Rescisão da coisa julgada e a autoridade dos precedentes do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional (artigo 485, V, do Código de Processo Civil)

Autor: Roberto Fernandes Junior

Juiz Federal, Mestre em Direito pela UFSC

 publicado em 29.08.2014



Resumo

Este trabalho consistirá na abordagem de uma das hipóteses de rescisão da coisa julgada, prevista no artigo 485, V, do CPC, sob a ótica da autoridade dos pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional. Passa pelo exame dos institutos da coisa julgada e do controle de constitucionalidade e das demais questões constitucionais, culminando no enfrentamento e na construção de uma inteligência adequada daquele dispositivo legal. Uma inteligência que não desconsidere a importância da coisa julgada, mas, ao revés, harmonize-a com outros princípios constitucionais, como a supremacia da norma constitucional, a isonomia dos destinatários das normas constitucionais e a autoridade dos julgados do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional.

Sumário

Introdução. 1 Breve conceituação da coisa julgada. 1.1 Coisa julgada. 1.2 Relativização da coisa julgada material. 2 Contraste entre a sentença acobertada pela coisa julgada material e o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, em jurisdição constitucional, como caso de violação de literal disposição de lei, a ensejar ação rescisória, na forma do artigo 485, V, do CPC. 2.1 Inteligência do dispositivo. 3 Controle de constitucionalidade, questões constitucionais e rescisão de sentença. 3.1 Controle concentrado e objetivo ou abstrato. 3.2 Controle difuso e incidental. 3.3 Rescisão de sentença em questões não sujeitas aos mecanismos de controle de constitucionalidade das normas. Conclusões. Referências bibliográficas.

Introdução

Este trabalho desenvolverá breves reflexões sobre uma faceta importante da prestação jurisdicional brasileira atual, que é o enfrentamento da relativização da coisa julgada em matéria constitucional, sobre a qual vem se afirmando entre nós a expansão da autoridade das decisões e dos pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal naquela matéria.

O viés a ser desenvolvido consistirá na admissibilidade das ações rescisórias aviadas contra sentenças passadas em julgado que tenham realizado pronunciamentos em matéria constitucional contrastantes com pronunciados formulados pelo Supremo Tribunal Federal. Ou, com mais agudeza e clareza, na afirmação daquela autoridade quando aquelas sentenças tenham passado em julgado, anterior ou posteriormente ao julgado do Supremo Tribunal Federal. O que, como se verá, é uma relativização da coisa julgada, na linha, aliás, da tradição processual expressada nas ações rescisórias, na forma das hipóteses dos incisos do artigo 485 do CPC. Para ser mais exato, a do inciso V daquele artigo, a da violação de literal disposição de lei, qualificada aqui pela compreensão de que viola norma constitucional a coisa julgada que decide matéria constitucional em contraste com pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, autorizando, nesse caso, o ajuizamento de ação rescisória.

Para uma adequada compreensão dos temas a serem enfrentados, se fará necessário o exame, ainda que com a síntese imposta pelos limites de um trabalho científico desta natureza, dos institutos da coisa julgada e do controle de constitucionalidade, com a correlata necessidade de se criarem mecanismos que assegurem a supremacia constitucional, sem a qual o valor da segurança jurídica e da isonomia se esmaecerá, e a própria hierarquização da jurisdição constitucional, tendo nos julgados do Supremo Tribunal Federal a sua máxima expressão.

Igualmente, vai se desenvolver o tema à luz da orientação jurisprudencial, notadamente dos julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, sem, por outro lado, olvidar parte, pelo menos, da melhor doutrina brasileira que vem se ocupando de estudá-lo.

A importância do tema deve-se ao crescente volume de questões jurisdicionais envolvendo a revisão de julgados transitados em julgado em sede de ações rescisórias.  O que exigirá o reconhecimento e o prestígio de todos os princípios envolvidos e a harmonização entre eles, de modo a otimizar a eficácia da própria Constituição Federal, que, afinal de contas, é o fundamento de validade e unidade de toda a ordem jurídica, cabendo, então, ao intérprete empreender um esforço hermenêutico que reconheça a complexidade dessa tarefa, ofertando um universo de proposições consistentes e coerentes, que sirvam de orientação doutrinária segura e fundamentada para os julgadores enfrentarem adequadamente tais questões.
 
1 Breve conceituação da coisa julgada
1.1 Coisa julgada

A coisa julgada é um fenômeno peculiar e exclusivo de um tipo especial de atividade jurisdicional. Se nem todo o ato ou processo jurisdicional produz coisa julgada, é certo que não a produzem os atos dos demais poderes do Estado (Executivo e Legislativo). No sistema jurídico brasileiro, pode-se afirmar que esse princípio decorre do preceito constitucional que permite, em qualquer caso, a revisão, pelos órgãos do Poder Judiciário, de qualquer ofensa aos direitos individuais. Somente a sentença – e nem todas elas – poderá oferecer esse tipo de estabilidade protetora daquilo que o juiz haja declarado como sendo a “lei do caso concreto”, de tal modo que isso se torne um preceito imodificável para as futuras relações jurídicas que se estabelecerem entre as partes perante as quais a sentença tenha sido proferida. Como se poderá, então, conceituar o que seja realmente a coisa julgada? Em uma primeira aproximação conceitual, pode-se definir coisa julgada como a virtude própria de certas sentenças judiciais, que as faz imunes às futuras controvérsias, impedindo que se modifique, ou que se discuta, em um processo subsequente, aquilo que o juiz tiver declarado como sendo “a lei do caso concreto”.(1)

O que significa e como se consegue uma estabilidade dessa espécie? Em primeiro lugar, é necessário fazer uma distinção prévia. Pode haver um certo grau de estabilidade de que as partes podem desfrutar, quando, em um dado processo, se tenham esgotados todos os recursos admissíveis, por meio dos quais se poderia impugnar a sentença nele proferida, sem contudo evitarem-se impugnações e controvérsias subsequentes, quando postas como objeto de processos diferentes. A essa estabilidade relativa, por meio da qual, uma vez proferida a sentença e exauridos os possíveis recursos contra ela admissíveis, não mais se poderá modificá-la na mesma relação processual, dá-se o nome de coisa julgada formal, por muitos definida como preclusão máxima, na medida em que encerra o respectivo processo e as possibilidades que as partes teriam, a partir daí, de reabri-lo para novas discussões, ou para os pedidos de modificação daquilo que fora decidido. É o que se denomina princípio da inalterabilidade do julgamento, comum a todas às sentenças, mesmo às proferidas em procedimento de jurisdição voluntária.(2)

Normativamente acima disso, é possível identificar uma estabilidade do julgado relativamente às futuras relações jurídicas entre as partes, e, eventualmente, suas repercussões contra os terceiros alheios ao processo em que ele haja sido proferido. A constância do resultado, a estabilidade que torna a sentença indiscutível para sempre entre as partes, impedindo que os juízes dos processos futuros novamente se pronunciem sobre aquilo que fora decidido, é o que se denomina coisa julgada material. Os artigos 467 e 468 do CPC conceituam-na. Em primeiro lugar, evidencia-se que a coisa julgada material pressupõe a coisa julgada formal. Com efeito, não há coisa julgada material sem a prévia formação da coisa julgada formal, de modo que somente as sentenças contra as quais não caibam mais recursos poderão produzir coisa julgada material. Depois, a coisa julgada material atribui força de lei à sentença.(3)

Ovídio ensina que, para Liebman, “a autoridade da coisa julgada não é um efeito da sentença, como postula a doutrina unânime, mas, sim, modo de manifestar-se e produzir-se dos efeitos da própria sentença, algo que a esses se ajunta para qualificá-los e reforçá-los em sentido bem determinado”. A coisa julgada material seria, para ele, uma qualidade especial que aos efeitos vem se juntar, a partir de um dado momento, de modo a torná-los indiscutíveis em um futuro processo, pois somente uma razão de utilidade política e social seria capaz de evitar as futuras discussões sobre aquilo que o juiz houvesse julgado no primeiro processo, impondo que o comando jurídico expresso na sentença se torne imutável:

“Nisso consiste, pois, a autoridade da coisa julgada, que se pode definir, com precisão, como a imutabilidade do comando emergente de uma sentença. Não se identifica ela simplesmente com a definitividade de intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato.”(4)

Em suma, a coisa julgada é um valor essencial à prestação jurisdicional, essa compreendida como meio pacífico de resolver os conflitos sociais. O Estado, à medida que assume o monopólio da força para pacificar as relações sociais, como verdadeira faceta de sua soberania, em contrapartida, igualmente tem o dever de proferir uma sentença de mérito, isto é, que decida o cerne da pretensão de direito material deduzida em juízo, pondo fim a uma relação processual que foi desenvolvida, segundo o devido processo legal, diante de um dos seus poderes, o Judiciário. Uma sentença sobre a qual, naturalmente, não caibam mais recursos e que valerá para além daquele processo no qual foi deferida. A qualidade, ou eficácia, como chamou o legislador processual pátrio, que dá essa força normativa a esse ato jurisdicional por excelência, que é a sentença, é a coisa julgada material.

De fato, é objetivo fundamental da jurisdição, segundo entendimento corrente, a eliminação de conflitos de interesses mediante decisões justas. Proferir decisões justas e efetivar, no plano social, os desideratos básicos do sistema normativo é estabelecer, nas relações jurídicas concretas, os ideais estabelecidos, em plano abstrato, pelo ordenamento jurídico. Eliminar conflitos é atuar em direção à pacificação social, à harmonia na convivência, à estabilidade das relações humanas. Decisão justa é locução associada às ideias de segurança e verdade, valores que se terá mais probabilidade de alcançar com cognição exauriente das controvérsias deduzidas em juízo, com investigação minuciosa dos fatos, com revisão do julgado por mais de uma instância, ou por juízes experientes. Associa-se naturalmente a justiça da decisão ao grau de qualidade e de quantidade das providências de natureza jurisdicional desenvolvidas no processo. Já quando se fala em eliminação de conflitos, em pacificação social, o que vem à mente é a ideia de encerramento da disputa, de ponto final na controvérsia, de término do processo, de julgamento definitivo.(5)

1.2 Relativização da coisa julgada material

Ao modelar a tutela jurisdicional garantida pelo Estado, a Constituição dotou-a de institutos adequados ao atendimento do referido objetivo fundamental (a eliminação de conflitos de interesses mediante decisões justas). São eles (a) o da cognição exauriente, como instrumento para potencializar a justiça das decisões, e (b) o da coisa julgada, para conferir estabilidade às sentenças, alcançando, assim, a solução final das controvérsias. Diz a Constituição: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e os recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV). Vale afirmar, a tutela jurisdicional será prestada em processo no qual os indivíduos envolvidos no conflito terão, em igualdade de condições, a oportunidade de formular suas razões de ataque e de defesa em face do litigante adversário, produzir provas, interpor recursos, enfim, utilizar amplamente os meios apropriados a fazer com que o prato da balança penda em seu favor. A intensa e democrática participação dos interessados na busca da verdade dos fatos e na formação da convicção do juiz é fator que concorre decisivamente para se alcançarem decisões justas. Mas depois, esgotadas as oportunidades para invocar as garantias do devido processo legal, pronunciado o juízo e, se necessário, encetadas as providências concretas de efetivação do julgado, a atividade jurisdicional estará concluída, tornando-se imutável o resultado da apreciação, feita pelo Estado-Juiz, do conflito de interesses a ele submetido, resultado esse que deverá ser respeitado, inclusive, pelas leis supervenientes (“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, diz o inc. XXXVI do artigo 5º).(6)

Contudo, a coisa julgada não é um valor constitucional absoluto. Trata-se, na verdade, de um princípio, como tal sujeito à relativização, de modo a possibilitar sua convivência harmônica com outros princípios da mesma hierarquia existentes no sistema. Por exemplo, o da imparcialidade do juiz, o da boa-fé e da seriedade das partes quando buscam a tutela jurisdicional, o da própria coisa julgada e, mesmo, o da justiça da sentença quando comprometida de modo manifesto. Nos casos em que tais valores possam ficar comprometidos, relativiza-se a imutabilidade das sentenças, propiciando a correção da injustiça. O instrumento processual para isso é a ação rescisória, também contemplada na Constituição, destinada a corrigir, em caráter excepcional, decisões judiciárias transitadas em julgado, inclusive as proferidas pelas mais altas cortes (CF, art. 102, I, j, e art. 105, I, e). Assim, nos termos do art. 485 do CPC, constituem casos excepcionais de especial gravidade, que permitem relativizar a coisa julgada, os de sentença proferida por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz, ou por juiz impedido ou absolutamente incompetente, ou provocada por ato doloso da parte vencedora, ou por colusão fraudulenta das partes, ou com base em prova falsa, e assim por diante. Também constitui hipótese dessa natureza, em que se admite ação rescisória, a de sentença que “violar literal disposição de lei” (CPC, art. 485, V).(7)

É nesse último exemplo citado que se vai abordar a autoridade do julgado do Supremo Tribunal Federal, em julgamento de questões constitucionais, independentemente de o seu pronunciamento ser superveniente à formação da coisa julgada, hipótese em que, configurado o antagonismo entre o seu julgado e a coisa julgada, deverá prevalecer o seu julgamento, como expressão dos também princípios constitucionais da supremacia da norma constitucional, da autoridade máxima do Supremo Tribunal Federal em exercer o controle de modo a assegurá-la e da isonomia dos destinatários da norma constitucional tutelada no processo.

Uma questão terminológica importante ainda para se destacar é que, a exemplo do que já se iniciou a fazer acima, doravante, sempre que se utilizar a locução coisa julgada, se estará referindo a coisa julgada material. Aliás, ela é que é objeto da tutela constitucional fixada no já citado artigo 5º, inc. XXXVI, da Constituição Federal e, igualmente, suscetível de impugnação, nas hipóteses previstas nos incisos do artigo 485 do CPC.

2 Contraste entre a sentença acobertada pela coisa julgada material e o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, em jurisdição constitucional, como caso de violação de literal disposição de lei, a ensejar ação rescisória, na forma do artigo 485, V, do CPC

2.1 Inteligência do dispositivo

Uma das hipóteses que o ordenamento jurídico prevê, de relativização da coisa julgada, permitindo a rescisão da sentença, é quando esta “violar literal disposição de lei”. Dois pontos do referido dispositivo processual merecem destaque. Primeiro, o do vocábulo “lei” nele utilizado. Não tem o significado de lei em sentido estrito, mas em sentido amplo, designando o gênero normativo do qual fazem parte não apenas a lei ordinária, mas todas as demais espécies de normas jurídicas, inclusive a constitucional.  O Código, em suma, utiliza o vocábulo como sinônimo de direito, de norma jurídica, conforme reconhece nossa doutrina autorizada.(8)

Ao qualificar a disposição com o adjetivo “literal”, o legislador certamente pretendeu, de alguma maneira, especificar o conceito, limitar sua abrangência. Não é toda e qualquer violação à lei que pode comprometer a coisa julgada, dando ensejo à ação rescisória. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consagrou entendimento segundo o qual não constitui violação de literal disposição de lei, para esse efeito, a que decorre de sua interpretação razoável, de um de seus sentidos possíveis, se mais de um for admitido. Não fosse assim, a ação rescisória adquiriria, na prática, simplesmente as feições de um novo recurso ordinário, com prazo dilatado. A ofensa, portanto, tem de ser especialmente qualificada.(9)

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sempre houve a tendência de qualificar a ofensa à lei, ensejadora da rescisória, com forte adjetivação: “é a violação frontal e direta”, é a que “envolve contrariedade estridente ao dispositivo, e não a interpretação razoável ou a que diverge de outra interpretação, sem negar o que o legislador consentiu ou consentir no que ele negou”. Nessa linha, é fácil compreender o sentido da sua Súmula 343: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto de interpretação controvertida nos tribunais”. Trata-se de fórmula para fincar um critério objetivo apto a identificar um pressuposto negativo do fenômeno: o que não é violação de disposição literal. Se circula nos tribunais entendimento divergente sobre o mesmo preceito normativo, é porque ele comporta mais de uma interpretação, a significar que não se pode qualificar uma delas como frontal ou gritantemente ofensiva ao teor literal da norma interpretada. Essa é a lógica da Súmula, perfeitamente afinada, aliás, com outra, do Verbete 400, posteriormente editada, de acordo com a qual “decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário pela letra a do artigo 101, III, da Constituição Federal”. Ou seja: se interpretação razoável da norma (“ainda que não a melhor”) interdita a revisão do julgado até mesmo por via de recurso, com muito mais razão tem de se negar acesso à rescisória.(10)

Contudo, a tutela da Constituição, além de constituir dever jurado de todos os juízes, foi atribuída por missão primeira, mais relevante, a ser exercida precipuamente, ao órgão máximo do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102). A ele se atribui, no exercício de fiscalização abstrata da constitucionalidade do ordenamento, o poder de declarar, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a inconstitucionalidade de preceitos normativos, retirando-os do ordenamento jurídico, ou a sua constitucionalidade, afirmando a imperiosidade da sua observância. Também no âmbito do controle concentrado os precedentes do STF têm eficácia transcendental no sistema, como, por exemplo, a de desencadear a suspensão da execução, pelo Senado, das leis declaradas inconstitucionais (CF, art. 52, X) e a de vincular, indiretamente, as decisões dos demais tribunais, cujos órgãos fracionários “não submeterão ao plenário, ou órgão especial, a arguição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento (...) do Supremo Tribunal Federal sobre a questão” (CPC, artigo 481, parágrafo único).(11)

Como assentado em importante precedente do Supremo Tribunal Federal, já na vigência da Constituição de 1969, “em matéria constitucional não há que se cogitar de interpretação razoável. A exegese de preceito inscrito na Constituição da República, muito mais do que simplesmente razoável, há de ser juridicamente correta”.(12) E essa distinção era formulada para admitir recurso extraordinário interposto contra decisões de instâncias inferiores em matéria constitucional, ao revés do que a Corte entendia, quando o mesmo instrumento recursal versava matéria infraconstitucional. Para essa, prevalecia o verbete da Súmula nº 400. A mesma orientação foi – e ainda está sendo – dominante nos casos de ação rescisória fundada no inc. V do art. 485 do CPC: em se tratando de norma infraconstitucional, não se considera existente “violação a literal disposição de lei”, e, portanto, não se admite ação rescisória quando “a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais” (Súmula 343). Todavia, esse enunciado não se aplica quando se trata de “texto” constitucional: relativamente a esse, é cabível ação rescisória mesmo que a seu respeito haja controvérsia interpretativa nos tribunais. As razões fundantes do tratamento diferenciado, segundo é possível colher da jurisprudência do STF, são, essencialmente, a da “supremacia jurídica” da Constituição, cuja interpretação “não pode ficar sujeita à perplexidade”, e a especial gravidade de que se reveste o descumprimento das normas constitucionais, mormente o “vício” da inconstitucionalidade das leis.(13)

O Superior Tribunal de Justiça, depois de uma orientação em sentido contrário, passou a obstar a aplicação da súmula 343 do Supremo Tribunal Federal quando a sentença acobertada pela coisa julgada decidisse antagonicamente ao STF, em questão constitucional, ou declarando constitucional uma lei mais tarde declarada pelo STF inconstitucional, ou vice-versa, ou sempre que se firmar esse antagonismo nas demais questões constitucionais, como ficará mais evidenciado logo abaixo, no desfecho deste capítulo.(14)

Igualmente, é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal para afastar o óbice da sua súmula 343 e entender como violação literal de lei sentença acobertada pela coisa julgada que decida em sentido contrário ao seu entendimento em questão constitucional, ainda que este tenha sido firmado posteriormente ao trânsito em julgado da sentença rescindenda. Como exemplo, cita-se o julgado dos Embargos Declaratórios nos Embargos Declaratórios no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 370.275/MG, de relatoria do ministro Celso de Mello, quando a Suprema Corte acolheu a admissibilidade de ação rescisória proposta pela União no Tribunal Regional Federal da 1ª Região para rescindir coisa julgada que declarara inconstitucionais as majorações de alíquota do Finsocial das empresas exclusivamente prestadoras de serviços, em contraste com seus precedentes, lavrados no sentido de declarar tais alíquotas constitucionais.(15)

Outro precedente importante do Supremo Tribunal Federal, revelando ser antiga sua jurisprudência em torno do tema, de cerca de quatro décadas, foi fincado no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 592.912 – RS, também de relatoria do ministro Celso de Mello, ainda que esse entendimento tenha sido lançado para estabelecer a distinção entre ação rescisória para desfazer coisa julgada inconstitucional e o instituto da eficácia rescisória dos embargos à execução, este previsto nos parágrafos único do artigo 741 e primeiro do artigo 475-L, ambos do CPC (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 592.912, ministro relator Celso de Mello, 2ª Turma, data de julgamento em 3 de abril de 2012).

Nesse sentido, restou afirmado no julgado por último citado que “cabe ter presente, nesse ponto, o que a própria jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal vinha proclamando, já há quatro (4) décadas, a respeito da invulnerabilidade da coisa julgada em sentido material, enfatizando, em tom de grave advertência, que sentenças transitadas em julgado, ainda que inconstitucionais, somente poderão ser invalidadas mediante utilização de meio instrumental adequado, que é, no domínio processual civil, a ação rescisória (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 592.912, ministro relator Celso de Mello, 2ª Turma, data de julgamento em 3 de abril de 2012).

A análise dessa orientação em face das súmulas revela duas preocupações fundamentais da Corte Suprema: a primeira, a de preservar, em qualquer circunstância, a supremacia da Constituição e a sua aplicação uniforme a todos os destinatários; a segunda, a de preservar a sua autoridade de guardião da Constituição, de órgão com legitimidade constitucional para dar a palavra definitiva em temas relacionados com a interpretação e a aplicação da Carta Magna. Supremacia da norma constitucional, tratamento igualitário e autoridade do STF são, na verdade, valores associados e, como tais, têm sentido transcendental. Há, entre eles, relação de meio e fim. E é justamente essa associação o referencial básico de que se lança mão para solucionar os diversos problemas atinentes à rescisão de julgados em matéria constitucional.(16)

Com efeito, a tese da inaplicabilidade da Súmula 343, isoladamente considerada, não representa panaceia nem tem, por si só, a aptidão de justificar e resolver todas as questões teóricas e práticas decorrentes da coisa julgada na seara constitucional. Imagine-se a hipótese de ação rescisória envolvendo tema constitucional controvertido nos tribunais, sem que a respeito dele tenha havido pronunciamento do STF. Permitir, em casos tais, que um tribunal local possa, sem mais qualquer circunstância, rescindir a sentença significaria transformar a ação rescisória em simples recurso ordinário, com prazo de dois anos, sem nenhuma segurança de ganho para a guarda da Constituição. Seria, simplesmente, alimentar ainda mais a controvérsia, com a desvantagem adicional de ensejar sentenças em rescisória incompatíveis com futuro pronunciamento da Corte Suprema.(17)

Dessa maneira, em situações desse jaez, fica difícil contestar, ainda que se trate de questão constitucional, o sentido lógico e prático da Súmula 343. O que se quer afirmar, por isso mesmo, é que, em se tratando de ação rescisória em matéria constitucional, concorre decisivamente para um tratamento diferenciado do que seja “literal violação” a existência de precedente do STF, guardião da Constituição. Ele, associado aos princípios da supremacia da Constituição e da igualdade perante a lei, é que justifica, nas ações rescisórias, a substituição do parâmetro negativo da Súmula 343 (negativo, porque indica que, sendo controvertida a matéria nos tribunais, não há violação literal a preceito normativo a ensejar rescisão) por um parâmetro positivo, segundo o qual há violação à Constituição na sentença que, em matéria constitucional, é contrária a pronunciamento do STF.(18)

3 Controle de constitucionalidade, questões constitucionais e rescisão de sentença

3.1 Controle concentrado e objetivo ou abstrato

Um desdobramento prático fundamental é como se verifica essa inteligência jurisprudencial e doutrinária no contexto dos dois controles jurisdicionais de constitucionalidade: no controle concentrado e abstrato ou objetivo e no controle difuso e incidental. Não sem antes fazer uma breve digressão sobre o controle de constitucionalidade e suas espécies, notadamente as referidas.

Controle de constitucionalidade é a verificação da adequação de um ato jurídico (particularmente de lei ou ato normativo) à Constituição. Envolve a verificação tanto dos requisitos formais – subjetivos, como a competência do órgão que o editou, e objetivos, como a forma, os prazos, o rito, observados em sua edição – quanto dos requisitos substanciais – respeito aos direitos e às garantias consagrados na Constituição (também aos princípios e aos valores consagrados constitucionalmente) – de constitucionalidade do ato jurídico.

