A presunção absoluta de má-fé na fraude à execução fiscal

Autor: Raphael de Barros Petersen

Juiz Federal Substituto

publicado em 30.10.2014



Resumo

Após breves considerações a respeito da fraude à execução e da fraude à execução fiscal, é abordada a evolução doutrinária e jurisprudencial do tratamento jurídico conferido ao estado anímico do terceiro adquirente, à sua boa ou má-fé, ao seu conhecimento ou à possibilidade de conhecimento de que o negócio jurídico poderia conduzir ao estado de insolvência do devedor ou agravá-lo. A evolução jurisprudencial culmina com a estabilização da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça por meio da edição de enunciado sumular e do julgamento de recurso especial repetitivo. Enquanto no enunciado sumular foi estabelecida, na fraude à execução não fiscal, a presunção de boa-fé do terceiro adquirente, no recurso repetitivo foi reconhecida, na fraude à execução fiscal, em contraste com a jurisprudência então prevalecente, a presunção absoluta de má-fé do terceiro adquirente. Com isso, é realizada uma análise em torno da aptidão para uma revisão jurisprudencial dos fundamentos constantes desse recurso especial; dos fundamentos desconsiderados no julgamento; da observância do princípio da igualdade processual; e, por fim, da contrariedade ao direito fundamental à prova e à tutela jurisdicional.

Palavras-chave: Fraude à execução fiscal. Terceiro adquirente. Má-fé. Presunção absoluta.

Sumário: Introdução. 1 Fraude à execução. 1.1 Fraude à execução e fraude contra credores. 1.2 Fraude à execução fiscal. 2 Evolução da proteção jurídica da boa-fé do terceiro adquirente na fraude à execução. 2.1 Evolução doutrinária. 2.2 Evolução jurisprudencial. 2.2.1 Supremo Tribunal Federal antes da Constituição de 1988. 2.2.2 Superior Tribunal de Justiça. 2.2.3 Superior Tribunal de Justiça após a Súmula 375 e o Recurso Especial Representativo de Controvérsia 1.141/990/PR. 3. Presunção absoluta de má-fé do terceiro adquirente na fraude à execução fiscal. 3.1 (In)aptidão dos fundamentos utilizados para a revisão jurisprudencial procedida pelo Superior Tribunal de Justiça. 3.2 Desconsideração da necessidade de proteção da boa-fé e de garantia de estabilidade e segurança às relações jurídicas. 3.3 Privilégio inconstitucional em favor da Fazenda Pública: contrariedade ao princípio da igualdade processual. 3.4 Inconsistência da máxima de experiência subjacente à presunção: contrariedade ao direito fundamental à prova e à tutela jurisdicional. Conclusão.

Introdução

No julgamento de recurso especial repetitivo em 2010, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a presunção absoluta de má-fé do terceiro adquirente na fraude à execução fiscal. Sem desconhecer a circunstância de que a jurisprudência dos Tribunais Superiores, muitas vezes, tem em atenção mais a justiça geral e menos a justiça particular do caso concreto, o presente artigo visa a estabelecer uma reflexão em torno desse precedente, que significou a revisão da jurisprudência então prevalecente e o retorno à que vigorou até a Constituição de 1988.

A fim de subsidiar a análise desse novo entendimento, são realizadas algumas considerações a respeito da fraude à execução e, especialmente, da fraude à execução fiscal, a qual possui requisitos próprios, com destaque para a alteração do art. 185 do Código Tributário Nacional pela Lei Complementar 118, de 2005, indicada pelo Superior Tribunal de Justiça, ao lado do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, como um dos fundamentos para o estabelecimento do entendimento a ser analisado.

Com isso, é possível abordar a evolução da proteção jurídica dispensada ao terceiro de boa-fé na fraude à execução, primeiramente na doutrina e, após, na jurisprudência, culminando com a edição da Súmula 375, que é concernente à fraude à execução não fiscal e confere proteção à boa-fé do terceiro adquirente, e o julgamento do recurso especial repetitivo, que é relativo à fraude à execução fiscal e, não deixando margem à proteção do terceiro, estabelece, por parte deste, a presunção absoluta de sua má-fé.

