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publicado em 30.10.2014
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Diante do atual modelo arrecadatório brasileiro, que prioriza a tributação indireta, cujo ônus financeiro é suportado exclusivamente pelo contribuinte de fato, surgem relevantes questões referentes à validade desse modelo de política tributária, incluindo aspectos constitucionais, para se chegar à conclusão sobre se tal política se coaduna com os princípios constitucionais norteadores do poder de tributar no ordenamento jurídico pátrio. Palavras-chave: Poder de tributar. Função dos tributos. Impostos indiretos. Princípio da transparência. Princípio da moralidade. Princípio da capacidade contributiva. Princípio da igualdade tributária. Modelo arrecadatório. Tributação mais justa. Sumário: Introdução. 1 Poder de tributar. 2 Função dos tributos. 3 Impostos indiretos. 4 Princípio da transparência. 5 Princípio da moralidade. 6 Princípio da capacidade contributiva. 7 Princípio da igualdade tributária. Conclusão. Referências. Introdução O Estado brasileiro, atualmente, possui um modelo que prima pela arrecadação, deixando para segundo plano outros aspectos igualmente relevantes na confecção de uma política tributária, como, por exemplo, o estímulo de condutas sustentáveis, ou mesmo o desestímulo de condutas nocivas para as pessoas ou para o Estado. Nesse ponto, o presente estudo traçará premissas relativas ao poder de tributar, incluindo uma análise inicial acerca das suas principais funções e dos seus limites, para que possa ser bem entendido o contexto atual do modelo tributário vigente. Em um segundo momento, serão detalhadas as questões pertinentes à tributação indireta. A partir da delimitação do tema, o estudo será aprofundado em relação a eventuais inconstitucionalidades verificadas, especialmente no que diz respeito aos princípios constitucionais da igualdade tributária, da capacidade contributiva, da moralidade e da transparência tributária. Por fim, será elaborada a conclusão do tema, com o posicionamento do autor em relação a eventuais inconstitucionalidades e incongruências do modelo proposto, bem como soluções para que o modelo se torne mais justo e equilibrado, permitindo, consequentemente, que o Estado tribute na medida certa e que o modelo de tributação não sirva como mais um instrumento de manutenção das desigualdades sociais já existentes no país. 1 Poder de tributar O poder de tributar é um termo especialmente criticado por boa parte da doutrina, essencialmente pelo fato de essa expressão induzir o intérprete a dar-lhe um significado maior do que lhe é devido. Nesse sentido, leciona Roque Antonio Carrazza: “No Brasil, por força de uma série de disposições constitucionais, não há falar em poder tributário (incontrastável, absoluto), mas, tão somente, em competência tributária (regrada, disciplinada pelo direito). Outros doutrinadores aceitam esse termo, como ensina Hugo de Brito Machado: “O poder de tributar nada mais é do que um aspecto da soberania estatal, ou uma parcela desta. Importante, porém, é observar que a relação de tributação não é simples relação de poder, como alguns têm pretendido que seja. É relação jurídica, embora o seu fundamento seja a soberania do Estado.”(2) Em seguida, o mesmo doutrinador finaliza: “Organizado juridicamente o Estado, com a elaboração de sua Constituição, o poder tributário, como o poder político em geral, fica delimitado e, em se tratando de confederações ou federações, dividido entre os diversos níveis de governo. No Brasil, o poder tributário é partilhado entre a União, os Estados-membros e os Municípios. Ao poder tributário juridicamente delimitado e, sendo o caso, dividido dá-se o nome de competência tributária.”(3) Na realidade, tais divergências doutrinárias estão mais relacionadas à nomenclatura utilizada, sendo que para todas as correntes fica claro que o poder de tributar ou a competência tributária não traduz um poder ilimitado do Estado em criar qualquer tipo de tributo. O Estado, no exercício da competência tributária, está adstrito a inúmeros princípios e limites fixados pelo próprio poder constituinte, o que serve como uma garantia para os cidadãos de que o Estado não excederá o seu limitado poder de tributar. Parte da doutrina não diferencia os princípios tributários dos limites ao poder de tributar, defendendo que ambos externam garantias de que o Estado não excederá os limites impostos pelo constituinte ao seu poder de tributar. Por outro lado, outros doutrinadores diferenciam os institutos, concluindo que ambos, embora distintos, possuem a mesma finalidade protetora aos cidadãos. Nesse sentido, são sábias as lições de Ricardo Mariz de Oliveira: “Em suma, os princípios são pressupostos ou valores fundamentais desejados pelo legislador, os quais, portanto, iluminam a própria produção das normas particulares ou gerais, orientando o sentido que estas devem ter para guardarem correlação com o sentido maior que, dentro do espírito da lei a ser promulgada, deve ter o conjunto das normas que compõem essa lei, assim como orientam a própria redação de cada uma dessas normas para que também essas, de per si, observem aqueles valores fundamentais e apresentem correlação sistemática entre si, formando um todo consistente com aqueles valores.”(4) Em seguida, o mesmo autor faz referência a Marco Aurélio Greco, aduzindo a diferença entre os princípios e os limites ao poder de tributar: “Ou seja, para a mente atilada desse jurista, os princípios constitucionais tributários são determinações a serem cumpridas nas ações positivas do legislador, ao passo que as limitações ao poder de tributar são proibições ou barreiras ao exercício daquelas ações. Daí as limitações não se constituírem exatamente em princípios. Ademais, diz ele, as limitações têm uma carga definitiva de objetividade, dispensando as explicitações que normalmente são requeridas pelos princípios, dotados que são de valor mais abstrato do que objetivo.”(5) Por fim, a doutrina de Ricardo Mariz de Oliveira é concluída com maestria: “E acrescento mais uma observação quanto à inexistência de uma fronteira nítida e intransponível entre princípios e limites ao poder de tributar. Trata-se de que os princípios, embora se apresentem como uma primeira aparência positiva, também contêm uma carga negativa e limitadora, da mesma maneira, como vimos acima, que as limitações são originariamente negativas da possibilidade de tributar além de certas barreiras ou sem a observância de certos requisitos, mas carregam, a contrario sensu, uma afirmação positiva da possibilidade de tributar sob determinadas condições.”(6) 2 Função dos tributos Em uma sociedade moderna, é indiscutível a necessidade da tributação, especialmente considerando que temos no Brasil, como regra, a liberdade de iniciativa na ordem econômica, atuando o Estado diretamente na economia apenas excepcionalmente, nos termos do art. 173 da Constituição da República. Há alguns anos, dizia-se que a principal função dos tributos seria a exclusivamente arrecadatória, o que já não se mostra adequado nos dias atuais, pois, cada vez mais, vêm ganhando importância as funções extrafiscais, em que o Estado se utiliza do poder de tributar para fomentar certas atividades e desestimular outras, sem deixar de lado a função arrecadatória que continua existindo mesmo nos tributos extrafiscais. Nesse ponto, é precisa a lição de Hugo de Brito Machado: “O objetivo do tributo sempre foi o de carrear recursos financeiros para o Estado. No mundo moderno, todavia, o tributo é largamente utilizado com o objetivo de interferir na economia privada, estimulando atividades, setores econômicos ou regiões, desestimulando o consumo de certos bens e produzindo, finalmente, os efeitos mais diversos na economia.”(7) O grande problema que surge, sempre que se fala em tributação, é que, em muitas ocasiões, o Estado não atua da forma que deveria. No caso da atuação arrecadatória do Estado, normalmente os membros da sociedade não conseguem enxergar o adequado destino dos recursos pagos sob a forma de tributos, o que, por muitas vezes, gera uma sensação de indignação por parte das pessoas. Nesse sentido, bem sintetiza Hugo de Brito Machado: “Por outro lado, o Estado é perdulário. Gasta muito e, ao fazê-lo, privilegia uns poucos, em detrimento da maioria, pois não investe nos serviços públicos essenciais dos quais esta carece, tais como educação, segurança e saúde. Assim, mesmo sem qualquer comparação com a carga tributária de outros países, é possível afirmar-se que a nossa é exageradamente elevada, uma vez que o Estado praticamente nada nos oferece em termos de serviço público.”(8) Com relação à função extrafiscal, o que se percebe é que, em muitos casos, o Estado não se utiliza desse mecanismo como deveria, não tendo a mínima preocupação com um desenvolvimento sustentável, como ocorre, por exemplo, quando se isenta o IPI para a compra de certos veículos, sendo certo que tal aumento de vendas acarretará danos irreversíveis no meio ambiente e na qualidade de vida das pessoas, quando o Estado deveria se utilizar da extrafiscalidade justamente para proteger esses bens jurídicos. 3 Impostos indiretos Impostos indiretos são aqueles que não são suportados economicamente pelo contribuinte de direito (normalmente o comerciante ou o industrial), ficando o ônus do pagamento para o consumidor final, que não participa da relação tributária. Essa transferência do ônus de pagar o tributo ocorre graças à previsão constitucional do princípio da não cumulatividade, o qual permite compensar com o imposto devido o imposto cobrado nas operações anteriores. A doutrina de Leandro Paulsen bem elucida a diferenciação entre os impostos diretos e os indiretos: “Diretos e indiretos conforme, segundo os vários enfo ques desta classificação, seja possível ou não a determinação prévia da pessoa do contribuinte, ocorra ou não a confusão entre o contribuinte de direito e o contribuinte de fato – aquele que suporta o ônus tributário –, o que se costuma referir como possibilidade ou não de transferência do ônus econômico, incidência sobre fatos que denotam capacidade contributiva real (riqueza em si) ou presumida (riqueza manifestada por atos instantâneos de fruição).”(9) Por outro lado, Sacha Calmon Navarro Coelho ressalta a característica de esse tributo incidir sobre o consumidor final, e não sobre o contribuinte, como ocorre normalmente em relação aos demais tributos: “Juristas de vários países, por essa razão, insistem em chamar o IVA ou a TVA de ‘imposto sobre o consumo’, e não imposto sobre o valor acrescido ou sobre a circulação, embora, do ponto de vista técnico estrito, o consumidor final – que de fato suporta economicamente o tributo – esteja alijado da relação tributária.”(10) A nomenclatura utilizada nesse tipo de imposto é muito criticada pela doutrina, pois tem a função de mascarar a pessoa que de fato suporta o ônus desse tributo, que é o consumidor final. Nesse ponto, Sacha Calmon Navarro Coelho aduz que: “Não se trata de uma preocupação eminentemente técnica, voltada a ajustar o nome ao formalismo jurídico. Antes, por motivos psicológicos tributários, quer-se vincular o imposto ao empresário, tornando-o pouco perceptível aos olhos dos consumidores leigos e não empresários.”(11) Na realidade, esse tipo de tributo existe como forma de garantir a viabilidade econômica das empresas e das indústrias, conforme esclarece, de forma didática, Misabel Abreu Machado Derzi, na atualização da obra de Aliomar Baleeiro: “O ordenamento jurídico, que não conflita com a realidade econômica, autoriza que tais tributos sejam transferidos, pelo mecanismo dos preços das mercadorias e dos serviços, aos consumidores. Inexistisse a transferência, logo o endividamento e a insolvência comprometeriam a saúde financeira de toda a atividade econômica.”(12) Por outro lado, existem diversas críticas a respeito dessa forma de tributação, especialmente no que diz respeito a eventuais violações de princípios constitucionais, pois, em muitas ocasiões, seriam inobservados os princípios da transparência, da moralidade, da capacidade contributiva e da isonomia. Também existem críticas a respeito da política do Estado de concentrar grande parte da sua arrecadação, aproximadamente 49%, conforme reportagem veiculada em jornal de circulação nacional no ano de 2014,(13) na tributação indireta, deixando de lado outras formas de tributação que seriam mais fiéis à promoção de uma política de tributação justa, como, por exemplo, a tributação sobre a renda, sobre a riqueza ou sobre as heranças, que ainda se mostram insuficientes no nosso país. 4 Princípio da transparência A primeira crítica severa que se faz em relação à tributação indireta diz respeito à total ausência de transparência nesse tipo de tributação. O consumidor paga o tributo embutido no preço sem ter a mínima ideia de que está pagando algum tipo de tributo. A Constituição da República dispõe, no art. 150, § 5º, que “a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”.(14) Até o ano de 2012, inexistia qualquer norma que desse cumprimento à norma constitucional mencionada, mesmo passados mais de 20 anos da promulgação da Constituição da República. Finalmente, no ano de 2012, foi publicada a Lei nº 12.741/12, que determina que o consumidor tenha acesso, nas notas fiscais, aos valores de tributos que está pagando de forma embutida na compra de um produto ou na realização de um serviço. Embora a referida lei já seja um passo importante na retomada da transparência ao consumidor, é facilmente constatável que as determinações contidas na legislação ainda não estão sendo aplicadas no comércio em geral, o que conduz àquela situação de desinformação do consumidor acerca do que está pagando em tributos em cada produto ou serviço que adquire no comércio. Com relação ao princípio da transparência, a indagação que deve ser feita diz respeito à adequação de uma cobrança indireta de tributos aos consumidores que não seja feita de forma transparente. Assim, seria possível invocar alguma espécie de inconstitucionalidade na cobrança aos consumidores de forma embutida dos impostos indiretos? 5 Princípio da moralidade De forma intimamente relacionada ao princípio da transparência, está o princípio da moralidade, previsto no art. 37 da Constituição da República. Tal princípio não deve ser lido de forma simplista, como um mero conjunto de valores pelos quais devem se pautar os agentes públicos, devendo ter um espectro mais amplo, sendo utilizado como instrumento na busca pela justiça e pela equidade. Nesse ponto, sobre a distinção entre moralidade e moralismo, bem se posicionou Marco Aurélio Greco: “Em suma, minha proposta nesta primeira parte do estudo é no sentido de ser possível haver moralidade administrativa sem moralismo! Deixando de ver a moralidade como mera lista de pautas e condutas, e vendo a moralidade como posicionamento perante o interlocutor, para que a ação, ainda que legal, não seja instrumento de instauração de injustiças a ele destinadas.”(15) Dessa forma, o princípio da moralidade também é exigível por parte do consumidor em relação à administração pública, que deve ser transparente na forma como é feita a tributação para que o consumidor tenha conhecimento de todos os valores que está pagando a título de tributo. Qualquer outra forma de atuação sem transparência por parte do Estado-arrecadador, tanto no âmbito legislativo como no âmbito do executivo, seria lida como imoral, pois contrária à conduta que se espera do Estado. Por fim, não se podem confundir os tributos indiretos com a denominada tributação disfarçada ou oculta, sendo que, nos dizeres de Hugo de Brito Machado, “O tributo disfarçado ou oculto caracteriza-se como tal em nosso ordenamento jurídico pelo fato de não ser instituído com obediência às normas e aos princípios que, em nosso direito, regem a instituição e a cobrança dos tributos. Ele é instituído e cobrado disfarçadamente, embutido no preço de bens ou de serviços prestados pelo Estado, por meio de empresas suas ou de concessionárias, a salvo das leis do mercado e, portanto, com preços fixados de forma unilateral e sem qualquer possibilidade de controle, em face do conluio que se estabelece entre o Estado e a empresa vendedora do bem ou prestadora do serviço.”(16) Ao final deste capítulo, a indagação que deve ser feita transita na necessidade de se saber se a realização de cobranças de tributos de forma embutida nos preços estaria de alguma forma violando o princípio da moralidade administrativa. 6 Princípio da capacidade contributiva Estabelece o art. 145, § 1º, da Constituição da República que, “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”(17) Inicialmente, a doutrina, de forma majoritária, entende que a expressão “sempre que possível”, utilizada no § 1º do mencionado dispositivo, diz respeito apenas ao caráter pessoal dos tributos, sendo que não se trata de uma faculdade para a aplicação do princípio da capacidade contributiva apenas em algumas hipóteses. Esse princípio mostra-se um dos mais importantes do sistema tributário constitucional, estando intimamente ligado ao princípio da isonomia, conforme mostram os ensinamentos de Ricardo Lobo Torres: “O mais importante dos princípios da justiça tributária é o da capacidade contributiva, que fornece a medida para as comparações intersubjetivas. Hoje aparece expressamente na CF (art. 145). Consiste em legitimar a tributação e graduá-la de acordo com a riqueza de cada qual, de modo que os ricos paguem mais, e os pobres, menos.”(18) Mais adiante, o mesmo doutrinador esclarece: “Em resumo do que foi dito até aqui, capacidade contributiva e isonomia são princípios constitucionais que se impõem superiormente tanto na elaboração das normas de direito tributário quanto na sua interpretação e na sua aplicação, superioridade essa que emana da sua condição de preceitos e valores informadores do sistema constitucional como um todo (quanto à isonomia) e do subsistema tributário em particular (quanto à capacidade contributiva e à isonomia).”(19) No direito comparado, geralmente as legislações buscam atender ao princípio da capacidade contributiva, conforme explica a doutrina de Klaus Tipke: “O princípio da capacidade contributiva está inserido em uma série de constituições; assim, na Europa, nas constituições de Itália, Espanha, Croácia, Hungria, Liechtenstein e Suíça. O princípio da capacidade contributiva também é reconhecido em países em que ele não está inserido no texto constitucional, como é o caso da Alemanha.”(20) A capacidade contributiva, de acordo com a doutrina majoritária, sofre duas espécies de limitações: as quantitativas e as qualitativas. As limitações quantitativas protegem o cidadão contra o excesso de tributação ou mesmo contra o desrespeito ao mínimo necessário à sobrevivência digna. Quanto ao mínimo necessário, são valiosas as lições de Ricardo Lobo Torres: “A imunidade do mínimo existencial está em simetria com a proibição de excesso, fundada também na liberdade: enquanto esta impede a tributação além da capacidade contributiva, a imunidade do mínimo vital protege contra a incidência fiscal aquém da aptidão para contribuir.”(21) Já as limitações qualitativas protegem o cidadão contra discriminações arbitrárias (em razão do sexo, por exemplo) e privilégios ilegais (a favor de certa categoria, por exemplo) concedidos a terceiros. Feita a introdução acerca do princípio da capacidade contributiva, resta averiguar se o pagamento de impostos indiretos, a exemplo do ICMS ou do IPI, de alguma forma violaria o princípio da capacidade contributiva, na medida em que todos, independentemente das suas capacidades econômicas, pagariam o mesmo tributo na compra de produtos ou serviços. Melhor explicando, viola o princípio da capacidade contributiva o pagamento do mesmo valor de tributo para consumidores (contribuintes de fato) com diferentes padrões econômicos? Alguns dirão que a ocorrência de tal discrepância já basta para configurar a violação ao princípio da capacidade contributiva, pois, por exemplo, na compra de um litro de leite, o trabalhador que ganha um salário mínimo estará pagando o mesmo que um trabalhador que ganhe 30 vezes mais, o que configuraria uma violação por si só. Por outro lado, existe outra posição que nega a violação ao princípio da capacidade contributiva, pois a capacidade contributiva não se confunde com a existência de patrimônio ou riqueza e não se configura antes da ocorrência do fato gerador, só se tornando alguém devedor dos tributos quando realiza os fatos econômicos descritos em lei como fatos geradores. Nesse sentido é a posição de Ricardo Mariz de Oliveira: “Dessarte, constitui-se em grave erro confundir a capacidade contributiva com a riqueza de uma pessoa, pois a sua fortuna somente diz que ela pode vir a ter capacidade contributiva quando for colocada em atividade geradora de circulação de mercadorias, ou de aquisição de imóveis, ou de aplicação nos mercados financeiros e de capitais, etc.”(22) Assim, para o exemplo dado anteriormente, não ocorreria a violação do princípio da capacidade contributiva, pois o tributo não incide sobre as riquezas de quem ganha um salário mínimo ou 30 vezes esse valor, apenas sobre aquele fato gerador específico que consistiu na compra de um litro de leite. Para corroborar tal posição, deve ser lembrado que o princípio da não cumulatividade é previsto expressamente na Constituição da República, conforme o art. 155, § 2º, I, e o art. 153, § 3º, II, o que permite que os tributos sejam cobrados na forma indireta, recaindo o ônus no consumidor final. Mas a primeira grande questão a ser posta para análise consiste na seguinte indagação: a política tributária adotada atualmente, em que aproximadamente 49% da carga tributária brasileira decorre dos tributos indiretos, viola de alguma forma o princípio da capacidade contributiva? Outra questão tormentosa diz respeito ao mínimo existencial. Seria legítima a tributação de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza, mas que, por questão de necessidade de sobrevivência, são consumidores finais de produtos de primeira necessidade, como, por exemplo, os produtos da cesta básica? Imaginemos um cidadão que trabalha na informalidade, recebendo um valor mensal ínfimo e estando abaixo da linha de pobreza, conforme todos os parâmetros utilizados. Esse cidadão, ao comprar produtos básicos como arroz, feijão e leite, acaba pagando tributos embutidos no preço dos produtos. Seria constitucional essa cobrança, considerando que o contribuinte de fato vive abaixo da linha de pobreza? 7 Princípio da igualdade tributária O princípio da igualdade tributária ou da isonomia determina que os contribuintes em situações idênticas sejam tratados de forma igual, e que aqueles que estejam em situação diferente sejam dessa forma tratados. Roque Antônio Carraza trata o tema com imensa felicidade, ao esclarecer que “A lei tributária deve ser igual para todos e a todos deve ser aplicada com igualdade. Melhor expondo, quem está na mesma situação jurídica deve receber o mesmo tratamento tributário. Será inconstitucional – por burla ao princípio republicano e ao da isonomia – a lei tributária que selecione pessoas, para submetê-las a regras peculiares, que não alcancem outras, ocupantes de idênticas situações jurídicas.”(23) Assim, não se pode descuidar que o princípio da igualdade tributária possui como destinatários tanto o Poder Legislativo como o Poder Executivo, sendo certo que tanto a elaboração como a aplicação das leis devem primar pela busca de um tratamento isonômico para os contribuintes. Nesse ponto, são perfeitas as ponderações trazidas por Klaus Tipke: “Ambos, legislador e autoridades fiscais, devem observar o princípio da igualdade. Ele vale para a aplicação da lei do mesmo modo que para a sua elaboração. Somente se considera atendido o princípio da igualdade quando tanto o legislativo como o executivo o observam, cada um desses poderes dentro da sua própria esfera. Se as leis tributárias ferem o princípio da igualdade, então essa infração persiste mesmo que o executivo aplique de modo igual a lei inconstitucional. Em sentido oposto: leis tributárias que correspondem ao princípio da igualdade não são em si suficientes para a realização do princípio da igualdade; para tanto, é necessário que as leis tributárias também sejam executadas (aplicadas) de modo igual. Esse mandamento é ferido por todos os países do mundo.”(24) Por outro lado, não se pode ter em mente que as leis tributárias sempre darão o mesmo tratamento para todos os contribuintes. Isso não é possível pelo mero fato de que os contribuintes possuem as suas individualidades, e essas características devem ser respeitadas, sob pena de violação ao princípio da igualdade tributária. Hugo de Brito Machado explica com lucidez acerca da necessidade de a lei tributária discriminar para satisfazer ao princípio da igualdade: “As dificuldades no pertinente ao princípio da isonomia surgem quando se coloca a questão de saber se o legislador pode estabelecer hipóteses discriminatórias, e qual o critério de discrime que pode validamente utilizar. Na verdade, a lei sempre discrimina. Seu papel fundamental consiste precisamente na disciplina das desigualdades naturais existentes entre as pessoas. A lei, assim, forçosamente discrimina. O importante, portanto, é saber como será válida essa discriminação. Quais os critérios admissíveis e quais os critérios que implicam lesão ao princípio da isonomia.”(25) Com relação aos impostos indiretos, deve ser indagado se tal tipo de imposição tributária de alguma forma viola o princípio da igualdade tributária. Em uma primeira análise, o repasse dos tributos devidos ao consumidor final não parece trazer nenhum vício constitucional, especialmente se levarmos em consideração que o consumidor paga o tributo na exata proporção do seu consumo, ou seja, se uma pessoa consome demasiadamente, pagará os impostos embutidos em todos os produtos ou serviços consumidos. Por outro lado, uma pessoa que consuma pouco pagará apenas os tributos embutidos naqueles produtos que consome. Assim, em uma primeira análise, muitos podem defender a inexistência de qualquer inconstitucionalidade, pois as leis que dispõem sobre os impostos indiretos (ex.: IPI, ICMS) estão tratando com igualdade o contribuinte de fato, que nem faz parte da relação jurídica tributária. Analisando-se a questão por outro prisma, a conclusão pode não ser a mesma. Estaria de acordo com o princípio da igualdade tributária a tributação que é feita de forma indireta aos consumidores, de forma idêntica para todos, sem levar em consideração aspectos econômicos individuais? Nesse ponto, Hugo de Brito Machado correlaciona o imposto progressivo ao princípio da igualdade, defendendo que a progressividade seria um importante instrumento para se chegar a uma aplicação justa da lei tributária: “Não fere o princípio da igualdade, antes o realiza com absoluta adequação, o imposto progressivo. Realmente, aquele que tem maior capacidade contributiva deve pagar imposto maior, pois só assim estará sendo igualmente tributado. A igualdade consiste, no caso, na proporcionalidade da incidência à capacidade contributiva, em função da utilidade marginal da riqueza.”(26) Por fim, como já esclarecido no tópico anterior, a análise do princípio da igualdade muitas vezes se confunde com a análise da capacidade contributiva, devendo tanto o legislador como o executor das leis atentarem para o fato de que a análise da constitucionalidade da norma dependerá da observação desses princípios fundamentais ao direito tributário. Conclusão Nesse momento, cabe limitar a situação brasileira, para que possamos entender alguns dos graves problemas hoje enfrentados no modelo de tributação adotado. No Brasil, o Estado só atua diretamente na economia em casos excepcionais, tendo predominantemente uma atuação indireta, regulatória, o que faz com que as pessoas, no exercício dos seus direitos de propriedade, atuem de forma direta na economia. Sendo uma sociedade não estatizada, torna-se necessário que o Estado crie formas de custeio para fazer frente aos inúmeros gastos exigidos para o funcionamento da máquina estatal e para o fornecimento dos inúmeros serviços necessários à população. Nesse diapasão, surgem os tributos, como uma das fontes de receita para que o Estado arque com os gastos necessários ao funcionamento de tantos serviços. Como visto no corpo do trabalho, os tributos são cobrados graças ao poder de tributar conferido pela Constituição da República, sendo certo que tal concessão feita deve respeitar de forma intransponível limites e princípios constitucionais, sob pena de o Poder Legislativo ou o Poder Executivo estarem violando os parâmetros adotados pela Carta Magna. No que toca aos tributos indiretos, como é o caso do IPI (federal) e do ICMS (estadual), por exemplo, o presente texto se propôs a averiguar se existiria alguma inconstitucionalidade na cobrança desses tributos de forma embutida nos preços dos produtos, já que, nesse caso, excepcionalmente, o responsável econômico pelo tributo não é o contribuinte de direito, mas o consumidor do produto (contribuinte de fato). Com relação ao princípio da transparência, embora esteja em vigor a Lei nº 12.741/12, nos termos do que havia sido determinado pelo art. 150, § 5º, da Constituição da República, essa transparência determinada pela lei ainda carece de medidas a serem adotadas pelo poder público para garantia da sua completa eficácia. A primeira medida a ser tomada seria o aumento da fiscalização relacionada ao cumprimento dos comandos da Lei nº 12.741/12, nos termos do art. 5º, que remete às sanções administrativas previstas no Código de Defesa do Consumidor. Como foi esclarecido ao longo do trabalho, para se alcançar o cumprimento de princípios, não basta, em muitas ocasiões, a existência de lei, sendo necessário o árduo trabalho de fiscalização por parte dos órgãos incumbidos dessa tarefa. Por outro lado, também seria necessária uma maior conscientização da população, para que todos entendessem que, em cada pequeno produto que compram, estão pagando um significativo valor tributário, criando nas pessoas uma cultura que as faça exigir eventuais contraprestações por parte dos governantes. Assim, atualmente não há flagrante inconstitucionalidade relacionada ao princípio da transparência nos tributos indiretos, devendo apenas o poder público aprimorar os mecanismos de fiscalização e de conscientização das pessoas. Quanto ao princípio da moralidade administrativa, este está intimamente ligado à transparência, pois, se o Estado tributa sem que os contribuintes de fato saibam que estão sendo tributados, está agindo de forma imoral, sorrateira, desqualificada. Assim, caso sejam implementadas as medidas acima citadas em relação ao princípio da transparência, não haverá inconstitucionalidade nesse ponto, pois as pessoas saberão que estão pagando tributos e poderão cobrar que as autoridades deem a destinação correta aos valores pagos. Com relação aos princípios da capacidade contributiva e da isonomia, conclui-se que, em regra, não há inconstitucionalidade na cobrança indireta dos tributos, pois o tributo é devido somente em razão da venda dos produtos ou da prestação dos serviços (fatos geradores), não tendo relação com eventuais riquezas pessoais que os consumidores possuam. Embora não haja inconstitucionalidades na mera cobrança dos tributos indiretos embutidos no preço final dos produtos, selecionam-se dois pontos que merecem uma maior reflexão por parte dos operadores do direito. O primeiro deles diz respeito ao mínimo existencial. Seria legítima a tributação indireta de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza? Será que esses valores despendidos ao Erário não fariam falta para uma sobrevivência digna dessas pessoas? Imaginemos uma pessoa que tenha uma renda mensal que não ultrapasse meio salário mínimo. Quando compra produtos alimentícios básicos, a exemplo de arroz e feijão, e acaba pagando tributos no preço final, não seria um excesso odioso por parte do Estado tributar um miserável, tolhendo que essa pessoa tenha ao menos uma sobrevivência digna? Parece que, nessas hipóteses, em que a tributação alcança o mínimo existencial, estaríamos diante de violações constitucionais ao princípio da igualdade tributária, já que os desiguais devem ser tratados de forma desigual em relação à sua capacidade contributiva, pois aquele contribuinte está pagando em tributo o que usaria para sobreviver, e, por fim, ao princípio da dignidade da pessoa humana, expressamente previsto na carta constitucional. Talvez fosse necessário que fossem revistas as incidências tributárias indiretas em produtos básicos utilizados pelas camadas mais pobres (talvez em alguns produtos de primeira necessidade da cesta básica), com o fim de se evitar que essas pessoas paguem tributos quando estão abaixo de uma linha aceitável de pobreza. O segundo ponto que merece destaque diz respeito à política tributária adotada pelos governos brasileiros que se sucedem no poder, que vêm priorizando a instituição de tributos indiretos que são pagos de forma idêntica por toda a população em detrimento da instituição de tributos que incidam de fato sobre a renda ou sobre a riqueza das pessoas, chegando, de acordo com a reportagem mencionada no presente texto, ao patamar de 49% em relação ao total arrecadado com tributos. Tal política parece afrontar os princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva, pois a parcela mais pobre da população vem sendo imensamente onerada, na mesma proporção dos mais ricos, enquanto as pessoas e as empresas com mais renda e patrimônio vêm sendo tributadas com displicência pelo poder público em razão da renda auferida e da riqueza existente, beneficiadas por uma legislação leniente e por uma fiscalização totalmente ineficaz, que pouco faz nos casos em que não há tributação na fonte. Em termos comparativos com a renda que recebem, os mais pobres sofrem uma tributação muito superior à que incide sobre a parcela da população que possui uma renda maior. Em conclusão, o que deveria ser modificado é a política tributária brasileira, sendo que os tributos indiretos deveriam perfazer um percentual muito menor do total tributado pelo país, como ocorre nos países desenvolvidos, sendo aperfeiçoados, por outro lado, os modelos de fiscalização da renda e da riqueza da população, de forma que o sistema tributário sirva à sua finalidade primordial, que é a busca por uma sociedade mais justa, com a atuação do Estado para aqueles que mais necessitam, buscando a contribuição forçada, por meio do tributo, daqueles mais abastados, e não em sentido inverso. Referências BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário brasileiro. 11. ed. atual. por Mizabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2003. CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, Esmafe, 2007. SCHOUERI, Luis Eduardo (coord.). Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. I e II. Notas
1. CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 435-436. 4. OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Apud SCHOUERI, Luis Eduardo (coord.). Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. I e II. p. 464. 5. OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Apud SCHOUERI, Luis Eduardo (coord.). Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. I e II. p. 478. 6. OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Apud SCHOUERI, Luis Eduardo (coord.). Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. I e II. p. 486. 9. PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, Esmafe, 2007. p. 625. 10. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 490. 11. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 490. 12. BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário brasileiro. 11. ed. atual. por Mizabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 336. 13. Extraído do site do jornal Estado de São Paulo. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,tributos-indiretos-oneram-os-mais-pobres-e-tiram-competitividade-do-pais-imp-,1170528>. 15. GRECO, Marco Aurélio. Apud SCHOUERI, Luis Eduardo (coord.). Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. I e II. p. 385. 18. TORRES, Ricardo Lobo. Apud SCHOUERI, Luis Eduardo (coord.). Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. I e II. p. 446. 19. TORRES, Ricardo Lobo. Apud SCHOUERI, Luis Eduardo (coord.). Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. I e II. p. 500. 20. TIPKE, Klaus. Apud SCHOUERI, Luis Eduardo (coord.). Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. I e II. p. 362. 21. TORRES, Ricardo Lobo. Apud SCHOUERI, Luis Eduardo (coord.). Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. I e II. p. 436. 22. OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Apud SCHOUERI, Luis Eduardo (coord.). Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2003. v. I e II. p. 505. 23. CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 70.
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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