Quanto ao controle concentrado e objetivo, a Constituição prevê o controle por ação direta, nos artigos 102, I, a, e 103, parágrafo 2° (ação direta de inconstitucionalidade – ADIn, ação direta de inconstitucionalidade por omissão e ação direta de constitucionalidade – Adcon). Na ADIn, ataca-se a validade da lei diante da Constituição Federal, sem ter em mira uma relação jurídica concreta. Na ADIn por omissão, ataca-se a frustração de um direito assegurado na Constituição pela omissão de um poder constituído, igualmente sem ter em mira uma relação jurídica concreta. E, na Adcon, busca-se não a inconstitucionalidade de uma norma infraconstitucional, mas a declaração de sua constitucionalidade, para por fim ao dissídio jurisprudencial e viabilizar a noção de segurança jurídica em matéria constitucional. Salienta-se apenas que o STF, na Adcon n° 1, consolidou o entendimento de que é condição da Adcon que o seu autor demonstre o dissídio jurisprudencial, a fim de que o mérito da ação possa ser conhecido. Pode, ainda, como é óbvio, o STF declarar a inconstitucionalidade do ato normativo, julgando improcedente a ação.

As decisões de mérito da Suprema Corte nessas ações de controle concentrado têm como resultado, conforme o caso, (a) a exclusão, do ordenamento jurídico, da norma declarada inconstitucional, ou (b) a sua manutenção, se reconhecida sua constitucionalidade. Disso resulta que as situações jurídicas individuais formadas em sentido contrário terão de se ajustar ao referido comando superior. E, tratando-se de situação individual proveniente de sentença transitada em julgado, a via para efetuar o seu ajustamento é a da ação rescisória. Atendidos os demais pressupostos de admissibilidade da ação, nomeadamente o da sua tempestividade, a eficácia erga omnes e vinculativa da decisão em controle concentrado traz por consequência não apenas o cabimento, sob tal aspecto, da rescisória (juízo de admissibilidade), mas também a procedência do pedido de rescisão (juízo rescindente) das sentenças a ela contrárias. Da mesma forma, em novo julgamento da causa (juízo rescisório), cumprirá ao órgão julgador dar ao caso concreto a solução compatível com a decisão tomada em controle concentrado. Pouco importa, para esses efeitos, que o pronunciamento do Supremo, na ação de controle concentrado, tenha surgido após o trânsito em julgado da sentença rescindenda. É que a declaração de inconstitucionalidade e o reconhecimento da constitucionalidade de um preceito normativo têm eficácia ex tunc, alcançando, portanto, todas as situações jurídicas anteriores. Também não será plausível invocar o enunciado da Súmula 343, que importaria injustificável contenção da eficácia vinculativa da decisão tomada na ação de controle concentrado.(19)

Naturalmente que, sobretudo nas situações em que o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade ocorrer após o trânsito em julgado da sentença contrastante, cumprirá observar a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. É que, como regra, a eficácia é ex tunc, e, sendo essa a eficácia do julgado no controle concentrado e abstrato, no juízo de procedência da ação direta de inconstitucionalidade, ou no de improcedência da ação declaratória de constitucionalidade, não haverá óbice para rescindir a sentença que houver declarado a constitucionalidade do mesmo ato normativo.

Contudo, o artigo 27 da Lei n° 9.868/99, que disciplina as ações diretas de constitucionalidade e as ações diretas de inconstitucionalidade, dispõe que,

“ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

Nessa ordem de ideias, julgando-se que o ato normativo objeto de questionamento no controle concentrado é inconstitucional, mas modulando-se os efeitos dessa declaração de inconstitucionalidade a partir da publicação daquela decisão, ou a partir de qualquer outro momento que vier a ser fixado, se o trânsito em julgado da sentença contrastante ocorrer em data anterior, então será o caso de prestigiar a coisa julgada. É que, nesse caso, como todos os demais efeitos do ato normativo produzidos anteriormente à data fixada pela Suprema Corte como início da produção dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, permanecerão hígidos, então, nada mais natural que a coisa julgada, que é garantia fundamental, igualmente permaneça protegida.

3.2 Controle difuso e incidental

Já no controle difuso e incidental, perante qualquer juiz pode ser levantada a alegação de inconstitucionalidade, e qualquer magistrado pode reconhecer essa inconstitucionalidade e, em consequência, deixar de aplicar o ato inquinado. Trata-se, pois, de controle incidental, de efeito inter partes. Observe-se que, se todo juiz pode reconhecer a inconstitucionalidade, os tribunais só o podem pela maioria absoluta de seus membros (artigo 97). A última palavra quem dá é o Supremo Tribunal Federal, por meio do recurso extraordinário.

Tradicionalmente, sempre se entendeu que a resolução do Senado Federal dá eficácia erga omnes à declaração operada pelo STF em controle incidental. Há doutrinariamente discussões sobre a natureza da atribuição do Senado Federal ser discricionária ou vinculada, ou seja, sobre a possibilidade de o Senado Federal não suspender a execução da lei declarada inconstitucional, incidentalmente, pelo Supremo Tribunal Federal, pela via de defesa. Ocorre que tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Senado Federal entendem que este não está obrigado a proceder à edição da resolução suspensiva do ato estatal cuja inconstitucionalidade, em caráter irrecorrível, foi declarada in concreto pelo Supremo Tribunal Federal, sendo, pois, ato discricionário do Poder Legislativo, classificado como deliberação essencialmente política, de alcance normativo. Assim, ao Senado Federal não só cumpre examinar o aspecto formal da decisão declaratória da inconstitucionalidade, verificando-se se ela foi tomada por quorum suficiente e é definitiva, mas também indagar da conveniência dessa suspensão. A declaração de inconstitucionalidade é do Supremo, mas a suspensão é função do Senado. Sem a declaração, o Senado não se movimenta, pois não lhe é dado suspender a execução de lei ou de decreto não declarado inconstitucional, porém a tarefa constitucional de ampliação desses efeitos é sua, no exercício de sua atividade legislativa. Porém, se o Senado Federal, reitere-se, discricionariamente, editar a resolução suspendendo no todo ou em parte lei declarada incidentalmente inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, terá exaurido sua competência constitucional, não havendo possibilidade, supervenientemente, de alterar seu posicionamento para tornar sem efeito ou mesmo modificar o sentido da resolução.

Contudo, mais hodiernamente, vem prevalecendo a corrente da prevalência da autoridade da decisão do Supremo Tribunal Federal em controle de constitucionalidade, sendo quase irrelevante se a decisão foi tomada no âmbito do controle de constitucionalidade abstrato ou no do difuso. Com efeito, tendo o Pleno da Corte Suprema se reunido para deliberar sobre a constitucionalidade do ato normativo, ainda que no âmbito de recurso extraordinário, não há sentido em não se prestigiar a decisão tomada naquele âmbito e restringir os efeitos da decisão lá tomada às partes litigantes. Sentido sistêmico, pois se estaria afirmando que um ato normativo ofende a Constituição somente em um determinado processo. O que vai imbricar-se com a própria natureza do controle de constitucionalidade, que é de assegurar a supremacia da norma constitucional, esta vislumbrada como unidade e fundamento de toda a ordem jurídica, que repousa nela a sua validade.

Depois, no plano legislativo, já se verificam normas processuais até certo ponto recentes, que encampam essa orientação hodierna de prestígio à autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle de constitucionalidade difuso e incidental. São exemplos dessa orientação legislativa o parágrafo único do artigo 481 do CPC, acrescentado pela Lei nº 9.756, de 1998, segundo o qual “os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a arguição de inconstitucionalidade, quando houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”. Ou seja, claramente, o legislador processual vinculou os tribunais às decisões do Supremo Tribunal Federal, tomadas em controle de constitucionalidade, mesmo que em sede de controle difuso e incidental.

Igualmente, assume essa orientação legislativa a vinculação dos juizados especiais federais e das turmas recursais aos julgados do Supremo Tribunal Federal, no âmbito dos recursos extraordinários, em controle de constitucionalidade, na forma do artigo 15 da Lei nº 10.259, de 2001.

Portanto, igualmente o pronunciamento feito pela Suprema Corte em controle de constitucionalidade difuso serve para rescindir coisa julgada contrastante, com fundamento no artigo 485, V, do CPC.

3.3 Rescisão de sentença em questões não sujeitas aos mecanismos de controle de constitucionalidade das normas

Confunde-se, às vezes, questão constitucional com questão relacionada a controle de constitucionalidade dos preceitos normativos. Na verdade, questão constitucional é gênero, do qual o controle de constitucionalidade é espécie. Com efeito, nem sempre a Constituição depende de intermediação legislativa para ter eficácia no plano social. Pelo contrário, as normas constitucionais, em sua maioria, são autoaplicáveis, notadamente as que definem direitos e garantias fundamentais (CF, artigo 5º, parágrafo 2º), delas nascendo faculdades, direitos, pretensões e ações. Enseja-se, com isso, o surgimento de questões relacionadas com a aplicação direta da Constituição, que nada têm a ver com o sistema de controle de constitucionalidade das leis. A prodigalidade de temas constitucionalizados por nossa Carta Magna abriu campo fértil para os direitos subjetivos constitucionais e, consequentemente, para a sua invocação diante dos tribunais. A própria autoaplicabilidade ou não das normas constitucionais é questão situada nesse diferenciado domínio. São inúmeros, após 1998, os exemplos de debates judiciais centrados diretamente na aplicação de norma constitucional, reproduzidos, não raro, em milhares de demandas, como os relacionados a prestações previdenciárias (direito a proventos e a pensões integrais, no regime previdenciário de serviço público – art. 40, §§ 4º e 5º, direito a correção monetária, a gratificação natalina e a proventos de valor equivalente ao salário mínimo, no sistema geral de previdência – CF, art. 201, §§ 2º a 6º), e à limitação de taxa de juros (artigo 192, § 3º).(20)

Finalmente, são também questões constitucionais as que dizem respeito à compatibilidade material das normas do direito anterior com um novo ordenamento constitucional e às decisões tomadas pelo STF nas arguições de descumprimento de preceito fundamental.(21)
  
Conclusões

Este trabalho consistiu em examinar o tema da relativização da coisa julgada, quando esta acoberta sentença que, versando sobre questão/matéria constitucional, profira um julgado em contraste com precedente do Supremo Tribunal.

Para a adequada compreensão da matéria, iniciou-se a abordagem pela conceituação de coisa julgada, passando pelo conceito de coisa julgada formal, para alcançar o que é o desiderato de toda atividade jurisdicional, que é pacificar as relações sociais, mediante a prolação de uma sentença na qual o juiz enfrente o cerne da pretensão deduzida em juízo e que, depois de a relação processual observar o devido processo legal, não sendo mais impugnável por nenhum recurso, venha a transitar em julgado. Nesse momento processual, surge a coisa julgada material, que é tratada no desenvolvimento deste trabalho, terminologicamente, como coisa julgada.

Segundo a melhor doutrina, a coisa julgada é uma qualidade, ou, como pretende o CPC, uma eficácia que torna a declaração produzida na sentença indiscutível, imutável, não somente no âmbito da relação processual, na qual a sentença por ela protegida foi prolatada, mas igualmente em qualquer processo futuro, no qual as partes pretendam renovar idêntica controvérsia de relação jurídica de direito material.

A seguir, passou-se a examinar o tema da relativização da coisa julgada. A coisa julgada não é um direito ou garantia fundamental absoluto. Ao contrário, ela comporta temperamentos ou até mesmo hipóteses nas quais ela é desfeita. A grande expressão desse desfazimento é a ação rescisória prevista no artigo 485 do Código de Processo Civil. E, no que interessa a este trabalho, a hipótese do inciso V desse artigo, que prevê a ação rescisória para desfazer coisa julgada, quando esta acoberta sentença que viole literal disposição da lei. E, ainda mais no que interessa ao desiderato deste trabalho, quando a violação diga respeito a precedente fincado em julgado do Supremo Tribunal Federal sobre questão constitucional.

Arrematando, é de concluir que, sem embargo da importância jurídica da proteção da coisa julgada, que tem força normativa de garantia fundamental, é possível desfazê-la quando ela acoberta sentença que contrarie entendimento do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional. Tanto na hipótese em que a sentença transita em julgado anteriormente ao precedente da Suprema Corte quanto na hipótese em que o trânsito em julgado seja posterior a ele. Igualmente, o precedente do Supremo Tribunal Federal pode restar exarado tanto no controle de constitucionalidade concentrado e abstrato como no controle de constitucionalidade difuso e incidental. Ainda alcança essa relativização da coisa julgada julgados do Supremo Tribunal em questões de constitucionalidade, cujos exemplos citados foram (i) decisão sobre a autoaplicabilidade, ou não, de norma constitucional; (ii) compatibilidade de norma infraconstitucional pretérita, com a Constituição atual; e (iii) decisões tomadas em arguições de descumprimento de preceito fundamental. É o posicionamento do Supremo Tribunal Federal e igualmente do Superior Tribunal de Justiça. A razão de ser desse posicionamento apoia-se em três fundamentos, a saber: (i) supremacia da norma constitucional; (ii) isonomia dos destinatários da norma constitucional tutelada no processo, no qual ela é invocada, para se aferir a validade de norma infraconstitucional; e (iii) autoridade dos julgados do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional.

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ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

Notas

1.  BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991. v. I. p. 411-412.

2.  BAPTISTA DA SILVA, 1991, p. 412.

3.  BAPTISTA DA SILVA, 1991, p. 413.

4.  BAPTISTA DA SILVA, 1991, p. 413.

5.  ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 122-123.

6.  ZAVASCKI, 2001, p. 122-123.

7.  ZAVASCKI, 2001, p. 126.

8. ZAVASCKI, 2001, p. 127.

9. ZAVASCKI, 2001, p. 128.

10. ZAVASCKI, 2001, p. 128-129.

11. ZAVASCKI, 2001, p. 130.

12.  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento 145.680. Agravante: Companhia do Metropolitano de São Paulo – METRÔ. Relator Ministro Celso de Mello. Data de julgamento em 13 de abril de 2013. Disponível em: <www.stf.jus.br>. 

13.  ZAVASCKI, 2001, p. 131-133.

14.  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 155.751. Recorrente: Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Relator Ministro Milton Luiz Pereira. Data de julgamento em 07 de junho de 1999. Disponível em: <www.stj.jus.br>; e BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 128.239. Recorrente: Agência Marítima Orion Ltda. Relator Ministro Ari Pargendler. Data de julgamento em 06 de novembro de 1997. Disponível em: <www.stj.jus.br>.

15.  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Embargos Declaratórios nos Embargos Declaratórios no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 370.275. Embargante: União. Relator Ministro Celso de Mello. Data de julgamento em 06 de agosto de 2013. Disponível em: <www.stf.jus.br>.

16. ZAVASCKI, 2001, p. 133.

17. ZAVASCKI, 2001, p. 134.

18. ZAVASCKI, 2001, p. 134.

19. ZAVASCKI, 2001, p. 134-135.

20. ZAVASCKI, 2001, p. 143.

21. ZAVASCKI, 2001, p. 143.



Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., ago. 2014. Disponível em:
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REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS