de dedução lógica, em uma violação prévia e indireta do sigilo bancário, igualmente protegido pelo art. 5º, inc. XII, da Constituição Federal.

E se, por hipótese nada improvável, o servidor tiver como única fonte de renda os recursos recebidos da Administração Pública, sua divulgação implicaria também em uma violação, apriorística, de seu sigilo fiscal. Essas informações serão as mesmas que abastecerão a declaração de imposto de renda, ficando, então, acobertadas pelo sigilo fiscal, espécie do gênero dados pessoais (CF, art. 5º, XII) e espécie de direito à privacidade (CF, art. 5º, X).”

Ora, será que, para a concretização do acesso à informação, é preciso que se identifique nominalmente o beneficiário? A publicidade não poderia ser alcançada respeitando-se, igualmente, a vida privada do servidor, que, saliente-se, também é cidadão como outro qualquer?

A solução, como visto acima, é a harmonização dos princípios, por meio da redução proporcional de cada um deles, de forma a se manter a função útil de cada um, adotando-se uma interpretação que garanta maior eficácia e aplicabilidade de cada norma constitucional.

No caso em estudo, a publicidade restaria alcançada por meio da publicação dos salários com a identificação por matrícula do servidor, ou, ainda, pelo cargo ocupado. Assim, preserva-se também a vida privada do beneficiário, não expondo seu nome. Trata-se de solução que prestigia o princípio da harmonização dos princípios e preserva, via de consequência, a unidade da Constituição.

É preciso que se respeite a Carta Maior, mesmo que para tanto seja necessário contrariar forças políticas, interesses de ocasião, ou mesmo a própria opinião pública. Como salientava Konrad Hesse(17):

“Todos os interesses momentâneos – ainda quando realizados – não logram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado respeito à Constituição, sobretudo naquelas situações em que sua observância revela-se incômoda. Como anotado por Walter Burckardt, aquilo que é identificado como vontade da Constituição ‘deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefícios, ou até a algumas vantagens justas. Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático’. Aquele que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifício, ‘malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas, e que não mais será recuperado’.”

A identificação nominal, como se vê, ultrapassa a finalidade da norma, que é dar publicidade aos gastos do governo e à forma como este rege a sua política de recursos humanos. Afinal, publicidade não é sinônimo de curiosidade. Sua função é permitir a fiscalização da Administração Pública pela sociedade. Tudo aquilo que for além disso ultrapassa o caráter informativo, invade a esfera privada do servidor, desrespeita a Constituição, faz tábula rasa do princípio da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e não prestigia o princípio da unidade da Constituição.

Ressalte-se que o fato de o servidor compor carreira mantida por recursos públicos não lhe retira o direito fundamental a ter uma vida privada, bem como a sua intimidade. É verdade, igualmente, que possui restrições em face do caráter público do serviço que presta, mas isso não significa que seus direitos fundamentais, enquanto cidadão, sejam totalmente tolhidos. Por mais que pareça óbvio, é preciso frisar que servidor público também é cidadão. As informações sobre sua remuneração, de maneira individualizada e nominalmente identificada, antes de cumprirem um papel informativo à população, traduzem um verdadeiro reality show.

Nesse ponto, por pertinente, trago à colação matéria publicada no jornal Zero Hora pelo jornalista David Coimbra, que, com felicidade ímpar, abordou a curiosidade ínsita à população brasileira na divulgação dos salários de seus servidores públicos. Verbis:

"O salário público dos servidores

Os servidores públicos, em geral, não são recepcionistas que ganham 24 mil por mês. Em geral, os servidores públicos recebem salários compatíveis com seus cargos ou menos do que isso, como a maioria da população brasileira. E, como a maioria da população brasileira, os servidores públicos levam seus filhos à escola, empurram carrinho no supermercado, compram remédio na farmácia, conversam com o vizinho e se irritam no trânsito. Os servidores públicos são idênticos à maioria da população brasileira, mas, com a lei que pretende divulgar-lhes os nomes e os salários, levarão uma vida diferente de todos, levarão uma vida igual ao seu trabalho: pública. Posso imaginar uma roda de mulheres em um bar passando de mão macia para mão macia a lista dos salários de seus amigos, e quiçá pretendentes, que trabalham no serviço público.

– Prefiro sair com este, que ganha R$ 928,52 a mais do que esse outro.

– Olha aqui esse chinelão: me convidou para beber um vinho na casa dele, mas só ganha R$ 950. Vai ver é vinho de garrafão.

Ou quem sabe a faxineira de um servidor, discutindo com ele:

– O senhor pode me dar mais 20 por faxina: o seu salário é R$ 3.269,88.

Ou o vizinho na reunião de condomínio:

– Uma vez que o seu salário é de R$ 10.974, você pode aumentar a contribuição mensal, já que nós ganhamos muito menos.