Por fim, as considerações do artigo recaem diretamente sobre o seu objeto, sendo apreciada a (in)aptidão dos fundamentos constantes do recurso especial repetitivo; os princípios e fundamentos ignorados pela nova jurisprudência; a diferenciação entre o regime jurídico da fraude à execução fiscal, que presume, em absoluto, a má-fé do terceiro adquirente, e o da não fiscal, que, pelo contrário, presume, embora não em absoluto, a boa-fé do terceiro, frente ao princípio da igualdade processual; e a contrariedade dos direitos fundamentais à prova e ao acesso à jurisdição.

1 Fraude à execução

1.1 Fraude à execução e fraude contra credores

A fraude à execução se origina e pode ser vista como especialização da fraude contra credores,(1) a qual remonta ao Direito Romano, estando ambas relacionadas com o princípio da responsabilidade patrimonial, uma vez que permitem, para a satisfação do credor, o atingimento de bens que, pelo menos aparentemente, não mais integrariam o patrimônio do devedor. Relativamente à fraude à execução, é expresso a esse respeito o Código de Processo Civil, ao estipular que “o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros” (art. 591 do CPC), entre os quais aqueles “alienados ou gravados com ônus real em fraude de execução” (art. 592, V, do CPC).

Constitui a fraude à execução instituto processual – de natureza pública, portanto –, cujo reconhecimento, realizado de maneira incidental a outra demanda, normalmente execução ou embargos de terceiro, implica a declaração da ineficácia de negócio jurídico de alienação ou oneração.(2) Em geral dois são os requisitos considerados para a declaração da fraude à execução: a litispendência, manifestada na pendência, no instante da alienação ou oneração, de demanda, não necessariamente execução, capaz de reduzir o devedor à insolvência (art. 593, II, do CPC), e a frustração dos meios executivos, que decorre da inexistência, a partir da alienação ou oneração com ônus real, de bens suficientes à satisfação do crédito.(3) Predominaria, pois, uma análise objetiva no que diz respeito ao implemento dos requisitos.

A fraude contra credores, porém, representa instituto de direito material, a partir de cuja decretação em ação própria, denominada pauliana, deriva a anulação de negócio jurídico gratuito ou oneroso (art. 171, II, do CC/02). Para a verificação da fraude contra credores, é necessária a presença do eventus damni, concernente à redução do devedor à insolvência ou ao agravamento dessa situação em razão do negócio jurídico, e do concilium fraudis, relacionado com o conhecimento do devedor e do terceiro adquirente a respeito dessa possibilidade (art. 159 do CC/02). Salvo nos negócios jurídicos gratuitos, em que, nos termos do art. 158 do CC/02, é dispensado o exame do concilium fraudis,(4) a análise, ao contrário do que ocorreria em relação à fraude à execução, leva também em consideração aspectos subjetivos.

1.2 Fraude à execução fiscal

De acordo com o art. 593, III, do Código de Processo Civil, a fraude à execução também pode se verificar “nos demais casos expressos em lei”. Nesse sentido, o art. 185 do Código Tributário Nacional, com a redação da Lei Complementar 118/2005, estipula: “presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa”. Na redação anterior, havia a necessidade de que o “crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa” estivesse “em fase de execução”.

Essa alteração legislativa, aparentemente restrita à amplitude do período em que pode ser reconhecida a fraude à execução fiscal – relativa, portanto, ao requisito da litispendência –, serviu de fundamento para a revisão da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça referententemente a um outro aspecto da fraude à execução. O aspecto, cuja relevância jurídica é controvertida na doutrina e na jurisprudência, consiste na necessidade de averiguar, no momento do reconhecimento da fraude à execução, a boa ou má-fé do terceiro adquirente ou, em outras palavras, o seu conhecimento de que o negócio jurídico poderia reduzir o devedor à insolvência ou agravar esse estado.

