Comentário ao REsp 1.239.777: o dilema entre a pronta devolução e a dilação probatória na Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de menores

Autora: Nadia de Araujo

Doutora em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP, Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-RJ, Professora convidada para o Curso de verão da Academia de Direito Internacional da Haia, em 2010, Procuradora de Justiça aposentada, Advogada

Autora: Daniela Vargas

Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UERJ, Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-RJ, Coordenadora Central de Graduação da PUC-RJ

 publicado em 27.06.2014



Resumo

O artigo é sobre a Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro de menores. Na primeira parte, é feita uma introdução acerca da convenção, dos seus objetivos e de como foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro. Na segunda parte, é analisado um caso recente da jurisprudência brasileira, o Recurso Especial nº 1.239.777, que interpreta um caso do artigo 13, I, b, da Convenção, trazendo-se ainda como exemplo um caso similar julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos.

Palavras-chave: Conferência da Haia para o Direito Internacional Privado. Direito Internacional Privado. Jurisprudência do STJ. Direito de Família Internacional. Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro de menores. Guarda na Austrália. Competência do juiz nacional em casos de tratados.

1 Alguns aspectos gerais da Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de menores e o direito brasileiro

A Conferência da Haia para o Direito Internacional Privado é uma organização internacional de caráter governamental que se dedica, primordialmente, à codificação de normas relativas ao direito internacional privado. Essas normas servem tanto aos países membros quanto aos não membros da organização. É uma instituição centenária, tendo iniciado suas atividades, ainda que de forma não permanente, em 1893, e hoje tem como um de seus focos principais a proteção da infância no plano internacional, por meio da elaboração de convenções e do acompanhamento de sua aplicação pelos Estados-membros. Uma das convenções de maior destaque – seja pelo seu tema, seja pelo elevado número de países que a adotaram – é a Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro de menores, de 1980,(1) que entrou em vigor em 1983, e pela última atualização conta hoje com 87 países contratantes.(2)

O tema da proteção à criança inclui-se no âmbito da proteção dos direitos humanos. Sua regulamentação, mesmo nos aspectos privados, não perde de vista esse viés, ligado aos direitos fundamentais. Nessa área, as fronteiras do direito internacional privado e público se diluem e se misturam aspectos públicos e privados. O DIPr e sua técnica podem ser entendidos como integrantes do sistema de proteção à dignidade da pessoa humana, e a  proteção à infância é o seu maior exemplo.

Em seu curso geral da Academia de Direito Internacional da Haia, Erik Jayme se propôs a tratar de um tema ambicioso: a questão da identidade cultural e da integração em um mundo pós-moderno.(3) Nesse contexto, duas forças opostas vivem em permanente duelo: a vontade de integração econômica dos Estados versus o respeito à identidade cultural do indivíduo. Dessa forma, a ideia de os Estados caminharem cada vez mais em direção a uma união, por força das questões econômicas, em especial na Europa, mas também por força da globalização, contrapõe-se à fragmentação que permeia a vida do indivíduo que carrega sua identidade cultural quando se movimenta no contexto desse ambiente global. Nesse ambiente diversificado, e muitas vezes em choque, para Erik Jayme, o que distingue a cultura jurídica contemporânea é o papel primordial dos direitos do homem,(4) gerando uma reaproximação do Direito Internacional Público com o Direito Internacional Privado.

A Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro de menores quer garantir o retorno imediato da criança retirada ilicitamente do Estado de sua residência habitual, designando como competentes os juízes da residência de origem para cuidar de todos os aspectos relativos à autoridade parental. Com isso, para Erik Jayme, a Convenção pode ser citada como um exemplo de proteção da identidade cultural, porque favorece, de maneira indireta, a aplicação da lei do Estado de origem da criança ao explicitar que a competência é do juiz de sua residência habitual.(5)

A finalidade da Convenção é proteger as crianças dos efeitos danosos de uma mudança repentina para outro país, decidida unilateralmente pelo pai ou pela mãe, sem o consentimento do outro e, principalmente, sem que tenham sido regulados a guarda da criança e os direitos de visita.  Na época em que a Convenção foi elaborada, na década de setenta do século XX, a situação mais comum era a subtração pelo pai.  A maior internacionalização das famílias e as mudanças no papel de pai e mãe na criação dos filhos trouxeram mudanças nos casos de aplicação da Convenção de sequestro de menores, e expõem um ponto sensível da dissolução dos casamentos plurinacionais.  Nos dias atuais, vemos mais situações de subtração pelas mães, que optam por retornar ao seu país de origem ao invés de permanecer em um país estrangeiro, onde muitas vezes não têm condições econômicas de permanecer após a dissolução do relacionamento afetivo com o pai da criança. Os pedidos de retorno, por seu turno, são movidos pelos pais, que hoje em dia querem fazer valer seu direito de convivência com os filhos e exercer a guarda compartilhada.

Ainda no tema de proteção da infância, em 2003, a Conferência da Haia começou as negociações para um novo instrumento mais efetivo para a cobrança internacional de alimentos. Uma das justificativas para a nova regulamentação é a sua conexão com os casos de sequestro de menores, nos casos em que a motivação para a fuga para o seu país de origem, com a criança, é a impossibilidade de sobreviver economicamente no país estrangeiro após a separação.  A Convenção da Haia sobre Cobrança Internacional de Alimentos para Crianças e outros membros da Família e o Protocolo sobre a Lei Aplicável às Obrigações Alimentares foram finalizados em 2007 e tiveram intensa participação do Brasil no curso das negociações. Apesar de esse instrumento internacional ainda não ter entrado em vigor, representa um avanço com relação à Convenção de Nova Iorque sobre alimentos, de 1958, vigente no Brasil, que inaugurou a cooperação administrativa, mas de forma bastante genérica.(6) Ao contrário da Convenção de Nova Iorque, a nova Convenção da Haia é um instrumento atual e possui uma detalhada regulamentação do papel das autoridades centrais, de forma a garantir a sua utilização eficaz pelas partes mais necessitadas: as mulheres e as crianças.(7)

A meta da Convenção sobre os aspectos civis do sequestro internacional de menores é desencorajar a subtração ou a retenção desautorizadas de menores por um dos pais, determinando o restabelecimento da situação anterior à subtração ou à retenção, sem discutir o mérito da guarda, de forma rápida e desburocratizada. A subtração, mais comum hoje em dia, dá-se quando a mãe ou o pai sai do país com a criança sem autorização do outro genitor. No caso da retenção, a saída da criança do país foi regular, mas o retorno não se deu no prazo acordado, gerando, dessa forma, a retenção irregular. A Convenção possui regras sobre a determinação da ilicitude da retirada ou retenção do menor, sob a égide da lei da residência habitual, e as exceções possíveis ao retorno. Também estabelece normas para a cooperação administrativa, levada a cabo por autoridades centrais previamente designadas, que estão em constante comunicação para atingir os objetivos do tratado. Para isso, há, em seu sítio na Internet (www.hcch.net), uma seção especializada para informar os interessados e os Estados sobre a operação da convenção e sobre o trabalho da Conferência da Haia no seu incessante labor de implementação e monitoramento do cumprimento da Convenção.

Uma das características das convenções da Conferência da Haia é a previsão de reuniões periódicas de análise de sua implementação e de sua prática, que em geral são feitas a cada cinco anos. A convenção em discussão foi objeto de duas reuniões recentes para esse fim, em junho de 2011 e janeiro de 2012. As conclusões e recomendações da Comissão Especial sobre o funcionamento da Convenção sobre os aspectos civis do sequestro de menores foram publicadas em um documento publicado em abril de 2012 e disponível no sítio da Conferência sob a rubrica de trabalhos em andamento.

O relatório das reuniões da Comissão Especial discutida acima foi objeto de análise pela Reunião anual da Conferência da Haia sobre Assuntos Gerais, realizada em abril de 2012. O documento final de conclusões e recomendações adotadas pelo Conselho parabenizou a Comissão Especial por seu trabalho. No que diz respeito às ações aprovadas para futuro trabalho, o Conselho decidiu estabelecer um Grupo de Trabalho composto por especialistas para desenvolver um guia de boas práticas a respeito da interpretação e da aplicação do artigo 13, I, b, da Convenção, que servisse de guia especialmente para autoridades judiciais. Outro ponto importante, que também mereceu a recomendação da Comissão, foi o estabelecimento de um Grupo de Especialistas para cuidar do tema do reconhecimento e da execução de acordos feitos nos casos de disputas sobre a guarda de crianças, especialmente os obtidos por mediação. Há a possibilidade de ser realizado, no futuro, um novo instrumento na área.(8)

É bom ressaltar que a Convenção não trata do sequestro no seu sentido penal, e sim nos seus aspectos civis, especialmente quando perpetrado por alguém muito próximo à criança. O sequestro de que trata a Convenção é aquele em que um dos pais é de outra nacionalidade, ou habitava outro país anteriormente, para o qual quer voltar e levar a criança, e o faz independentemente da autorização ou regulamentação do ex-cônjuge ou companheiro.

Antes da adoção da Convenção, em especial no Brasil, os litígios internacionais relativos à subtração de menores seguiam pelos canais clássicos da cooperação jurídica internacional. Isso se dava por meio da tramitação de cartas rogatórias ou pedidos de homologação de sentenças estrangeiras, em razão da determinação da irregularidade da transferência da criança para outro país e do deferimento da guarda em favor do genitor que permaneceu no país estrangeiro.  O processo era lento, custoso e pouco efetivo, porque ao pedido de cumprimento de decisão estrangeira se contrapunham decisões nacionais sobre guarda.(9)

A Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de menores lança mão de uma nova metodologia na cooperação jurídica, inaugurada com a Convenção de Nova York de alimentos: o auxílio direto. Por essa forma de cooperação, o pai ou a mãe que teve o filho subtraído dirige-se diretamente à autoridade central do tratado, sem antes ter que recorrer ao Poder Judiciário local. Cabe às autoridades centrais o processamento do pedido, sem o uso da tradicional carta rogatória, para a obtenção de uma medida de retorno diretamente à autoridade do país onde a criança está irregularmente retida. O recurso ao auxílio direto dá agilidade ao processo e evita decisões repetidas sobre o mesmo tema.

Mais do que um diploma de DIPr, a Convenção é um tratado de índole processual. Somente quando devolvida a criança ao país do seu domicílio habitual é que se decidirá a questão de mérito, quanto à guarda da criança, pelo juiz natural da causa, ou seja, o juiz do local do seu domicílio habitual antes da subtração. O juiz natural da causa pode, inclusive, prever uma mudança de residência a partir da decisão de mérito sobre a guarda da criança.

O que se quer evitar é que aquele genitor que tomou uma atitude unilateral esperando contar com o apoio da justiça de seu país de origem tenha uma vantagem indevida em relação ao pai ou à mãe que ficou para trás (o chamado “left-behind parent”). A família deve decidir em conjunto o que é melhor para a criança, e não apenas um dos pais. Por outro lado, a Convenção não cuida de nenhum aspecto relativo à guarda, ou seja, somente na volta da criança a questão da guarda será decidida, pelo juiz da residência habitual do menor.  A decisão de devolução do menor ao país da residência habitual não importa em separação da criança e do genitor que a subtraiu.  Apesar de cuidar apenas do retorno do menor, na prática, o pai ou a mãe subtrator acaba retornando junto com a criança para o país da residência habitual, e é desejável que assim seja, ante a necessidade de regulamentar não apenas a guarda, mas a questão dos alimentos e dos direitos de visita com relação ao menor.  No Brasil, um aspecto importante a ressaltar a respeito dos casos de aplicação da Convenção da Haia sobre sequestro de menores é o papel exercido pela Advocacia-Geral da União, que promove os pedidos de retorno sem qualquer custo, em cumprimento à obrigação assumida pelo país no plano internacional.  O papel exercido pela AGU representa um grande diferencial do Brasil em relação a países que não prestam assistência jurídica nos pedidos de restituição, tornando os pedidos mais custosos e mais difíceis. Outra novidade é o surgimento de uma nova figura chamada de Juiz de Enlace, um representante do Poder Judiciário que procura coordenar e orientar os esforços dos magistrados do país e ao mesmo tempo servir de ponte com a Conferência da Haia em reuniões especializadas e em contatos com juízes de outros países.(10)

Um aspecto pouco conhecido da Justiça Federal é o papel que ela desempenha nos casos de restituição internacional de menores.  Tradicionalmente sem competência para os casos de direito de família, afetos à Justiça Estadual, a Justiça Federal tem competência para cuidar dos casos de restituição de menores por força do artigo 109, I e III, da Constituição Federal, pois as ações de restituição são fundadas em tratado internacional.  Por isso, embora os pedidos de guarda sejam da alçada da Justiça Estadual, a Justiça Federal atrai para si o julgamento das ações de guarda quando houver um pedido de retorno com base na Convenção da Haia. Essa situação, que causou bastante celeuma por alguns anos, foi pacificada pelo STJ no julgamento do Conflito de Competência nº 100.345. Nesse caso, o M. Luis Felipe Salomão, em voto cuidadoso e sensível aos aspectos especiais da situação, decidiu que, por estar demonstrada a conexão entre a ação de busca, apreensão e restituição e aquela que cuidava da guarda, ambas, em face de seu objeto comum, precisavam ser reunidas, para evitar decisões conflitantes e incompatíveis entre si. E, na linha já clássica da via atrativa da Justiça Federal para as causas em que haja disputa com a Justiça Estadual, decidiu que a reunião deveria ser nesta última, por conta da disposição constitucional acima citada.

A regra geral é a da pronta devolução da criança ao país requerente – o da sua residência habitual anterior à subtração – para que sua rotina não sofra excessiva interrupção pela ação unilateral do subtrator. No entanto, há um elenco pequeno de exceções que autorizam o país requerido a negar a devolução, as quais dependem da produção cuidadosa de provas para seu enquadramento e que, por conta disso, podem retardar o proferimento de uma decisão final sobre o pedido, que, segundo a Convenção, deveria ocorrer em um prazo de seis semanas da subtração.(11)

É de ressaltar que o processo decisório a respeito do pedido de devolução se dá em duas fases: na primeira, é preciso determinar se a subtração ou retenção foi ilícita, nos termos da Convenção. Para isso, utiliza-se a regra clássica do método conflitual de Direito Internacional Privado, e, por meio da regra de conexão da residência habitual, verifica-se a existência de uma violação a um direito de guarda, de acordo com a lei estrangeira. Isso obriga o magistrado a perquirir o teor e a vigência do direito estrangeiro e, ao aplicá-lo, estabelecer se o caso deve ser objeto de julgamento segundo a Convenção. No segundo momento, já determinada a ilicitude da situação, poderá o réu comprovar que o retorno não deve ser determinado por ocorrência das poucas exceções permitidas: se o pedido for feito depois do prazo de um ano e o menor estiver integrado ao novo meio;(12) se houver alguma situação de perigo para a criança na sua volta;(13) ou se houver oposição da criança que já possui maturidade para se manifestar. Todas essas situações deverão ser comprovadas, e a prova dos fatos alegado será colhida pelo magistrado que cuida do caso – no Brasil, um juiz federal.

Há ainda a possibilidade de evitar o retorno da criança quando ocorrer a exceção de ordem pública, aqui representada por uma situação incompatível com os princípios fundamentais do Estado requerido.(14) Essa última exceção deve ser interpretada de forma bastante restrita. A ideia central que rege o tratado é no sentido de devolver, e a não devolução da criança deve ocorrer somente nos casos definidos nas exceções, que são poucos e dependem de prova cabal de sua existência. Não foram colocadas na Convenção para permitir o seu descumprimento, mas para evitar situações verdadeiramente excepcionais.

A Conferência da Haia tem se preocupado, nos últimos anos, em disponibilizar aos Países-membros a análise dos casos já decididos, o que pode ser feito no próprio sítio da Conferência da Haia, em um sistema chamado de Incadat, no qual relatores dos diversos países apresentam um sumário dos casos julgados. O Brasil ainda não colabora com o sistema, mas a sua jurisprudência vem aumentando, assim como a familiaridade dos juízes com os casos da Convenção e a sensibilidade à necessidade de cumprir os seus exíguos prazos, o que não era a realidade dos casos iniciais.

Nos últimos anos, houve um grande aumento no número de casos envolvendo o Brasil, havendo farta jurisprudência sobre a Convenção na Justiça Federal. No presente artigo, vamos comentar o caso mais recente decidido no STJ, que trata da dificuldade da justiça brasileira de equilibrar a pronta devolução do menor, em consonância com os cânones da Convenção, com a análise cuidadosa da prova sobre possíveis casos excepcionais, que impediriam o retorno, o que sempre representa um atraso considerável na tomada de decisão. Todavia, há que se ter sempre em vista os princípios de direito processual garantidos pela Constituição Federal, pelo que certos atrasos são necessários para o seu cumprimento.

Antes de passar à análise do caso em comento, é preciso dizer que, nos dias atuais, a utilização da Convenção é uma via de mão dupla; ou seja, há pedidos para o Brasil e do Brasil, como se verifica das estatísticas disponíveis na Autoridade Central, na Secretaria de Direitos Humanos. No entanto, como o Brasil exerce um controle cuidadoso de suas fronteiras e possui regras rígidas para as viagens de crianças acompanhadas apenas de um dos pais, ou mesmo desacompanhadas, os casos aqui originados nos parecem ser em menor número do que aqueles provenientes do exterior. Ao contrário, na Europa e nos Estados Unidos, não é necessária nenhuma autorização para que um dos pais viaje com os filhos, o que permite maior facilidade na evasão de países do hemisfério norte e da Europa.

2. Análise do REsp 1.239.777

Os fatos e os temas em discussão

Cuida-se de dois recursos especiais admitidos em que se discute a decisão da 3ª Turma do Tribunal Federal da 5ª Região, que havia confirmado a decisão de 1º Grau em prol da devolução do menor ao país de sua residência habitual, a Alemanha, em cumprimento aos ditames da Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de menores.

Um casal composto de uma brasileira e um alemão vivia conjugalmente na Alemanha desde 2002, tendo naquele país nascido o filho do casal, em 2004. Cumpre notar que, apesar de não serem casados, em consonância com as regras sobre guarda do direito alemão, ambos exerciam a guarda conjunta do menor.

Em 2007, com a autorização do pai, a mãe e a criança viajaram de férias para o Brasil. Uma vez no Brasil, a brasileira avisou que não retornaria mais à Alemanha, e que a criança permaneceria com ela no Brasil. O pai não concordou com a permanência da criança no Brasil e fez um pedido à autoridade central alemã de retorno da criança, o que gerou a ação movida em Pernambuco pela Advocacia-Geral da União. Ao mesmo tempo, a mãe moveu uma ação de guarda na Justiça Estadual, obtendo uma liminar para a guarda da criança.  Na decisão de 1º Grau do juiz federal, foi decidido que a transferência definitiva da criança para o Brasil fora ilícita, pelo que, nos termos da Convenção da Haia, a pronta restituição se impunha, sendo inócua a decisão da Justiça Estadual brasileira concedendo a guarda à mãe.  Cabe lembrar que, segundo a Convenção da Haia, o único judiciário competente para decidir sobre a guarda é o do país da residência habitual do menor, o que torna a Justiça Estadual de Pernambuco incompetente para determinar a guarda em favor da mãe. Por ocasião da apelação, a sentença foi mantida de forma parcial, mas apenas para retirar da sentença a parte relativa à modificação do assento de nascimento. Com isso, o retorno da criança era iminente. Todavia, com os recursos especial e extraordinário admitidos, parece que a criança ainda permanece no Brasil, embora não haja indicação da existência de medida cautelar a dar a eles o efeito suspensivo.  Os recursos especial e extraordinário foram interpostos pela Defensoria Pública da União, em prol do menor e da genitora da criança.

Há vários pontos interessantes que podem ser levantados nesse caso, a começar por uma questão de índole estritamente processual.   Discutiu-se se a atribuição do STJ para casos similares caberia à 1ª seção, por conta da questão do tratado que regula a matéria, ou à 2ª seção, por ser um caso de família. Sobre esse ponto, decidiu a Corte Especial que a competência era da 1ª seção, como se verifica na ementa do agravo regimental mencionado.

No mérito, a discussão no REsp gira em torno do dilema do Tribunal em, de um lado, assegurar o pronto cumprimento dos ditames da Convenção da Haia – a pronta devolução do menor quando for o caso de uma retenção ilícita, nos termos do artigo 1º, a(15) – e, de outro lado, fazer respeitar o direito da parte-ré de contestar o pedido com a ocorrência de uma das exceções previstas, em especial a do artigo 13, b, quando houver perigo para a criança. Com isso, ao invés de permitir a volta da criança de plano, o juiz deveria seguir com a instrução probatória e permitir a produção de provas para que se pudesse definir a ocorrência ou não de situação descrita no artigo 13, b, ainda que isso signifique o desrespeito aos prazos previstos na Convenção.

Ao final, prevaleceu o entendimento de que era necessária a dilação probatória, tão somente para que a perícia psicológica fosse realizada, razão por que os recursos especiais foram parcialmente providos.

Comentários da decisão

A decisão do STJ procura compatibilizar o respeito à obrigação de assegurar o pronto retorno da criança, assumida pelo Brasil com a internalização da Convenção da Haia, com a interpretação autônoma do princípio do melhor interesse da criança. Ressalta ser uma das características da Convenção, apesar de sua forte disposição de promover a volta imediata da criança que foi ilicitamente transferida, a de não perder de vista a preocupação com o bem-estar do menor, sempre tendo em conta o seu equilíbrio emocional e a sua integridade física, o que se revela ao permitir a prova de situação que impeça o retorno nos artigos 12 e 13.

Ao mesmo tempo em que destaca a importância da repressão aos casos de sequestro de menores pelos próprios pais, um mal a cada dia mais comum do movimento de “globalização” das famílias, o STJ quer efetuar uma interpretação do princípio de proteção ao menor que se coadune com os valores do sistema jurídico brasileiro.

Uma observação interessante que o Relator, M. Paulo Alcides, faz questão de sublinhar é a de que aqueles que se mudam para outros países e, portanto, se beneficiam desse novo mundo sem fronteiras para escolher livremente o seu estilo de vida não podem depois pretender manter suas regras de origem quando a situação no país estrangeiro se revela incômoda. Por isso, precisam aceitar viver sob a égide de diplomas internacionais que regulam a matéria. É que a Convenção da Haia é uma via de mão dupla e visa a coibir transferências ilícitas para o Brasil e a subtração de crianças do Brasil para o exterior, dando tratamento isonômico a todas essas situações.

No entanto, sob o prisma do caso concreto e analisadas as provas acostadas, verificou o Tribunal que, para atender ao princípio do melhor interesse da criança, era necessário proceder à perícia psicológica requerida, para evitar um julgamento que poderia, nas suas palavras, “ensejar uma prestação jurisdicional equivocada”. Note-se que o Tribunal recusa-se a decidir levando em conta apenas a celeridade exigida pela Convenção, e agrega às suas razões a contrariedade que a manutenção da decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região traria às normas processuais vigentes. Tampouco permitiu que se efetuassem todas as provas requeridas, preocupado que estava com o lamentável atraso do julgamento do caso, que já perdura por mais de quatro anos.

O dilema enfrentado pelo STJ não é incomum em outras jurisdições. Talvez a questão enfrentada seja uma das mais tormentosas nos casos da Convenção da Haia, ante a necessidade de equilibrar-se a celeridade na devolução com a dilação probatória, sempre demorada, para apurar se é um dos casos excepcionais em que a devolução é desaconselhada.

Nota-se a importância que o STJ dá aos casos de família, a ponto de ignorar um dos cânones de sua atuação, a proibição de se reexaminar a prova dos autos, já sumulada desde o início dos trabalhos do tribunal. Ora, evidentemente salta aos olhos que, nesse caso, a Súmula 7, que não permite o recurso especial para simples reexame de prova, foi desconsiderada na sua totalidade em prol do interesse do menor. Nesse caso, o STJ atuou com um tribunal de 3ª instância e sopesou a prova a seu bel prazer em dissonância com sua jurisprudência majoritária a esse respeito, em que pese a excepcionalidade dos casos da Convenção da Haia.

Atualmente, há casos na Europa em que decisões de retorno de tribunais nacionais em casos da Convenção da Haia estão sob o escrutínio da Corte Europeia de Direitos Humanos, sob o fundamento de que a devolução fere o princípio do direito à vida em família, protegido pelo artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos.(16)

No caso Neulinger snd Shuruk v. Switzerland (Application nº 41615/07),(17) julgado em 2010, na Corte Europeia de Direitos Humanos – CEDH, discutia-se uma decisão do Tribunal Suíço que ordenara o retorno de uma criança para Israel. A decisão de primeira instância, em vista das provas apresentadas, havia entendido que a criança não deveria retornar a Israel por conta da ocorrência da hipótese do artigo 13, b (como aliás se discute no caso julgado pelo STJ), mas essa decisão foi reformada pelo Tribunal Superior, que ordenou o retorno da criança. Dessa última decisão, a mãe da criança efetuou uma demanda à Corte Europeia de Direitos Humanos, e obteve uma liminar para impedir o seu retorno.

Em uma longa e detalhada decisão, que contou com um voto dissidente e várias declarações de votos, a CEDH concluiu que o retorno da criança para Israel não era compatível com o princípio do melhor interesse da criança.  Em vista das provas carreadas, a situação se coadunava com a exceção do artigo 13, b, e por isso também a sua volta não deveria ser decretada.

Um ponto da decisão da CEDH interessa especialmente ao presente comentário: aquele em que considera que, em razão da proteção à vida familiar do artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, o retorno de uma criança não pode ser ordenado de forma automática ou mecânica nos casos da Convenção da Haia. A análise do que vem a ser o melhor interesse da criança depende de vários fatores, que incluem seu desenvolvimento, sua idade, seu nível de maturidade e o ambiente que a cerca, entre outros fatores. Por isso, as circunstâncias para a comprovação do seu melhor interesse precisam ser avaliadas em cada caso individual, e essa é uma tarefa dos tribunais domésticos, por seu contato direto com as partes.

No caso da CEDH, cabe-lhe a supervisão dos processos que chegam para apreciação, com a possibilidade de revisão das decisões das autoridades locais na matéria da Convenção da Haia. Ao proceder a essa revisão de toda a prova acostada, a CEDH concluiu não estar convencida de que seria no melhor interesse da criança seu retorno para Israel, e que seria uma interferência desproporcional na vida familiar da mãe com seu filho obrigá-los a mudarem-se novamente para Israel.  Por isso, o retorno determinado foi considerado como uma violação ao artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

A atuação prescrita pela Constituição brasileira ao STJ é diversa da atribuição da CEDH, não lhe cabendo atuar como uma instância revisora, senão das questões relativas à aplicação uniforme do direito federal, aí incluída a Convenção da Haia, a ele equiparado. Mas, no caso concreto, reviu a prova e promoveu uma interpretação conforme o diploma legal, da forma que lhe pareceu mais consentânea com o melhor interesse da criança, pois esse é o princípio axial da Constituição brasileira no que diz respeito a crianças. No entanto, na prática, o caso ainda não foi decidido e, quando o for, o tempo decorrido terá infringido em muito o prazo determinado pela Convenção.  Mais uma vez estamos diante da contradição entre a celeridade e a apuração cautelosa dos fatos, diante da gravidade da situação.

Conclusão

Após a análise da decisão do STJ, concluiu-se que, apesar de representar um atraso no cumprimento das obrigações da Convenção da Haia, a prudência em casos relativos ao retorno de menores é a posição mais apropriada para aplicar o princípio do melhor interesse da criança. Há ainda que se levar em consideração que a medida de retorno teria efeito satisfativo, e qualquer recurso dessa decisão seria inócuo a partir do momento em que a criança deixasse o país.  Segundo a Convenção da Haia, a competência para decidir questões de guarda cabe às autoridades judiciais do país da residência habitual. Não se deve olvidar que essas decisões sempre ocorrem sob o manto da análise do caso concreto.

Como se viu a partir do caso suíço, o dilema enfrentado pelo STJ tem ocorrido também em outros países, e a Corte Europeia de Direitos Humanos tem julgado vários casos sobre a aplicação da Convenção da Haia. De particular dificuldade é sopesar a ocorrência de casos sob o manto do artigo 13, b, da Convenção. Esse ponto foi alvo da preocupação das reuniões ocorridas na Conferência da Haia nos anos de 2011 e 2012, que cuidaram de discutir a aplicação da Convenção. A conclusão da Conferência da Haia é de que a matéria precisa ser mais estudada, apesar de reconhecer que cabe à autoridade competente – no caso em comento, o STJ – decidir sobre as provas, sempre tendo em mente que o objetivo maior da Convenção é assegurar o retorno rápido e seguro da criança ao local de sua residência habitual. Não é tarefa fácil, e a análise do REsp 1.239.777 bem demonstra as dificuldades a serem enfrentadas pelo julgador.

Notas

1. Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, promulgada no Brasil pelo Decreto 3.413, de 14 de abril de 2000. A Convenção foi regulamentada pelo Decreto 3.591, de 4 de outubro de 2001, que designou a Secretaria de Direitos Humanos como autoridade central no Brasil. Maiores informações em www.sedh.gov.br. Os casos judiciais em nome do governo brasileiro são patrocinados pela Advocacia-Geral da União, no âmbito das atribuições do Departamento de Direito Internacional. Na página da AGU, há informações sobre a sua atuação (veja em www.agu.gov.br). Ainda no âmbito deste tema, está em vigor no Brasil a Convenção Interamericana sobre Restituição Internacional de Menores, por meio do Decreto 1.212, de 3 de agosto de 1994, mas não se tem notícia de sua utilização. A SEDH só foi estabelecida como autoridade central da Convenção Interamericana em 2010, pelo Decreto 7.256, de 4 de agosto de 2010. No sítio da Conferência da Haia, há uma sessão especial para a Convenção (veja-se em www.hcch.net).

2. Além de países-membros da organização, a convenção atraiu diversos países não membros. Para lista completa e atualizada, ver em www.hcch.net.

3. JAYME, Erik. Identité culturelle et integration: le Droit International Privé postmoderne. Recueil de Cours, tomo 251, 1995. p. 33.

4. JAYME, Erik. Identité culturelle et integration: le Droit International Privé postmoderne. Recueil de Cours, tomo 251, 1995. p. 37.

5. JAYME, Erik. Identité culturelle et integration: le Droit International Privé postmoderne. Recueil de Cours, tomo 251, 1995. p. 186-188.

6. A Convenção está em discussão no Brasil, neste momento, no âmbito do Ministério da Justiça, por meio do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional, e do Ministério de Relações Exteriores, para ser preparada a exposição de motivos necessária ao seu encaminhamento pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, para os trâmites de incorporação ao ordenamento jurídico nacional. Um grupo de trabalho foi criado pela Portaria Interministerial nº 500, de 21 de março de 2012, integrada por uma das autoras, Nadia de Araujo. Os trabalhos estão em andamento, com reuniões periódicas.

7. Para maiores detalhes dos documentos citados, ver o sítio da Conferência em www.hcch.net, que agora também conta com muitos documentos em espanhol e alguns em português.

8. Todos esses documentos estão disponíveis em www.hcch.net.

9. Vide, a titulo de exemplo, a SEC 5778, visando homologar uma sentença norte-americana de busca e apreensão de menores.  O pedido, ajuizado em 1998 no Supremo Tribunal Federal, acabou sendo encaminhado ao STJ em 2005, em razão da transferência da competência para esse outro Tribunal pela EC 45, sem uma decisão final.

10. A Convenção da Haia possui uma rede internacional de juízes de enlace, que começou a funcionar em 1998. Esses juízes, designados por cada país, atuam como um canal de comunicação entre os juízes locais e os dos outros Estados, de modo a facilitar o cumprimento da convenção. No Brasil, a Desembargadora Federal do Tribunal Federal da 1ª Região Monica Sifuentes exerce esse papel. Para maiores detalhes, ver SIFUENTES, Monica. Sequestro interparental: a experiência brasileira na aplicação da Convenção da Haia de 1980. Revista da SRRJ, Rio de Janeiro, n. 25, p. 135-144, 2009.

11. “Artigo 11. As autoridades judiciais ou administrativas dos Estados Contratantes deverão adotar medidas de urgência com vistas ao retomo da criança. Se a respectiva autoridade judicial ou administrativa não tiver tomado uma decisão no prazo de 6 semanas a contar da data em que o pedido lhe foi apresentado, o requerente ou a Autoridade Central do Estado requerido, por sua própria iniciativa ou a pedido da Autoridade Central do Estado requerente, poderá solicitar uma declaração sobre as razões da demora. Se for a Autoridade Central do Estado requerido a receber a resposta, esta autoridade deverá transmiti-la à Autoridade Central do Estado requerente ou, se for o caso, ao próprio requerente.”

12. “Artigo 12. A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após expirado o prazo de uma ano referido no parágrafo anterior, deverá ordenar o retorno da criança, salvo quando for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo meio.”

13. “Artigo 13. Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o retomo da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se oponha a seu retomo provar: a) que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de guarda na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou b) que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar em uma situação intolerável.
A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o retorno da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já idade e grau de maturidade tais que seja apropriado levar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.
Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão tomar em consideração as informações relativas à situação social da criança fornecidas pela Autoridade Central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado de residência habitual da criança.”

14. “Artigo 20. O retorno da criança de acordo com as disposições contidas no Artigo 12° poderá ser recusado quando não for compatível com os princípios fundamentais do Estado requerido com relação à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.”

15. “Artigo 1. A presente Convenção tem por objetivo:
a) assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente;
b) fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de guarda e de visita existentes em um Estado Contratante.”

16. “Artigo 8º. Direito ao respeito pela vida privada e familiar
1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, em uma sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar econômico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.”

17. GRAND CHAMBER CASE OF NEULINGER AND SHURUK v. SWITZERLAND (Application nº 41615/07). Julgado em Estrasburgo, em 6 de julho de 2010.

 

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023: 2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., jun. 2014. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS