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publicado em 30.04.2014
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Este artigo analisa e identifica garantia fundamental ao direito fundamental à saúde decorrente do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Oriental do Uruguai para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios, promulgado por meio do Decreto nº 5.105, de 14.06.2004, e do seu Ajuste Complementar para Prestação de Serviços de Saúde, promulgado por meio do Decreto nº 7.239, de 26.07.2010. Palavras-chave: Saúde. Direito fundamental. Garantia fundamental. Acordo. Direito internacional. Dignidade da pessoa humana. Proteção à vida. Sumário: Introdução. 1 Apontamentos sobre a proteção à saúde como direito fundamental. 2 Sobre as garantias fundamentais. 3 O Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Oriental do Uruguai para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios. 4 O ajuste complementar ao acordo. 5 A garantia fundamental introduzida pelo acordo e por seu ajuste complementar. 5.1 A recorrente deficiência do atendimento pelo SUS na região. 5.2 A judicialização da questão. 5.3 A garantia fundamental caracterizada. Conclusão. Introdução O presente trabalho analisa e identifica garantia fundamental ao direito fundamental à proteção da saúde da população brasileira da região da fronteira com o Uruguai, decorrente do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Oriental do Uruguai para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios, promulgado por meio do Decreto nº 5.105, de 14.06.2004, e do seu Ajuste Complementar para Prestação de Serviços de Saúde, promulgado por meio do Decreto nº 7.239, de 26.07.2010, este último tratando especificamente sobre prestação de serviços de proteção à saúde humana na faixa territorial da fronteira entre os dois países delimitada pelas localidades vinculadas, conforme terminologia adotada nesses diplomas. A primeira seção procura caracterizar a relevância, em nosso sistema, do direito fundamental à proteção da saúde consagrado em diversos dispositivos constitucionais, assim como as formas de salvaguarda dos direitos fundamentais mediante exercício de direito de defesa frente ao Estado e exigência de proteção jurídica a ser prestada pelo Estado. A segunda seção trata das garantias fundamentais e das suas espécies, notadamente as chamadas garantias judiciais, com seus diversos instrumentos de efetivação, anotando que inexiste um rol exaustivo de garantias e é ampla a possibilidade de implementação de garantias fundamentais em decorrência de tratados internacionais firmados pelo Brasil, por força de disposição constitucional. A terceira seção aborda o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Oriental do Uruguai para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios, firmado em 2004, o qual estabelece direito ao cidadão fronteiriço, brasileiro e uruguaio, de residir, estudar e trabalhar na respectiva localidade fronteiriça vinculada, nos termos estabelecidos no pacto. Trata também do efeito desse acordo sobre as profissões disciplinadas por lei específica e regidas pelos conselhos profissionais. A quarta seção aborda o Ajuste Complementar ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios para Prestação de Serviços de Saúde, internado em julho de 2010, que trouxe profunda inovação em nosso sistema jurídico ao permitir que estrangeiro uruguaio fronteiriço, devidamente habilitado para o exercício de sua profissão em seu país, possa prestar serviços de proteção à saúde humana no Brasil, em circunstâncias delimitadas no pacto. A quinta seção procura caracterizar a recorrente problemática na região da fronteira com o Uruguai da negativa de atendimento aos hospitais da região e ao SUS por médicos brasileiros. Aponta que a solução geralmente vislumbrada pelos hospitais da região tem sido, pela proximidade e oferta de serviços, a contratação de médicos uruguaios para atuação em território brasileiro, acarretando conflito com o Conselho Regional de Medicina – Cremers, laborando em oposição àquela solução alvitrada. Aborda a intensa judicialização da questão, apontando a solução jurídica até então apresentada. Discorre sobre a garantia fundamental ao direito de proteção à saúde decorrente do acordo e do seu ajuste complementar. Por fim, a conclusão sintetiza em tópicos as principais inferências da análise realizada. 1 Apontamentos sobre a proteção à saúde como direito fundamental Em nosso sistema jurídico, a proteção de lastro mínimo à saúde constitui importante direito fundamental consagrado indiretamente no art. 1º, III (dignidade da pessoa humana), e no caput do art. 5º (direito à vida) e diretamente nos artigos 6º e 196 da Constituição Federal. Quanto à inexorável relação entre o direito à saúde e a dignidade da pessoa humana e o direito à vida, esclarecedor o apontamento de Tavares (2008, p. 16-17): “A Constituição expressamente apresenta, em seu pórtico, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) como um dos fundamentos do Estado brasileiro. Também o caput do art. 170 fala em ‘existência digna’, no contexto da ordem econômica brasileira, reafirmando a responsabilidade do Estado quanto a esse elemento. Nesse sentido, o avanço é evidente. (...) Certamente se trata de um dos preceitos constitucionais mais ‘autoevidentes’ e, concomitantemente, mais difíceis de serem definidos com precisão, para fins de incidência da proteção constitucional. Apesar da dificuldade, a Justiça Constitucional brasileira tem se conduzido pela aplicação direta desse princípio, comumente conjugando-o (consubstancialidade) com outros direitos proclamados constitucionalmente. Assim ocorreu com o caso do direito à saúde, invariavelmente relacionado, pelas decisões, ao direito à vida e à dignidade da pessoa.” Efetivamente, não há como sustentar um piso vital mínimo e um piso de dignidade mínima ao cidadão sem que lhe seja garantido, como condição prévia, também um lastro de sanidade mínimo, uma condição de saúde minimamente indispensável à sobrevivência digna. Nos termos do art. 196 da Constituição Federal, o provimento da saúde pública é direito de todos e dever do Estado, cabendo tal responsabilidade concomitantemente às esferas federal, estadual e municipal, verbis: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” No sentido do entendimento que compartilhamos a respeito do artigo 196, Mendonça (2008, p. 697) comenta que “O texto do artigo supra, pela primeira vez na história constitucional brasileira, eleva a saúde à condição de direito fundamental do ser humano. Muito embora no passado a União tivesse competência constitucional para ‘legislar sobre a defesa e a proteção da saúde’, tal dispositivo era visto como ações de combate a endemias e epidemias, e não como um direito inalienável do ser humano. Sob a ótica da Constituição atual, a saúde é bem inalienável, inegociável, irredutível, à disposição e de propriedade universal da sociedade brasileira. Cada cidadão tem o direito de exigir do Estado a prestação das políticas sociais destinadas à redução do risco de doença, bem como os serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde. É assim que o acesso aos programas de saúde pública deve seguir os princípios da universalidade, da igualdade e da gratuidade do atendimento. Cabe ao Estado, como provedor constitucional obrigatório dos serviços de saúde, garantir as políticas indispensáveis para a redução das doenças e dos acidentes de diferentes gêneros, que comprometem o nível qualitativo da saúde de todos os residentes em território brasileiro. Além das medidas preventivas, cabe também a ele prover todas as medidas de recuperação da saúde, por meio de assistência médico-hospitalar de qualidade.” Observamos também que, se, por um lado, os direitos fundamentais têm como uma de suas características a constatação, a possibilidade de proclamação ou o reconhecimento independentemente de uma situação subjetiva configuradora de uma relação jurídica, bastando-lhe uma posição subjetiva no âmbito de uma situação objetiva que lhe caracterize, por outro, é certo que toda lesão ou ameaça de lesão a direito – seja ou não direito fundamental – resulta inexoravelmente na configuração de uma relação jurídica subjetiva nos moldes tradicionais. Isso resta bem demonstrado no enfrentamento, na prática, na realidade social, de casos de lesões a direitos fundamentais, nos quais o fenômeno se apresenta com certa clareza. Ou seja, não obstante o direito fundamental ter como uma de suas características a desnecessidade, para sua invocação, de uma situação subjetiva, sua lesão ou ameaça de lesão em um caso concreto não escapa à configuração do fenômeno da clássica relação jurídica, assim entendida a regulação de situação de fato intersubjetiva pelo direito posto, afirmando um direito subjetivo em prol de um sujeito de direito, em contraposição a um dever jurídico de outro sujeito, em face de um objeto. No caso do direito fundamental à saúde, ainda que em situação excepcional na seara dos direitos fundamentais, sua matriz constitucional já traz a rotulação de uma relação jurídica subjetiva no próprio artigo 196 da Constituição, cuja dicção bem caracteriza que o direito de todos à saúde, expresso nesse dispositivo constitucional, é direito subjetivo da população e de todo e qualquer cidadão, em contraposição ao dever jurídico do Estado de atendê-lo ao menos razoavelmente, em face do objeto prestação de serviço de proteção à saúde humana. Casos há, também, e não raras vezes, em que a lesão ou ameaça de lesão ao direito fundamental à saúde provém de pessoas ou entidades privadas, como na situação de negligência ou mau atendimento por hospital privado, ou negativa de atendimento a serviço do SUS por médico profissional liberal sem que haja, na oportunidade e no local, alternativa viável para a prestação do serviço de outro modo ou por outro meio. Em tais casos, a situação de ilegitimidade extrapola a esfera privada do hospital ou do médico, por afetar o direito fundamental de proteção à saúde do cidadão e da população, gerando situação excepcional em face da indispensabilidade de imediato desenlace em socorro do mínimo existencial da população carente no que tange aos serviços de proteção e recuperação da saúde dos cidadãos, notadamente em situações de emergência. Nessas situações, é necessário invocar a tese da eficácia horizontal do direito fundamental, ou de sua multifuncionalidade, para que se façam viáveis duas formas de insurgência para assegurar o direito fundamental, podendo tanto ser oponível diretamente ao Estado para que cesse a lesão ou ameaça de lesão por ele causada (direito de defesa frente ao Estado) como podendo também ser oponível ao Estado para que ele, o Estado, proteja juridicamente o titular do direito fundamental de lesão ou ameaça de lesão advinda de outro cidadão ou pessoa jurídica privada (direito a proteção jurídica prestada pelo Estado). Neste último caso (direito a proteção jurídica prestada pelo Estado), caberá ao Estado prover uma solução jurídica que (1º) obrigue o terceiro de natureza privada (pessoa natural ou jurídica) a recompor a lesão ou a cessar a ameaça de lesão ao direito fundamental de outrem que tenha sido indevidamente afetado, ou que (2º) proveja, independentemente de qualquer providência frente àquele terceiro, solução alternativa – ainda que de cunho administrativo – que gere efeito análogo restaurador da lesão ou da ameaça de lesão ao direito fundamental à saúde em termos de proteção e recuperação da saúde dos cidadãos em situações de emergência. Em síntese, o Estado, por si mesmo, ou por meio de terceiros privados por ele obrigados, é responsável pela proteção ou restauração de direito fundamental à saúde lesado ou ameaçado de lesão. 2 Sobre as garantias fundamentais Ao tratar do conceito e da diferenciação entre direitos fundamentais e garantias fundamentais, Schäfer (2001, p. 24 a 25) sintetiza que “utiliza-se a expressão garantias de direitos fundamentais para significar os mecanismos jurídicos que dão estabilidade ao ordenamento constitucional e estabelecem preceitos para a integridade de seu valor normativo”. Citando Jorge Miranda, Schäfer acrescenta que “Clássica e bem atual é a ‘contraposição dos direitos fundamentais, pela sua estrutura, pela sua natureza e pela sua função, em direitos propriamente ditos ou direitos e liberdades, por um lado, e garantias, por outro lado. Os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias, acessórias e, muitas delas, adjectivas (ainda que possam ser objeto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projectam pelo nexo que possuem com os direitos; na concepção jusnacionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se’.” Prossegue esse autor referindo que “O texto constitucional, pretendendo manter sua força normativa, estabelece institutos jurídicos cujos objetivos centram-se na proteção de seu núcleo essencial, meios por meio dos quais é possível tornar eficazes concretamente os direitos declarados em seu corpo, ou, ainda, proteção contra ataques à manutenção dos preceitos fundamentais. A esses instrumentos jurídicos é que se reserva a expressão ‘garantias dos direitos fundamentais’: de um lado, a declaração dos direitos; de outro lado, a estes ligados indissociavelmente, os mecanismos de sua proteção.” Corrente é a classificação das garantias dos direitos fundamentais nas espécies (1) garantias de rigidez constitucional, (2) garantias judiciais, (3) garantias de eficácia, (4) garantia da divisão dos poderes e (5) garantia da superioridade da Constituição. Ao discorrer sobre as garantias dos direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, tratando especificamente das garantias judiciais, Schäfer (2001, p. 50 a 54) arrola nesse elenco, além da garantia de acesso ao Poder Judiciário estabelecida no inciso XXXV do artigo 5º, as ações constitucionais do habeas corpus, do mandado de segurança, do mandado de segurança coletivo, do mandado de injunção e do habeas data, a ação popular e a ação civil pública. As ações constitucionais citadas efetivamente são usuais e eficientes instrumentos processuais de garantias de direitos fundamentais, e têm por característica o fato de possuírem matriz na própria Constituição, expressamente no rol dos direitos e garantias fundamentais (Título II), à exceção da ação civil pública, que não tem apontamento expresso na Carta, mas cujo acatamento como tal é entendimento consagrado em nosso sistema. Partindo da matriz constitucional, essas ações têm sua disciplina minudenciada em normas infraconstitucionais. Todavia, nem as garantias fundamentais judiciais se esgotam nesse rol (acesso ao Judiciário, habeas corpus, mandado de segurança individual ou coletivo, mandado de injunção, habeas data, ação popular e ação civil pública), nem as garantias fundamentais genericamente consideradas esgotam-se naquelas espécies da classificação acima referida (garantias de rigidez constitucional, garantias judiciais, garantias de eficácia, garantia da divisão dos poderes e garantia da superioridade da Constituição). Isso porque há outras variantes de garantias previstas no § 2º do artigo 5º da Constituição, que estabelece que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Ou seja, segundo esse texto, o rol das garantias fundamentais comporta, como tal, outras medidas assecuratórias de direitos fundamentais que venham a ser estabelecidas em tratados internacionais firmados pelo Brasil, ou que decorram dos princípios e do regime adotados pela Constituição. Essa regra constitucional (§ 2º do artigo 5º) é bastante ampla e abre possibilidades inúmeras para outras garantias fundamentais aos direitos fundamentais, que podem ser tanto de natureza judicial como administrativa. Basta que uma medida, ou uma providência, ou um instituto novo constante de um tratado (em sentido amplo, incluindo acordos e protocolos) tenha o condão de assegurar, com exclusividade ou não, o cumprimento de direito fundamental ou a reparação de lesão ou de ameaça de lesão a um direito fundamental para que ingresse no rol das garantias fundamentais. O único requisito é que tenha a aptidão de assegurar, com exclusividade ou não, o cumprimento de um direito fundamental, ou de reparar sua lesão ou ameaça de lesão. Ou seja, a medida tem que conter eficácia(1) para realizar, ou recompor, ou afastar risco de lesão ao direito fundamental. O critério de qualificação de uma medida – judicial ou administrativa – como garantia fundamental é tão somente a constatação, na realidade social, dessa aptidão. Nada mais exige a Constituição. Por isso é insuficiente, em nosso Direito Constitucional, qualquer classificação fechada ou arrolamento exaustivo de garantias fundamentais. O acordo firmado entre o Brasil e o Uruguai versando sobre direitos de residência, estudo e trabalho, incrementado com seu ajuste complementar versando sobre prestação de serviços de proteção à saúde humana, a seguir analisados, contém importante garantia fundamental ao direito fundamental à saúde dos cidadãos brasileiros residentes na região da fronteira com aquele país. 3 O Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Oriental do Uruguai para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios Em 2004, entrou em vigor no Brasil o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Oriental do Uruguai para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios, internado no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 907/2003 e promulgado por meio do Decreto nº 5.105/2004. Esse acordo criou direito ao cidadão fronteiriço, brasileiro e uruguaio, de residir, estudar e trabalhar na respectiva localidade alienígena fronteiriça vinculada, nos limites das localidades vinculadas listadas no anexo do diploma binacional, quais sejam: 1. Chuí, Santa Vitória do Palmar/Balneário do Hermenegildo e Barra do Chuí (Brasil) a Chuy, 18 de Julio, Barra de Chuy e La Coronilla (Uruguai); 2. Jaguarão (Brasil) a Rio Branco (Uruguai); 3. Aceguá (Brasil) a Aceguá (Uruguai); 4. Santana do Livramento (Brasil) a Rivera (Uruguai); 5. Quaraí (Brasil) a Artigas (Uruguai); 6. Barra do Quaraí (Brasil) a Bella Unión (Uruguai). Para usufruir as prerrogativas decorrentes do acordo, o cidadão de qualquer das localidades vinculadas, brasileira ou uruguaia, deverá obter o documento especial de fronteiriço previsto no artigo II. Para uruguaios usufruírem as prerrogativas no Brasil, o documento é emitido pela Polícia Federal brasileira, e, para brasileiros usufruírem as prerrogativas no Uruguai, o documento é emitido pela Direção Nacional de Migrações, órgão do Ministério do Interior uruguaio. Os requisitos estão elencados no artigo III, e o prazo inicial de validade do documento é de 5 anos, após o que poderá ser concedido por prazo indeterminado. Esse acordo criou, portanto, a figura jurídica do cidadão fronteiriço, brasileiro e uruguaio, que poderá residir, estudar e trabalhar na localidade vinculada alienígena em que lhe foi concedido o documento especial de fronteiriço. No entanto, mesmo sob a égide desse acordo, mas antes de seu ajuste complementar sobre serviços de saúde, o direito de exercer profissão (trabalhar) na localidade vinculada alienígena não alcançou, no Brasil, as profissões cujo exercício é regulamentado por lei específica, como no caso da medicina, porque em tais casos (de profissões regulamentadas em lei) o exercício profissional rege-se por lei especial que não resta derrogada pela norma de cunho geral, como o acordo, que, devidamente internado em nosso sistema, alcança nível de lei ordinária, de alcance geral, e, no caso, é direcionado a todas as profissões indistintamente. Assim, mesmo após a entrada em vigor desse acordo, em 2004, para o exercício de profissões regulamentadas em lei, com controle por conselho de fiscalização profissional, o cidadão com formação profissional no exterior, fosse ele estrangeiro ou brasileiro, continuou tendo primeiramente que revalidar o diploma em universidade brasileira, nos termos preconizados no artigo 48 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996), para, após, obter a pertinente inscrição no conselho profissional correspondente. Somente após esse trâmite estava habilitado legalmente a exercer sua profissão no Brasil. Essa é a regra em nosso sistema jurídico, a qual não foi alterada pelo referido acordo de 2004, que, por ser recepcionado pelo sistema brasileiro como norma jurídica de alcance geral de mesmo nível hierárquico da lei ordinária, não se sobrepõe à norma especial que é a lei ordinária que regula cada uma das tantas profissões regulamentadas no Brasil, assim como não se sobrepõe à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996). 4 O ajuste complementar ao acordo Todavia, essa situação jurídica se modificou substancialmente no que tange às profissões que prestam serviço de saúde humana, tal como a medicina, com a internação e a recepção, no Brasil, em julho de 2010, do Ajuste Complementar ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios para Prestação de Serviços de Saúde, promulgado por meio do Decreto nº 7.239, de 26.07.2010. Dispõe esse novo diploma legal binacional brasileiro/uruguaio, em complemento ao acordo promulgado em 2004, que: “Artigo I Âmbito de Aplicação 1. O presente Ajuste Complementar visa a permitir a prestação de serviços de saúde humana por pessoas físicas ou jurídicas situadas nas Localidades Vinculadas estabelecidas no Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios. [...] Artigo II Pessoas Habilitadas 1. O presente Ajuste Complementar permite às pessoas jurídicas brasileiras e uruguaias contratarem serviços de saúde humana, em uma das localidades mencionadas no Artigo I, de acordo com os Sistemas de Saúde de cada Parte. 2. A prestação de serviços poderá ser feita tanto pelos respectivos sistemas públicos de saúde quanto por meio de contratos celebrados entre pessoa jurídica como contratante, de um lado, e pessoa física ou pessoa jurídica como contratada, de outro, tanto de direito público quanto de direito privado. Artigo III O Contrato 1. A prestação de serviços de saúde será feita mediante contrato específico entre os interessados de cada país. 2. As Partes Contratantes serão pessoas jurídicas de direito público e de direito privado, e as Partes Contratadas, pessoas jurídicas de direito público, pessoas jurídicas de direito privado ou pessoas físicas. 3. Os serviços contratados submeter-se-ão às normas técnicas e administrativas e aos princípios e diretrizes do Sistema de Saúde de cada Parte. 4. O contrato terá por objeto a prestação dos seguintes serviços de saúde humana, entre outros: a) serviços de caráter preventivo; b) serviços de diagnóstico; c) serviços clínicos, inclusive tratamento de caráter continuado; d) serviços cirúrgicos, inclusive tratamento de caráter continuado; e) internações clínicas e cirúrgicas; e f) atenção de urgência e emergência. [...]” Conforme se vê da transcrição, esse ajuste complementar ao acordo, recepcionado em nosso sistema em grau de lei ordinária, é norma especial relativa à “prestação de serviços de saúde humana por pessoas físicas ou jurídicas situadas nas Localidades Vinculadas”, abrangendo, portanto, o exercício da medicina, e, por ser norma especial especificada para essa seara laboral nessas localidades, sobrepõe-se à norma especial relativa ao exercício da medicina no Brasil (Lei nº 3.268/1957) nos específicos pontos que disciplina, por ser mais recente e especial para as localidades vinculadas. Ainda, por ser norma intergovernamental especial direcionada a nacionais fronteiriços brasileiros e uruguaios, sobrepõe-se à norma especial que regula a situação do estrangeiro no Brasil (Estatuto do Estrangeiro, Lei nº 6.815/1980) no que tange ao estrangeiro uruguaio fronteiriço, também nos específicos pontos que disciplina. O termo fronteiriço aqui utilizado refere-se estritamente aos nacionais fronteiriços brasileiros e uruguaios beneficiados pelo referido acordo, promulgado no Brasil em 2004, e pelo seu ajuste complementar, promulgado em 2010, conforme o rol das localidades vinculadas. Portanto, a prestação de serviços de saúde humana, no Brasil, por estrangeiro uruguaio fronteiriço, específica e unicamente nas localidades vinculadas, não mais se regula exclusivamente pela Lei nº 3.268/1957, que disciplina o exercício da medicina no Brasil, e pela Lei nº 8.615/1980, que regula a situação do estrangeiro no Brasil, mas tem nova disciplina própria nos específicos pontos dispostos pelo ajuste complementar, obviamente desde que esteja o médico uruguaio devidamente habilitado nos termos da pertinente legislação uruguaia, que esteja munido do pertinente documento de fronteiriço (carteira de fronteiriço) previsto no acordo e, também, que a prestação de serviços ocorra nos limites da pertinente localidade vinculada. Nos termos do acordo e do seu ajuste complementar, a recíproca também deve ser verdadeira no que tange ao exercício da medicina no território uruguaio por médicos brasileiros qualificados pelo acordo como nacionais fronteiriços brasileiros, desde que esteja o médico brasileiro devidamente habilitado nos termos da pertinente legislação brasileira, que a prestação de serviços ocorra nos limites da localidade vinculada em que lhe foi deferido o documento especial de fronteiriço e que seja devidamente contratado nos termos previstos no acordo. Mas essa questão é pertinente ao Estado uruguaio, a ser dirimida pelas autoridades uruguaias competentes em face de eventual caso concreto, se for o caso. Não é correta a interpretação no sentido de que o ajuste complementar ao acordo autoriza não o médico fronteiriço a trabalhar na localidade vinculada limítrofe, mas sim os pacientes a serem atendidos no país vizinho. Isso porque o texto do ajuste em nenhum momento trata ou refere-se ao beneficiário do serviço de saúde humana, que é o paciente, mas sim aos prestadores desse serviço, sejam pessoas físicas, sejam pessoas jurídicas, sendo irrelevante o tratamento de contratante ou contratado, contido no texto, pois é inexorável que toda instituição ou estabelecimento encarregado de prestar serviços de saúde, seja em nome próprio, seja em nome de terceiros, o faz por meio de prestadores executantes diretos que são pessoas físicas (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas etc.), e que todos os prestadores (físicos ou jurídicos) estabelecem entre si as pertinentes contratações, restando inevitável serem qualificados ora como contratantes, ora como contratados. O tratamento contratante ou contratado, utilizado no texto do ajuste, não visa qualificar o beneficiário do serviço de saúde, não diz respeito ao paciente ou cliente do serviço de saúde. Relevante registrar que nossa forte jurisprudência no sentido de que o exercício profissional no Brasil por estrangeiros deve ser antecedido necessariamente pela revalidação do diploma em universidade nacional e pela inscrição no correspondente conselho profissional não é pertinente a este caso, pois a questão ora tratada é notadamente nova, posta no ordenamento jurídico nacional somente a partir da edição do Decreto nº 7.239, em 26.07.2010, e é matéria peculiar exclusivamente à fronteira Brasil/Uruguai, não sendo pertinentes os precedentes relativos a outras regiões do Brasil não alcançadas pela normatização ora analisada. As premissas jurídicas ora analisadas surgiram recentemente em nosso sistema e trouxeram ao ordenamento pátrio substancial aporte no sentido de admitir exceção à regra geral, segundo a qual o exercício das profissões regulamentadas pelos conselhos profissionais somente é possível mediante inscrição em seus quadros. Os poucos casos concretos até o momento julgados são inteiramente no sentido do entendimento aqui sustentado.(2) Boa ou má, estamos diante de importante inovação jurídica introduzida no Brasil a partir de 26.07.2010 por acordo internacional, devidamente firmado e ratificado pelo Brasil, recepcionado pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo nº 933/2009) e promulgado pelo Poder Executivo (Decreto nº 7.239/2010), em total conformidade com a Constituição Federal, estando, portanto, sob o manto de total legitimidade. Após transcorrido o iter de internação dos acordos e tratados no Brasil, como no caso, esses diplomas passam a ostentar o grau hierárquico de lei ordinária, devendo como tal ser interpretados e aplicados. Tendo o Brasil firmado esse acordo e seu ajuste complementar, não há como, legitimamente, negar-lhes vigência em território nacional, sob pena de assentamento e consagração da pecha – infelizmente, até certo ponto adequada – de país leviano no trato das questões internacionais, pelo fato de seguidamente aderir ou firmar tratados no âmbito da comunidade internacional e, recorrentemente, no âmbito interno, negar-lhes vigência ou dificultar-lhes sobremaneira a necessária efetividade, notadamente por meio da Administração. Obviamente, a República Federativa do Brasil poderá, querendo, denunciar o referido ajuste complementar, nos termos de seu artigo XII, em decisão e atuação políticas no âmbito das relações internacionais, no exercício da soberania nacional. Mas, enquanto tal não ocorrer, não pode singelamente negar-lhe vigor, deixando de aplicá-lo, à míngua de qualquer mácula de inconstitucionalidade ou ilegitimidade latu sensu. E não cabe ao operador do Direito ou a qualquer órgão ou agente da Administração deixar de aceitar sua aplicação, não obstante seja visível que isso pode fragilizar, em determinadas circunstâncias, o controle qualitativo do exercício da medicina e de outras profissões de prestação de serviços de saúde humana em território nacional, o que, todavia, pode ser mitigado por medidas administrativas adequadas e oportunas que deveriam ser tomadas pelos setores envolvidos. Inexorável é que esse ajuste complementar trouxe profunda inovação ao nosso sistema jurídico, permitindo que estrangeiro uruguaio fronteiriço, devidamente habilitado para o exercício de sua profissão em seu país, possa prestar serviços de saúde humana no Brasil, nos limites da pertinente localidade vinculada, desde que contratado nos termos dessa norma e que seja portador do pertinente documento especial de fronteiriço. A cláusula de solução de controvérsias, contida no artigo XIII do ajuste complementar, que estabelece que eventuais divergências, dúvidas e casos omissos decorrentes da interpretação e da aplicação da norma serão solucionados por via diplomática, destina-se a uniformizar a interpretação e a aplicação em ambos os países, a dirimir assimetrias interpretativas e a espancar dúvidas razoáveis, mas de maneira alguma submete a aplicação do ajuste a circunstanciais negociações futuras, como se estivesse permanentemente inacabado e sujeito a contingenciais idiossincrasias, notadamente com vista a furtar-se da integral e correta aplicação no âmbito do ordenamento jurídico vigente, como parece ser da lamentável cultura político-administrativa brasileira no trato dessa espécie legislativa. Somente quanto a casos omissos a cláusula de solução de controvérsias ostenta a qualidade de norma em branco, pois nessa hipótese se estará diante de subtema ainda não disciplinado, sequer implicitamente. 5 A garantia fundamental introduzida pelo acordo e por seu ajuste complementar 5.1 A recorrente deficiência do atendimento pelo SUS na região É recorrente a problemática na região da fronteira com o Uruguai, remontando pelo menos ao ano de 2006, da negativa de atendimento aos hospitais da região e ao SUS por médicos brasileiros. No ano de 2006, fez-se notório na comunidade de Santana do Livramento, RS, que, por força da negativa da prestação de serviços ao SUS pelos médicos locais, em razão de decréscimo do aporte mensal de recursos municipais para complementação aos pagamentos federais ao SUS, o atendimento de saúde pública no município esteve prestes a entrar em colapso. Foi amplamente divulgado na mídia regional o fato de muitos filhos de brasileiros terem nascido em hospitais de Rivera, no Uruguai, em consequência da negativa de atendimento dos médicos brasileiros pelo SUS na Santa Casa de Misericórdia de Santana do Livramento. Também foi notório que essa situação caótica da saúde pública em Livramento se estendeu a outras especialidades além da obstetrícia, restando a população mais carente socioeconomicamente ao total desamparo do direito fundamental à prestação mínima de serviço de saúde. Manifestação dos médicos de Santana do Livramento, formulada em 05.12.2006 por meio do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul – Simers, assentou que os serviços médicos necessários somente seriam prestados mediante pagamento, além da tabela do SUS, de valor que, distribuído nas diversas especialidades, alcançasse montante mensal especificado pelos médicos prestadores dos serviços. No ano de 2010, repetiu-se o problema, agora em Quaraí, RS, com a negativa de atendimento aos serviços do SUS por médicos brasileiros na Fundação Hospital de Caridade de Quaraí, mesmo com pagamentos do SUS complementados por parcelas subvencionadas de outras fontes, mas sem alcançar o patamar pecuniário exigido pelos médicos prestadores dos serviços. Na oportunidade, manifestou o nosocômio de Quaraí que “tem enorme dificuldade em encontrar profissionais da área médica para prestar atendimento à população. Não há médicos dispostos a trabalhar em Quaraí, e, quando estes têm interesse, o preço dos honorários cobrados do hospital é exorbitante”.(3) Não obstante a realidade de a tabela do SUS prever valores baixos para pagamento dos serviços na maioria dos procedimentos médicos, na maioria dos municípios da região há aporte de complementação pecuniária mensal visando atender, ao menos razoavelmente, remuneração digna para o profissional médico que atua pelo sistema, o que afasta situação de contraprestação por serviços médicos a valor vil, mas não atende totalmente a pretensão remuneratória, permanecendo o impasse com a negativa de atendimento pelo sistema público. A solução geralmente vislumbrada pelos hospitais da região tem sido, pela proximidade e oferta de serviços, a contratação de médicos uruguaios para atuação em território brasileiro, surgindo nesse ponto relevante discussão quanto à legitimidade de atuação de médico uruguaio em território brasileiro sem antes revalidar o diploma em universidade nacional e obter inscrição no Conselho Regional de Medicina. Em contraposição a essa medida, o Conselho Regional de Medicina – Cremers e o Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Sul – Simers têm adotado medidas diversas, como ajuizamento de demandas e disseminação de boatos de intimidação e notícias visando desestimular médicos uruguaios quanto às contratações por hospitais brasileiros. Em 08.07.2011 e 10.07.2011, o noticiário eletrônico do Diário El Pais, de Montevidéu, publicou a seguinte notícia, manifestamente inverídica(4): “El sindicato de médicos de Río Grande del Sur (Simers) publicó el 5 de junio una nota de advertencia a los gobiernos locales en la que informa que una decisión del Tribunal Regional Federal (TRF) ‘impide que los médicos uruguayos sin revalidación de diploma y registro en el consejo de la categoría de trabajo en Brasil cumplan funciones para las prefecturas’. Otra denuncia fue presentada ante la Policía Federal. De hecho, en Quaraí fueron detenidos y sometidos a proceso cuatro médicos uruguayos contratados por la Prefectura (alcaldía) local, denunciados por ejercicio ilegal de la medicina. (...) En la frontera entre Quarai y Artigas fueron cuatro los médicos juzgados y acusados como si hubiesen cometido un delito.” Segundo o noticiário, tal notícia inverídica foi disseminada pelo Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Sul – Simers, que não era parte nos processos em tramitação referidos na Seção 5.2, o que motivou requisição judicial de investigação à Polícia Federal, tendo gerado o Inquérito Policial nº 82/2011, processo eletrônico nº 5000966-62.2011.404.7106. A situação acima bem caracteriza, além da complexidade da questão, a intensa mobilização de categorias profissionais e entidades de classe quanto ao tema, a ponto de ser plantada e disseminada informação inverídica veiculando versão dos fatos no sentido do interesse e da conveniência particulares privados, em manifesto detrimento do interesse público. 5.2 A judicialização da questão Em 2006, foi ajuizada pela Santa Casa de Misericórdia de Santana do Livramento a Ação Ordinária nº 2006.71.06.002426-0 contra a União, o Estado do Rio Grande do Sul, o Município de Santana do Livramento e o Cremers, buscando amparo para contratação de médicos uruguaios em face de negativa de atendimento, no hospital e ao SUS, por médicos brasileiros. Conforme síntese já assentada na subseção 5.1, na ocasião restou constatado no processo, além de notório na comunidade local, que, por força da negativa da prestação de serviços ao SUS pelos médicos de Santana do Livramento, em razão do decréscimo do aporte mensal de recursos do município para complementação de pagamentos do SUS, o atendimento de saúde pública no município esteve prestes a entrar em colapso. Naquela oportunidade, diante da excepcional situação atinente à saúde pública relativa ao SUS então configurada em Santana do Livramento, RS, o juízo do feito invocou, em decisão de antecipação da tutela, o direito fundamental à saúde e reconheceu como legítima a utilização, pelo hospital, excepcionalmente, da prestação de serviços de saúde atinentes ao SUS por médicos uruguaios não registrados no Conselho Regional de Medicina, desde que constatada suficiente habilitação para exercício da medicina nos padrões exigidos pela República Oriental do Uruguai. Após a antecipação da tutela, o município réu atenuou a redução de aporte pecuniário complementar a que se propusera – não obstante sem satisfazer a pretensão dos médicos envolvidos na questão – e as partes compuseram, pondo fim à demanda. O fundamento daquela antecipação de tutela limitou-se à invocação do direito fundamental à prestação de serviços de proteção à saúde, sem amparo no acordo promulgado pelo Decreto nº 5.105, de 14.06.2004, pois era ainda inexistente seu ajuste complementar para prestação de serviços de saúde. Em 2010, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul – Cremers ajuizou a Ação Civil Pública nº 5001429-38.2010.404.7106/RS contra a Fundação Hospital de Caridade de Quaraí, RS, e quatro médicos uruguaios contratados pelo hospital, pedindo (a) a suspensão do exercício das atividades profissionais desses médicos no referido nosocômio, ao argumento da inexistência de revalidação dos correspondentes diplomas em universidades brasileiras e da ausência de inscrição no Cremers; (b) a imposição ao hospital do dever de rescindir os contratos existentes e de não contratar médicos uruguaios; e, ainda, (c) a imposição aos médicos réus do dever de não exercer a medicina em território brasileiro. A liminar requerida pelo Cremers foi indeferida, e a Ação Civil Pública foi julgada improcedente em primeira instância, tendo por fundamentos (1º) o direito fundamental à saúde capitulado nos artigos 1º, III, 5º, caput, 6º, caput, e 196 da Constituição Federal e (2º) o Ajuste Complementar ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios para Prestação de Serviços de Saúde, promulgado por meio do Decreto nº 7.239, de 26.07.2010. A sentença dessa ação foi confirmada em sede de apelação, pendentes ainda os recursos especial e extraordinário. Em 2011, a Santa Casa de Misericórdia de Santana do Livramento, RS, ajuizou a Ação Ordinária nº 5000574-25.2011.404.7106/RS contra o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul – Cremers visando ao reconhecimento da legitimidade da contratação de médicos de cidadania uruguaia residentes em Rivera, ROU, nos moldes do Ajuste Complementar ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios para Prestação de Serviços de Saúde, em razão da dificuldade de contratação de médicos brasileiros em parâmetros razoáveis para o hospital. Essa ação ordinária foi julgada procedente em primeira instância, tendo por fundamentos (1º) o direito fundamental à saúde capitulado nos artigos 1º, III, 5º, caput, 6º, caput, e 196 da Constituição Federal e (2º) o Ajuste Complementar ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios para Prestação de Serviços de Saúde, promulgado por meio do Decreto nº 7.239, de 26.07.2010. Foi reconhecido o direito de a Santa Casa de Misericórdia de Santana do Livramento, RS, contratar, em caso de cessação da prestação de serviços por médicos brasileiros, e para a manutenção e a continuidade da prestação de serviços hospitalares adequados à população usuária do nosocômio, médicos de cidadania uruguaia residentes em Rivera, ROU, nos moldes previstos no Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Oriental do Uruguai para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios, promulgado por meio do Decreto nº 5.105/2004, e no Ajuste Complementar ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios para Prestação de Serviços de Saúde, promulgado pelo Decreto nº 7.239, de 26.07.2010. Ainda não foi julgada a apelação dessa sentença. 5.3 A garantia fundamental caracterizada Assentamos na seção 2 que o § 2º do artigo 5º da Constituição, ao estabelecer que os direitos e as garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, estabelece regra bastante ampla que abre múltiplas possibilidades de introdução de garantias fundamentais em nosso sistema por meio dos tratados firmados pelo Estado brasileiro, as quais podem ser tanto de natureza judicial como administrativa, e cujo único requisito é a aptidão de assegurar, com exclusividade ou não, o cumprimento de um direito fundamental, ou de reparar sua lesão ou ameaça de lesão. A garantia fundamental contida no Ajuste Complementar ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios para Prestação de Serviços de Saúde, promulgado por meio do Decreto nº 7.239, de 26.07.2010, consiste no permissivo da prestação de serviços de saúde humana, em território brasileiro e nas localidades vinculadas descritas no acordo, por profissionais de nacionalidade uruguaia, sem qualquer óbice da legislação infraconstitucional, em casos de necessidade de salvaguarda ou reparação do direito fundamental à proteção da saúde humana. Essa possibilidade decorre dos artigos I e II do ajuste complementar, ao estabelecerem que: “Artigo I Âmbito de Aplicação 1. O presente Ajuste Complementar visa a permitir a prestação de serviços de saúde humana por pessoas físicas ou jurídicas situadas nas Localidades Vinculadas estabelecidas no Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios. [...] Artigo II Pessoas Habilitadas 1. O presente Ajuste Complementar permite às pessoas jurídicas brasileiras e uruguaias contratarem serviços de saúde humana, em uma das localidades mencionadas no Artigo I, de acordo com os Sistemas de Saúde de cada Parte. 2. A prestação de serviços poderá ser feita tanto pelos respectivos sistemas públicos de saúde quanto por meio de contratos celebrados entre pessoa jurídica como contratante, de um lado, e pessoa física ou pessoa jurídica como contratada, de outro, tanto de direito público quanto de direito privado.” Obviamente, a garantia fundamental em comento estará legitimada em situações de flagrante malversação do direito fundamental à saúde, como no caso ilustrado na seção 5.1, que deixa em desamparo a população menos favorecida socioeconomicamente em termos de proteção à saúde, clamando que o Estado se desincumba de seu dever previsto no artigo 196 da Constituição Federal. A população, obviamente, não pode perecer diante do impasse estabelecido, cabendo ao Judiciário, se provocado, prover solução imediata, em cunho emergencial, evitando colapso na saúde pública, no âmbito do SUS, na região. Não se trata de singela escolha entre médico uruguaio e médico brasileiro, mas sim entre o médico uruguaio ou nenhum médico, já que os médicos brasileiros atuantes na localidade negam-se ao atendimento pelo SUS. Nesse caso, em contraposição à previsão constitucional fundamental de provimento de saúde à população, em níveis de atender os princípios do mínimo existencial e da dignidade da pessoa humana, não subsiste invocação da Lei nº 3.268/1957, que, em seus artigos 15 e 17, estabelece que o exercício regular da medicina somente é exercido mediante registro do diploma perante o Ministério da Educação e inscrição no Conselho Regional de Medicina. Outrossim, independentemente do ajuste complementar ao acordo, ou mesmo se esse pacto não existisse, ou em caso semelhante em região não abrangida pelo acordo, cremos que a excepcionalidade da situação de lesão ou ameaça de lesão ao direito fundamental à saúde, acima configurada, legitima e autoriza a excepcional aceitação do exercício da medicina no território nacional por médicos estrangeiros, independentemente de registro do diploma no Ministério da Educação e inscrição no conselho profissional, com base exclusivamente no princípio da dignidade da pessoa humana e no princípio da proteção à vida, até que seja restabelecida em patamares razoáveis a prestação de serviços por médicos, brasileiros ou estrangeiros, com diplomas registrados e inscritos naqueles órgãos. Nesse caso, também presente o amparo normativo no § 2º do artigo 5º, no ponto em que essa regra dita que os direitos e as garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes dos princípios por ela adotados, pois certo é que a dignidade da pessoa humana é fundamento do Estado brasileiro, consistindo em importante princípio geral de nossa ordem constitucional. A implementação dessa medida de garantia fundamental tem se dado na região por meio de provimento jurisdicional (antecipações de tutela e sentenças), mas inexiste impedimento legal à sua implementação pela via administrativa, v.g., por decisão do Ministério da Saúde ou da Secretaria da Saúde do Estado do RS, no âmbito das políticas públicas atinentes à pasta, o que, todavia, é pouco provável, por tratar-se de medida que desagradaria frontalmente interesses da categoria profissional dos médicos, do CFM, do Cremers e do Simers. Conclusão Por fim, sintetizamos a conclusão do presente trabalho nos tópicos a seguir: 1) A proteção de lastro mínimo à saúde constitui importante direito fundamental consagrado indiretamente no art. 1º, III (dignidade da pessoa humana), e no caput do art. 5º (direito à vida) e diretamente nos artigos 6º e 196 da Constituição Federal. 2) Para a defesa dos direitos fundamentais, é útil a percepção da eficácia horizontal do direito fundamental, ou de sua multifuncionalidade, de modo que possa tanto ser oponível diretamente ao Estado, para que cesse a lesão ou ameaça de lesão por ele causada (direito de defesa frente ao Estado), como também possa ser oponível ao Estado para que ele, o Estado, proteja juridicamente o titular do direito fundamental de lesão ou ameaça de lesão advinda de outro cidadão ou de pessoa jurídica privada (direito a proteção jurídica prestada pelo Estado). Em síntese, o Estado, por si mesmo, ou por meio de terceiros privados por ele obrigados, é responsável pela proteção ou restauração de direito fundamental à saúde lesado ou ameaçado de lesão. 3) Nem as garantias fundamentais judiciais se esgotam no rol tradicional (acesso ao Judiciário, habeas corpus, mandado de segurança individual ou coletivo, mandado de injunção, habeas data, ação popular e ação civil pública), nem as garantias fundamentais genericamente consideradas esgotam-se nas espécies (a) garantias de rigidez constitucional, (b) garantias judiciais, (c) garantias de eficácia, (d) garantia da divisão dos poderes e (e) garantia da superioridade da Constituição, pois a regra constitucional do § 2º do artigo 5º da Constituição é bastante ampla e abre inúmeras possibilidades para outras garantias fundamentais, que podem ser tanto de natureza judicial como administrativa, implementadas a partir de tratados internacionais firmados pelo Brasil ou decorrentes dos princípios e do regime adotados pela Constituição. 4) O único requisito para uma medida ser considerada garantia fundamental é que tenha aptidão de assegurar, com exclusividade ou não, o cumprimento de um direito fundamental, ou de reparar sua lesão ou ameaça de lesão; o critério de qualificação dessa medida – judicial ou administrativa – como garantia fundamental é tão somente a constatação, na realidade social, dessa aptidão. 5) O Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Oriental do Uruguai para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios, internado no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 907/2003 e promulgado por meio do Decreto nº 5.105/2004, criou a figura jurídica do cidadão fronteiriço, brasileiro e uruguaio, que poderá residir, estudar e trabalhar na localidade vinculada alienígena em que lhe foi concedido o documento especial de fronteiriço, mas por esse diploma o direito de exercer profissão (trabalhar) na localidade vinculada alienígena não alcançou, no Brasil, as profissões cujo exercício é regulamentado por lei específica, como no caso da medicina, porque em tais casos (de profissões regulamentadas em lei) o exercício profissional rege-se por lei especial que não resta derrogada pela norma de cunho geral, como o Acordo, que, devidamente internado em nosso sistema, alcança nível de lei ordinária, de alcance geral, e é direcionado a todas as profissões indistintamente. 6) Todavia, essa situação jurídica se modificou substancialmente no que tange às profissões que prestam serviços de proteção à saúde humana, tal como a medicina, com a internação e a recepção, no Brasil, em julho de 2010, do Ajuste Complementar ao Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios para Prestação de Serviços de Saúde, promulgado por meio do Decreto nº 7.239, de 26.07.2010. Esse Ajuste trouxe profunda inovação em nosso sistema jurídico, permitindo que estrangeiro uruguaio fronteiriço, devidamente habilitado para o exercício de sua profissão em seu país, possa prestar serviços de proteção à saúde humana no Brasil, nos limites da pertinente localidade vinculada, desde que contratado nos termos dessa norma e que seja portador do pertinente documento especial de fronteiriço. 7) O acordo firmado entre o Brasil e o Uruguai versando sobre direitos de residência, estudo e trabalho e seu ajuste complementar versando sobre prestação de serviços de proteção à saúde humana contêm importante garantia fundamental ao direito fundamental à saúde dos cidadãos brasileiros residentes na região da fronteira com aquele país. Essa garantia fundamental está expressa no referido ajuste complementar ao acordo, em seus artigos I e II, consistindo no permissivo da prestação de serviços de saúde humana, em território brasileiro e nas localidades vinculadas próprias do acordo, por profissionais de nacionalidade uruguaia, independentemente de formalidades exigidas pela legislação infraconstitucional. A implementação dessa medida de garantia fundamental tem se dado na região por meio de provimento jurisdicional (antecipações de tutela e sentenças), mas inexiste impedimento legal à sua implementação pela via administrativa, v.g., por decisão do Ministério da Saúde ou da Secretaria da Saúde do Estado do RS, no âmbito da políticas públicas atinentes à pasta, o que, todavia, é pouco provável, por tratar-se de medida que desagradaria frontalmente interesses da categoria profissional dos médicos, do CFM, do Cremers e do Simers. Referências bibliográficas CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Direito Processual Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: RCS, 2007. MEDINA, Paulo Roberto de Gouveia. Direito Processual Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2003. MENDONÇA, Antonio Penteado. Da seguridade social na Constituição Federal de 1988. In: MARTINS, Ives Gandra; REZEK, Francisco. Constituição Federal: 20 anos, avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. NERY JR., Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. SCHÄFER, Jairo Gilberto. Direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. TAVARES, André Ramos. Os princípios fundamentais na Constituição de 1988: estudo de sua evolução em 20 anos. In: MARTINS, Ives Gandra; REZEK, Francisco. Constituição Federal: 20 anos, avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. Notas
1. Para nós, eficácia da norma ou do instituto jurídico é sua aptidão para surtir, na realidade social, os resultados úteis e esperados. 2.“EMENTA da APELAÇÃO CÍVEL Nº 5001429-38.2010.404.7106/RS do Cremers, DATA: 16.01.2013: ACÓRDÃO
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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