2 Evolução da proteção jurídica da boa-fé do terceiro adquirente na fraude à execução

2.1 Evolução doutrinária

Tradicionalmente e ainda para boa parte da doutrina, o reconhecimento da fraude à execução não pressuporia uma análise subjetiva, da boa ou má-fé do terceiro adquirente, do seu (des)conhecimento de que o negócio jurídico poderia conduzir o devedor à insolvência ou agravá-lo.(5) Assim, embora tenha derivado da fraude contra credores, na fraude à execução não haveria avaliação semelhante à do concilium fraudis entre o devedor e o terceiro adquirente, o que se justificaria pela maior gravosidade da fraude à execução, que atenta não apenas contra o interesse particular do credor, mas também contra a efetividade da jurisdição.(6)

No entanto, em atenção ao princípio geral de que aquele que age de boa-fé não pode, em razão desse ato, vir a ser prejudicado – que passa a ser cada vez mais valorizado com a relativa superação do normativismo jurídico – e, em menor medida, como forma de conferir segurança e estabilidade às relações jurídicas, parte da doutrina vem afirmando a necessidade de ser realizada, na fraude à execução, uma análise próxima à do concilium fraudis na fraude contra credores.(7) Haveria, com isso, a avaliação, juntamente com os demais requisitos, da boa ou má-fé do terceiro adquirente, ou seja, se lhe era conhecida, ou pelo menos possível conhecer, a possibilidade de o negócio jurídico conduzir o devedor à insolvência ou agravar essa situação.

Na mesma linha, é possível apontar atualmente,(8) no âmbito do Direito Público, uma série de situações em que o estado anímico daquele que se relaciona com o Estado constitui fator determinante da respectiva disciplina jurídica. No Direito Administrativo, cresce a importância do princípio da proteção da confiança, seja na doutrina,(9) seja na jurisprudência;(10) no Direito Tributário, em que há a tendência de abstração da vontade,(11) a boa-fé do sujeito passivo pode inclusive permitir o desfrute de benefícios a que objetivamente não faria jus, como demonstra a Súmula 509 do Superior Tribunal de Justiça, que enuncia ser “lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda”.

2.2 Evolução jurisprudencial

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal antes da Constituição de 1988 e na do Superior Tribunal de Justiça,(12) a evolução ocorreu de maneira similar, havendo, em um primeiro momento, a simples ausência de análise ou desconsideração, na fraude à execução, da boa ou má-fé do terceiro adquirente. Após, embora reconhecida a necessidade de exame desse aspecto, o grau de proteção conferido ao terceiro de boa-fé variava. Por fim, no que se pode visualizar um terceiro momento, há, por meio de instrumentos jurídicos relativamente estáveis, como o enunciado de súmula de jurisprudência e o recurso representativo de controvérsia, a consolidação da jurisprudência, ainda que, remontando ao primeiro momento, com a mudança de rumo na fraude à execução fiscal.

2.2.1 Supremo Tribunal Federal antes da Constituição de 1988

O Supremo Tribunal Federal, no exame da ocorrência da fraude à execução, não atribuía qualquer relevância jurídica ao estado anímico do terceiro adquirente. Em 1978, afirmava o Supremo que “a nulidade de alienação, quando feita na pendência da demanda capaz de alterar o patrimônio do vendedor e reduzi-lo à insolvência, prescinde do concilium fraudis”.(13) A mesma postura mostrou-se presente em julgamento de 1986, oportunidade em que se concluiu que “não há cuidar, na espécie, da boa ou ma-fé do adquirente do bem do devedor, para figurar a fraude, basta a certeza de que, ao tempo da alienação, já corria demanda capaz de alterar-lhe o patrimônio, reduzindo-o à insolvência”.(14)

2.2.2 Superior Tribunal de Justiça

Já em 1992, o Superior Tribunal de Justiça, a despeito do implemento dos demais requisitos, deixou de declarar a fraude à execução tendo em vista a boa-fé do terceiro que “haja adquirido o imóvel de quem o comprou do executado”.(15) Embora, no que diz respeito à fraude à execução fiscal, tenham havido, de início, precedentes declarando a irrelevância da boa-fé do terceiro adquirente,(16) o cenário logo se alterou, como se pode perceber em julgamento de 1997, no qual, a exemplo do precedente de 1992, é afastada a declaração da fraude em razão da boa-fé daquele que “adquire o bem depois de sucessivas transmissões”.(17)

A partir daí, independentemente da espécie de fraude à execução, a boa ou má-fé do terceiro adquirente passou a constituir aspecto inerente ao exame da fraude, variando apenas o grau de proteção conferido ao terceiro de boa-fé: ora se afirmava a existência – em face da litispendência e da frustração dos meios executórios – de uma “presunção relativa de fraude”, cabendo ao terceiro adquirente o ônus de demonstrar a sua boa-fé, manifestada na “impossibilidade de ter conhecimento da existência da demanda”;(18) ora se reconhecia, mesmo na execução fiscal, “ser lícito que se presuma, em se tratando de bem móvel, a boa-fé do terceiro que o adquire de quem detenha a posse, sinal evidente da ausência de constrição judicial”, militando a mesma presunção “em favor de quem adquire bem imóvel, de proprietário solvente, se nenhum ônus ou constrição judicial estiver anotado no registro imobiliário”.(19)
 
2.2.3 Superior Tribunal de Justiça após a Súmula 375 e o Recurso Especial Representativo de Controvérsia 1.141/990/PR

A partir de 2009, com a edição da Súmula 375,(20) e de 2010, com o julgamento, nos termos do art. 543-C do CPC, do Recurso Especial Representativo de Controvérsia 1.141/990/PR,(21) há a estabilização da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça relativamente à relevância jurídica, na fraude à execução, do estado anímico do terceiro adquirente, da sua boa ou má-fé, do conhecimento ou não, por parte do terceiro, da possibilidade do negócio jurídico vir a reduzir o devedor à insolvência ou agravar essa situação.

A Súmula 375 estabeleceu que “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Isso significa, em outras palavras, que, como regra geral, ressalvada a existência de registro do bem alienado, deve ser presumida a boa-fé do terceiro adquirente. Embora editada sem qualquer distinção, a Súmula 375, conforme decidido no Recurso Especial 1.141/990/PR, detém aplicabilidade somente no âmbito da execução não fiscal. No sentido oposto, no Recurso Especial Representativo de Controvérsia, foi firmado o entendimento de que, preenchidos os requisitos da fraude à execução fiscal, previstos no art. 185 do CTN, há a presunção absoluta de má-fé do terceiro adquirente.

3 Presunção absoluta de má-fé do terceiro adquirente na fraude à execução fiscal

3.1 (In)aptidão dos fundamentos utilizados para a revisão jurisprudencial pelo Superior Tribunal de Justiça

Como se pode ver, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento de recurso especial repetitivo em 2010, procedeu à revisão da jurisprudência até então prevalecente, segundo a qual, mesmo na fraude à execução fiscal, a boa-fé do terceiro adquirente constituiria aspecto a ser considerado. Embora o grau de proteção não fosse uniforme, o fato é que a relevância jurídica da boa-fé do terceiro adquirente, ressalvados precedentes isolados, vinha constantemente sendo realçada pela jurisprudência posterior à Constituição de 1988.

Porém, para uma revisão jurisprudencial dessa magnitude, haveria a necessidade, em observância à segurança jurídica na perspectiva da estabilidade da jurisprudência,(22) de serem indicados fundamentos que justificassem não propriamente o novo entendimento, mas também e sobretudo os fatos e as circunstâncias supervenientes que justificassem a revisão do entendimento anterior. O porquê, portanto, de se estar desconsiderando um posicionamento jurisprudencial por tanto tempo adotado pelo Superior Tribunal a que compete a interpretação em última instância da legislação federal.