A relação de nomes e salários também será muito útil para operadoras de telemarketing, vendedores e eventuais golpistas, mas ninguém se beneficiará mais do que os sequestradores que abundam debaixo dos semáforos das cidades. Eles poderão estabelecer com minúcias de centavos quanto pedir de resgate por algum familiar de um servidor público. Muito prático.

Eu aqui, eu já precisei de inúmeros servidores públicos, ao longo da vida: sempre estudei em escola pública e, como qualquer cidadão, já tive de me socorrer da saúde pública, da Justiça, da polícia, dos bombeiros, de diversos prestadores de serviço. Pois quando esses funcionários estavam me atendendo, se porventura pensasse no salário deles, sabe do que eu gostaria? Que eles fossem muito bem remunerados. Que aquele professor, que aquele médico, que aquele escrevente, que aquele delegado, que aquele juiz, que aquele brigadiano ganhasse muito bem, que estivesse satisfeito com seu trabalho, a fim de me prestar assistência de qualidade, a melhor assistência possível.

A divulgação dos salários vinculados aos nomes dos funcionários talvez diminua distorções como a da recepcionista que ganha R$ 24 mil por mês. Mas talvez também afaste os bons do serviço público. Porque, se é verdade que o que é caro não é necessariamente bom, também é verdade que o bom vale mais. O serviço público, por atender a toda a população, tem de ser composto pelos melhores, e os melhores têm de ser bem remunerados. Com merecimento, sim. Com transparência, claro que sim. Não com constrangimento.” (texto publicado no jornal Zero Hora em 13.07.2012)

A matéria acima bem demonstra as situações de constrangimento que podem advir da publicação nominal da remuneração dos servidores, em total afronta à mínima proteção à intimidade e à vida privada.

Como bem leciona Romeu Felipe Bacellar Filho, se o servidor, cujo papel se reconhece relevantíssimo, representa o Estado, é curial dispensar-lhe tratamento condigno que possa assegurar-lhe, minimamente, a necessária tranquilidade no desempenho de seus elevados misteres.(18)

Ademais, eventuais excessos ou discrepâncias nas remunerações podem perfeitamente ser coibidos mediante o pedido de acesso a informações, detalhado nos artigos 10 a 14 da Lei 12.527/11.

7 Da posição do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria

Desde o advento da Lei 12.527/11, inúmeras ações judiciais têm questionado a publicação, em sítios da Internet, da remuneração individualizada dos servidores públicos, ou seja, com a identificação nominal do beneficiário e o valor total recebido.

A Justiça Federal, principalmente, tem recepcionado inúmeras ações judiciais em face do Decreto 7.724/12, bem como em razão da Resolução 151 do CNJ.

A jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais, em apertada síntese, é divergente quanto à possibilidade de divulgação nominal da remuneração, ora permitindo, ora proibindo. Cita-se, como exemplo, duas decisões do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, representativas da divergência que tem se instalado, in verbis:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. DIVULGAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES RELATIVAS À REMUNERAÇÃO DE SERVIDORES PÚBLICOS, NOMINALMENTE IDENTIFICADOS. LEI 12.527/2011. Ainda que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Suspensão de Segurança 3.902 (Rel. Min. Ayres Brito), ocorrido em 09.06.2001, se tenha pronunciado pela constitucionalidade da divulgação da remuneração dos servidores públicos de forma individualizada, nominalmente identificados, supervenientemente foi editada a Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, a Lei de Acesso à Informação, firmando regulamentação sobre a matéria mais protetiva à privacidade dos servidores do que aquela sustentada na decisão do STF. Com efeito, a lei prevê disciplina específica para o trato das informações pessoais dos servidores, que se deve dar com respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais, inclusive tipificando e sancionando a divulgação indevida dessas informações pessoais e prevendo a responsabilização do ente público pelos danos daí decorrentes. Portanto, em sede de antecipação de tutela, considerando-se a possibilidade de eventuais danos à privacidade dos servidores e, sob o prisma da União, eventual dever de indenizá-los, impõe-se a vedação da disponibilização da remuneração dos servidores, nominalmente identificados, na página oficial do órgão público na Internet, até o julgamento da demanda. Até porque o entendimento do STF quanto à questão constitucional não está consolidado, haja vista a decisão proferida no ARE 652777 RG, em 29.09.2011 (acórdão publicado em 12.04.2012), posteriormente ao julgamento da mencionada Suspensão de Segurança, quando os Ministros decidiram reconhecer a repercussão geral da questão, mas não reafirmar a jurisprudência dominante sobre a matéria, que deverá ser reapreciada pelo Plenário. Agravo desprovido.” (TRF4, AG 5013290-28.2012.404.0000, Quarta Turma, Relator p/ Acórdão Candido Alfredo Silva Leal Junior, D.E. 07.03.2013)

EMENTA: ADMINISTRATIVO. LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO (Nº 12.527/2011). DISPONIBILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS DE AGENTES PÚBLICOS. REMUNERAÇÃO. VINCULAÇÃO NOMINAL EM SÍTIO ELETRÔNICO. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA. NÃO RECONHECIMENTO DE VIOLAÇÃO À PRIVACIDADE, À INTIMIDADE E À SEGURANÇA DE SERVIDOR PÚBLICO. Provimento da apelação da União Federal e da remessa oficial.” (TRF4, APELREEX 5041368-72.2012.404.7100, Terceira Turma, Relator p/ Acórdão Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, D.E. 21.02.2013)

Como se verifica acima, há entendimentos diversos acerca da matéria.

Por sua vez, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a matéria recebeu os primeiros contornos no julgamento da Suspensão de Segurança nº 3.902, manejada pelo Município de São Paulo/SP contra decisões liminares do Tribunal de Justiça paulista que suspenderam o ato de divulgação nominal da remuneração bruta mensal de cada servidor municipal em sítio eletrônico na Internet, denominado “De olho nas contas”, de domínio da municipalidade.

Naquela oportunidade, o Pretório Excelso manifestou-se pela possibilidade da divulgação nominal da remuneração dos servidores daquele município, não reconhecendo violação aos princípios da privacidade, da intimidade e da segurança do servidor, em acórdão que restou assim ementado, verbis:

“EMENTA: SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. ACÓRDÃOS QUE IMPEDIAM A DIVULGAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES FUNCIONAIS DE SERVIDORES PÚBLICOS, INCLUSIVE A RESPECTIVA REMUNERAÇÃO. DEFERIMENTO DA MEDIDA DE SUSPENSÃO PELO PRESIDENTE DO STF. AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO APARENTE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS. DIREITO À INFORMAÇÃO DE ATOS ESTATAIS, NELES EMBUTIDA A FOLHA DE PAGAMENTO DE ÓRGÃOS E ENTIDADES PÚBLICAS. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA. NÃO RECONHECIMENTO DE VIOLAÇÃO À PRIVACIDADE, À INTIMIDADE E À SEGURANÇA DE SERVIDOR PÚBLICO. AGRAVOS DESPROVIDOS. 1. Caso em que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição. Sua remuneração bruta, cargos e funções por eles titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse coletivo ou geral, expondo-se, portanto, a divulgação oficial, sem que a sua intimidade, a sua vida privada e a sua segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do art. 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado, nem a do conjunto da sociedade. 2. Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmo; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo ‘nessa qualidade’ (§ 6º do art. 37). Quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. 3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte, é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado – o ‘como’ se administra a coisa pública a preponderar sobre o ‘quem’ administra, falaria Norberto Bobbio –, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República, o olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana. 4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública. 5. Agravos Regimentais desprovidos.”

A decisão do Egrégio Supremo Tribunal Federal foi proferida pelo plenário em 09 de junho de 2011, ou seja, anteriormente à Lei 12.527/11, que data de novembro daquele ano.

Não obstante o fato de aquela decisão ser anterior ao advento da nova lei de transparência, o STF tem reformado decisões de tribunais inferiores para fins de manter a divulgação nominal das remunerações, utilizando como parâmetro aquela decisão supracitada, bem como fundamentando que o próprio STF, em sessão administrativa ocorrida em 22.05.2012, por unanimidade, decidiu divulgar, de forma ativa e irrestrita, os subsídios dos ministros e a remuneração dos servidores do quadro de pessoal do STF.

Entretanto, a matéria deverá ganhar novos contornos pela Corte Suprema, haja vista que os ministros decidiram reconhecer a repercussão geral da controvérsia em face de múltiplos recursos extraordinários, ocasião em que decidiu o colegiado não reafirmar a jurisprudência dominante sobre a matéria, a qual deverá receber novo exame, desta feita, sob a égide da nova Lei Geral de Acesso à Informação.

Nesse sentido, confira-se a ementa do julgado em questão:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. DIVULGAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES ALUSIVAS A SERVIDORES PÚBLICOS. CONFLITO APARENTE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS. DIREITO À INFORMAÇÃO DE ATOS ESTATAIS. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA. PRIVACIDADE, INTIMIDADE E SEGURANÇA DE SERVIDORES PÚBLICOS. Possui repercussão geral a questão constitucional atinente à divulgação, em sítio eletrônico oficial, de informações alusivas a servidores públicos. O Tribunal reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, mas, no mérito, não reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria, que será submetida a posterior julgamento.” (ARE 652777 RG, Relator(a): Min. Ayres Britto, julgado em 29.09.2011, acórdão eletrônico DJe-071 divulg 11.04.2012 public 12.04.2012) [destaque nosso]

Com a devida vênia do atual entendimento do Egrégio Supremo Tribunal Federal acerca da matéria, é preciso ressaltar, novamente, que a nova Lei de Acesso à Informação não determina a publicação individualizada da remuneração dos servidores, inclusive protegendo a informação de caráter pessoal, em atenção ao contido no inciso X do artigo 5º da Constituição Federal. Qualquer interpretação da lei acerca desse aspecto não pode descuidar do fato de que as normas que restringem direitos interpretam-se, sempre, de forma restritiva, jamais ampliativa. Eventual interpretação do artigo 3º, V, do Decreto 7.724, por exemplo, deveria ser no sentido de divulgar a informação pessoal de indivíduo identificável, e não identificado. Assim, a divulgação da matrícula do servidor no lugar de seu nome prestigiará os ditames da melhor interpretação sistemática do Direito.

Oxalá o Supremo Tribunal Federal reencontre o caminho da unidade da Constituição, prestigiando o princípio da concordância prática (harmonização) dos princípios, restabelecendo o núcleo essencial do direito fundamental à intimidade e à vida privada, restabelecendo, assim, o mínimo de privacidade àqueles que se dedicam diariamente à prestação do serviço público à sociedade brasileira.

Conclusões

– A Lei 12.527/11, denominada Lei de Acesso à Informação, disciplinou o acesso às informações da Administração Pública ao regulamentar o inciso XXXIII do artigo 5º, o inciso II do parágrafo 3º do artigo 37 e o parágrafo 2º do artigo 216, todos da Constituição Federal de 1988. Trata-se, ainda, de norma geral federal a ser seguida pelos demais entes federados;

– Com o advento da novel legislação, a regra passou a ser a publicidade dos dados guardados pela Administração Pública; o sigilo, por sua vez, passou a ser exceção;

– A lei não determina expressamente a divulgação nominal das informações atinentes à remuneração dos servidores, mas tão somente dos registros das despesas do órgão público, de forma genérica;

– O Decreto nº 7.724/2012 e a Resolução nº 151 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao regulamentarem a Lei 12.527/11, impuseram, administrativamente, a determinação de divulgação individualizada das remunerações dos servidores públicos, criando obrigações e restringindo direitos dos servidores públicos, ao arrepio da lei de regência e dos limites do poder regulamentar;

– No âmbito constitucional, a divulgação da remuneração dos servidores encontra limites no direito fundamental à inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Nem a publicidade, nem a intimidade e a vida privada são direitos absolutos. Ambos comportam exceções, desde que não seja suprimido o bem jurídico tutelado;

– O conflito entre dois princípios constitucionais resolve-se diante do caso concreto, com a harmonização dos bens jurídicos em conflito, de forma a garantir a maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais;

– A Lei 12.527/11, no artigo 31 e seus parágrafos, bem como no artigo 6º, III, dispõe expressamente sobre a proteção às informações pessoais, razão pela qual é possível constatar que ela logrou êxito em respeitar dois princípios constitucionais, o da publicidade e o da vida privada, mantendo o núcleo essencial de ambos;

– A publicidade restaria alcançada em sua plena finalidade por meio da publicação dos salários com a identificação por matrícula do servidor, ou, ainda, pelo cargo ocupado. Assim, preserva-se também a intimidade e a vida privada do beneficiário, não expondo seu nome;

– A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em que pese venha reformando decisões que impedem a divulgação nominal das remunerações, baseia-se em decisões anteriores à nova Lei de Acesso à Informação e não foi reafirmada pelo colegiado em decisão que reconheceu a repercussão geral acerca da matéria, devendo a Suprema Corte pronunciar-se novamente sobre o mérito.

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Notas

1. Manual de Direito Administrativo. 15. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2006. p. 46.

2. MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 224.

3. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 6. ed. rev. atual. e ampl. até a EC 45/2004. São Paulo: Saraiva, 2005.

4. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 149.

5. Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 43.

6. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 36.

7. Op. cit. p. 36.

8. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 28.

9. DWORKIN, Ronald. Op. cit. p. 42.

10. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 249.

11. ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 28.

12. Assim, por todos: BONAVIDES, Paulo. Op. cit. p. 250.

13. ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 29.

14. Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 44-5.

15. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1991. p. 21-2.

16. Aspectos jurídicos sobre a divulgação de dados remuneratórios de servidores públicos e a nova Lei de Acesso à Informação. Jus Navigandi, Teresina, a. 17, n. 3281, 25 jun. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22095>.

17. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1991. p. 21-2.

18. Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. 2. ed., rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., fev. 2014. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS