Resumo
O aumento progressivo das demandas trazidas ao conhecimento do Poder Judiciário após o advento da Constituição Brasileira de 1988 tornou indispensável a adoção de formas extrajudiciais de solução de conflitos, como a mediação, a conciliação e a arbitragem. No caso específico da arbitragem, em que é obrigatória a adoção do instituto pelas partes que tenham incluído cláusula compromissória em prévio instrumento contratual ou celebrado compromisso arbitral, poderia eventualmente se discutir a constitucionalidade do instituto, tendo em vista a garantia constitucional de inafastabilidade do conhecimento de qualquer matéria pelo Poder Judiciário. A partir de 1996, a arbitragem passou a ser regulamentada no Brasil pela Lei n° 9.307, inclusive dispondo principalmente sobre os poderes do árbitro, sobre a forma de processamento da arbitragem e sobre os limites da jurisdição arbitral, inovando no ordenamento jurídico pátrio ao dispensar a posterior homologação judicial do laudo arbitral. Conforme entendimento majoritário da jurisprudência e da doutrina pátrias, não haveria qualquer inconstitucionalidade na forma de regulamentação da arbitragem pela Lei n° 9.307/1996, inexistindo conflito entre a obrigatoriedade de adoção consensual da justiça arbitral pelas partes interessadas e garantia constitucional da universalidade do acesso ao Poder Judiciário.
Palavras-chave: Arbitragem. Acesso ao Poder Judiciário. Solução extrajudicial de conflitos. Constitucionalidade.
Sumário: Introdução. 1 Garantias constitucionais referentes ao acesso à Justiça. 1.1 Compatibilização das garantias constitucionais de acesso à Justiça. 1.2 Criação de meios extrajudiciais de solução de conflitos. 1.3 Compatibilidade das formas alternativas de solução de conflitos com a garantia de acesso irrestrito à Justiça. 2 Arbitragem. 2.1 Legislação pertinente à arbitragem. 2.2 Convenção de arbitragem. 2.3 Árbitros. 2.4 Procedimento da arbitragem. 3 Arbitragem nas demandas envolvendo a Administração Pública. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
O aumento exponencial dos conflitos sociais, econômicos e jurídicos levados ao conhecimento do Poder Judiciário nas últimas décadas, aliado à indiscutível impossibilidade material de a jurisdição estatal proporcionar uma solução célere a todos esses conflitos, tornou indispensáveis o desenvolvimento e a regulação de formas extrajudiciais de resolução de controvérsias, tanto com a finalidade de reduzir o volume de demandas em tramitação no Poder Judiciário como para proporcionar às partes outras formas céleres e justas de resolução de suas lides.
Entre essas formas extrajudiciais de pacificação social, destaca-se a arbitragem, com aplicação prática direcionada principalmente, mas não exclusivamente, às relações contratuais celebradas entre particulares.
No presente trabalho se examinará, em linhas gerais, a forma de regulamentação da arbitragem adotada pelo Direito Brasileiro, bem como se a adoção dessa forma de solução de conflitos pode eventualmente ser considerada conflitante com a garantia constitucional de acesso ao Poder Judiciário, na medida em que a solução arbitral impede o conhecimento da mesma matéria pelo juízo estatal.
1 Garantias constitucionais referentes ao acesso à Justiça
Estabeleceu a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no inciso XXV de seu artigo 5º, a garantia de acesso irrestrito dos brasileiros e estrangeiros residentes no país ao Poder Judiciário, ao dispor expressamente que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Tal dispositivo, assim, teve o condão de estabelecer que nenhum litígio, conflito, controvérsia ou disputa estaria imune à intervenção do Poder Judiciário, implicando, em última análise, a total judicialização dos conflitos inerentes à vida em sociedade.
Posteriormente, em 2004, foi incluído, pela Emenda Constitucional n° 45/2004, o inciso LXXVIII ao art. 5º, que assegurou a todos “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”, também no âmbito judicial.
Assim, não apenas a totalidade dos conflitos sociais, políticos e econômicos estariam sujeitos à tutela jurisdicional, como também se garantiu aos litigantes que a solução destas disputas deveria ocorrer em tempo razoável.
1.1 Compatibilização das garantias constitucionais de acesso à Justiça
Ocorre, entretanto, que a simples inclusão de direitos e garantias no texto da Constituição não tem o condão, por si só, de assegurar a efetiva implantação desses direitos e garantias, especialmente quando escassos os recursos materiais e humanos necessários para a consagração de quaisquer desses direitos e garantias.
Como é notório, as sociedades modernas possuem capacidade quase infinita de geração de novos conflitos e disputas sociais, políticas ou econômicas, situação essa ainda mais agravada em um país como o Brasil, no qual se está vivendo em um período de progressiva maturação e consciência político-social. Dessa forma, conflitos que, até pouco tempo atrás, se não resolvidos extrajudicialmente, eram relegados ao esquecimento pelos envolvidos, atualmente dão origem a infindáveis processos judiciais.
Por outro lado, há um limite até mesmo material para a possibilidade de crescimento da estrutura do Poder Judiciário, a qual não é capaz de acompanhar o aumento exponencial no número de novos processos.
Sobre essa questão, cumpre transcrever a doutrina de Nilton César Antunes da Costa(1):
“Uma sociedade justa exige mecanismos de acesso à ordem jurídica eficientes e que atendam aos seus anseios no tempo e no espaço desejados, pois o ordenamento posto só tem substância qualitativa quando conformado com o justo e aplicado rente à realidade social.
Logo, seria contrário ao preceito constitucional invocado impor ao jurisdicionado, sem qualquer opção dada a ele, métodos ineficientes de composição de conflitos, que o impeçam, desestimulem, etc., ofuscando seu regular direito de acesso à Justiça.
(...)
O processo judicial como instrumento ético adequado, oferecido pelo Estado para a composição dos conflitos (art. 5º, LIV, da CF), não obstante os infindáveis esforços dos operadores do direito, no sentido de tonificar sua eficácia, ainda sofre dos males corrosivos que a morosidade de julgamento lhe causa, como a eternização das demandas e a angústia das partes ou dos seus sucessores envolvidos no conflito.
(...)
Outro fato que exige adequação do Estado-Juiz à nossa realidade social é que a litigiosidade contida liberta-se paulatinamente de seu estágio anacrônico em função do movimento de acesso à justiça aos necessitados, o que tem ocorrido, v.g., com o implemento dos juizados especiais cíveis e também com os benefícios da justiça gratuita (Lei 1.060/50).
A facilitação e a conscientização do jurisdicionado, referente ao acesso à justiça estatal, também faz com que aumente geometricamente, em nosso sistema, a quantidade de demandas pleiteadas ao Estado-Juiz.
É público e notório que nossa estrutura judiciária não está preparada para o universo infindável de demandas decorrentes do aumento da litigiosidade, em vista do elevado custo que isso acarreta ao Estado, tão carente de recursos e com estruturas precárias, o que infelizmente tem reflexo direto na morosidade dos trâmites processuais e em outras mazelas.”
Assim, mostra-se indispensável a adoção de medidas materiais e efetivas, além da simples promulgação de garantias constitucionais, capazes de tornar mais eficiente a solução dos litígios surgidos na sociedade.
1.2 Criação de meios extrajudiciais de solução de conflitos
Confrontado com a necessidade de criação de meios para a redução das demandas judiciais, o que poderia acarretar não apenas maior celeridade nas ações remanescentes, mas principalmente a adoção de soluções mais adequadas para as lides resolvidas extrajudicialmente, passou o legislador, e também o próprio Poder Judiciário, a admitir a utilização de formas alternativas de solução de conflitos, como a mediação, a conciliação e a arbitragem, conforme demonstra Pedro A. Batista Martins(2):
“As ações que o País vem desenvolvendo ao longo dos últimos anos dão a cristalina evidência da ampliação do campo de manejo, para o particular, no que tange aos seus direitos disponíveis.
A privatização e a desregulamentação de vários segmentos de nossa economia demonstram o recuo da intervenção estatal, gerando, para a iniciativa privada, como contrapartida, maior independência e autonomia.
(...)
Diante desse cenário, não é de se estranhar que a arbitragem, calcada na liberdade de contratar, não conseguisse ganhar campo no Brasil. O protecionismo estatal não admite tribunal constituído pela vontade exclusiva das partes, pois somente o Estado é capaz de solucionar o conflito.
Entretanto, ventos novos sopram em direção oposta à que existia, consubstanciando-se no primado do indivíduo, ou da coletividade, assegurando ao cidadão maior liberdade e ampla autonomia na manifestação da vontade, como, também, impondo a este, em contrapartida, maiores deveres e responsabilidades.”
Enquanto a mediação e a conciliação são formas de autocomposição de conflitos, em que a solução da disputa é dada de comum acordo entre as partes, mediante concessões mútuas até a chegada a um entendimento comum, a arbitragem implica a submissão das partes à decisão de um terceiro não interessado, ocorrendo verdadeira substituição do Juiz estatal pelo árbitro escolhido pelas partes.
Acerca da natureza da arbitragem, assim discorrem Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart(3):
“A arbitragem surge como forma alternativa de resolução dos conflitos, colocada ao lado da jurisdição tradicional. Sua tônica está na tentativa de ladear o formalismo – muitas vezes exagerado – do processo tradicional, procurando mecanismo mais ágil para a resolução dos problemas. Mais que isso, a arbitragem pode representar caminho para soluções mais adequadas para muitas situações concretas de litígio. Com efeito, o fato de que o árbitro pode ser pessoa de outra área, que não a jurídica, pode contribuir para que se obtenha decisão mais adequada e com maior precisão. (...)
Daí o interesse na previsão e na regulamentação da arbitragem pelo direito estatal. Em que pese tratar-se de medida colocada ao lado da jurisdição tradicional, mostra-se ela eficiente para lidar com certos tipos de conflito, contribuindo, ademais, para desafogar o Poder Judiciário e desformalizar as controvérsias.
Costuma-se dizer que a arbitragem é meio alternativo de pacificação social (e de solução de conflitos), colocado ao lado da estrutura jurisdicional do Estado, por meio do qual se atribui a alguém – por iniciativa e manifestação de vontade dos interessados – o poder de decidir certo litígio a respeito de interesses disponíveis, de forma cogente. Trata-se de instrumento de natureza privada – não no sentido de que o Poder Público não o possa prover, mas sim porque é instalada exclusivamente pela vontade das partes, que optam por essa via de solução de litígios – em que se busca, em um terceiro (ou terceiros) imparcial, a solução para certo conflito surgido em relações intersubjetivas. Constitui-se, também, em instrumento de ordem convencional, já que compete aos interessados decidirem sujeitar certa controvérsia à decisão de um árbitro – ‘renunciando’ à tutela jurisdicional tradicional –, decidindo, outrossim, a respeito da extensão dos poderes outorgados àquele para eliminar os conflitos.” (destaques no original)
Embora não se negue a importância e a relevância de outras formas de solução extrajudicial de controvérsias, especialmente a conciliação e a mediação, será examinado nos itens a seguir apenas o instituto da arbitragem, com a finalidade de verificar a compatibilidade do juízo arbitral com a garantia de acesso universal à jurisdição.
1.3 Compatibilidade das formas alternativas de solução de conflitos com a garantia de acesso irrestrito à Justiça
Na mediação e na conciliação, como é óbvio, não há obrigatoriedade na aceitação, por qualquer das partes, das propostas sugeridas pelo mediador, pelo conciliador ou pela parte adversa, podendo a parte livremente optar por não prescindir de seu pedido original, situação na qual a solução da lide seria posteriormente transferida ao Juiz estatal, inexistindo qualquer dúvida quanto à compatibilidade dessas formas de composição de conflitos com a garantia constitucional do acesso irrestrito ao Poder Judiciário.
Na arbitragem, contudo, ao menos em sua forma mais pura, as partes seriam obrigadas a se submeter à decisão do árbitro, decisão essa que não sofreria qualquer intervenção judicial e que teria eficácia de título executivo judicial, na forma do art. 475-N do Código de Processo Civil. Assim, mediante a convenção de arbitragem, estariam as partes dispondo de sua garantia constitucional de acesso irrestrito ao Poder Judiciário, na medida em que a controvérsia delegada ao juízo arbitral estaria imune à posterior homologação, impugnação ou intervenção judicial.
Não obstante, o Plenário do Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se manifestar sobre a constitucionalidade da Lei n° 9.307/1996, reconhecendo aquela Corte, por maioria de votos, que a obrigatoriedade de vinculação das partes à cláusula compromissória firmada no contrato não ofende a garantia constitucional da universalidade da jurisdição do Poder Judiciário:
“1. Sentença estrangeira: (...)
2. Laudo arbitral: homologação: Lei da Arbitragem: controle incidental de constitucionalidade e o papel do STF.
A constitucionalidade da primeira das inovações da Lei da Arbitragem – a possibilidade de execução específica de compromisso arbitral – não constitui, na espécie, questão prejudicial da homologação do laudo estrangeiro; a essa interessa apenas, como premissa, a extinção, no direito interno, da homologação judicial do laudo (arts. 18 e 31) e sua consequente dispensa, na origem, como requisito de reconhecimento, no Brasil, de sentença arbitral estrangeira (art. 35). A completa assimilação, no direito interno, da decisão arbitral à decisão judicial, pela nova Lei de Arbitragem, já bastaria, a rigor, para autorizar a homologação, no Brasil, do laudo arbitral estrangeiro, independentemente de sua prévia homologação pela Justiça do país de origem. Ainda que não seja essencial à solução do caso concreto, não pode o Tribunal – dado o seu papel de ‘guarda da Constituição’ – se furtar a enfrentar o problema de constitucionalidade suscitado incidentemente (v.g. MS 20.505, Néri).
3. Lei de Arbitragem (Lei 9.307/96): constitucionalidade, em tese, do juízo arbitral; discussão incidental da constitucionalidade de vários dos tópicos da nova lei, especialmente acerca da compatibilidade, ou não, entre a execução judicial específica para a solução de futuros conflitos da cláusula compromissória e a garantia constitucional da universalidade da jurisdição do Poder Judiciário (CF, art. 5º, XXXV).
Constitucionalidade declarada pelo plenário, considerando o Tribunal, por maioria de votos, que a manifestação de vontade da parte na cláusula compromissória, no momento da celebração do contrato, e a permissão legal dada ao juiz para que substitua a vontade da parte recalcitrante em firmar o compromisso não ofendem o artigo 5º, XXXV, da CF.
Votos vencidos, em parte – incluído o do relator – que entendiam inconstitucionais a cláusula compromissória – dada a indeterminação de seu objeto – e a possibilidade de a outra parte, havendo resistência quanto à instituição da arbitragem, recorrer ao Poder Judiciário para compelir a parte recalcitrante a firmar o compromisso, e, consequentemente, declaravam a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei 9.307/96 (art. 6º, parágrafo único; art. 7º e seus parágrafos; e, no art. 41, das novas redações atribuídas aos arts. 267, VII, e 301, inciso IX, do C. Pr. Civil; e art. 42), por violação da garantia da universalidade da jurisdição do Poder Judiciário.
Constitucionalidade – aí por decisão unânime – dos dispositivos da Lei de Arbitragem que prescrevem a irrecorribilidade (art. 18) e os efeitos de decisão judiciária da sentença arbitral (art. 31).” (SE 5206 AgR, Relator(a): Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 12.12.2001, DJ 30.04.2004, PP-00029, Ement. Vol-02149-06 PP-00958; destaques no original)
Também a doutrina compartilha, de forma majoritária, do entendimento segundo o qual não há inconstitucionalidade na instituição da arbitragem na forma da Lei n° 9.307/96, conforme demonstra Antunes da Costa(4):
“Portanto, é indubitável a constitucionalidade da Lei 9.307/96, o que se justifica pelas razões sucintamente lançadas: a) desmistificação do monopólio estatal da jurisdição, que também se estende ao(s) árbitro(s); b) autonomia da vontade para acionar ou renunciar a jurisdição estatal (opção do jurisdicionado); c) as partes podem dispor livremente dos bens patrimoniais; d) a própria lei da arbitragem admite em seu bojo mecanismos de intervenção do Poder Judiciário em determinadas circunstâncias, v.g., nulidades, execução forçada, direitos indisponíveis, efetivação das tutelas de urgência (arts. 22, §§ 2º e 4º, 32, 33 e parágrafos, todos da Lei 9.307/96); e) em caso de recalcitrância por parte daquele que contratou a cláusula compromissória, o compromisso da arbitragem deve ser realizado judicialmente (art. 7º).”
Ainda no sentido da constitucionalidade do instituto, com fundamento na inexistência de monopólio, pelo Poder Judiciário, do acesso à justiça no Brasil, importante referir a lição de Pedro A. Batista Martins(5):
“Na realidade, o que estava em questão no período que antecedeu a CF de 1946 não era a opção dada ao particular de utilizar-se do Judiciário ou do Juízo Arbitral para solucionar seus conflitos, mas, sim, a vedação de o cidadão acessar a Justiça Comum para fazer valer seus direitos, em caráter subsidiário à decisão do órgão administrativo parajudicial.
(...)
Com certeza, o inciso constitucional sob comentário não outorga ao Judiciário o monopólio da justiça no país, apenas visa conferir à sociedade a possibilidade de a ele recorrer, caso seja do seu interesse.
A opção não pode ser substituída por lei, mas, tão somente, por vontade individual e espontânea do interessado.
(...)
A garantia de acesso é o que se protege, não podendo o Legislativo ou o Executivo – destinatários da norma – vedar, compulsoriamente, por lei, o direito de qualquer pessoa acionar o Poder Judiciário para a tutela do seu direito.
Contudo, não há empecilho legal de o cidadão, por espontânea vontade, optar por dirimir seus conflitos fora da arena judiciária.
Não há no preceito constitucional, seja explícita, seja implicitamente, nenhuma vedação que possa levar o intérprete a concluir pela impossibilidade de qualquer pessoa resolver suas controvérsias por meio de sujeição à justiça privada.
Com efeito, se o dispositivo buscasse impor às partes o monopólio da justiça pelo Poder Judiciário, não seria viável a utilização do instituto da transação – autocomposição – para prevenir ou pôr fim a um litígio.”
Assim, com fundamento na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, bem como na opinião majoritária da doutrina, mostra-se inequívoca a constitucionalidade do instituto da arbitragem, na forma regulamentada pela Lei n° 9.307/1996.
2 Arbitragem
Delimitado o tema do presente estudo à arbitragem propriamente dita, cumpre referir os aspectos pertinentes à matriz legal do instituto, bem como à sua efetiva aplicação, com a finalidade de verificar a compatibilidade da arbitragem, na forma atualmente regida em nosso ordenamento jurídico, com a garantia constitucional do acesso irrestrito ao Poder Judiciário.
2.1 Legislação pertinente à arbitragem
Antes do advento da Lei n° 9.307/1996, a arbitragem era regulada pelos artigos 1.072 a 1.102 do Código de Processo Civil, ressalvando o art. 86 do referido diploma a possibilidade de as partes instituírem juízo arbitral em substituição aos órgãos jurisdicionais competentes.
Embora o artigo 1.078 do Código de Processo Civil estabelecesse que a sentença proferida pelo árbitro não ficaria sujeita a recurso, o artigo 1.098 do mesmo diploma determinava a necessidade de homologação do laudo arbitral pelo juízo competente para o conhecimento da causa, sendo a homologação restrita aos aspectos formais do laudo, e não ao conteúdo da decisão.
Posteriormente, sobreveio a Lei n° 9.307/1996, dando novo regulamento à arbitragem e determinando expressamente, em seu artigo 18, que a sentença proferida pelo árbitro “não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário”. Não obstante, estabelece o artigo 33 da mesma lei a possibilidade do ajuizamento de ação anulatória contra a sentença arbitral, tendo por objeto qualquer dos defeitos formais elencados no artigo 32 da Lei n° 9.307/1996.
Além disso, passaram a prever os artigos 34 e seguintes da Lei n° 9.307/1996 o procedimento de reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, por meio de homologação da arbitragem originalmente pelo Supremo Tribunal Federal, competência essa posteriormente transferida ao Superior Tribunal de Justiça pela Emenda Constitucional n° 45/2004.
Sobre o tema, assim leciona Esther Engelberg(6):
“A sentença arbitral estrangeira será reconhecida ou executada no Brasil de conformidade com os tratados internacionais com eficácia no ordenamento interno e, na sua ausência, estritamente de acordo com os termos desta lei.
(...)
Para ser reconhecida ou executada no Brasil, a sentença arbitral estrangeira está sujeita à homologação do Supremo Tribunal Federal.
Claro está que a homologação supracitada será denegada se o Supremo Tribunal Federal constatar que, segundo a lei brasileira, o objeto de litígio não é suscetível de ser resolvido por arbitragem, ou no caso em que a decisão arbitral ofender a ordem pública nacional.
O parágrafo único do art. 39 da lei em tela diz, entre outros, que não será considerada ofensa à ordem pública nacional a citação da parte residente ou domiciliada no Brasil, nos moldes da lei processual do país onde se realizou a arbitragem. Esse dispositivo privilegia o brocardo locus regit actum, universalmente aceito, e que diz que a forma extrínseca dos atos jurídicos deve obedecer à forma acolhida no local onde se realizaram.”
Quanto ao objeto da arbitragem, admite o artigo 1º da Lei n° 9.307/1996 o seu cabimento para a solução de quaisquer litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, ao passo que eventuais controvérsias sobre direitos indisponíveis supervenientes deverão ser examinadas pelo Poder Judiciário, em procedimento incidental à arbitragem, nos exatos termos do artigo 25 da Lei n° 9.307/1996, questão essa que já era regulada nesses termos pela antiga redação dos artigos 1.072 e 1.094 do Código de Processo Civil.
Da mesma forma, mesmo em se tratando de contrato celebrado antes do advento da Lei n° 9.307/1996, a existência de cláusula compromissória torna aplicáveis as disposições do referido diploma legislativo, conforme entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça no Enunciado 485 da Súmula de Jurisprudência.
De modo geral, é possível afirmar que as inovações da Lei n° 9.307/1996 se encontram de acordo com os princípios norteadores da arbitragem no mundo das relações contratuais verificada neste início do Século XXI, conforme ensina Antunes da Costa(7):
“A arbitragem, na atualidade, em razão de diversos fatores – dentre eles, os principais: a) mundo globalizado; b) comércio intensificado entre as nações; c) ineficiência do Estado na composição dos conflitos internos e externos que envolvam direitos disponíveis; d) valorização do tempo etc. – vem assumindo papel preponderante na solução de certos conflitos, não eximindo, portanto, as funções essenciais do Estado nesse mesmo âmbito, no que se refere aos direitos indisponíveis, de alta relevância social.
Aliás, a tendência do Estado-Juiz, no seu papel jurisdicional, é de permanecer restrito aos julgamentos que tratam das parcelas de conflitos relacionados exclusivamente às questões sociais, que envolvam direitos indisponíveis.”
2.2 Convenção de arbitragem
Tratando-se de forma extrajudicial de solução de conflitos, não é obrigatória a adoção da arbitragem por quaisquer pessoas, devendo as partes interessadas em submeter a resolução do litígio à arbitragem celebrarem a respectiva convenção de arbitragem, a qual, nos termos do artigo 3º da Lei n° 9.307/1996, é composta pela cláusula compromissória e pelo compromisso arbitral.
A cláusula compromissória, conceituada pelo artigo 4º da Lei n° 9.307/1996, nada mais é do que a convenção segundo a qual as partes de um contrato se comprometem a submeter à arbitragem eventuais conflitos que venham a surgir em decorrência desse contrato. Já o compromisso arbitral, definido no artigo 9º da Lei n° 9.307/1996, por outro lado, é a convenção segundo a qual as partes submetem um litígio específico à arbitragem.
Assim, enquanto a cláusula compromissória tem por objeto a mera convenção de que eventuais e futuros litígios serão resolvidos por meio de arbitragem, litígios esses que poderão jamais ocorrer efetivamente, o compromisso arbitral tem por objeto um conflito já estabelecido, o qual passará, a partir do momento da celebração do compromisso, a ser solucionado por meio da arbitragem.
Acerca das distinções entre a cláusula compromissória e o compromisso arbitral, assim é a lição de Marinoni e Arenhart(8):
“Os dois instrumentos podem ser utilizados para viabilizar a aribitragem, embora possuam, cada qual, finalidades distintas. Em outros termos, o legislador brasileiro conferiu funções diversas à cláusula compromissória e ao compromisso arbitral.
Além da diferença tópica (a cláusula está sempre inserida em contrato ou a ele adere), existe entre as referidas figuras diferença temporal, da qual decorre a diversa regulamentação. A cláusula refere-se sempre ao futuro, característica que ressalta da definição legal: (...). Isso significa – se o contrário não for estipulado pelas partes – que qualquer litígio que se origine do contrato no qual está inserida a cláusula – ou o contrato a que ela faça referência – será submetido à arbitragem. A regulamentação constante dos dispositivos seguintes (arts. 4º ao 8º da Lei 9.307/1996) confirma essa característica: a cláusula é escrita para o futuro. (...)
No compromisso arbitral, efetivamente, regula-se o presente, pois seu pressuposto é a existência de litígio: (...). Igualmente, a normatização constante dos dispositivos seguintes confirma o caráter de atualidade. (...)” (destaques no original)
Sobre o tema, importante ressaltar a regra prevista no artigo 7º da Lei n° 9.307/1996, segundo a qual a existência de cláusula contratual compromissória torna a instituição da arbitragem obrigatória pelas partes, podendo a parte resistente à arbitragem ser compelida judicialmente à lavratura do compromisso arbitral, já tendo o Superior Tribunal de Justiça oportunidade de se manifestar sobre a legitimidade dessa previsão legal, conforme o seguinte precedente:
“PROCESSUAL CIVIL. ARBITRAGEM. OBRIGATORIEDADE DA SOLUÇÃO DO LITÍGIO PELA VIA ARBITRAL, QUANDO EXISTENTE CLÁUSULA PREVIAMENTE AJUSTADA ENTRE AS PARTES NESTE SENTIDO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 1º, 3º e 7º DA LEI 9.307/96. PRECEDENTES. PROVIMENTO NESTE PONTO. ALEGADA OFENSA AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.” (REsp 791.260/RS, Rel. Ministro Paulo Furtado (Desembargador convocado do TJ/BA), terceira turma, julgado em 22.06.2010, DJe 01.07.2010)
Por outro lado, nada obsta a que ambas as partes renunciem, ainda que tacitamente, à solução arbitral, optando por submeter ao Poder Judiciário a solução de eventual conflito surgido entre elas, ainda que preexistente cláusula compromissória válida firmada entre os interessados. Tal possibilidade decorre do texto do § 4º do artigo 301 do Código de Processo Civil, que veda ao juízo o conhecimento de ofício de matéria relativa à preexistência de convenção de arbitragem; assim, renunciando a parte-autora à solução arbitral, com o ajuizamento do feito, e deixando a parte-ré de arguir a existência de cláusula compromissória, estaria o juízo estatal impedido de extinguir o feito na forma do artigo 267, inciso VII, do Código de Processo Civil, entendimento esse corroborado pela doutrina de Marcos Destefenni(9):
“Embora as partes tenham estipulado que as controvérsias decorrentes de determinado negócio jurídico devem ser submetidas à solução arbitral, é possível que uma delas ingresse em juízo, revelando possível arrependimento. Ou seja, não obstante a existência de cláusula compromissória, a parte pode exercer o direito de ação perante órgão do Poder Judiciário.
Nesse caso, é importante saber qual pode ser o comportamento da parte contrária, bem como saber da possibilidade de o juiz agir ou não de ofício.
(...)
Além disso, predomina o entendimento de que a extinção não pode se dar de ofício, ou seja, por iniciativa do juiz. Ocorre que o § 4º do art. 301 do CPC enuncia a necessidade de provocação da parte interessada: ‘Com exceção do compromisso arbitral, o juiz conhecerá de ofício da matéria enumerada neste artigo.’ Como se vê, o CPC, no citado dispositivo legal, impede que o juiz verifique, de ofício, a existência de compromisso arbitral.
Surge uma dúvida: como o CPC diz que não pode ser apreciada, de ofício, a existência de compromisso, referida proibição se estende à cláusula compromissória?
Embora exista alguma controvérsia, prevalece o entendimento no sentido de que o dispositivo merece interpretação extensiva, de tal modo que o juiz não pode extinguir o processo de ofício no caso de convenção de arbitragem, isto é, de compromisso arbitral ou de cláusula compromissória.
A impossibilidade de extinção do processo sem que haja expresso requerimento do réu, em sede de preliminar de contestação (CPC, art. 301, IX), está fundada na liberdade das partes de renunciarem à solução arbitral: o autor renunciou à via arbitral quando optou por ingressar em juízo; havendo concordância do réu, ainda que de forma tácita, por simples silêncio em requerer a extinção do processo, consolida-se a renúncia.” (destaques no original)
A par disso, devem ser observadas as restrições legais à previsão da cláusula compromissória em contratos de adesão. O artigo 4º, § 2º, da Lei n° 9.307/1996, em primeiro lugar, expressamente consigna que, nos contratos de adesão, “a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula”. Assim, inexistindo manifestação destacada do aderente acerca da concordância com a cláusula compromissória, esta é ineficaz perante as partes.
Já o Código de Defesa do Consumidor, instituído pela Lei n° 8.078/90, prevê em seu artigo 51, inciso VII, a nulidade absoluta, no âmbito dos contratos de fornecimento de produtos e serviços, das cláusulas que determinem a utilização compulsória da arbitragem, conforme demonstra Nelson Nery Junior(10):
“O juízo arbitral é importante fator de composição dos litígios de consumo, razão por que o Código não quis proibir sua constituição pelas partes do contrato de consumo. A interpretação a contrario sensu da norma sob comentário indica que, não sendo determinada compulsoriamente, é possível instituir-se a arbitragem.
Existem vários dispositivos no Código dos quais exsurge clara a regra sistêmica de que as deliberações referentes à relação jurídica de consumo não podem ser tomadas unilateralmente por qualquer das partes. Portanto, no sistema do Código, configura-se como abusiva, por também ofender o escopo deste inc. VII, a cláusula que deixar a critério exclusivo e unilateral do fornecedor não somente a escolha entre jurisdição estatal e jurisdição arbitral, como também a escolha do árbitro. A opção pela solução do litígio no juízo arbitral, bem como a escolha da pessoa do árbitro, é questão que deve ser deliberada equitativa e equilibradamente pelas partes, sem que haja preeminência de uma sobre a outra.”
Interpretando o referido dispositivo, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que essa nulidade se limitaria à adoção prévia e compulsória da arbitragem, no momento da celebração do contrato, sendo admitida a adoção posterior da arbitragem pelas partes, uma vez demonstrada a concordância do consumidor:
“DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. CONTRATO DE ADESÃO. CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM. LIMITES E EXCEÇÕES. ARBITRAGEM EM CONTRATOS DE FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO. CABIMENTO. LIMITES.
1. Com a promulgação da Lei de Arbitragem, passaram a conviver, em harmonia, três regramentos de diferentes graus de especificidade: (i) a regra geral, que obriga a observância da arbitragem quando pactuada pelas partes, com derrogação da jurisdição estatal; (ii) a regra específica, contida no art. 4º, § 2º, da Lei nº 9.307/96 e aplicável a contratos de adesão genéricos, que restringe a eficácia da cláusula compromissória; e (iii) a regra ainda mais específica, contida no art. 51, VII, do CDC, incidente sobre contratos derivados de relação de consumo, sejam eles de adesão ou não, impondo a nulidade de cláusula que determine a utilização compulsória da arbitragem, ainda que satisfeitos os requisitos do art. 4º, § 2º, da Lei nº 9.307/96.
2. O art. 51, VII, do CDC se limita a vedar a adoção prévia e compulsória da arbitragem, no momento da celebração do contrato, mas não impede que, posteriormente, diante de eventual litígio, havendo consenso entre as partes (em especial a aquiescência do consumidor), seja instaurado o procedimento arbitral.
3. As regras dos arts. 51, VIII, do CDC e 34 da Lei nº 9.514/97 não são incompatíveis. Primeiro porque o art. 34 não se refere exclusivamente a financiamentos imobiliários sujeitos ao CDC e segundo porque, havendo relação de consumo, o dispositivo legal não fixa o momento em que deverá ser definida a efetiva utilização da arbitragem.
4. Recurso especial a que se nega provimento.” (REsp 1169841/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, terceira turma, julgado em 06.11.2012, DJe 14.11.2012)
Dessa forma, tratando-se de direitos disponíveis, de natureza eminentemente patrimonial, portanto, e possuindo as partes envolvidas não apenas plena capacidade civil, mas efetiva concordância com a adoção da arbitragem, não há qualquer óbice para a adoção desse instituto como forma de solução integral e inafastável de soluções atuais ou futuras verificadas entre as partes.
2.3 Árbitros
Tratando-se de forma convencional de solução de conflitos, as partes podem escolher livremente os árbitros, inclusive em número plural, desde que a nomeação recaia sobre pessoa capaz (artigo 13 da Lei n° 9.307/1996) e não abrangida em qualquer das hipóteses de suspeição e impedimento aplicáveis aos juízes, previstas nos artigos 134 e 135 do Código de Processo Civil (artigo 14 da Lei n° 9.307/1996).
Todavia, mesmo recaindo o encargo, via de regra, sobre particulares, o árbitro, no curso do procedimento, possui natureza equiparada à jurisdicional, estabelecendo expressamente o artigo 18 da Lei n° 9.307/1996 que o árbitro “é juiz de fato e de direito”.
Sobre o tema, cumpre transcrever trecho do voto do Ministro Luiz Fux, no julgamento do Mandado de Segurança n° 11.308/DF (1ª Seção, DJe 19.05.2008):
“É cediço que o juízo arbitral não subtrai a garantia constitucional do juiz natural, mas, ao contrário, implica realizá-la, porquanto somente cabível por mútua concessão entre as partes, inaplicável, por isso, de forma coercitiva, tendo em vista que ambas as partes assumem o ‘risco’ de serem derrotadas na arbitragem.
(...)
Dessarte, uma vez convencionada pelas partes cláusula arbitral, o árbitro vira juiz de fato e de direito da causa, e a decisão que então proferir não ficará sujeita a recurso ou homologação judicial, segundo dispõe o artigo 18 da Lei 9.307/96, o que significa categorizá-lo como equivalente jurisdicional, porquanto terá os mesmos poderes do juiz togado, não sofrendo restrições na sua competência.”
Também defendendo a natureza jurisdicional da atividade desempenhada pelo árbitro, importante transcrever a lição de Antunes da Costa(11):
“O árbitro, pelo que já foi exposto, também encarna a função jurisdicional.
A norma insculpida no art. 5º, XXXV, da CF não esvazia a arbitragem, pois o que se garante em tal dispositivo não é a reserva da jurisdição em mãos do Estado-juiz, que não é detentor exclusivo de tal função.
(...)
Assim, é razoável concluir que, quando se trata da aplicabilidade do direito, nada justifica o monopólio estatal exclusivo para tal fim, em especial, nas demandas envolvendo direitos disponíveis, sendo salutar a adoção dos meios alternativos para fins de composição dos conflitos, dentre eles, a arbitragem.”
Também Nery Junior compartilha do entendimento segundo o qual a arbitragem é forma de jurisdição, exercendo o árbitro, portanto, atividade jurisdicional, ainda que privada, não estatal(12):
“A instituição do juízo arbitral é uma espécie de justiça privada. Não se pode confundir a natureza privatística da justiça arbitral com a autotutela privada, o fazer justiça com as próprias mãos, prática vedada pelo ordenamento, que constitui, inclusive, crime de exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, Código Penal). Aliás, é para obviar essa autotutela que a lei, entre outros motivos, faculta às partes a instituição da jurisdição privada por meio do compromisso arbitral.
Não se pode tolerar, por flagrante inconstitucionalidade, a exclusão, pela lei, da apreciação de lesão a direito pelo Poder Judiciário, que não é o caso do juízo arbitral. O que se exclui pelo compromisso arbitral é o acesso à via judicial, mas não à jurisdição. Não se poderá ir à justiça estatal, mas a lide será resolvida pela justiça arbitral. Em ambas há, obviamente, a atividade jurisdicional.”
2.4 Procedimento da arbitragem
Assim como em relação à escolha do árbitro, por se tratar de forma convecional e extrajudicial de solução de litígios, as partes são livres para definir o procedimento de arbitragem na respectiva convenção, podendo inclusive adotar as regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, e até mesmo delegar ao árbitro a regulação do procedimento (artigo 21 da Lei n° 9.307/1996).
A liberdade para definição do procedimento da arbitragem somente é limitada, obviamente, pelas garantias constitucionais do contraditório e do devido processo legal, conforme apontado por Marinoni e Arenhart(13):
“Consequentemente, o procedimento da arbitragem é de livre escolha dos interessados. Essa liberdade apenas é restringida pela exigência de que sejam sempre respeitados os princípios – que, aliás, têm status constitucional – do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e do seu livre convencimento. Tais princípios constituem, como cediço, o núcleo da garantia do devido processo legal (estampado no art. 5º, LV, da CF), que deve ser respeitado em qualquer espécie de processo, judicial ou não. De fato, se ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal, é certo que essa regra – que não apresenta condicionante qualquer – não se pode aplicar exclusivamente às atuações estatais tendentes a essa privação de bens, mas também à iniciativa privada que conduza ao mesmo resultado.”
Seja como for, independentemente do procedimento adotado pelas partes, garante o § 3º do artigo 21 a possibilidade de as partes se fazerem representar por advogado.
Uma vez encerrados a instrução probatória (artigo 22 da Lei n° 9.307/1996) e os eventuais debates, deverá ser proferida a sentença arbitral, que, no mais, deve obedecer aos mesmos requisitos das sentenças proferidas pelos órgãos judiciais, devendo ser publicada por escrito (artigo 24 da Lei n° 9.307/1996), constando o relatório, a fundamentação e o dispositivo (artigo 26 da Lei n° 9.307/1996).
O artigo 31 da Lei n° 9.307/1996, repetindo o disposto no art. 475-N, inciso IV, do Código de Processo Civil, por sua vez, estabelece a natureza de título executivo judicial da sentença arbitral, podendo ser executada na forma prevista na legislação processual.
Embora não exista previsão de recurso para órgão superior na arbitragem, prevê o artigo 30 da Lei n° 9.307/1996 espécie de pedido de complementação à sentença arbitral, semelhante aos embargos de declaração do processo judicial, para correção de erros materiais, esclarecimento de obscuridade, dúvida ou contradição, ou saneamento de omissão.
Conforme referido anteriormente, a partir do advento da Lei n° 9.307/1996, não há mais necessidade de homologação da sentença arbitral pelo Poder Judiciário; todavia, prevê o artigo 33 da Lei n° 9.307/1996 a possibilidade do ajuizamento de ação anulatória, na qual a parte interessada poderá alegar qualquer das nulidades previstas no artigo 32.
Já a execução da decisão proferida pelo juízo arbitral, evidentemente, deverá ser deslocada para o Poder Judiciário, conforme dispõe o artigo 475-N do Código de Processo Civil, na medida em que o árbitro não possui os poderes coercitivos e expropriatórios próprios dos agentes estatais.
3 Arbitragem nas demandas envolvendo a Administração Pública
Considerando que a quase totalidade de demandas em tramitação na Justiça Federal do Brasil envolve ao menos um ente público, seja ele da Administração direta, seja da indireta, é importante verificar se haveria, em tese, vedação constitucional ou legislativa à adoção do procedimento de arbitragem por alguma das pessoas elencadas no inciso I do artigo 109 da Constituição brasileira.
No caso, a única impugnação que se poderia fazer à utilização da arbitragem seria uma suposta indisponibilidade dos interesses patrimoniais desses entes, o que implicaria a incidência da vedação constante do artigo 1º da Lei n° 9.307/1996.
Ocorre, entretanto, que indisponível é o interesse público, o qual não se confunde com os direitos patrimoniais da União, de suas autarquias ou empresas públicas, havendo inclusive autorização legislativa expressa para conciliação, transação e desistência de demandas por parte dos entes públicos no âmbito dos Juizados Especiais Federais, nos termos do art. 10, parágrafo único, da Lei n° 10.259/2001.
Neste sentido a lição de Marinoni e Arenhart(14):
“De fato, não se discute a respeito da indisponibilidade do interesse público. Todavia, é de se notar que esse interesse nem sempre se confunde com o interesse da Administração Pública, e, mais que isso, ainda que se tenha ele como indisponível, não se pode negar que ele gere efeitos disponíveis. Recorde-se, a esse propósito, a prerrogativa dada à Administração Pública para transigir a respeito de interesses, a ela referidos, em processos judiciais (como nos Juizados Especiais, conforme prevê o art. 10, parágrafo único, da Lei 10.259/2001). Desde que, portanto, se trate de direitos disponíveis – da Administração Pública – ou de efeitos disponíveis de direitos indisponíveis de interesses públicos – e desde que não haja outro óbice à instituição da arbitragem, determinada por expressa vedação legal ou pela própria natureza especial da relação jurídica –, pode-se sujeitar a questão ao juízo arbitral.” (destaques no original)
Assim, por não haver necessária correspondência entre o interesse público indisponível e o interesse patrimonial da Administração Pública ou das empresas públicas e sociedades de economia mista, não há que se falar em impossibilidade absoluta de adoção eventual da arbitragem por qualquer dos entes elencados no artigo 109, inciso I, da Constituição do Brasil.
Conclusão
Por todo o exposto, verifica-se que a arbitragem constitui meio alternativo de resolução pacífica de conflitos e litígios eminentemente patrimoniais, que de forma alguma conflita com a garantia constitucional de acesso à Justiça, a qual, pelo contrário, reforça o instituto da arbitragem, ao possibilitar a adoção, por conveniência das partes, de formas mais céleres e especializadas de solução de lides.
Ademais, a transferência de discussões sobre direitos disponíveis eminentemente patrimoniais para a jurisdição não estatal, aí incluída a arbitragem, permite ao Poder Judiciário dedicar-se com maior vigor às demandas envolvendo maior relevância social, não se podendo desconsiderar o aumento significativo do número de processos distribuídos na justiça estatal após o advento da Constituição brasileira de 1988.
Deve ser louvada, ainda, a Lei n° 9.307/1996, a qual, ao determinar a obrigatoriedade do cumprimento da cláusula compromissória, permitiu o desenvolvimento da arbitragem no país, dispensando ainda o Poder Judiciário de homologar toda e qualquer sentença proferida pelo juízo arbitral, ainda que inexistente qualquer discussão entre as partes acerca do procedimento adotado.
Assim, não restam dúvidas sobre a importância da arbitragem tanto como meio de resolução célere de litígios envolvendo direitos patrimoniais disponíveis, quanto como forma de redução das novas demandas a serem apresentadas ao já sobrecarregado Poder Judiciário.
Referências bibliográficas
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GRINOVER, Ada Pelegrini; NERY JUNIOR, Nelson; et. al. Código Brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
MARTINS, Pedro A. Batista; LEMES, Selma M. Ferreira; CARMONA, Carlos Alberto. Aspectos fundamentais da lei de arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Procedimentos Especiais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. (Curso de Processo Civil, v. 5).
Notas
1. COSTA, Nilton César Antunes da. Poderes do árbitro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 22-23.
2. MARTINS, Pedro A. Batista; LEMES, Selma M. Ferreira; CARMONA, Carlos Alberto. Aspectos fundamentais da lei de arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 12.
3. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Procedimentos Especiais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 343. (Curso de Processo Civil, v. 5).
4. Poderes do árbitro, cit., p. 52.
5. Aspectos fundamentais da lei de arbitragem, cit., p. 22-23.
6. ENGELBERG, Esther. Contratos internacionais do comércio. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1997. p. 58-59.
7. Poderes do árbitro, cit., p. 42-44.
8. Procedimentos especiais, cit., p. 350-351.
9. DESTEFENNI, Marcos. Curso de Processo Civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 3. v. p. 533-534.
10. GRINOVER, Ada Pelegrini; NERY JUNIOR, Nelson; et. al. Código Brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 524.
11. Poderes do árbitro, cit., p. 79-81.
12. Código Brasileiro de defesa do consumidor, cit., p. 523.
13. Procedimentos especiais, cit., p. 356.
14. Procedimentos especiais, cit., p. 349.
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