De acordo com o voto proferido pelo relator do Recurso Especial nº 1.141.990/PR, com que concordaram os demais membros da 1ª Seção, a interpretação da presunção referida no art. 185 do CTN como absoluta derivou da nova redação atribuída ao dispositivo pela Lei Complementar 118/05 e da necessidade de se conferir, em razão do princípio da supremacia do interesse público, tratamento diferenciado à fraude à execução fiscal em comparação com a fraude à execução não fiscal.

Desses dois fundamentos, somente o primeiro, concernente à nova redação do art. 185 do CTN, poderia fundamentar a revisão jurisprudencial. O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, não sendo um fato ou uma circunstância superveniente à jurisprudência até então prevalecente, poderia no máximo constituir fundamento secundário, de reforço àquele primeiro. De fato, a supremacia do interesse público sobre o particular – cada vez mais contestada(23) – não impediu a formação da jurisprudência revisada e, por si só, não poderia conduzir à revisão dessa mesma jurisprudência.

Também a nova redação atribuída ao art. 185 do CTN pela Lei Complementar 118/05 não tinha, contudo, a aptidão de provocar a alteração da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. A Lei Complementar 118/05 tão somente suprimiu a expressão “em fase de execução” da redação do art. 185, ocasionado a ampliação do período – antes após a citação na execução fiscal, agora depois da inscrição em dívida ativa – dentro do qual pode ser declarada em fraude à execução a alienação ou oneração de bens ou rendas a terceiros. Não há qualquer indicativo na nova redação do art. 185 do CTN no que diz respeito à alteração do grau de proteção conferido à boa-fé do terceiro adquirente, já que, afora a supressão da expressão “em fase de execução”, permanece no mais a redação do dispositivo, notadamente a parte inicial, que simplesmente enuncia: “presume-se fraudulenta a alienação de bens ou rendas (...)”.

3.2 Desconsideração da necessidade de proteção da boa-fé e de garantia de estabilidade e segurança às relações jurídicas

 Ao fixar o novo entendimento, o Superior Tribunal de Justiça, a par de restabelecer a antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que remonta a outro momento do pensamento jurídico-brasileiro, no qual prevalecia o normativismo jurídico, deixou de atribuir importância, na fraude à execução fiscal, ao princípio segundo o qual aquele que age de boa-fé não pode, em razão desse ato, vir a ser prejudicado, assim como à garantia que assegura estabilidade e segurança às relações jurídicas.

Embora a existência desses princípios e garantias, por si só, demande no mínimo a sua consideração, constitui indicativo da necessidade de observá-los a persistência dos tribunais de segundo grau em, frente a casos concretos, excepcionar o novo entendimento. A 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por exemplo, já afirmou ser possível reconhecer, na fraude à execução, a boa-fé do terceiro adquirente em casos exepcionais,(24) o que, a rigor, significa não interpretar como absoluta a presunção. Há até mesmo precedente, da mesma 1ª Turma, relativo a fato posterior à Lei Complementar 118/05, no qual se proclama o caráter relativo da presunção de má-fé na mesma espécie de fraude.(25) No Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, é possível encontrar precedentes em linha semelhante.(26)

3.3 Privilégio inconstitucional em favor da Fazenda Pública: contrariedade ao princípio da igualdade processual

Por meio da presunção, é possível induzir o conhecimento de um fato – o fato probando – a partir de outro – o fato provado. A presunção consiste, pois, em um método de raciocínio lógico-indutivo, operando no campo do direito probatório. Se o raciocino é realizado pelo juiz, a presunção é classificada como judicial, simples ou hominis. No entanto, se o raciocínio se encontra implícito na legislação, a presunção é denominada legal. A presunção legal pode ser relativa (iuris tantum) ou absoluta (iuris et de iure). Na presunção relativa, comprovada a ocorrência de um fato, a lei presume a de outro, sem, porém, impedir a demonstração da inexistência desse último por parte daquele contra quem é estabelecida a presunção. Há, pois, na presunção legal relativa, a inversão do ônus da prova de determinado fato.  Na absoluta, comprovada a ocorrência de um fato, a lei presume a de outro, impedindo, no entanto, a demonstração da inexistência.(27)

No julgamento do Recurso Especial nº 1.141.990/PR, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu, na fraude à execução fiscal, a presunção legal absoluta da má-fé de terceiro adquirente; na Súmula 375, a respeito da fraude à execução não fiscal, como regra geral, a presunção relativa de boa-fé do terceiro. Assim, por essa perspectiva, quando a fraude à execução favorecer a Fazenda Pública, basta, para o reconhecimento da má-fé do terceiro adquirente, a demonstração da ocorrência de alienação ou oneração após a inscrição em dívida ativa, estando, ademais, o terceiro adquirente impedido de demonstrar a sua boa-fé. Quando, porém, a fraude à execução beneficiar um particular, não basta, para que se evidencie a má-fé do terceiro adquirente, a demonstração da ocorrência de alienação ou oneração de bem pelo devedor após litispendência,(28) sendo necessária, além disso, a comprovação concreta da má-fé do terceiro.

O Direito brasileiro, conforme manifestou o Supremo Tribunal Federal,(29) admite o estabelecimento de regime jurídico processual mais vantajoso à Fazenda Pública, a exemplo do reexame necessário (art. 475 do CPC) e do prazo em dobro para recorrer (art. 188 do CPC). No entanto, o favorecimento da Fazenda Pública deve se justificar em uma situação de desigualdade material que dificulte a sua atuação no processo se comparada aos particulares em geral, e deve se limitar ao estritamente necessário para a eliminação da desigualdade. Não havendo justificativa ou estando fora do limite necessário, o tratamento jurídico diferenciado constitui privilégio inconstitucional em favor da Fazenda Pública, com a violação do princípio da igualdade processual e, em última análise, da garantia do devido processo legal.

Afora ser questionável a existência de desigualdade material que pudesse justificar o favorecimento da Fazenda Pública frente aos particulares relativamante à demonstração da má-fé do terceiro adquirente e, pois, da fraude à execução – já que, como se sabe, os órgãos que integram a Administração Tributária constituem um dos mais bem aparelhados no Estado brasileiro, inclusive por determinação constitucional (art. 37, XXII) –, é certo que a diferenciação ultrapassou o limite necessário. Ainda que se considerasse justificável o favorecimento nessa situação, poderia o Superior Tribunal de Justiça ter beneficiado a Fazenda Pública com a presunção relativa de má-fé do terceiro adquirente, a qual seria suficiente para eliminar eventual situação de desigualdade material, protegendo, ainda nessa hipótese, de maneira mais intensa o crédito tributário na comparação com o não tributário, em relação ao qual vigoraria a presunção de boa-fé do terceiro adquirente.

3.4 Inconsistência da máxima de experiência subjacente à presunção: contrariedade ao direito fundamental à tutela jurisdicional

A respeito dos tipos presuntivos tributários, deve ser destacada a existência de limites constitucionais e legais a esses tipos, que significam a exigência de se avaliar (i) a consistência em abstrato da máxima de experiência utilizada pelo legislador como fundamento do tipo; (ii) a consistência em concreto dessa máxima de experiência; e (iii) o direito à contraprova por parte daquele em detrimento de quem é cogitada a incidência do tipo.(30) Sem embargo de a consideração desses dois últimos limites ser incompatível com a existência da presunção legal absoluta, é possível utilizar, como parâmetro de constitucionalidade da presunção absoluta,(31) o primeiro limite, relativo à consistência em abstrato da máxima de experiência.

O Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar como absoluta a presunção referida no art. 185 do CTN, parte da máxima de experiência de que aquele que celebra com cautela um negócio jurídico necessariamente exigiria, ou deveria exigir, certidões fiscais, vindo, assim, a conhecer o estado em que se encontra o contratante em potencial perante o Fisco. No Brasil, há mais de cinco mil municípios, vinte e seis estados-membros e o distrito federal, além da União. Se a presunção é absoluta, isso significa que o reconhecimento da má-fé pode derivar da existência de inscrição em dívida ativa em quaisquer das unidades federativas. No entanto, não é razoável exigir, em cada negócio jurídico, a extração de mais de cinco mil certidões de dívida ativa, o que, por si só, esclarece a impossibilidade de se atribuir caráter absoluto à presunção, embora possível a visualização do caráter relativo.

Demonstrada a inconsistência da máxima de experiência subjacente à interpretação da presunção constante do tipo do art. 185 do CTN como absoluta, fica evidenciada, por consequência, a contrariedade ao direito fundamental à prova (a contrario sensu, art. 5º, LVI, da CF), pois o terceiro adquirente se encontra impedido de demonstrar a inconsistência da presunção. Em última análise, há a violação do direito fundamental à tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF) por parte do terceiro adquirente, cujos embargos de terceiro – normalmente o instrumento utilizado para impugnar a decisão em que, nos autos da execução fiscal, é reconhecida a fraude – não terão qualquer serventia, estando de antemão destinados à rejeição mediante o julgamento antecipado do mérito.

Conclusão

No presente artigo, foi possível estabelecer as seguintes conclusões:

– a evolução da doutrina e da jurisprudência demonstra o paulatino reconhecimento, na fraude à execução, da relevância jurídica da boa-fé do terceiro adquirente, aproximando a fraude à execução da fraude contra credores, entre cujos requisitos se encontra o concilium fraudis;
– a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, firmada a partir do julgamento de recurso especial repetitivo em 2010, de acordo com o qual deve ser reconhecida, na fraude à execução fiscal, a presunção absoluta de má-fé do terceiro adquirente, implica a restauração da jurisprudência anterior à Constituição de 1988;
– a alteração do art. 185-A do Código Tributário Nacional, concernente apenas ao período no qual se pode reconhecer a fraude à execução, e o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, que não representa fato ou circunstância superveniente ao entendimento anterior, não constituem fundamentos aptos à revisão jurisprudencial;
– a revisão jurisprudencial procedida pelo Superior Tribunal de Justiça relativamente à fraude à execução fiscal desconsidera o princípio segundo o qual aquele que age de boa-fé não pode, em razão desse ato, vir a ser prejudicado, e, ainda, a necessidade de garantir estabilidade e segurança às relações jurídicas;
– em comparação com a presunção de boa-fé do terceiro adquirente na fraude à execução não fiscal, o favorecimento do Fisco com a presunção absoluta de má-fé na fraude à execução fiscal, ausente uma situação de desigualdade material e porque além do limite necessário, contitui privilégio processual inconstitucional;
– demonstrada a inconsistência da máxima de experiência subjacente à interpretação da presunção constante do tipo do art. 185 do CTN como absoluta, o impedimento a que o terceiro adquirente demonstre a sua boa-fé contraria o direito fundamental à prova e, em última instância, à tutela jurisdicional por meio dos embargos de terceiro.

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Notas

1. CAHALI, Yussef Said. Fraude contra credores: fraude contra credores, fraude à execução, ação revocatória falencial, fraude à execução fiscal e fraude à execução penal. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 61.

2. ASSIS, Araken de. Manual de execução. 11. ed. rev., ampl. e atual. com a Reforma Processual 2006/2007. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.  p. 244.

3. Op. cit., 246.

4. Conforme destaca Yussef Said Cahali, há várias formulações a respeito do concilium fraudis, na fraude contra credores de atos a título gratuito. Op. cit., p. 174.

5. Op. cit., p. 501 e seguintes.

6. ASSIS, Araken de. Op. cit., p. 246.

7. CAHALI, Yussef Said. Op. cit., p. 501 e seguintes.

8. Não se desconhece a existência de institutos jurídicos antigos de Direito Público que também atribuem relevância à boa-fé do administrado, como a teoria do funcionário de fato. Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello, citando outros autores, relembra que a aplicabilidade da teoria remonta ao Direito dos Imperadores (Curso de Direito Administrativo. 29. ed., rev. e atual. até a EC 69, de 21.12.2011. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 251, nota de roda pé).

9. COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54

da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista da Procuradoria-Geral do Estado, Porto Alegre, v. 27, n. 57, 2003.

10. Na jurisprudência do STF: ACO 79, Relator(a):  Min. Cezar Peluso (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 15.03.2012, Acórdão Eletrônico DJe-103, Divulg. 25.05.2012 Public. 28.05.2012, RTJ, Vol-00110-02, PP-00448). Na do STJ: AgRg no Ag 1314342/MG, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 25.02.2014, DJe 10.03.2014.

11. No próprio conceito de tributo, há referência à compulsoriedade do tributo, “ideia com a qual o CTN [no art. 3º] buscou evidenciar que o dever jurídico de prestar o tributo é imposto pela lei, abstraída a vontade das partes que vão ocupar os polos ativo e passivo da obrigação tributária, opondo-se, dessa forma, a compulsoriedade do tributo à voluntariedade de outras prestações pecuniárias” (AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 18).

12. O critério para o enfoque da jurisprudência desses Tribunais reside na prerrogativa que lhes incumbe (sendo que o STF até a CF/88) de interpretar a legislação federal em última instância.

13. RE 85518, Relator(a):  Min. Cunha Peixoto, Primeira Turma, julgado em 16.05.1978, DJ 30.06.1978, PP-04842, Ement. Vol-01101-03, PP-01324.

14. RE 108911, Relator(a):  Min. Carlos Madeira, Segunda Turma, julgado em 30.06.1986, DJ 22.08.1986, PP-14524, Ement. Vol-01429-04 PP-00640.

15. REsp 9789/SP, Rel. Ministro Athos Carneiro, Quarta Turma, julgado em 09.06.1992, DJ 03.08.1992, p. 11321.

16. REsp 2250/SP, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Primeira Turma, julgado em 04.10.1993, DJ 08/11/1993, p. 23515.

17. REsp 54150/SP, Rel. Ministro Ari Pargendler, Segunda Turma, julgado em 24.02.1997, DJ 17.03.1997, p. 7461.

18. REsp 655000/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23.08.2007, DJ 27.02.2008, p. 189.

19. REsp 494545/RS, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 14.09.2004, DJ 27.09.2004, p. 214.

20. Súmula 375, Corte Especial, Data do Julgamento 18.03.2009, Data da Publicação/Fonte DJe 30.03.2009, RSSTJ v. 33, p. 321, RSTJ v. 213, p. 553.

21. REsp 1141990/PR, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 10.11.2010, DJe 19.11.2010.

22. Embora não haja a adoção no Brasil de um sistema de precedentes, a crescente criação de instrumentos de estabilização e consolidação da jurisprudência, como a súmula vinculante e o recurso representativo de controvérsia, permite, no mínimo, afirmar a necessidade de uma maior fundamentação no momento da revisão de jurisprudência consolidada, à semelhança do que ocorre nos sistemas de common law.

23. SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. 2. tir. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.

24. TRF4, AG 0002468-31.2013.404.0000, Primeira Turma, Relator Jorge Antonio Maurique, D.E. 04.09.2013.

25. TRF4, AC 5005586-98.2012.404.7101, Primeira Turma, Relatora p/ Acórdão Maria de Fátima Freitas Labarrère, juntado aos autos em 26.09.2013.

26. Agravo nº 70059021006, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relatora: Maria Isabel de Azevedo Souza, julgado em 24.04.2014.

27. MARINONi, Luiz Guilherme; ARENHART, Ségio Cruz. Prova. São Paulo: RT, 2009. p. 131 e ss.

28. No sentido de pendência de demanda; no caso da fraude à execução, pendência de demanda capaz de reduzir o devedor à insoilvência o agravar esse estado.

29. ADI 1753 MC, Relator(a):  Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 16.04.1998, DJ 12.06.1998, PP-00051, Ement. Vol-01914-01, PP-00040, RTJ, Vol-00172-01, PP-00032.

30. KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

31. Marinoni e Arenhart afirmam ser possível sindicar a constitucionalidade da presunção absoluta. Op. cit., p. 140, nota de rodapé.




Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., out. 2014. Disponível em:
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REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS