Resumo
Apresenta alguns dados estatísticos do Judiciário brasileiro. Sustenta que a quantidade de processos em tramitação constitui perigoso estímulo à superficialidade na apreciação das causas, o que é especialmente danoso quando se trata de demandas que dependem de produção de prova. Estuda a prova judicial no processo civil, seu conceito e sua finalidade. Ratifica a importância da produção e da análise acurada da prova no processo como forma de evitar decisões judiciais céleres, porém injustas.
Palavras-chave: Processos judiciais. Duração razoável. Prova. Documentos. Depoimentos. Inspeção judicial. Colheita. Análise detalhada. Atuação de ofício. Celeridade. Superficialidade. Justiça. Injustiça.
Sumário: Introdução. 1 A prova: conceito e finalidade. 2 Atuação de ofício do juiz na produção da prova. 3 A importância da prova. 4 Estudo de casos. 4.1 Pensão por morte. Relacionamento homoafetivo. 4.2 Embargos de terceiro. 4.3 Mandado de segurança. 4.4 Pedidos de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
Inicia-se o presente trabalho transcrevendo-se notícia, datada de 29 de outubro de 2012, colhida no Portal do Conselho Nacional de Justiça, a qual bem demonstra o drama vivido pelo sistema judiciário brasileiro:
“O volume de processos em tramitação no Poder Judiciário brasileiro chegou a 90 milhões no ano passado. O número inclui, pela primeira vez, dados dos segmentos eleitoral e militar. De acordo com a pesquisa Justiça em Números, feita pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 63 milhões de processos já estavam pendentes no final de 2010 e continuaram em andamento no ano passado.
Segundo o conselheiro José Guilherme Vasi Werner, ‘os números assustam, e os estrangeiros chegam a pensar que é um erro de tradução porque nenhum país tem um volume tão grande de processos judiciais’. Em entrevista coletiva, o conselheiro completou que esse cenário decorre da cultura de litigiosidade dos brasileiros.
Ainda segundo a pesquisa, outros 26 milhões de ações foram apresentadas ao longo de 2011, aproximadamente o mesmo número de processos baixados (resolvidos). O volume de processos baixados aumentou 7,4% em relação ao ano anterior e foi o maior dos últimos três anos. Mesmo com esse desempenho, o estoque de processos continuou crescendo. De 2010 para 2011, o crescimento foi de 3,6%, ritmo semelhante ao dos anos anteriores. Para reduzir o estoque, o volume de processos baixados teria de superar o de novos.
O crescimento do estoque decorre do aumento da demanda, medida pelo número de casos novos, que aumentou 8,8% em 2011. Outro aspecto relevante é a morosidade na solução dos processos de execução, elevando a taxa de congestionamento nessa fase processual a 85%.”(1)
Não constitui objeto do presente trabalho analisar detidamente as origens do fenômeno acima noticiado. Contudo, ainda que superficialmente, apontam-se as seguintes causas: a) a judicialização de todo e qualquer tema em discussão na sociedade; b) a chamada ‘judicialização da saúde’; c) a judicialização de toda e qualquer execução fiscal; d) a inexistência de sucumbência recursal progressiva; e) a litigância isenta de riscos, seja pela total gratuidade dos Juizados Especiais, seja pela generosa concessão da gratuidade da justiça; f) a resistência do brasileiro em cumprir regras e respeitar os direitos alheios; g) o quadro de mais de 800 mil advogados atuantes no país.(2)
Quaisquer que sejam as causas, certo é que, para julgar o estoque de processos aqui referido, o Brasil conta com cerca de 17 (dezessete) mil juízes,(3) o que resulta em uma média aritmética simples – apenas para fins ilustrativos – de mais de 5 (cinco) mil processos por juiz. É de se destacar que o viés é de alta, ou seja, a tendência é de que o número de processos aumente em ritmo maior que o número de juízes.(4)
Nada obstante os números ora apresentados, a Reforma do Judiciário, consubstanciada na Emenda Constitucional nº 45/2004, atribuiu ao inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal a seguinte redação:
“LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
É perante tal cenário que atuam os juízes brasileiros: precisam julgar, em prazo razoável, mais de 90 (noventa) milhões de processos. Cumprir tal missão em causas nas quais a controvérsia remanesce apenas na interpretação do ordenamento jurídico é tarefa menos difícil. Dificuldades maiores surgem quando se têm em vista aquelas causas em que o ordenamento somente pode ser aplicado após a prévia certificação dos fatos, ou seja, quando não se pode, na sentença, invocar o art. 330 do Código de Processo Civil.
É de se ressaltar que o quadro traçado conspira a favor da superficialidade, ou seja, para o não aprofundamento na produção, na colheita e na análise da prova e para que o caso concreto se ajuste a um prévio entendimento ou decisão, e não o contrário, como é o desejável.
O presente trabalho, a partir da análise de casos concretos, pretende ressaltar o protagonismo da prova no processo judicial civil, protagonismo este que não deve ser relevado nem mesmo diante da avalanche de processos que soterra o Judiciário. Inicia-se por estudar, ainda que brevemente, a prova.
1 A prova: conceito e finalidade
O capítulo VI do Título VIII do Código de Processo Civil, englobando os artigos 332 a 443, regula a prova, daí se destacando o depoimento pessoal, a confissão, a exibição de documento ou coisa, a prova documental, a prova testemunhal, a prova pericial e a inspeção judicial. ARENHART e MARINONI(5) definem a finalidade da prova e, afinal, a conceituam, nos seguintes termos:
“Da pequena incursão feita sobre alguns avanços na teoria do conhecimento, pode-se extrair que a função da prova é prestar-se como peça de argumentação, no diálogo judicial, elemento de convencimento do Estado-Jurisdição sobre qual das partes deverá ser beneficiada com a proteção jurídica do órgão estatal.
A decisão judicial é legitimada pelo procedimento que a precede. São a forma e as garantias que permeiam o procedimento que permitem que a decisão daí emanada seja legítima e represente, ipso facto, a manifestação de um Estado de Direito. E essa legitimação se dá na proporção direta do grau de participação que se autoriza aos sujeitos envolvidos no conflito para a formação do convencimento judicial. Assim é que essa participação se dá, em linhas genéricas, por intermédio de alegações e comprovações; permite-se que as partes afirmem as situações de fato e de direito (em suma, os fatos jurídicos) que embasam suas pretensões ou suas exceções e, como consequência necessária, autoriza-se que comprovem (rectius, a convencer) ao magistrado que tais afirmações de fato são verossímeis. A prova assume, então, um papel de argumento retórico, elemento de argumentação, dirigido a convencer o magistrado de que a afirmação feita pela parte, no sentido de que alguma coisa efetivamente ocorreu, merece crédito.
Obviamente, tais noções partem do entendimento das ideias iniciais, vinculadas à teoria do agir comunicativo, propostos pela teoria habermasiana. Dentro dessa ótica (e aplicando essa teoria), tem-se que todos os sujeitos do processo estão em situação de diálogo (podem comunicar-se, porque dominam os critérios da interação). A parte (por suposição, autora) faz uma proposição (por exemplo, na petição inicial), contra cuja validade podem insurgir-se os demais sujeitos da comunicação (no caso, os sujeitos do processo): havendo impugnação à pretensão da validade da primeira proposição, surge a necessidade da argumentação sobre a proposição, o que se faz por meio da prova. A prova, em direito processual, então, assume a condição de um meio retórico, regulado pela lei, e dirigido a, dentro dos parâmetros fixados pelo Direito e de critérios racionais, convencer o Estado-juiz da validade das proposições, objeto de impugnação, feitas no processo.”
É de se ressaltar, no entanto, que não só às partes cabe atuar na produção da prova, também o magistrado pode atuar ativamente nessa área. Vejamos a seguir.
2 Atuação de ofício do juiz na produção da prova
Nada obstante o que se vem de expor, é certo que, no processo civil brasileiro, no que se refere à produção da prova, o juiz não é uma figura inerte, passiva; possui ele liberdade para, de ofício, determinar a realização de provas, bem como para valorar todos os fatos provados, ainda que não alegados. Nesse sentido, transcreve-se o comando contido nos arts. 130 e 131 do Código de Processo Civil:
“Art. 130. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.
Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.”
Como se pode observar, o magistrado não é um ator processual absolutamente limitado pelos fatos alegados e provados (ou não provados) pelas partes. Antes pelo contrário, o ordenamento processual lhe oferece ferramentas para que complemente o quadro probatório sempre que entender necessário. É claro que se trata de faculdade a ser utilizada com parcimônia, não devendo ser vulgarizada, já que não há como negar que compete precipuamente às partes provar suas alegações, conforme preceitua o art. 333 do CPC. Nada obstante, casos há em que, para se aproximar o máximo possível da certeza, da verdade e da justiça, a atuação de ofício do juiz é necessária, seja para determinar a oitiva de testemunha não arrolada, seja para requisitar documento importante à análise do feito, seja para determinar a realização de prova pericial.
Acerca das duas normas processuais acima transcritas, leciona DALL’AGNOL(6):
“1. Princípio da investigação – O art. 130 do Código, que encontra precedente no art. 117 do CPC de 1939, adota, de modo inequívoco, o princípio da investigação (Verhandlungsmaxime) – que se contrapõe, segundo a doutrina que distingue os momentos de iniciativa, limitação e manutenção da demanda dos próprios ao impulso processual e iniciativa da prova, ao princípio do debate (Untersuchungsmaxime) –, afastando-se o sistema positivo brasileiro, por completo, da velha ideia de que, em tema de prova, a iniciativa é monopólio das partes.
O dispositivo sob exame, sem a menor distinção, confere ao juiz poderes de iniciativa na instrução, pois, no processo moderno, publicístico, o que se objetiva, fundamentalmente, é alcançar a verdade. Em nada resta arranhado o princípio estabelecido pelo art. 333 do Código (distribuição dos encargos da prova), que é regra de que há de lançar mão o juiz, acaso não comprovados os fatos alegados.
Desse modo, verificando pelos elementos constantes dos autos a possibilidade de comprovação de algum fato, menos do que faculdade, tem o juiz o dever de determinar as diligências necessárias, como rezava o art. 117 do CPC de 1939. Não há nisso, ao contrário do que eventualmente se apregoa, nenhuma quebra da independência do juiz, pois o compromisso deste é com a restauração dos fatos, o que implica a utilização dos meios possíveis de recuperação. De mais a mais, nada sabe, com antecipação, do resultado da prova, motivo por que é equivocada a tese de que estaria ele rompendo com o indispensável distanciamento.
A regra, portanto, no sistema brasileiro, é a de que, em matéria de prova, não só à parte se reconhece o poder de iniciativa, mas, também, ao juiz.
[...]
1. Apreciação judicial da prova – O artigo em exame evidencia a adoção, pelo sistema pátrio, do princípio da persuasão racional em tema de avaliação da prova pelo juiz, com o que, posto reconhecendo liberdade ao julgador, como os ordenamentos jurídicos modernos em geral, impõe-lhe limites no concernente ao material a ser examinado e a necessidade de expressão das razões de seu convencimento.
[...]
O juiz brasileiro, portanto, como regra, não se vê jungido ao que se denomina de normas jurídicas de tarifação da prova. É ele, e ninguém mais, não obstante perfeitamente viável – e até estimulado por sistema que se funda na boa-fé objetiva – a colaboração das partes, por seus procuradores judiciais, quem, apreciando as provas produzidas nos autos, pesa-as, ao efeito de formação de seu próprio convencimento. Essa atividade intelectual implica a apreciação da fonte, do meio e do resultado mesmo da prova: ‘o juiz, não obstante aprecie as provas livremente, não segue as suas impressões pessoais, mas tira a sua convicção das provas produzidas, ponderando sobre a qualidade e vis probandi destas; a convicção está na consciência formada pelas provas, não arbitrárias e sem peias, e sim condicionada a regras jurídicas, a regras de lógica, a regras da experiência, tanto que o juiz deve mencionar na sentença os motivos que a formaram’.”(7)
Como se percebe acima, a iniciativa probatória do juiz é tradição no direito processual brasileiro desde o Código de Processo Civil de 1939, tradição esta mantida no projeto de novo Código de Processo Civil, aprovado na Câmara dos Deputados em março de 2014 e ora em tramitação no Senado Federal, cujo art. 377 assim dispõe:
“Art. 377. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento da lide.”(8)
A manutenção da regra processual que permite a produção de prova de ofício pelo juiz, agora já sem séria contestação doutrinária, dá a dimensão da importância do tema, cuja relevância não deve ser olvidada, especialmente pelos próprios juízes. Nesse passo, cumpre lembrar ainda que a Lei nº 9.099/95, que regula o microssistema processual dos Juizados Especiais, também possui norma que autoriza produção de prova decorrente da atuação de ofício do juiz. Inclusive, a referida lei parece ter ido além. Transcreve-se agora seu artigo 5º:
“Art. 5º O Juiz dirigirá o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, para apreciá-las e para dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica.”
Acerca da referida norma, ROCHA(9) tece os seguintes comentários:
“A norma contida no art. 5º da Lei faz com que o juiz conduza o processo na busca da verdade real, e não apenas da verdade formal ou processual. É um avanço que já vem sendo reclamado por diversos processualistas da área cível, que não mais admitem o processo voltado exclusivamente para atender os interesses das partes. Outro exemplo dessa postura na Lei nº 9.099/95 é o art. 35, que prevê a atuação do juiz na produção da prova técnica.
No que diz respeito à valoração das provas, não se pode dizer que a Lei nº 9.099/95 tenha inserido uma novidade, pois o Brasil já adotava o princípio da persuasão racional e da livre valoração das provas desde 1973 (arts. 125 a 131 do CPC). Mesmo assim, o sistema dos juizados especiais traz um plus, ao anotar que o juiz desfruta de diversos recursos, inclusive a experiência comum e a técnica jurídica. O dispositivo aqui tem uma conotação diversa da adotada pelo artigo 335 do CPC, que restringe a aplicação desses recursos à falta de normas jurídicas particulares.
Com isso, a utilização de regras da experiência comum e da técnica no julgamento passaram a ter um novo relevo, principalmente em relação aos juízes cíveis, que sempre tiveram receio de libertar-se das amarras do processo para vincular as decisões que proferem às suas convicções pessoais. Como bem assinala Maurício Antonio,(10) trata-se de uma liberdade relativa, atrelada que está aos princípios da legalidade e da razoabilidade, ambos de matiz constitucional. Por isso, de forma alguma pode-se pensar que esse dispositivo altera a condição de imparcialidade do juiz, que é elemento indissociável para sua legitimidade. O que ocorre é que esses recursos sempre foram subestimados pela noção deturpada de neutralidade do julgador, como se ele não fosse uma pessoa e não vivesse em sociedade. É inevitável reconhecer que a percepção que o juiz tem do direito passa, necessariamente, pela sua formação cultural e social, amoldada ao longo de uma vivência tanto profissional como pessoal. Dessa forma, entendemos que a menção às regras de experiência comum ou de técnica tem, isto sim, o condão de trazer para a fundamentação da decisão aquilo que antes ficava aprisionado na consciência do magistrado.”
Conforme se pode perceber, há uma grande preocupação do legislador com a produção e a análise da prova, tanto que dá liberdade ao juiz para produzi-la de ofício caso esteja inseguro ou insatisfeito com as provas até então produzidas e diante de determinadas particularidades da hipótese concreta sob exame. E assim é porque a prova é deveras importante, já que se destina à certificação dos fatos sobre os quais o direito será aplicado e a decisão, proferida. Há que se atentar para o detalhe de que é mais difícil definir os fatos sobre os quais incidirá a norma jurídica do que encontrar a norma jurídica aplicável ao caso. Em geral, a norma jurídica – e a interpretação que a ela se dá – é prévia e razoavelmente conhecida pelos operadores jurídicos. Já a exatidão do fato (ou a proximidade da exatidão) é mais difícil de ser encontrada. Por isso, a importância da prova, examinada a seguir.
3 A importância da prova
A prova destina-se à certificação dos fatos, atividade que precede à decisão. Na apreciação da prova colhida, ao contrário do que acontece com a interpretação das normas, o espaço para utilização de ideias pré-concebidas e valores ideológicos é reduzidíssimo, ainda que não totalmente afastado. Nesse passo, transcreve-se as sábias lições do Desembargador Federal Leal Júnior(11):
“É a partir dos fatos que o julgamento muitas vezes deve iniciar. Geralmente, o fato é o elemento mais negligenciado pelas partes e pelo julgador na prestação jurisdicional, sendo relegado a um plano secundário e menos importante em uma época em que a prestação jurisdicional se quer medir por quantidades, por números de processos julgados, por metas a serem cumpridas, e a atuação do juiz se vê limitada ao julgamento célere de montanhas de ações de massa, sem tempo nem espaço para que fatos e contextos sejam debatidos.
Entretanto, nesses conflitos envolvendo grupos multiculturais e busca de reconhecimento de direitos e preservação da identidade cultural, os fatos são muito importantes porque, conforme tenham acontecido ou deixado de acontecer, e conforme isso esteja ou não provado nos autos, pode ser diferente o julgamento do processo e da aplicação do Direito.”
E conclui:
“6º) O julgador não pode estar comprometido a priori com valores ou direitos absolutos (proteger o meio ambiente, combater a corrupção, punir discriminação, favorecer grupos vulneráveis), exceto quanto ao respeito à dignidade do ser humano e à existência de limite ético para atuação jurisdicional;
7º) O julgador também não pode estar comprometido com objetivo específico a ser atingido em favor de algum valor ou direito absoluto, mas deve se esforçar para examinar com imparcialidade o caso concreto e para considerar todas as perspectivas envolvidas em um conflito.”
Em outros termos, à luz dos ensinamentos acima, a decisão judicial deve ter por norte a prova produzida nos autos, e não os valores ou as ideias pré-concebidas pelo juiz, sob pena de produzir-se decisões discriminatórias (ainda que bem intencionadas) e injustas.
Exemplos práticos a seguir estudados darão uma melhor compreensão do que se vem de dizer.
4 Estudo de casos
4.1 Pensão por morte. Relacionamento homoafetivo
Em determinado caso concreto,(12) um jovem requereu administrativamente ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) o benefício de pensão por morte, em razão do falecimento de determinado segurado. Embasou seu requerimento na alegação de união estável homossexual.
O direito aplicável ao caso, em tese, não era (é) controvertido, visto que o Supremo Tribunal Federal já havia decidido pela viabilidade constitucional da união estável homossexual, isso no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ e da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277/DF. No mais, a Lei nº 8.213/91 regula a matéria, especialmente nos artigos 16, 74 e seguintes. Evidentemente, a referida lei equipara, para fins previdenciários, o companheiro (ou companheira) à figura do cônjuge.
Portanto, a questão jurídica era simples e incontroversa. O benefício, no entanto, restou indeferido em face de questão fática: inexistência de prova da união estável. O jovem, então, vem a juízo, onde acrescenta, em seu depoimento, a dificuldade de produzir prova em razão da necessidade de manter discrição no relacionamento, em razão do preconceito familiar e social.
Aqui um parêntese. Suponhamos que o tema discriminação (em geral) ou discriminação contra homossexuais (mais particularmente) fosse extremamente caro ao juiz do processo. Suas ideias pré-concebidas, a necessidade de ser célere, o desejo (ainda que inconsciente) de proferir decisão socialmente simpática (e até politicamente correta) poderiam instigar-lhe a ficar na superficialidade da prova, a aceitar passivamente a alegação genérica de discriminação e a ajustar o caso ao seu prévio entendimento, em vez de aplicar a norma aos fatos provados (ou não provados). É isso o que a lição doutrinária imediatamente acima citada combate. O ‘comprometimento a priori’, conforme citado, não pode contaminar o julgamento, pois isso seria uma forma de discriminação reversa, atitude que tanto o citado magistrado combate.
Conforme a lição referida, é pelos fatos que o julgamento deve começar. Fechando-se o parêntese e voltando ao caso concreto, o fato que se pretendia provar estava embasado em poucas provas documentais. A sentença a elas se manifestou nestes termos:
“Devo dizer que a prova material é escassa, e isso porque: a) a técnica de enfermagem declarante não foi arrolada como testemunha, o que submeteria a declaração ao crivo do contraditório; b) a nota fiscal prova a entrega da bicicleta no endereço do autor em Tubarão, e não no alegado endereço do casal em Laguna; c) a constante troca de e-mails prova distância, e não proximidade; d) fotos, por si só, por registrarem uma fração de tempo, são documentos neutros; olhando-se para elas, não se pode concluir se havia amizade, namoro ou união estável, nem se tal situação se perpetuou no tempo.”
Nada obstante a citada escassez, o entendimento sumulado no enunciado 8 da Turma Regional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais da 4ª Região é no sentido de que a união estável pode ser reconhecida com base em prova exclusivamente testemunhal.(13) No ponto, restou afastada a aplicação analógica do § 3º do art. 55 da Lei nº 8.213/91(14) e da Súmula 149 do Superior Tribunal de Justiça,(15) os quais, salvo caso fortuito ou força maior, devidamente comprovados, vedam o reconhecimento de tempo de serviço rural com base em prova exclusivamente testemunhal.
Daí a necessidade de produção de prova testemunhal. E aqui é necessário ressaltar um traço típico às ações judiciais semelhantes àquela ora analisada, mesmo quando se trata de casal heterossexual: nestes casos, além de ser comum a apresentação de prova material insuficiente a uma conclusão segura – no sentido da existência da união estável –, a parte autora traz a juízo pessoas meticulosamente escolhidas para confirmar sua tese, muitas delas amigas íntimas. Já o INSS não tem testemunha, como é a praxe em se tratando de Fazenda Pública.
Em suma, muitas vezes, além da prova material trazida ser tênue, a prova testemunhal não se apresenta muito digna de credibilidade. Diante de tal hipótese, o juiz pode (ou mesmo deve), sempre que possível, atuar ativamente na produção da prova, valendo-se das normas processuais aqui já referidas (art. 130 do CPC e art. 5º da Lei nº 9.099/95). Em outros termos, não deve o juiz ceder à tentação de ser célere e superficial, ainda que tudo conspire para tanto. Assim sendo, ao menos duas providências são cabíveis: a) a inspeção judicial de que tratam os artigos 440 e seguintes do CPC e o artigo 35, parágrafo único, da Lei nº 9.099/95; b) a determinação de intimação, para depor como testemunha, ou informante do juízo, da pessoa que declarou o óbito do segurado falecido, se esta for uma terceira pessoa não arrolada pela parte-autora.
No que toca à inspeção judicial, providência processual extremamente útil – ao mesmo tempo em que pouco utilizada –, o ideal é sua realização de surpresa, sem prévia intimação das partes, evitando-se assim que o quadro fático seja artificialmente alterado. O aviso prévio praticamente torna inútil o ato. O ideal é que tal providência seja realizada antes da audiência de instrução, com o que se permite a manifestação por escrito do auto circunstanciado, bem como, ainda, a prestação de quaisquer esclarecimentos complementares em audiência. Ou seja, duas oportunidades de manifestação.
Já no que se refere ao depoimento da terceira pessoa que declarou o óbito, a experiência tem demonstrado que sua contribuição para o quadro probatório é riquíssima, seja para confirmar a tese autoral – e assim dar mais segurança à sentença de procedência –, seja para trazer novos detalhes e elementos de prova, muitas vezes propositadamente omitidos pelos autores. Não raras vezes, tal depoimento se mostra mais digno de credibilidade do que os depoimentos da parte-autora e de todas as testemunhas e os informantes por ela arrolados, somados; outras vezes, traz detalhes que levam a provas materiais importantes. Em síntese, é o elemento surpresa funcionando, seja para confirmar a tese autoral, seja para contestá-la.
É por tudo isso que, no caso concreto ora em estudo, por determinação judicial de ofício, foi ouvida a pessoa que declarou o óbito do segurado, que no caso era um primo seu. Antes, porém, ouviu-se o autor, uma informante por ele trazida (amiga íntima) e duas testemunhas.
Conclusos os autos para sentença, detalhes colhidos nos e-mails trocados pelo casal, que antes, infelizmente, haviam passado despercebidos, tornaram necessária a conversão em diligência, com a reabertura da instrução para realização de nova audiência, em que todos os depoimentos foram renovados. Tudo isso para dar solidez probatória à sentença, na medida em que a superficialidade poderia levar aos seguintes resultados: a) negar a renda vitalícia da pensão por morte a quem efetivamente era companheiro; b) conceder a referida renda, às custas da Previdência Social, a uma pessoa jovem que não era companheiro, quiçá ex-namorado.
O resultado da prova colhida e analisada é que aquilo que alguém poderia chamar de perda de tempo e isenção (realização de duas audiências, leitura de todos os e-mails trocados, determinação de ofício de oitiva de testemunha) culminou em quadro probatório que tornou tranquila e segura a prolação da sentença; ou, em outras palavras, evitou a injustiça.
A testemunha ouvida de ofício trouxe vários detalhes, em contraposição aos depoimentos mais genéricos que lhe precederam; tais detalhes estavam em consonância com a prova material. Em síntese, toda a prova cuidadosamente colhida indicava que houve um namoro por algum tempo; não houve residência comum; não houve habilitação em inventário, embora o falecido fosse proprietário de bens, conforme o próprio autor detalhou; ficou constatado que, com o passar do tempo, o casal se distanciou; o falecido tinha sua vida profissional e independência financeira, além de ser bem mais velho que o autor; da família próxima, o falecido só tinha o pai idoso e o primo (testemunha); com o recrudescimento de sua doença (neoplasia e HIV), o falecido voltou à residência paterna para cuidados; houve ainda internação hospitalar por 15 dias, em setor de isolamento, ficando a testemunha ouvida de ofício como acompanhante.
Há também outros detalhes da prova, os quais não cabe neste estudo detalhar. É de se dizer apenas que a hipótese de necessidade de discrição no relacionamento foi sopesada; no entanto, no caso, além de não comprovada, a discriminação social ou familiar não justificava o afastamento do casal, na forma como ocorreu.
Certo é que a união estável restou claramente descartada, sendo julgado improcedente o pedido de pensão por morte, decisão confirmada pela instância superior e transitada em julgado.
É de se salientar que somente se chegou a tal decisão, ora conceituada como segura, porque fugiu-se à superficialidade, aos argumentos-chavão, às ideias pré-concebidas, à premente obrigação de ser célere diante dos milhares de outros processos para julgar. O que se fez foi colher e analisar a prova com cuidado – sem preconceito em qualquer sentido –, deixando que o resultado levasse o processo a uma conclusão natural.
Esse o grande desafio que se impõe aos juízes atualmente: esmiuçar os fatos, fugir à superficialidade e à tentação de ajustar o caso às suas ideias e aos seus entendimentos; deixar que a prova, apurada e analisada de forma isenta, norteie o resultado. O desafio é ainda maior quando, retornando-se ao início do presente trabalho, sabe-se que tramitam no Judiciário mais de 90 (noventa) milhões de processos.
4.2 Embargos de terceiro
Deram entrada em juízo embargos de terceiro em face de penhora de imóvel efetivada em execução fiscal. A empresa executada tinha por sócias, no contrato social, mãe e filha. O embargante era o marido, defendendo sua meação. Consta do relatório da sentença(16):
“Da petição inicial, extrai-se, em suma, que, na execução fiscal ajuizada contra XX Indústria e Comércio Ltda., em 06.05.2010, foi penhorado imóvel da propriedade do embargante (imóvel matrícula nº XX, área 65.525,00m2, com galpão de alvenaria de 1.202,00m2, no município de XX/SC). O embargante não é parte na execução, tampouco sócio daquela empresa, esclarecendo que sua esposa, também proprietária do imóvel e com quem é casado sob regime da comunhão universal, é sócia. O embargante recebe aposentadoria, por isso não se beneficiou da dívida contraída pela esposa, salientando que a empresa passa por situação financeira precária sem render lucro à família dos sócios. Citou a Súmula nº 251 do STJ, no sentido de que a meação não responde pela dívida se esta não beneficiou o casal. O valor do bem penhorado (R$ 1.650.000,00) é muito superior ao valor da execução (R$ 67.502,38), caracterizando excesso na penhora, pleiteando o desmembramento do imóvel para que a penhora incida apenas sobre a parcela correspondente à dívida ou, alternativamente, a reserva da meação. Pleiteou a liminar para imediata suspensão da alienação judicial e a procedência do pedido para fracionamento da penhora com incidência desta apenas sobre o valor da dívida ou para cancelar a penhora incidente sobre a meação. Requereu a JG.”
Na espécie, caso o juízo houvesse se limitado apenas ao exame superficial dos documentos apresentados, notadamente o contrato social, talvez a conclusão fosse pela reserva da meação do cônjuge que se apresentava como estranho à sociedade. E, ao que parece, as partes estavam satisfeitas com que assim se procedesse, visto que nenhuma delas requereu a produção de prova oral. No entanto, de ofício, os autos foram baixados em diligência apenas para se tomar o depoimento pessoal do embargante. O resultado abaixo se transcreve:
“Juiz: O senhor é XX?
Depoente: Sim.
Juiz: Seu XX, nós temos aqui este processo então de embargos de terceiro que o senhor promove contra a União. Essa empresa YY Indústria e Comércio é... Quem são os sócios dela?
Depoente: Seriam CC e NN.
Juiz: Muito bem. Qual é a sua relação de parentesco com elas?
Depoente: Eu sou esposo da CC.
Juiz: E da NN?
Depoente: Sou pai.
Juiz: O senhor é pai da NN. Essa empresa é... Qual era a sede dela? Onde é que ficava a sede dela?
Depoente: A sede é DD.
Juiz: DD. Ela não funciona mais?
Depoente: Não, não.
Juiz: Fechou as atividades. O senhor sabe quando encerrou as atividades? O senhor sabe quando que encerrou as atividades?
Depoente: Deve fazer uns... Quatro anos. Três ou quatro anos, por aí.
Juiz: De três a quatro anos. O senhor nunca foi sócio da empresa?
Depoente: Não.
Juiz: O senhor nunca foi sócio?
Depoente: Não, senhor.
Juiz: O senhor possuía alguma procuração pra administrar a empresa?
Depoente: Às vezes eu tinha, né, uma certa procuração pra fazer algum trabalho.
Juiz: Às vezes não. O senhor tinha uma procuração?
Depoente: Tinha.
Juiz: Tinha uma procuração pra administrar a empresa?
Depoente: Tinha.
Juiz: Tinha procuração, muito bem. O senhor... É... Mas o senhor não era sócio?
Depoente: Não.
Juiz: O senhor era registrado na empresa?
Depoente: Ultimamente fui registrado.
Juiz: Foi registrado. Muito bem, o senhor recebia salário na empresa? Recebia salário. Muito bem. E... Essa empresa, quando funcionava, ela tinha em média quantos empregados?
Depoente: Ela teve... Uma época que foi usada a exportação, ela tinha bastante empregado. Na faixa até de oitenta, noventa, cem empregados mais ou menos.
Juiz: Muito bem. Eu tenho aqui registros do senhor como empregado da empresa, como empregado... Deixa eu ver... Entre dois de março de 1998 a dezesseis de onze de 2005, ou seja, até a sua aposentadoria, entre 1998 e 2005; e também os registros de salários. O seu vínculo de emprego vai de 1998 até 2005, certo, antes disso o senhor estava registrado no INSS como autônomo empresário. Que tipo de empresa o senhor tinha antes de ser registrado como empregado da YY?
Depoente: Assim, é uma firma no meu nome, né, que tinha Madeira e Transporte SS e...
Juiz: Madeiras e?
Depoente: Transportes SS.
Juiz: SS?
Depoente: É.
Juiz: Tinha essa empresa Madeiras e Transporte SS, muito bem. Ficava onde?
Depoente: Ficava praticamente no mesmo local, aí nós paramos de trabalhar com a moldu... Com a madeira né, porque não deu, não deu lucro, então aí nós começamos, né, paramos com a moldura...
Juiz: A SS era transportes também?
Depoente: Era. Tinha caminhão também.
Juiz: E na molduras... Como é que é o nome... Essa empresa de molduras...
Indústria e Comércio, segundo ali, segundo a alteração contratual – eu acho que é a segunda – ela também tinha, também explorava o ramo de cargas em geral, transportes e carga em geral. Tinha caminhão também pra transporte de carga na Molduras?
Depoente: Creio que não. Acho que não.
Juiz: Muito bem. Antes de constituir essa firma, a sua esposa e a sua filha trabalhavam no quê?
Depoente: Ela trabalhava como doméstica.
Juiz: Doméstica?
Depoente: Minha esposa era costureira...
Juiz: Elas tinham capital pra colocar essa firma? Capital próprio?
Depoente: Foi... Naquela época era feito praticamente, quase todo mundo trabalhava sem capital, né...
Juiz: Mas o senhor colocou capital na empresa através da sua...?
Depoente: Também não.”
Como se pode perceber, para além dos documentos, encontrou-se, no depoimento pessoal, em vez de cônjuge estranho à sociedade atingido em seu patrimônio por dívida desta, empresário já antes falido agora atuando em nova empresa por meio de sócias “laranjas” (esposa e filha). E não só isso: registrou-se como empregado da sociedade (na verdade empregado de si mesmo) e computou 7 anos de tempo de contribuição para fins de aposentadoria, sem precisar comprovar os respectivos recolhimentos de contribuições previdenciárias, visto que, formalmente, para fins previdenciários, era (e é) empregado.
Os embargos foram julgados improcedentes, sendo o embargante condenado como litigante de má-fé, decisão confirmada pela instância superior, porém ainda não transitada em julgado em face de interposição de recurso especial, ora submetido à juízo de admissibilidade.
4.3 Mandado de segurança
Em alguns casos, pode ser do interesse da parte – mesmo da parte-autora – que não haja um exame acurado da prova. Seu interesse é que se atenha o juízo ao exame de documentos; não lhe interessa a tomada de depoimentos, a prova pericial e a inspeção judicial, pois a produção de tais provas poderia demonstrar que o quadro fático é diverso do que dizem os documentos.
Por outro lado, também pode ocorrer que, por mero erro estratégico, a parte-autora ocasione tal indevida limitação. Isso é razoavelmente comum quando se ajuíza mandado de segurança em hipótese em que a dilação probatória é necessária, o que é incompatível com a referida espécie de ação constitucional, a qual exige prova pré-constituída. Foi exatamente isso que ocorreu em determinado caso concreto, em que a empresa impetrante visava afastar a necessidade de registro no Conselho Regional de Engenharia. É de se dizer que o objeto social da empresa era complexo. A sentença, após análise apurada, rapidamente pôs fim ao processo, indeferindo a inicial nos seguintes termos:
“No caso, há necessidade de dilação probatória, a fim de aferir se a empresa de fato não exerce atividade que demanda intervenção de profissional da área de engenharia e se sua atividade econômica principal é aquela cadastrada na Receita Federal (evento 3), o que não atende às exigências estritas do rito mandamental, conforme acima exposto.
Colhe-se da jurisprudência:
‘DIREITO ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONSELHO REGIONAL DE ENGENHARIA. LEIS NOS 5.194/66 E 6.839/80. INEXIGIBILIDADE DE REGISTRO. ATIVIDADE BÁSICA DIVERSA DA EXIGIDA EM LEI. APELAÇÃO PROVIDA NOS TERMOS DO § 3° DO ARTIGO 515 DO CPC. 1. Discute-se a legalidade da exigência imposta pelo Sr. Presidente do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – Crea/SP, consistente no registro junto ao órgão, bem como o cancelamento da multa imposta. 2. Não podemos olvidar que os Conselhos de profissões regulamentadas têm dentre os seus objetivos não apenas a fiscalização dos inscritos em seus quadros, mas também a defesa da sociedade, sob o ponto de vista ético. A sociedade necessita de órgãos que a defendam contra os profissionais não habilitados ou despreparados para o exercício da profissão. 3. A certeza quanto ao exercício das atividades da impetrante, conforme delimitado pelo julgado a quo, estar intrinsecamente afeto à área de engenharia não se mostrou claramente, remanescendo dúvidas se elas se inserem nas hipóteses arroladas no art. 7º, especialmente a alínea h, combinado com o art. 59, ambos da Lei 5.194/66. 4. É necessário distinguir, dentro desse panorama e diante do objeto social da impetrante, ‘comércio, montagem, importação, exportação, conserto e assistência técnica de produtos eletroeletrônicos, peças e componentes de elevadores, artefatos de plásticos, de metal e madeira, inclusive representação’, o que seria recomendado e o que o ordenamento dispõe acerca do correto enquadramento da atividade desenvolvida, para que seja certificada a obrigatoriedade de sua inscrição e a manutenção de um profissional habilitado pelo Conselho em seus quadros, mesmo porque, conforme alega, apresentou carta-consulta ao Crea que diz não ter sido respondida (fls. 17). 5. Nesse sentido a impetração restou controvertida. Enquanto a impetrante insiste em afirmar que apenas opera na comercialização de componentes eletrônicos (fls. 17), o Crea concluiu que aquela fabrica placas montadas, com componentes eletroeletrônicos necessários a uma determinada finalidade, e que, embora o processo industrial fosse efetuado por terceiros, à impetrante compete o projeto e a fiscalização dos serviços (fls. 25). 6. Não se afigura líquido e certo o direito da impetrante, remanescendo-lhe as vias ordinárias para comprovar que suas atividades não se enquadram nas definidas pela lei, necessárias à inscrição no Conselho de Engenharia. 7. Havendo dúvidas quanto à legitimidade do registro da impetrante no Conselho, cuja análise do mérito foi postergada para as vias ordinárias, seguirá a multa aplicada a mesma sorte da discussão principal, porquanto dependente da análise do mérito da lide, devendo a impetrante tomar as medidas necessárias à defesa do seu direito, para eximir-se do seu pagamento. 8. Recurso improvido.’ (AMS 00214999819934036100, JUÍZA CONVOCADA ELIANA MARCELO, TRF3 – TURMA SUPLEMENTAR DA SEGUNDA SEÇÃO, DJU DATA: 05.11.2007. FONTE REPUBLICAÇÃO) (grifos nossos)
O que se deve deixar claro é que não pode o Judiciário ficar adstrito cegamente ao objeto que consta do contrato social, porque, no campo dos fatos, este pode estar sendo desvirtuado. Ainda que assim não seja, vê-se que se trata de atividade complexa. Nesse quadro, a dilação probatória (perícia, inspeção, depoimentos pessoais e testemunhais) é imprescindível para bem definir as atividades efetivamente exercidas e seu enquadramento – ou não – nas disposições legais relativas à profissão de engenheiro.
Dessa feita, a petição inicial deve ser indeferida, extinguindo-se o processo sem resolução do mérito, ante a ausência de direito líquido e certo, ou seja, incontroverso e comprovado de plano.”
Observe-se que não houve interposição de recurso, tendo transitado em julgado a referida sentença, ficando, desde logo, aberta à impetrante a via ordinária.
4.4 Pedidos de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez
Os requerimentos de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, nos dias que correm,(17) inundam os Juizados Especiais Federais. E, não raras vezes, as pessoas filiam-se à Previdência Social já com idade avançada e previamente incapacitadas. Para tanto, valem-se da figura do contribuinte individual (antigo autônomo), indicando profissão efetivamente não exercida.(18) O objetivo claro é obter auxílio-doença e/ou aposentadoria por invalidez tão logo seja possível, ou seja, assim que cumprida a carência de 12 contribuições exigida pelo art. 25, I, da Lei nº 8.213/91. Ocorre que a mesma lei, nos artigos 42, §2º, e 59, parágrafo único, veda a concessão do benefício a quem se filiar à Previdência já previamente incapacitado para o trabalho. Daí o interesse do requerente em omitir a antiguidade da doença e da incapacidade, inclusive – e especialmente – omitir do médico-perito, profissional que fica limitado aos exames que lhe são apresentados.
Em casos que tais, o juiz deve analisar o laudo pericial em conjunto com todos os demais elementos constantes dos autos, inclusive para, se for o caso, afastar o laudo pericial no que se refere às datas de início da doença e da incapacidade.
O voto a seguir transcrito bem exemplifica o que se vem de afirmar:
“O ilustre Relator vota para confirmar a sentença que concedeu o benefício de aposentadoria por invalidez, afastando a preexistência da incapacidade.
Peço vênia para divergir.
A autora, nascida em 14.08.1942, iniciou sua vida contributiva em 09/2009, então com 67 anos de idade. Não houve vínculo de emprego, mas tão somente a vinculação como contribuinte individual, havendo divergência acerca da atividade desempenhada, ora declarando ser faxineira, ora do lar.
O histórico contributivo já pesa em desfavor da autora. Some-se ainda que, em perícia realizada no dia 19.08.2013, o médico do juízo retroagiu em cinco anos o início da doença (08/2008) e fixou o início da incapacidade há dois anos (08/2013).
Exsurge evidente, a exemplo de tantos outros casos enfrentados por este juízo, que se trata de pessoa cuja vida contributiva inicia-se, ou é retomada, ao atingir idade avançada, com o propósito único de, em curto espaço de tempo, obter um benefício por incapacidade.
Sob esse prisma, entendo que resta efetivamente configurada a preexistência da incapacidade, descabendo a proteção previdenciária. A propósito do assunto:
‘PREVIDENCIÁRIO. INCAPACIDADE PREEXISTENTE. É de se concluir pela preexistência da incapacidade quando o requerente retorna ao sistema previdenciário depois de 14 anos sem contribuições, já em idade avançada, mais de 60 anos, e apresenta doença degenerativa, em que não se consegue definir a data exata do início.’ (TRF4, AC 5000698-84.2011.404.7113, Sexta Turma, Relator p/ Acórdão Paulo Paim da Silva, D.E. 24.05.2013)”
É de se dizer que, em casos assim, o juízo pode, também, fundamentar sua decisão no art. 5º da Lei nº 9.099/95, especialmente no que toca à especial valoração das regras de experiência comum ou técnica.
Conclusão
Os casos abordados neste pequeno estudo são singelos, mas suficientes para demonstrar a importância da produção e da análise isenta e acurada da prova nos processos judiciais cíveis. Na análise da prova, o espaço para os valores ideológicos do julgador reduz-se consideravelmente, ao contrário do que ocorre quando se trata de interpretar o ordenamento jurídico.
O cuidado com a prova pode levar a resultados diametralmente opostos àqueles que se obteria na atuação superficial. E isso é especialmente relevante quando se trata de processos judiciais cíveis, em que rotineiramente estão em jogo o patrimônio, a renda e a atividade profissional que garantem a sobrevivência das pessoas.
Seria ótimo se o Brasil se organizasse para não ter 90 (noventa) ou 100 (cem) milhões de processos judiciais. Enquanto isso não ocorrer, diariamente os juízes serão tentados, induzidos mesmo, a ser céleres e superficiais em seus julgamentos. Espera-se que resistam a tal tentação. Se justiça atrasada não é justiça, mas injustiça qualificada e manifesta,(19) o mesmo se pode dizer do resultado da decisão judicial célere, porém superficial.
Referências bibliográficas
ARENHART, Sérgio Cruz; MARINONI, Luiz Guilherme. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 5. Tomo I.
DALL’AGNOL, Antonio. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 2.
LEAL JÚNIOR, Cândido Alfredo Silva. Tratamento judicial de conflitos entre grupos indígenas e agentes públicos: estudo de casos. Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, n. 57, p. 103-107.
LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais: Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995 – Anotada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
ROCHA, Felippe Borring. Juizados Especiais Cíveis: aspectos polêmicos da Lei nº 9.099, de 26.09.1995. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1983. v. 1.
Notas
1. <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/21871:
processos-em-tramitacao-na-justica-chegam-a-90-milhoes>.
2. <http://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados>.
3. <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/27313:
quase-17-mil-magistrados-respondem-ao-censo-do-cnj>.
4. <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/26625-numero-de-
processos-em-tramite-no-judiciario-cresce-10-em-quatro-anos>.
5. ARENHART, Sérgio Cruz; MARINONI, Luiz Guilherme. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 5. Tomo I. p. 63-64.
6. DALL’AGNOL, Antonio. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 2. p. 131-133 e 136-138.
7. SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1983. v. 1. p. 398.
8. Texto obtido no site da Câmra dos Deputados: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;
jsessionid=5A2742FDD4B2DD71BBB40C392AEC355A.
proposicoesWeb1?codteor=1239929&filename=REDACAO+FINAL+-+PL+8046/2010>.
9. ROCHA, Felippe Borring. Juizados Especiais Cíveis: aspectos polêmicos da Lei nº 9.099, de 26.09.1995. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 38-39.
10. LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais: Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995 – Anotada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 15.
11. LEAL JÚNIOR, Cândido Alfredo Silva. Tratamento judicial de conflitos entre grupos indígenas e agentes públicos: estudo de casos. Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, n. 57, p. 103-107.
12. Todos os exemplos citados neste trabalho são reais, ou seja, refletem o que ocorreu em processos judiciais; no entanto, para preservar as partes envolvidas, não serão aqui fornecidos dados dos processos.
13. Súmula 08: "A falta de prova material, por si só, não é óbice ao reconhecimento da dependência econômica, quando por outros elementos o juiz possa aferi-la".
14. § 3º “A comprovação do tempo de serviço para os efeitos desta lei, inclusive mediante justificação administrativa ou judicial, conforme o disposto no art. 108, só produzirá efeito quando baseada em início de prova material, não sendo admitida prova exclusivamente testemunhal, salvo na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito, conforme disposto no Regulamento”.
15. “A prova exclusivamente testemunhal não basta à comprovação da atividade rurícola, para efeito da obtenção de benefício previdenciário.”
16. Dados que pudessem identificar o processo foram retirados.
18. Não há, nem pode haver, pelo INSS, qualquer tipo de controle acerca do efetivo exercício da profissão declarada. Simplesmente não há como fiscalizar todos os contribuintes individuais brasileiros.
19. BARBOSA, Ruy. Oração aos moços.
|