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publicado em 30.04.2014
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O descaminho, além de ser um dos crimes mais antigos e dos mais frequentes no dia a dia da Justiça Federal, oferece um sem-número de questões que foram e continuam sendo exaustivamente discutidas na doutrina e na jurisprudência. Resolveu-se extrair, dessa riqueza normativa, dois assuntos que recentemente foram enfrentados pela jurisprudência dos tribunais superiores, os quais provocam uma série de reflexões e injunções em torno da (inconfundível) estrutura típica que caracteriza o descaminho. Palavras-chave: Art. 334 do Código Penal. Descaminho. Lançamento definitivo como condição objetiva de punibilidade. Pagamento como causa extintiva da punibilidade. Sumário: Introdução. 1 O descaminho no Código Penal: noção básica. 1.1 Bem jurídico. 2 Sobre a necessidade de prévia constituição definitiva do crédito tributário e sobre o pagamento como causa extintiva da punibilidade. Conclusão. Referências bibliográficas. Introdução Um dos crimes mais corriqueiros no cotidiano de uma vara federal, mormente em região de fronteira, é, sem dúvida, o descaminho. Qualquer escrito sobre o descaminho pode causar alguma inquietação inicial, em razão de que muito ou mesmo “tudo” já foi escrito sobre o tema. Se isso é verdade, também o é o fato de que a matéria vem sendo ultimamente – e perigosamente – revisitada pela jurisprudência dos tribunais superiores. A referência é específica à juridicidade da prévia constituição definitiva do crédito tributário (condição objetiva de punibilidade) como exigência imposta também ao delito de descaminho, tal e qual prevista na Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal, que seria própria, entende-se, dos crimes tributários materiais propriamente ditos (Lei nº 8.137/90). Outrossim, como não há lançamento tributário nas hipóteses que se amoldam ao crime de descaminho, mas sim pena de perdimento, dúvidas se põem sobre se o pagamento dos tributos pode (mesmo) ser considerado causa extintiva de punibilidade. A escolha do tema, portanto, deve-se ao fato de que o Superior Tribunal de Justiça tem decidido, cada vez com mais frequência, que o início da persecução penal no delito de descaminho pressupõe o esgotamento da via administrativa, com a constituição definitiva do crédito tributário.(1) Ou seja, o que antes seria um simples pronunciamento da jurisprudência ou, em outras palavras, um precedente isolado ressoou de uma tal maneira que, na atualidade, o entendimento parece ter ganhado forma de jurisprudência. Mais do que isso, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 85942/SP,(2) assentou a orientação de que o pagamento dos tributos como causa extintiva de punibilidade alcança também o delito de descaminho. Esse incipiente posicionamento da jurisprudência, que tende a colocar o descaminho na vala comum dos crimes tributários, põe em evidência alguns aspectos até então indiscutíveis e, levado às últimas consequências, implicará resultados indesejados de diversas ordens no campo penal. Afinal de contas, se o descaminho exige o lançamento tributário, e se o pagamento extingue a punibilidade, deve-se considerar que, nos fatos que se afeiçoam ao tipo do descaminho, há, necessariamente, tributos a cobrar, o que, a bem da verdade, consiste em hipótese remota (e que se resume basicamente às situações em que o bem perdido não for encontrado). Poder-se-ia até mesmo se pensar que, por ser crime material e pressupor, nessa condição, a prévia constituição do crédito tributário, não haveria o delito de descaminho se e quando fosse decretado o perdimento da mercadoria apreendida. Portanto, o presente artigo se propõe a confrontar essa jurisprudência com as normas alfandegárias, na tentativa de demonstrar que essa novel orientação não poderá ser inadvertidamente aplicada, fato que poderá ensejar, sem nenhum eufemismo ou exagero, a erradicação do descaminho do campo penal. Não se tem, por óbvio, a pretensão de trazer ineditismos ou originalidades ao universo jurídico, mas, tão somente, de trazer questionamentos e, nomeadamente, procurar o tratamento adequado à matéria atinente à estruturação típica do descaminho. 1 O descaminho no Código Penal: noção básica A figura criminosa do descaminho, em sua modalidade básica, está prevista no artigo 334 do Código Penal, assim redigido: “Art. 334 Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.” Como se nota facilmente, o legislador pôs no mesmo dispositivo dois crimes que, embora próximos em alguns aspectos, se distinguem em outros tantos. Aliás, não poucas pessoas imaginam, desavisadamente, que as expressões descaminho e contrabando sejam sinônimas, de modo que ambas designariam um mesmo ilícito. De fato, no senso comum, não é tão raro que as expressões sejam confundidas ou mesmo consideradas como designativas do mesmo ilícito. Isso pode até soar como obviedade aos leitores deste artigo, mas, em obediência aos enunciados metodológicos, é preciso resgatar a distinção – em termos básicos, é claro – entre os delitos de descaminho e contrabando, ambos previstos no art. 334 do Código Penal. Pois bem. No delito de descaminho, a conduta criminalizada consiste na ilusão, no todo ou em parte, dos tributos devidos na entrada e na saída de mercadorias/produtos, enquanto no contrabando a ação típica é a de importar ou exportar gêneros e bens proibidos. Veja-se que o legislador, ao empregar a conjunção “ou” no caput do artigo 334, tentou estabelecer uma equivalência entre os delitos de descaminho e contrabando. No entanto, as diferenças entre ambos os delitos são tão evidentes, e em número tão expressivo, que a tentativa do legislador obviamente malogrou. Em tom bem mais elucidativo, Luiz Regis Prado explica as diferenças entre os aludidos crimes: “Em um enfoque moderno, contrabando passou a denotar a importação e a exportação de mercadoria proibida por lei, enquanto descaminho significa a fraude ao pagamento de tributos aduaneiros. Diferenciam-se, pois, porque, enquanto este constitui um crime de natureza tributária, classificando uma relação fisco-contribuinte, o contrabando expressa a importação e a exportação de mercadoria proibida, não se inserindo, portanto, no âmbito dos delitos de natureza tributária.”(3) Uma vez vista, em revista, a diferença entre as figuras delitivas em referência, é preciso ficar bem claro que este escrito terá por foco apenas o crime de descaminho em sua modalidade básica – sem a preocupação de descer a detalhes que extrapolariam os limites deste trabalho –, deixando-se de lado, portanto, o crime de contrabando. 1.1 Bem jurídico Existe alguma dissidência em âmbito doutrinário acerca da natureza jurídica do delito de descaminho, mais precisamente se o descaminho compõe ou não o rol dos chamados crimes tributários e, portanto, se a ordem tributária está entre os bens jurídicos protegidos pela norma penal. A divergência pode ser atribuída à circunstância de o delito estar previsto no Capítulo II do Título XI do Código Penal, que elenca, dentre os crimes contra a Administração Pública, os chamados “crimes cometidos por particular contra a Administração em geral”. No entanto, é predominante o entendimento de que a posição topológica do art. 334 do Código Penal não tem densidade suficiente para determinar a natureza jurídica do crime. Grosso modo, isso significaria desprezar a própria essência do tipo penal, o que vai de encontro às mais comezinhas regras de hermenêutica. Não fosse o bastante, o fato de o tipo do artigo 334 do Código Penal criminalizar a conduta daquele que ilude os tributos devidos pela entrada, pela saída ou pelo consumo da mercadoria, reprimindo, portanto, a ilusão tributária, constitui evidência suficiente de que a norma penal volta-se principalmente à proteção do interesse econômico estatal. Não é por outra razão que a jurisprudência, atenta mais ao conteúdo do crime do que propriamente à sua localização normativa, tem entendido, sem enormes dissidências, que o bem jurídico protegido pelo descaminho – ao lado de outros, pode-se dizer – é a ordem tributária.(4) Idêntica opinião é compartilhada por Damásio de Jesus: “O objeto jurídico é o interesse estatal no que diz respeito ao erário público lesado pelo comportamento do sujeito, que, importando ou exportando mercadoria proibida ou deixando de pagar os impostos e taxas devidos, prejudica não só o poder público como a indústria nacional. Assim, secundariamente, protege-se também a indústria brasileira, a moralidade e até a saúde pública, que pode vir a ser lesada pela entrada de produtos nocivos a ela e, por isso, proibidos.”(5) Na mesma linha, assim discorre José Paulo Baltazar Júnior: “De notar que o descaminho, embora arrolado no CP entre os crimes contra a administração pública, atenta contra a ordem tributária, na medida em que se configura pela ilusão do direito ou imposto devido por entrada, saída ou consumo de mercadoria, configurando uma infração penal tributária aduaneira. Em verdade, então, o descaminho é o mais antigo dos crimes contra a ordem tributária.”(6) Logo, não há dúvidas de que o descaminho pode, sim, ser classificado como crime contra a ordem tributária, mormente em razão de sua objetividade jurídica, pois visa primordialmente à tutela da administração tributária, não sem deixar de proteger, também, a indústria e a economia interna. Tanto isso é verdade que se pacificou na jurisprudência, já há longa data, que não há conduta reprimível no campo penal quando o montante dos tributos iludidos – excluídos desse cálculo, sempre, o PIS, a Cofins e as multas(7) – não exceder ao valor mínimo da dívida ativa da União para ajuizamento de execução fiscal. Oportuno se mostra um breve parêntese: durante muito tempo foi considerado o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para fins de insignificância penal, pois esse era o valor referencial estipulado pela Fazenda Nacional, em linhas gerais, para promover o ajuizamento de execução fiscal ou requerer o arquivamento sem baixa daquela em andamento. Contudo, em data recente, mais precisamente em 26.03.2012, o Ministério da Fazenda, por meio da Portaria nº 75, elevou o valor limite para R$ 20.000,00 (vinte mil reais). O advento da referida regra produzirá reflexos inegáveis no âmbito penal, já tendo o E. TRF4 se pronunciado favoravelmente à ampliação do perímetro da insignificância.(8) O que se pretende demonstrar é que essa orientação, que trouxe a bagatela para o campo dos delitos fiscais, baseia-se no raciocínio de que, se a conduta é irrelevante para a administração fazendária, também o é para o direito penal, selando a certeza, portanto, de que o descaminho é um crime contra a ordem tributária. 2 Sobre a necessidade de prévia constituição definitiva do crédito tributário e sobre o pagamento como causa extintiva da punibilidade De acordo com a Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal, “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”. Percebe-se que o enunciado da Súmula faz alusão tão somente ao crime previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/1990. Sem embargo disso, a jurisprudência e a doutrina têm sido uníssonas na aplicação do entendimento nela consubstanciado também à infração penal prevista no art. 337-A, a qual, para além de tutelar a ordem tributária, manifesta-se como um autêntico crime material (ou de resultado). Idêntica afirmação, quanto a ser crime material, não pode ser feita no que atine ao descaminho. Primeiro porque, como afiança Guilherme de Souza Nucci,(9) o descaminho é um crime formal. Ser formal denota que sua consumação não se acha jungida a nenhuma questão administrativa-tributária. Veja-se bem: a ação típica no descaminho é, basicamente, a de iludir os tributos devidos na entrada, na saída e/ou no consumo de mercadoria. Iludir, segundo definição extraída do Dicionário Aurélio, nada mais é do que enganar, lograr, burlar, frustrar, defraudar. Transposta para o linguajar comum, iludir significa simplesmente deixar de pagar. É necessário convir que o significado linguístico da expressão iludir pode potencialmente causar a falsa percepção de que o crime seria material, pois não consistiria absurdo intuir, a partir de tal verbo, que o crime dependeria de algum resultado material, tal e qual a efetiva lesão ao erário. Essa incorreta impressão, é verdade, intensifica-se em grande escala por ser o descaminho enquadrado como crime contra a ordem tributária, em que se tem difundida a ideia de que o lançamento definitivo é pressuposto (condição objetiva de punibilidade) à deflagração da persecução penal. Nessas circunstâncias, torna-se imprescindível que se apreenda a verdadeira significância do verbo nuclear no contexto do descaminho. Por iludir não se deve entender a efetiva supressão de tributos, mas a conduta que cause ilusão ao pagamento dos impostos, ao que basta, portanto, a simples possibilidade de lesar as finanças do Estado.(10) Logo, não se criminaliza, no descaminho, a redução ou a supressão de tributos, mas sim a conduta de causar ilusão ao pagamento de imposto devido. Embora a distinção seja leve e sutil, ela é de extrema importância em face das consequências que uma ou outra classificação acarreta. Aliás, tão recente quanto o precedente em que o Supremo Tribunal Federal admitiu o pagamento como causa extintiva da punibilidade no crime de descaminho, que será doravante examinado, é a decisão proferida, pelo mesmo Tribunal, no julgamento do HC 99.740/SP.(11) Nesse precedente, o Supremo Tribunal Federal, em decisão oriunda de turma, considerou emblematicamente o descaminho como um exemplo de crime formal. Consoante expôs o relator, Ministro Ayres Britto: “12. Tal direção interpretativa está assentada na ideia-força de que, para a consumação dos crimes tributários descritos nos cinco incisos do art. 1º da Lei 8.137/1990, é imprescindível a ocorrência do resultado supressão ou redução de tributo. Resultado aferido, tão somente, após a constituição definitiva do crédito tributário. Eis a ilustrativa ementa que recebeu o precedente: “HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. IMPORTAÇÃO DE PRODUTOS DE INFORMÁTICA E DE TELECOMUNICAÇÕES. SIMULAÇÃO DE OPERAÇÕES COMERCIAIS. MERCADORIAS IMPORTADAS DE FORMA IRREGULAR. DESNECESSIDADE DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO DÉBITO TRIBUTÁRIO. ORDEM DENEGADA. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme em considerar excepcional o trancamento da ação penal pela via processualmente acanhada do habeas corpus (HC 86.786, da minha relatoria; HC 84.841, da relatoria do ministro Marco Aurélio). Habeas corpus que se revela como trilha de verdadeiro atalho, somente admitida quando de logo avulta o desatendimento das coordenadas objetivas dos arts. 41 e 395 do CPP. 2. Quanto aos delitos tributários materiais, esta nossa Corte dá pela necessidade do lançamento definitivo do tributo devido como condição de caracterização do crime. Tal direção interpretativa está assentada na ideia-força de que, para a consumação dos crimes tributários descritos nos cinco incisos do art. 1º da Lei 8.137/1990, é imprescindível a ocorrência do resultado supressão ou redução de tributo. Resultado aferido, tão somente, após a constituição definitiva do crédito tributário (Súmula Vinculante 24). 3. Por outra volta, a consumação do delito de descaminho e a posterior abertura de processo-crime não estão a depender da constituição administrativa do débito fiscal. Primeiro, porque o delito de descaminho é rigorosamente formal, de modo a prescindir da ocorrência do resultado naturalístico. Segundo, porque a conduta materializadora desse crime é ‘iludir’ o Estado quanto ao pagamento do imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria. E iludir não significa outra coisa senão fraudar, burlar, escamotear. Condutas, essas, minuciosamente narradas na inicial acusatória. 4. Acresce que, na concreta situação dos autos, o paciente se acha denunciado pelo descaminho, na forma da alínea c do § 1º do art. 334 do Código Penal. Delito que tem como elementos nucleares as seguintes condutas: vender, expor à venda, manter em depósito e utilizar mercadoria estrangeira introduzida clandestinamente no País ou importada fraudulentamente. Pelo que não há necessidade de uma definitiva constituição administrativa do imposto devido para, e só então, ter-se por consumado o delito. 5. Ordem denegada.” Esses argumentos, que colocam o descaminho como um delito formal, já seriam suficientes à afirmação de que se faz prescindível o exaurimento da instância administrativa. Mas não é só. Para a exata compreensão do problema, é preciso compreender que, nos fatos que se ajustam à figura do descaminho, não há propriamente lançamento tributário ou alguma forma congênere de apuração ou constituição de impostos. No entanto, e a despeito das abalizadas opiniões em contrário, não se pode atribuir uma importância superlativa à natureza jurídica do delito de descaminho. Com efeito, não é pelo bem jurídico tutelado no descaminho que se poderá admitir a prévia constituição do crédito tributário como condição objetiva de punibilidade, muito menos em razão disso se poderá tolerar a possibilidade de pagamento dos tributos devidos como causa obstativa da persecução penal. Bem antes de afirmações apriorísticas, é preciso explorar, compreender e assimilar os elementos que estruturam e notabilizam a infração penal em análise. Pois bem. A legislação aduaneira estabelece que a mercadoria irregularmente importada, ao ingressar no país, expõe-se à pena de perdimento (art. 689 do Decreto nº 6.759/2009). Em tais situações, portanto, a autoridade fiscal, em vez de lançar o tributo devido, retém a mercadoria e determina a instauração de um expediente administrativo com vistas à decretação do referido perdimento. Deduz-se daí que o legislador prefere o perdimento à cobrança dos impostos que seriam devidos, o que se explica pelo fato de que o Fisco, uma vez ultimado o perdimento, e ao assumir a propriedade do bem, terá em mãos uma garantia suficiente de que o desfalque decorrente da ilusão dos impostos será recomposto. Aliás, o Regulamento Aduaneiro em vigor oferece opções ao Fisco, que poderá não só proceder à alienação dos bens confiscados, como também, facultativamente, incorporá-los ao seu patrimônio e até mesmo destruí-los (art. 803 do Decreto nº 6.759/2009). Não é por outra razão que o art. 1º, § 4º, III, do Decreto-Lei nº 37/66 estabelece que, sobre a mercadoria estrangeira que haja sido declarada perdida, não incide a cobrança do imposto de importação, in verbis: “Art. 1º – O Imposto sobre a Importação incide sobre mercadoria estrangeira e tem como fato gerador sua entrada no Território Nacional. (...) § 4º O imposto não incide sobre mercadoria estrangeira: (Incluído pela Lei nº 10.833, de 29.12.2003) (...) III – que tenha sido objeto de pena de perdimento, exceto na hipótese em que não seja localizada, tenha sido consumida ou revendida. (Incluído pela Lei nº 10.833, de 29.12.2003)” Pontue-se que o legislador previu que a regra de exclusão da competência tributária não compreende algumas hipóteses, quais sejam: mercadoria perdida, revendida ou consumida. Apenas em tais hipóteses, que têm em comum a impossibilidade de apreensão física da mercadoria, haverá cobrança do imposto devido. Dessarte, havendo perdimento, o que abarca a imensa maioria dos casos, a autoridade fiscal jamais constituirá qualquer crédito tributário. Nem mesmo o fato de a autoridade fiscal elaborar a Representação Fiscal para Fins Penais em caso de apreensão de mercadoria estrangeira, indicando os tributos que incidiriam se a operação fosse regular, poderia induzir à conclusão de que algum imposto seja devido. Esse cálculo do montante dos tributos iludidos, normalmente apresentado pela autoridade fiscal, é meramente estimativo e se dá unicamente com o propósito de verificar se a conduta merece ou não ser penalizada no campo penal. Ou seja, apura-se o total dos tributos que seriam devidos se a operação houvesse sido regularmente declarada tão somente para analisar se a conduta enquadra-se nos limites do que a jurisprudência tem considerado como insignificante, haja vista que tributação, a rigor, não existe. Sintomático que o art. 776 do Regulamento Aduaneiro em vigor (Decreto nº 6.759/2009) impõe que, na formalização do processo administrativo fiscal destinado à materialização do perdimento, ou na representação fiscal para fins penais, a Receita Federal do Brasil aplique a alíquota cabível sobre o valor arbitrado das mercadorias a fim de quantificar a soma dos impostos que seriam devidos na importação. Eis o que dispõe, a propósito, o Regulamento Aduaneiro: “Art. 776. Na formalização de processo administrativo fiscal para aplicação da pena de perdimento, na representação fiscal para fins penais e para efeitos de controle patrimonial e elaboração de estatísticas, a Secretaria da Receita Federal do Brasil poderá (Lei nº 10.833, de 2003, art. 65): (...) II – aplicar a alíquota de cinquenta por cento sobre o valor arbitrado das mercadorias apreendidas para determinar o montante correspondente à soma do imposto de importação e do imposto sobre produtos industrializados que seriam devidos na importação.” A locução “seriam devidos” evidencia claramente que a tributação transita exclusivamente no campo das hipóteses, não se reproduzindo no mundo dos fatos. Não há, como se vê, incidência tributária, tampouco algum procedimento administrativo voltado à constituição do crédito tributário. E essa ausência, clarifique-se, não se deve ao desinteresse da autoridade fazendária em promover a cobrança dos impostos, mas, sim, ao fato de que a legislação de regência não prevê, para hipóteses tais, a exigibilidade de tributos aduaneiros. Também se pode aduzir, pelas mesmíssimas razões, que a peculiar estruturação normativa que é característica das regras alfandegárias não consente com o pagamento extemporâneo dos impostos incidentes em operações dessa natureza. Vale dizer, constatada alguma impropriedade na importação, como o subfaturamento ou a não declaração de mercadorias, os bens não são internados e ficam sujeitos à pena de perdimento. Não obstante isso, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 85942/SP, Rel. Min. Luiz Fux, entendeu que o pagamento do tributo enseja a extinção da punibilidade (também) no crime de descaminho (art. 34 da Lei 9.249/1995), conforme se depreende da ementa abaixo transcrita, in verbis: “PENAL. HABEAS CORPUS. DESCAMINHO (ART. 334, § 1º, ALÍNEAS C E D, DO CÓDIGO PENAL). PAGAMENTO DO TRIBUTO. CAUSA EXTINTIVA DA PUNIBILIDADE. ABRANGÊNCIA PELA LEI Nº 9.249/95. NORMA PENAL FAVORÁVEL AO RÉU. APLICAÇÃO RETROATIVA. CRIME DE NATUREZA TRIBUTÁRIA. 1. Os tipos de descaminho previstos no art. 334, § 1º, alíneas c e d, do Código Penal têm redação definida pela Lei nº 4.729/65. 2. A revogação do art. 2º da Lei nº 4.729/65 pela Lei nº 8.383/91 é irrelevante para o deslinde da controvérsia, porquanto, na parte em que definidas as figuras delitivas do art. 334, § 1º, do Código Penal, a Lei nº 4.729/65 continua em pleno vigor. 3. Deveras, a Lei nº 9.249/95, ao dispor que o pagamento dos tributos antes do recebimento da denúncia extingue a punibilidade dos crimes previstos na Lei nº 4.729/65, acabou por abranger os tipos penais descritos no art. 334, § 1º, do Código Penal, dentre eles aquelas figuras imputadas ao paciente – alíneas c e d do § 1º. 4. A Lei nº 9.249/95 se aplica aos crimes descritos na Lei nº 4.729/65 e, a fortiori, ao descaminho previsto no art. 334, § 1º, alíneas c e d, do Código Penal, figura típica cuja redação é definida, justamente, pela Lei nº 4.729/65. 5. Com efeito, in casu, quando do pagamento efetuado, a causa de extinção da punibilidade prevista no art. 2º da Lei nº 4.729/65 não estava em vigor, por ter sido revogada pela Lei nº 6.910/80, sendo certo que, com o advento da Lei nº 9.249/95, a hipótese extintiva da punibilidade foi novamente positivada. 6. A norma penal mais favorável aplica-se retroativamente, na forma do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal. 7. O crime de descaminho, mercê de tutelar o erário público e a atividade arrecadatória do Estado, tem nítida natureza tributária. 8. O caso sub judice enseja a mera aplicação da legislação em vigor e das regras de direito intertemporal, por isso é dispensável incursionar na seara da analogia in bonam partem. 9. Ordem CONCEDIDA.” (HC 85942, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 24.05.2011, DJe-146, DIVULG 29.07.2011, PUBLIC 01.08.2011, EMENT VOL-02556-01, PP-00078) Veja-se que a legislação aludida na ementa (Lei nº 9.249/1995) não rege, atualmente, a extinção da punibilidade em sede de crimes tributários. De qualquer maneira, esse detalhe, que poderia até passar despercebido, não altera o entendimento que emana do referido precedente, no sentido de que o pagamento do débito tributário, no descaminho, tem o efeito de eliminar a punibilidade do fato. De outro lado, ainda que o julgado tenha examinado os efeitos do pagamento apenas à luz do tipo penal do art. 334, § 1º, do Código Penal, cabe registrar que as mesmas dificuldades de ordem prática antes referidas, que desvelam a inexistência de tributos a pagar, incidem inclusive na modalidade básica do descaminho. A bem da verdade, esse precedente do Supremo Tribunal Federal não revolucionou o trato da matéria, pois o repertório jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça já continha pronunciamento favorável à extinção da punibilidade, em razão do pagamento, nos crimes de descaminho.(12) De qualquer sorte, com a manifestação do Supremo Tribunal Federal, e máxime em razão de sua função dentro do arcabouço constitucional, a matéria, por certo, ganhará um novo colorido. É sabido e consabido que o pagamento, nos chamados crimes tributários, funciona como uma autêntica válvula de escape, fazendo as vezes de uma verdadeira carta de alforria. É dizer, se pagos os tributos, antes ou depois de iniciada a ação penal, o autor dos fatos receberá um atestado de inocência assinado pelo legislador. Embora a escolha de nosso legislador não esteja a salvo de críticas, não nos causa espécie que assim seja. De fato, ninguém esconde que, em tais delitos, sobrepõe-se de forma muito clara a sanha arrecadatória do Estado, o que, a toda prova, deprecia o propósito e fragiliza as raízes do direito penal. Essa é uma verdade que se acomoda perfeitamente aos crimes tributários propriamente ditos, cuja categoria não compreende, no entanto, o delito de descaminho. Com efeito, o descaminho, como amiúde ressaltado, protege não só a ordem tributária, mas também a economia e a indústria nacional, para dizer alguns outros bens jurídicos. Em sentido inverso do que ocorre nos demais crimes genuinamente tributários, no descaminho o propósito arrecadatório não se manifesta com igual grandeza. Isso ocorre porque a tributação em relação às operações de comércio exterior possui destacada função extrafiscal, voltando-se, portanto, mais para a regulação da atividade econômico-comercial do que propriamente para a obtenção de receita (finalidade fiscal). José Paulo Baltazar Junior, após afirmar que não é permitido o pagamento do tributo para fins de regularização da mercadoria, estando prevista a sanção de perdimento, salienta que “O fundamento para o tratamento diverso reside no fato de que o descaminho protege a regularidade fiscal em relação a tributos aduaneiros, tendo acentuada função extrafiscal, no sentido da proteção da indústria nacional e até mesmo da regularidade dos produtos internalizados, até mesmo do ponto de vista da segurança do consumidor.”(13) Desse modo, insistir na afirmação de que o descaminho possui (também) natureza tributária não resolverá o impasse, pois, repita-se, somente a natureza do delito não abrirá, em absoluto, a possibilidade de que o pagamento venha a extinguir a punibilidade. Não só porque o descaminho, em sua estrutura, distingue-se dos demais crimes congêneres na proteção da ordem tributária, mas também porque, além de não haver previsão legal para a extinção da punibilidade, o pagamento, se fosse admitido, introduziria um elemento estranho à linearidade do descaminho. De fato, falar em pagamento é pressupor que alguma regra determine a exação a ser paga ou que algum tributo esteja impago. No descaminho, todavia, isso não ocorre. Essa afirmação não representa uma mera lucubração, mas, ao contrário, apoia-se na legislação vigente que regulamenta minuciosamente a matéria alusiva à importação de mercadorias. Não que seja inviável a construção de uma solução hermenêutica para situações semelhantes ao pagamento, se a intenção for, de fato, favorecer os autores de descaminho. Mas não se pode afirmar peremptoriamente que o pagamento dos tributos acarrete a extinção da punibilidade, haja vista que, a par da ausência de previsão legal (ex vi do art. 69 da Lei nº 11.941/2009), não há nada a pagar. Deixa-se claro que não é pelo fato de ser crime formal que o pagamento não possa extinguir a punibilidade. Se houvesse previsão legal e se a possibilidade de se atribuir tal efeito ao pagamento fosse coerente à essência do próprio tipo penal (ou seja, apresentasse uma correspondência exata com o seu objeto), não haveria espaço para óbices somente pela circunstância de o crime ser formal. Por exemplo, o crime do art. 168-A do CP é formal e, nele, não só há previsão legal (art. 69 da Lei nº 11.941/2009) como o pagamento tem idoneidade empiricamente comprovada para levar à extinção da punibilidade. E isso se deve a uma razão bastante lógica: na apropriação indébita previdenciária existe, à evidência, tributos a pagar. O fenômeno da exigibilidade tributária, como já visto, não se manifesta nos delitos de descaminho antes esquadrinhados. Assim, se a hipótese carece de regra de incidência tributária, não se pode tolerar o pagamento. Em outras palavras, e para colocar um ponto final no assunto, não há como reconhecer o pagamento de uma dívida tributária que, em realidade, não existe. Se não há pagamento, que dirá extinção da punibilidade. Voltando à jurisprudência analisada, e principalmente ao precedente do Supremo Tribunal Federal (HC 85942/SP), é possível deduzir, com uma dificuldade de ordem prática bem elevada, que, mesmo nos casos acima sumariados, haveria imposto a pagar. Se há imposto a pagar, e se o descaminho, agora, transformou-se em um autêntico crime material, não seria despropositado supor que inexistirá crime de descaminho em sendo a operação livre de imposto, como nos casos em que se sucede o perdimento. Grosso modo, se houver o perdimento, o autor da “importação” demite-se da responsabilidade penal – se bem que, nesse caso, até mesmo os mais incrédulos diriam que sobra exagero na argumentação. Conclusão Este despretensioso escrito não possui nenhuma intenção reacionária. À parte das ressalvas a algum pronunciamento da jurisprudência, este modesto trabalho não tem o propósito de oferecer solução definitiva às questões mencionadas, mas, apenas, provocar uma reflexão acerca de um tema que continua inspirando cuidados e que, pelo visto, ainda tem muito a oferecer. Com efeito, tentou-se demonstrar que o delito de descaminho possui uma estrutura toda peculiar que o aparta dos demais crimes que, como ele, também se vocacionam a proteger a ordem tributária. Isso leva à necessidade de ser construída uma base teórica distinta para temas ainda efervescentes na doutrina e na jurisprudência, a exemplo do lançamento definitivo como condição objetiva de punibilidade e do pagamento como causa extintiva de punibilidade. Referências bibliográficas BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. CAPEZ, Fernando; PRADO, Stela. Código Penal comentado. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007. JESUS, Damásio de. Direito Penal: parte especial. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 4. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. São Paulo: RT, 2005. PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: RT, 2007. Notas
1. STJ, HC 201.164/PR, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 08.11.2011, DJe 01.12.2011; HC 137.628/RJ, Rel. Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ/CE), Sexta Turma, julgado em 26.10.2010, DJe 17.12.2010. 4. Assim já decidiu o STJ: “Embora o delito de descaminho esteja descrito na parte destinada aos crimes contra a Administração Pública no Código Penal, motivo pelo qual alguns doutrinadores afirmam que o bem jurídico primário por ele tutelado seria, como em todos os demais ilícitos previstos no Título IX do Estatuto Repressivo, a Administração Pública, predomina o entendimento de que, com a sua tipificação, busca-se tutelar, em primeiro plano, o erário, diretamente atingido pela ilusão do pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria” (HC 139.998/RS, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 25.11.2010, DJe 14.02.2011). 5. JESUS, Damásio de. Direito Penal: parte especial. 12. ed.. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 4. p. 237-238. 7. TRF4, ACR 0000287-91.2009.404.7115, Oitava Turma, Relator Victor Luiz dos Santos Laus, D.E. 12.04.2012. 8. TRF4, 5002752-65.2011.404.7002, Sétima Turma, Relator p/ Acórdão Márcio Antônio Rocha, D.E. 11.04.2012. No que se refere à incidência do princípio da bagatela, é de todo conveniente ressaltar que o Supremo Tribunal Federal, em recente precedente, decidiu que a importação de cigarros, na modalidade contrabando, um dos mais comuns ilícitos praticados nas regiões fronteiriças, não se compadece com a aplicação da insignificância penal (HC 110964, Relator Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 30.03.2012). Em sentido contrário, a jurisprudência do E. TRF4 vem tolerando a incidência do princípio da bagatela à importação de cigarros estrangeiros sem a documentação de sua irregular importação, seja como descaminho, seja como contrabando (ACR 0001053-17.2008.404.7007, Sétima Turma, Relator Márcio Antônio Rocha, D.E. 12.04.2012). Da mesma forma, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem evoluído e acenado com a possibilidade da rejeição da bagatela em razão da presença de alguma circunstância subjetiva desfavorável, a exemplo da habitualidade criminosa (HC 100367, Relator Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 06.09.2011). |
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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