Resumo
Este artigo possui dois objetivos: (a) demonstrar invalidade/ineficácia das normas previstas no Código Tributário Nacional que dispõem sobre interpretação e integração da legislação tributária; e (b) propor alternativas às suas disposições, a fim de que o intérprete, ao se deparar com uma questão tributária, possua subsídios para desempenhar a sua atividade de forma satisfatória.
Inicialmente, tratar-se-á de alguns aspectos gerais da hermenêutica, notadamente em relação à superação do conceito tradicional, construído à época do positivismo jurídico. Logo depois, estabelecer-se-ão os principais métodos interpretativos postos à disposição do intérprete, os quais se constituem em importantes ferramentas.
Posteriormente, demonstrar-se-á que o Código Tributário Nacional, quando pretendeu regular a interpretação das normas tributárias, o fez equivocadamente, sendo que os respectivos artigos são inválidos e ineficazes. Far-se-á uma crítica pormenorizada de alguns desses dispositivos, apontando-se quais são e em que incidem as suas inconsistências, para, depois, postular a sua revisão e/ou revogação.
Por fim, o trabalho apontará algumas conclusões, bem como algumas alternativas interpretativas. Espera-se, com isso, fomentar o debate sobre a interpretação e integração das normas tributárias, matéria que ainda carece de maior aprofundamento teórico por parte da doutrina e da jurisprudência.
Palavras-chave: Direito Tributário. Interpretação. Integração. Métodos interpretativos. Legislação tributária. Revisão. Hermenêutica jurídica.
Sumário: Introdução. 1 A interpretação jurídica: breves apontamentos. 2 Métodos interpretativos. 3 O Código Tributário Nacional e a hermenêutica. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
A interpretação jurídica, também conhecida como hermenêutica, é atividade que cada vez mais vem ganhando importância na prática jurídica moderna. Com efeito, com a superação dos paradigmas do positivismo jurídico, aliada à adoção de modelos neoconstitucionalistas, a exemplo das cláusulas gerais, dos conceitos jurídicos indeterminados e da força normativa dos princípios, verifica-se que os textos jurídicos devem ser interpretados corretamente, a fim de que deles se extraia a norma jurídica pertinente, seja ela uma regra, seja ela um princípio.
No direito tributário, segundo Becker,(1) os estudiosos antigos imaginavam que as leis tributárias deveriam ser interpretadas de modo diferente e com método especial. Talvez tenha sido por isso que o legislador dedicou um capítulo próprio, no Código Tributário Nacional, à interpretação e à integração da legislação tributária. Modernamente, no entanto, chegou-se à conclusão, tão verdadeira quanto simples, de que as leis tributárias são regras jurídicas com estrutura lógica e atuação dinâmica idênticas às das demais regras jurídicas, e, portanto, interpretam-se como qualquer outra lei, admitem todos os métodos de interpretação jurídica e não existe qualquer princípio peculiar de interpretação das leis tributárias.
Partindo-se dessa premissa, percebe-se que os dispositivos legais em matéria tributária também não dispensam acurado exame por parte do intérprete, sendo certo que a atividade interpretativa, na seara tributária, ainda tem muito a evoluir. Isso porque, além de a hermenêutica ter alcançado especial relevância nos últimos anos, é possível notar que a legislação tributária que dispõe sobre interpretação e integração é ultrapassada, na medida em que o Código Tributário Nacional é de 25 de outubro de 1966, ou seja, possui mais de 40 (quarenta) anos.
Dessarte, diante dessas duas circunstâncias – o desenvolvimento da interpretação jurídica nas últimas décadas e a inidoneidade atual das normas tributárias que dispõem sobre interpretação e integração –, justifica-se a busca de novos contornos interpretativos no direito tributário.
Sucede que, antes de examinar a hermenêutica no campo tributário, é preciso delinear alguns aspectos gerais da interpretação jurídica, bem como apresentar, ainda que sucintamente, os principais métodos de interpretação. Isso porque as premissas interpretativas no direito tributário não diferem, em substância, daquelas que regem os demais ramos do direito, o que significa dizer que as linhas gerais da hermenêutica jurídica também podem ser aplicadas à seara tributária.
1 A interpretação jurídica: breves apontamentos
Para a doutrina tradicional, representada pelo modelo dogmático – escolas exegética e histórica, o primeiro período de Ihering e a jurisprudência dos conceitos, acrescidos de Kelsen –, interpretar significa extrair os significados preexistentes à atividade interpretativa. Com efeito, nas palavras de Vigo,(2) citando Savigny e Ihering, a interpretação jurídica consistiria na reconstrução do pensamento ínsito da lei, sendo certo que seria uma jurisprudência inferior, tendo em vista que ela não criaria nada novo, nem poderia fazer mais do que esclarecer os elementos jurídicos substanciais já existentes. Seria uma atividade menor, sem relevância jurídica, já que se limitava a repetir a lei sem trazer nada de novo.
No mesmo sentido, Barroso(3) afirma que, do ponto de vista da dogmática jurídica tradicional, a interpretação jurídica passa pelo processo silogístico de subsunção dos fatos à norma, sendo que ao juiz caberia revelar as verdades abrigadas no comando geral e abstrato da lei. Sendo o intérprete refém da separação dos poderes, não lhe é dado, portanto, desempenhar qualquer tipo de papel criativo no que tange à sua atividade.
Assim, fica claro que a doutrina tradicional conferia menor importância à atividade interpretativa, porque o modelo juspositivista, consolidado a partir da obra de Kelsen, atribuía à lei o protagonismo do sistema, eliminando qualquer possibilidade de interpretação dissociada das intenções do legislador. Deveria o órgão jurisdicional, por isso, apenas extrair o significado da norma do texto a ser apreciado, cuja existência preexistiria à própria atividade interpretativa.
Nada obstante, tais premissas restaram superadas com o advento do neoconstitucionalismo, razão pela qual é preciso construir um conceito de interpretação mais consentâneo com a realidade atual. Antes, porém, faz-se necessário ressaltar e enfatizar a importância da interpretação no ordenamento jurídico, considerando que a construção de um conceito adequado depende, necessariamente, da consciência do intérprete acerca da relevância da sua atividade.
Nessa perspectiva, percebe-se que a interpretação está intimamente atrelada à ideia de segurança jurídica. A atividade interpretativa, estruturada de forma racional e lógica, tem como objetivo principal restringir a liberdade do intérprete, diminuindo a sua discricionariedade, a fim de evitar arbitrariedades. Em outras palavras, as regras interpretativas são uma ferramenta que funciona como uma contenção, impedindo que o intérprete pratique abusos na sua atividade.
Nas palavras de Ávila,(4) a segurança jurídica, entendida como norma princípio – art. 5º, XXXVI, da CF –, é uma prescrição, dirigida aos três poderes da República, que determina a busca de um estado de confiabilidade e de calculabilidade do ordenamento jurídico, com base na sua cognoscibilidade. De um lado, a segurança jurídica é um dever decorrente do direito posto, e, de outro, ela significa uma reconstrução de sentidos normativos por meio de estruturas argumentativas e hermenêuticas, não sendo possível afirmar que ela advém da mera descrição imparcial de significados externos ao sujeito cognoscente.
Verifica-se que a busca da segurança jurídica, por meio da interpretação, passa, necessariamente, pela observância de três aspectos fundamentais, ligados à aferição da objetividade das decisões judiciais: (a) a independência de quem julga relativamente ao que é julgado, (b) a correção e (c) a invariância.
O julgador deve atuar de maneira independente em relação aos critérios e ao objeto da interpretação, sem interferências nocivas. Essa necessidade de independência decorre de princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal, tais como o estado de direito, a legalidade, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a imparcialidade, a isenção e a impessoalidade. Não é à toa que o símbolo da justiça é uma mulher cega, a qual representa a independência e a imparcialidade no ato de julgar.
Além disso, o órgão jurisdicional deve atuar de forma objetiva, adotando critérios de correção que permitam aos jurisdicionados se defender de modo eficaz e articulado. Por fim, deve o julgador utilizar os mesmos critérios interpretativos para um mesmo caso concreto, o que possui relação com o postulado da isonomia.
Ante os argumentos acima expostos, não restam dúvidas de que é preciso construir um novo conceito de interpretação, mais consentâneo com as necessidades impostas atualmente pela prática jurídica. Além disso, a nova definição da atividade interpretativa deve ser construída à luz do postulado da segurança jurídica, a fim de que seja garantida a independência do intérprete em relação ao objeto a ser interpretado, bem como a correção e a invariância dos critérios adotados na interpretação do texto juridicizado.
Antes, porém, deve-se investigar quais são os problemas, na teoria do direito, relacionados à interpretação jurídica. Dito de outra forma, faz-se necessário examinar quais são os obstáculos que o intérprete deve superar no desempenho da sua atividade.
O primeiro desses problemas é a equivocidade dos textos, isto é, a forma como os textos são escritos permite, por vezes, a existência de mais de uma vertente interpretativa. No caso brasileiro, muitos dispositivos legais são ambíguos, o que gera muita dificuldade ao intérprete no desenrolar da sua atividade.
Como exemplo, nota-se que o Código Tributário Nacional, ao utilizar a expressão “legislação tributária”, o faz em vários sentidos diferentes ao longo dos seus 218 artigos. Dispõe o art. 96 do mesmo Código que a expressão "legislação tributária" compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes. Trata-se de definição demasiadamente ampla, o que confunde o intérprete no que se refere à interpretação de diversos institutos jurídico-tributários, como obrigação tributária, sujeito ativo, responsabilidade tributária, lançamento, etc.
Em outros casos, além de ser ambíguo, o texto ostenta certa complexidade, o que também dificulta a atividade interpretativa. Por exemplo, o princípio da legalidade tributária, previsto no art. 150, I, da Constituição Federal, possui diversos sentidos construídos pela doutrina. Com efeito, Ávila(5) entende que, na perspectiva da espécie normativa exteriorizada, a legalidade é tridimensional. Possui uma dimensão normativa preponderante de regra, mas também possui, no seu aspecto material conteudístico, sentido normativo indireto tanto de princípio quanto de postulado.
Outra situação presente na interpretação é a implicação. Isso significa dizer que, do texto a ser interpretado, pode ser extraído um sentido, mas esse sentido também irá gerar outro sentido. O postulado do devido processo legal, em seu sentido material, v.g., implica a geração de diversos outros sentidos, como a adoção, pelo ordenamento jurídico brasileiro, das regras da proporcionalidade e da razoabilidade.
Finalmente, verifica-se que a atividade interpretativa também enfrenta problemas no que se refere à defectibilidade. É dizer, em muitos casos, o sentido preliminar extraído do texto pode gerar uma regra geral, a qual admite exceções implícitas. Trata-se de uma situação que causa desconforto ao intérprete, porque o surgimento dessas exceções implícitas pode gerar construções interpretativas equivocadas.
Se o intérprete possui todos esses problemas ao desempenhar a sua atividade, é forçoso concluir que a interpretação enseja, muitas vezes, a existência de dois ou mais sentidos possíveis. Em outras palavras, a hermenêutica jurídica não trabalha com apenas um sentido interpretativo para determinado texto, mas com vários, a depender de quais sejam os critérios adotados pelo intérprete. Mais uma vez, Ávila(6) confirma esse entendimento, ao afirmar que o intérprete não atribui determinado significado correto aos termos legais, mas tão só constrói exemplos de uso da linguagem ou versões de sentido.
Carvalho(7) sustenta, inclusive, que há dois princípios que guiam a interpretação: (a) a intertextualidade e (b) a inesgotabilidade. O primeiro princípio diz respeito à junção do ato de fala a outros textos. É o contato de um com outro que propicia a troca de informações inerentes à intertextualidade. Já a inesgotabilidade é a ideia de que toda a interpretação é infinita, nunca circunscrita a determinado campo semântico. Isso significa, portanto, que um texto poderá sempre ser reinterpretado. E, se toda atividade interpretativa é inesgotável, certo é que poderá existir mais de um sentido possível para o texto.
Admitindo-se, portanto, que há mais de um sentido possível para o texto, cabe ao intérprete decidir em relação a algum deles, bem como estabelecer uma relação de meios e fins entre os diversos sentidos possíveis. A concretização dos princípios jurídicos, por exemplo, demanda processo por meio do qual algumas regras implícitas são retiradas de regras explícitas.
Interpretar, então, não corresponde apenas ao processo de extrair os significados preexistentes à atividade interpretativa. A interpretação também envolve um processo decisório, por meio do qual o intérprete irá escolher qual dentre os vários significados possíveis irá prevalecer em relação ao objeto interpretado. Não é outro o entendimento de Freitas,(8) quando refere que a tarefa hermenêutica é alcançar o irrenunciável e o prioritário melhor significado a partir de uma dada escolha axiológica, em atenção aos princípios, regras e valores, devidamente hierarquizáveis e nunca inteiramente hierarquizados de modo prévio. Ora, se interpretar é alcançar o melhor significado possível, não há dúvidas de que a atividade interpretativa envolve um processo de escolha.
Contudo, não há olvidar que existem significados que não podem ser afastados pelo intérprete, pois dizem respeito a uma espécie de núcleo duro do texto jurídico objeto da interpretação. Nesses casos, pode-se dizer que interpretar também inclui a descoberta de significados, sem prejuízo de situações em que a atividade interpretativa envolva a decisão acerca dos muitos significados possíveis, decidindo-se a respeito de qual deles é o mais adequado para incidir no caso concreto. Por isso, construções como aquela exposta na tradicional obra de Maximiliano(9) – no sentido de que o executor (intérprete) extrai da norma tudo o que nela se contém, ou seja, determina o sentido e o alcance das expressões jurídicas – não podem ser consideradas de todo erradas, apenas devendo ser readequadas, com o objetivo de adicionar a esse conceito novos contornos hermenêuticos.
Demais disso, em outras situações, interpretar também significa criar uma nova norma, a qual não possui previsão expressa no ordenamento jurídico. Por exemplo, na seara do direito previdenciário, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região vem decidindo que o acréscimo de 25%, previsto no art. 45 da Lei 8.213/1991, é devido também aos segurados aposentados por idade que necessitarem de assistência permanente de terceiros, ainda que a referida norma preveja o benefício apenas para a aposentadoria por invalidez.
Portanto, conclui-se que interpretar é descrever, decidir e criar. Trata-se, assim, de atividade complexa, tendo em vista que envolve processos distintos, submetidos a critérios de objetividade diversos. Nas palavras de Streck,(10) interpretar não conduz ao conhecimento de algo que pertence a um texto intrinsecamente, pelo que cabe ao intérprete, a partir de uma atividade descritiva e criativa, escolher o melhor significado que irá constituir a norma jurídica, a partir do texto jurídico a ser interpretado.
2 Métodos interpretativos
Depois de ser afirmado que o conceito clássico de interpretação não mais atende às necessidades da prática jurídica moderna, bem como de ser construída, então, uma nova definição da atividade interpretativa, é chegada a hora de delinear, ainda que brevemente, quais instrumentos o intérprete pode utilizar no desenrolar interpretativo. Mister, portanto, descrever os métodos interpretativos mais aceitos na doutrina e na jurisprudência – os quais, inclusive, também são aplicáveis ao direito tributário –, a fim de que se possa compreender, de forma clara, a complexidade inerente à hermenêutica jurídica.
Pois bem.
Segundo Ferraz Jr.,(11) os métodos de interpretação (métodos hermenêuticos) constituem regras técnicas que visam à obtenção de um resultado, buscando-se orientações para os problemas de decidibilidade dos conflitos. São problemas de ordem sintática, semântica e pragmática, os quais, embora não possam ser circunscritos rigorosamente no direito, podem ser esquematizados para fins didáticos.
Partindo-se da esquematização proposta por Ferraz Jr., é possível distinguir os métodos interpretativos em (a) interpretação gramatical, lógica e sistemática; (b) interpretação histórica, sociológica e evolutiva; e (c) interpretação teleológica e axiológica. Existem, ainda, os tipos de interpretação (interpretação especificadora, restritiva e extensiva), os quais não se confundem com métodos hermenêuticos, mas que, dado o objetivo deste trabalho, não serão aqui descritos. Fica, porém, o registro acerca de tal classificação, que aponta a existência de métodos hermenêuticos e tipos de interpretação.
Os métodos sistemáticos, na orientação do referido autor,(12) dizem respeito a problemas sintáticos, os quais podem referir-se (a.1) a questões de conexão das palavras nas sentenças – questões léxicas (interpretação gramatical), (a.2) à conexão de uma expressão com outras expressões dentro de um contexto – questões lógicas (interpretação lógica), bem como (a.3) à conexão das sentenças em um todo orgânico – questões sistemáticas (interpretação sistemática).
Segundo o autor,(13) a interpretação gramatical parte do pressuposto de que a ordem das palavras, bem como o modo como elas estão concatenadas, são importantes para que se obtenha o correto significado da norma. Logo, a interpretação gramatical faz com que o intérprete tome consciência da letra da lei e esteja atento às equivocidades proporcionadas pelo uso das línguas naturais e suas falhas regras de conexão lógica.
Ferraz Jr.(14) afirma que a interpretação lógica parte do pressuposto de que a conexão de uma expressão normativa com as demais do contexto em que está inserida é importante para a obtenção do seu correto significado. Esse método hermenêutico, assim, busca evitar e solucionar as incompatibilidades lógicas existentes entre o texto a ser interpretado e o seu contexto.
Ressalta-se que o surgimento da interpretação lógica, como categoria interpretativa, decorre, fundamentalmente, do positivismo lógico, na perspectiva da investigação acerca dos problemas epistemológicos da linguagem. Na visão de Warat,(15) o positivismo lógico salienta a importância fundamental da linguagem para a ciência do direito, pois esta deve, sobretudo, construir seu objeto sobre dados que são expressos pela própria linguagem, isto é, a linguagem do direito fala sobre algo que já é linguagem anteriormente a essa fala.
De seu turno, a interpretação sistemática, segundo Ferraz Jr.,(16) parte da pressuposição hermenêutica de unidade do sistema jurídico do ordenamento. Correspondentemente à organização hierárquica das fontes do direito, emergem recomendações sobre a subordinação e a conexão das normas do ordenamento em um todo que culmina pela primeira norma-origem de todo o sistema, a Constituição. Assim, a interpretação sistemática demanda do intérprete noções profundas de validade, vigência, eficácia e vigor/força das normas jurídicas, com o objetivo de evitar antinomias normativas.
Observa-se que, na interpretação sistemática, o intérprete constrói o sentido da norma com um olhar global, a partir do sistema jurídico como um todo. Nesses casos, pode o intérprete examinar o dispositivo a partir do que dispõe a Constituição Federal, valendo-se da técnica da interpretação conforme. Além disso, ele também pode comparar o objeto interpretativo com os demais dispositivos legais de mesma hierarquia, verificando o local onde está inserido (em qual capítulo da lei, por exemplo), quando entrou em vigor, etc. Ademais, pode o intérprete reunir vários dispositivos, examinando-os em conjunto, e, por meio de raciocínio indutivo, chegar a apenas um significado.
Prossegue o autor(17) esclarecendo que a teoria dogmática da interpretação distingue conceitos jurídicos indeterminados, conceitos valorativos e conceitos discricionários. Os conceitos indeterminados são aqueles que admitem uma determinação, ou seja, são presumidamente determináveis. Já os conceitos valorativos manifestam uma imprecisão de sentido não quanto ao objeto abarcado (denotação), mas quanto à intenção (conotação), ou seja, uma imprecisão quanto aos atributos que os definem. Finalmente, os conceitos discricionários apresentam uma imprecisão que nunca se fecha genericamente, mas que se renova em cada uso concreto.
Para enfrentar tais situações de adversidade, o autor(18) sugere que o intérprete utilize os métodos sociológicos e históricos de interpretação (b), os quais podem ser distinguidos conforme se leve em consideração a estrutura momentânea da situação ou sua gênese no tempo. Na prática, porém, é inviável sustentar tal diferenciação.
Com isso, o intérprete pode levantar as condições históricas da edição da norma, o que, segundo Ferraz Jr.,(19) pode ser feito por meio dos precedentes normativos, ou seja, de normas que vigoraram no passado e que antecederam à nova disciplina, a fim de que, por comparação, possa entender as razões condicionantes de sua gênese. Investiga-se o momento anterior à criação do dispositivo legal, recompondo-se o contexto histórico em que ele foi editado.
Demais disso, pode o intérprete, também, levantar as condições atuais do contexto em que foi editado o objeto a ser interpretado, checando as funções do comportamento e das instituições sociais na sociedade em que ocorrem. O já citado autor(20) aponta, como exemplo, o disposto no art. 5º, I, da Constituição Federal (homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos da Constituição), sendo que a interpretação deve buscar no contexto real os traços que tornam significativa a igualdade, ainda que a realidade apresente outros traços até mais significativos para a apreensão do modo como a sociedade vivencia tal relação.
Por fim, pode o intérprete valer-se da interpretação teleológica e axiológica (c), a qual, segundo Ferraz Jr.,(21) ataca os problemas pragmáticos stricto sensu. Se todo ato interpretativo tem, primariamente, uma qualidade pragmática, isto é, deve ser entendido em uma relação de comunicação entre emissores e receptores das mensagens normativas, então é certo que, em um sentido estrito, as relações entre tais comunicadores implica problemas peculiares que a hermenêutica enfrenta por meio dos métodos teleológico e axiológico.
Nesse sentido, o autor(22) afirma que a interpretação teleológica e axiológica ativa a participação do intérprete na construção do sentido, na perspectiva de que seu momento interpretativo, inversamente ao da interpretação sistemática – que também postula uma cabal e coerente unidade do sistema –, parte de consequências avaliadas das normas e retorna para o interior do sistema. Busca o intérprete, então, entender qual a finalidade do dispositivo legal.
Nota-se que o órgão jurisdicional, ao desempenhar a atividade interpretativa, por meio do método teleológico e axiológico, pode utilizar técnicas extensivas ou restritivas de sentido, aumentando ou diminuindo a eficácia do sentido por ele construído. Por exemplo, o STF ampliou o conceito de casa, previsto no art. 5º, XI, da Constituição Federal, estabelecendo que a proteção do instituto também se estende ao local onde o indivíduo exerce a sua atividade profissional.
É dado ao intérprete, também, investigar o sentido do dispositivo com base no caso concreto, decidindo qual será o sentido prevalente com base em argumentos equitativos. Nos procedimentos de jurisdição voluntária, por exemplo, há previsão nesse sentido (art. 1.109 do Código de Processo Civil).
Ressalta-se, ademais, que a própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – ao dispor, em seu art. 5º, que, “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” – contém uma exigência teleológica. De acordo com Ferraz Jr.,(23) as expressões fins sociais e bem comum indicam sínteses éticas da vida em comunidade, pressupondo uma unidade de objetivos do comportamento social do homem. Postula-se, assim, uma ordem jurídica, em sua totalidade, como um conjunto de preceitos para a realização da sociabilidade humana.
Portanto, a interpretação, além de ser uma atividade descritiva, decisionista e criativa, utiliza como base argumentos linguísticos, históricos, genéticos, teleológicos, sistemáticos e consequencialistas, mediante técnicas e regras de prevalência entre os argumentos trazidos à baila pelo intérprete. Assim, é certo que a interpretação deve utilizar os métodos interpretativos como ferramentas na construção dos significados, o que significa dizer, ao cabo, que a hermenêutica exige que o intérprete, para o bom desempenho de sua atividade, esteja atento a todas essas circunstâncias.
É preciso mencionar, também, que o sentido de um determinado dispositivo não é algo que esteja incorporado definitivamente ao texto, ainda que se possa admitir a existência de núcleos duros de significação. É possível, exemplificadamente, que o intérprete, ao longo do tempo, modifique a sua estrutura interpretativa, ou seja, ele pode encontrar sentidos diferentes, em um determinado espaço temporal, para o mesmo texto jurídico.
Ante todas essas premissas, e determinadas as bases do raciocínio interpretativo – na perspectiva de que a interpretação é uma atividade criativa, baseada em métodos racionais de interpretação –, passa-se, no próximo capítulo, ao exame das disposições previstas no Código Tributário Nacional a respeito da interpretação e da integração da legislação tributária.
3 O Código Tributário Nacional e a hermenêutica
O Capítulo IV do Título I do Livro Segundo do Código Tributário Nacional, intitulado “interpretação e integração da legislação tributária”, traz, em 6 (seis) artigos, regras direcionadas ao intérprete da legislação tributária, as quais deverão ser por ele seguidas no desenrolar da sua atividade. Entretanto, considerando o que foi exposto nos dois primeiros capítulos – sobretudo a construção de um novo conceito de interpretação, superando-se os paradigmas interpretativos até então vigentes –, este trabalho irá examinar 4 (quatro) desses 6 (seis) dispositivos, propondo alternativas hermenêuticas às suas disposições, mais consentâneas com o contexto atual do tema. Busca-se, com isso, fomentar o debate a respeito da atividade interpretativa no direito tributário, a fim de proporcionar maior segurança jurídica aos sentidos conferidos à legislação tributária pelos órgãos encarregados de interpretá-la, quais sejam, as instâncias administrativas e jurisdicionais.
Aliás, acerca da inidoneidade e da inadequação das normas do Código Tributário Nacional que dispõem sobre interpretação e integração, Torres(24) entende que, da ambiguidade, da insuficiência e da redundância das normas sobre interpretação e integração resulta a sua própria invalidade, na medida em que elas são inúteis e carentes elas próprias de interpretação. Além disso, tais normas tornam-se inválidas, pois têm sua eficácia comprometida pelo caráter ideológico que possuem e por terem sua legitimidade conspurcada pelo desequilíbrio que introduzem nos sistemas de valores jurídicos e dos poderes estatais.
Prossegue o autor(25) sustentando que, nas codificações mais modernas, as normas sobre interpretação e integração não vinculam o intérprete. Isso porque a imensa maioria da doutrina lhes nega caráter vinculante, ou lhes reserva o papel de mero cânone ou diretiva não obrigatória. Dessarte, inclusive no direito tributário, inexiste a vinculação do juiz e do intérprete a tais normas.
Pois bem.
Passa-se, agora, ao exame individual de cada uma das normas sobre interpretação e integração da legislação tributária. Começa-se, então, pelo art. 108 do Código Tributário Nacional, que assim dispõe:
“Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:
I – a analogia;
II – os princípios gerais de direito tributário;
III – os princípios gerais de direito público;
IV – a equidade.
§ 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei.
§ 2º O emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido.”
Referido dispositivo, partindo-se de uma análise mais acurada, mostra-se ambíguo, confuso e contraditório. A par de diversas críticas que poderiam ser dirigidas ao artigo 108 do Código Tributário Nacional – não define convenientemente as lacunas, restringe os destinatários da norma –, nota-se que o seu principal equívoco é traçar uma hierarquia entre os métodos de integração da legislação tributária.
Segundo Torres,(26) o dispositivo sofreu direta influência da legislação italiana. No entanto, não há fundamento jurídico, lógico ou filosófico para que o legislador hierarquize métodos de integração, porque as fronteiras entre cada um dos métodos é tênue, bem como porque, globalmente, eles não podem se ordenar segundo as regras da indução ou da dedução.
O autor(27) aponta que o raciocínio analógico postula variações e apreciações ligadas aos princípios gerais do direito ou à ratio que serve de elo para a comparação. Além disso, a equidade abrange os princípios gerais do direito, na medida em que consiste na aplicação da justiça ou de seus princípios específicos aos casos concretos. Ademais, a diferenciação entre princípios gerais do direito público e do direito tributário é infundada, já que qualquer princípio, ainda que se aplique a determinado ramo da ciência jurídica, constitui emanação ou modificação dos princípios gerais do direito.
Ressalta-se, também, que, no contexto atual do neoconstitucionalismo, os princípios jurídicos possuem força normativa, devendo ser aplicados independentemente da presença ou não de regras expressas, mesmo no direito tributário. Em outras palavras, deve o intérprete valer-se dos princípios jurídicos, aplicando-os aos casos postos à sua apreciação, ainda que inexista regra positivada para tanto, se assim entender pertinente. O art. 108 remonta à época em que os princípios jurídicos não detinham a envergadura e a força normativa que hoje possuem, razão pela qual o dispositivo não possui mais razão de ser.
Após o exame do caput do art. 108 e dos seus incisos, é chegada a hora de tecer comentários sobre os seus dois parágrafos, os quais trazem, respectivamente, (a) a proibição de analogia e (b) a proibição de equidade.
O § 1º traz (a) a proibição de analogia, ao dispor que “o emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei”.
De início, conforme ressalta Torres,(28) percebe-se que a norma coincide com o próprio princípio da legalidade (art. 5º, I, e 150, I, ambos da Constituição Federal). Contudo, não é possível erigi-la em dogma ou em regra de clareza indiscutível. A tese fundamental do dispositivo está ligada à defesa do liberalismo individualista, no sentido de que é absoluta a proibição da analogia na exigência de tributos. Entretanto, a partir da década de 80, passaram a surgir opiniões favoráveis à analogia para a criação de crédito tributário, o que colocou em xeque a teoria positivista antes predominante.
Na verdade, ainda que o princípio da legalidade seja uma garantia fundamental do contribuinte, inexiste impossibilidade total de fechamento das normas tributárias e da adoção de enumerações casuístiscas e exaustivas de fatos geradores. Isso significa que a norma tributária também pode sofrer alguma indeterminação e imprecisão, porque também se utiliza de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, que são abertos por definição. Assim, o importante, para que não haja burla ao postulado constitucional da legalidade, é que exista uma estrutura normativa apta a gerar a exigência do tributo, ainda que ela contenha alguma lacuna ou indeterminação. Nesses casos, a incompletude da norma será suprida por métodos de integração, como a analogia, o que não significará, necessariamente, violação ao princípio da legalidade.
Por outro lado, o § 2º do art. 108 traz (b) a proibição de equidade, dispondo que “o emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido”. De acordo com Torres,(29) a regra é contraditória e redundante, porque, se a equidade é forma de preenchimento de lacuna, dela logicamente não poderia resultar a dispensa do tributo. Assim, nos casos de lacuna, não há tributo, pelo que não cabe, obviamente, falar de sua dispensa.
Dito isso, veja-se o que reza o art. 109 do Código Tributário Nacional:
“Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.”
O mesmo Torres(30) tece diversas críticas ao dispositivo – mistura de posições teóricas divergentes, filiação a correntes doutrinárias conflitantes, confusão das relações entre o direito tributário e o privado e entre as diversas fontes do direito –, mas, dentre todas, destacam-se a falta de uma opção clara entre os métodos sistemáticos ou teleológicos e a pretensão de hierarquizar tais métodos.
Com efeito, o referido artigo pretende traçar uma hierarquia entre métodos de interpretação, a exemplo do que já havia feito o art. 108, especialmente entre o sistemático e o teleológico. Devido à ambiguidade da norma, duas interpretações são possíveis: se lido conjuntamente com o art. 110, o art. 109 pode ser interpretado no sentido de que privilegia o método sistemático, quando estiverem em jogo institutos e conceitos utilizados pela Constituição Federal; por outro lado, se lido isoladamente, o art. 109 dá a entender que o método teleológico deve prevalecer (consideração econômica do fato gerador), pelo menos quando não houver a constitucionalização dos conceitos.
Continua o autor(31) afirmando que o problema dos métodos de interpretação se relaciona intimamente com o das fontes do direito e com o equilíbrio entre o direito tributário e o direito privado, bem como com a licitude da escolha das formas jurídicas ou da ilicitude da elisão. Por isso, duas conclusões são possíveis: prevalecendo o método sistemático, haverá exclusividade da legislação como fonte do direito, subordinação do direito tributário ao privado e liberdade na eleição da forma dos negócios jurídicos; de outra banda, prevalecendo o método teleológico, haverá inclusão da jurisprudência entre as fontes, autonomia do direito tributário e ilicitude da elisão.
Diante disso, é forçoso concluir pela impertinência do dispositivo, sendo certo que a melhor opção seria extirpá-lo do ordenamento jurídico.
Outro artigo que merece destaque é o 110, cuja redação é a seguinte:
“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”
Na linha do que afirma Torres,(32) o art. 110 do Código Tributário Nacional, além de ser ambíguo e contraditório – ao admitir diferentes leituras de seu significado, bem como ao separar os métodos de interpretação de acordo com a natureza constitucional ou meramente legal da norma a ser interpretada –, apresenta, também, as seguintes inconsistências: (a) (im)possibilidade de o CTN introduzir normas sobre a interpretação da Constituição; (b) alcance da eficácia do dispositivo – se abrange, ou não, a discriminação de rendas; (c) (im)possibilidade de existir identidade entre conceitos constitucionais e conceitos de direito privado; e (d) conflito entre o pluralismo metodológico e a interpretação meramente literal. A seguir, enfrentar-se-á cada um desses problemas.
Inicialmente, destaca o autor(33) que não cabe ao Código Tributário Nacional, como lei complementar (assim recepcionado pela Constituição Federal, tendo em vista o disposto no art. 146), impor limites à interpretação constitucional. Parece claro que, em virtude do princípio da supremacia da Constituição, não são válidas normas previstas em diplomas infraconstitucionais que pretendam interpretar dispositivos constitucionais. Assim, verifica-se que não andou bem o legislador ao editar o art. 110 do CTN, nos termos em que foi redigido, porque a sua ambiguidade enseja a conclusão de que uma norma infraconstitucional pretende, de forma indevida, interpretar a Constituição.
Torres(34) afirma, também, que o dispositivo é insuficiente e lacunoso, pois, em sua origem, seu objetivo foi afastar da interpretação teleológica os conceitos utilizados no sistema de discriminação de rendas. Ocorre que a hermenêutica constitucional não se restringe ao federalismo fiscal, mas abrange também o sistema tributário nacional, independentemente da titularidade do tributo. Nessa situação, a interpretação não visa à harmonia entre os diversos entes da Federação, mas sim à esfera dos direitos fundamentais dos contribuintes.
Ademais, como lembra o autor,(35) a interpretação da Constituição e da lei ordinária, ainda que cada uma possua as suas peculiaridades, se aproximam, sob um primeiro ponto de vista, tendo em conta que a lei ordinária, sendo ela própria fruto do programa constitucional ou da atualização da Constituição, não pode ficar à margem do processo de compreensão desta. Além disso, as peculiaridades da interpretação constitucional não significam o afastamento dos métodos hermenêuticos referidos alhures, nem interrompem a comunicação com as leis ordinárias e com a própria vida social, sob pena de violação ao próprio princípio da unidade.
Assim, é certo que a constitucionalização dos conceitos do direito privado lhes confere dimensão pluralista e lhes publiciza a compreensão, o que torna supérfluo e dispensável dispositivos como o art. 110 do CTN. Conclui-se, por isso, que é plenamente possível a identidade entre os conceitos do direito privado e os conceitos constitucionais.
Finalmente, o autor(36) esclarece que, a exemplo do dispositivo anterior, o art. 110 pode ser lido de duas formas: em conjunto com o art. 109, ou isoladamente. Conforme a escolha do intérprete, duas possibilidades se abrem, quais sejam, a interpretação sistemática ou a adesão ao método literal.
Se lido em conjunto com o art. 109, o dispositivo em comento sinaliza no sentido da superioridade do método sistemático sobre o teleológico, bifurcando-se a interpretação dos conceitos tributários expressos na lei ordinária e na Constituição Federal. Tem-se, nesse caso, a hermenêutica constitucional-tributária sob o prisma do pluralismo metodológico, na medida em que os conceitos de direito tributário e civil, ainda que projetados para o direito constitucional, subordinam-se ao princípio da unidade.
Por outro lado, se lido de forma isolada, o art. 110 conduz ao distanciamento entre a temática dos direitos fundamentais do contribuinte e a interpretação do direito constitucional tributário, aderindo-se à interpretação literal. Sucede que esse tipo de interpretação, no caso, radicaliza a contradição entre a interpretação do sistema de discriminação de rendas e a do sistema tributário, que leva em consideração a base econômica, conferindo aos conceitos do direito privado, em sua concepção mais apertada, a primazia hermenêutica, ainda que não estejam em jogo os problemas relativos à distribuição de competência impositiva. Não é, como visto, a opção mais adequada, pelo que poderá trazer problemas ao intérprete.
Destaca-se, ainda sobre a utilização, pelo direito tributário, de conceitos e institutos de outros ramos do direito, que, segundo Becker,(37) a regras jurídicas que dispõem sobre as relações jurídicas tributárias podem ser organicamente enquadradas em um único sistema que constitui o ordenamento jurídico emanado de um Estado. Dessa homogeneidade decorre a consequência de que a regra tributária, ao fazer referência a conceito ou instituto de outro ramo do direito, assim o faz aceitando o mesmo significado jurídico daquela expressão, no momento em que ela entrou para o mundo jurídico naquele outro ramo do direito. Fica claro, portanto, que o art. 110 do CTN é dispensável, porque traz regra ínsita à própria construção de um ordenamento jurídico lógico e coerente.
Nesse diapasão, é mister analisar, por último, o que dispõe o art. 111 do CTN:
“Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:
I – suspensão ou exclusão do crédito tributário;
II – outorga de isenção;
III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.”
Esse dispositivo, como se pode observar, determina que, entre outras, a legislação tributária que disponha sobre outorga de isenção deverá ser interpretada literalmente. Sucede que, como cediço, qualquer regra isentiva deve ser interpretada como base na sua finalidade, pelo que se torna impraticável interpretar literalmente, e não sistematicamente, uma regra de isenção. Em outras palavras, não se pode, sob o argumento de que isenções devem ser interpretadas literalmente, excluir determinado contribuinte do âmbito de incidência da regra isentiva quando, se se atentasse para a finalidade da norma, fosse possível beneficiá-lo. Não é possível, pois, interpretar literalmente dispositivos que mandam interpretar literalmente.
Nessa perspectiva, ressalta-se que o STF reconheceu a repercussão geral da questão constitucional debatida no RE 330.817/RJ, em que se discute a possibilidade de extensão da imunidade prevista no art. 150, VI, d, da Constituição Federal aos chamados livros eletrônicos (e-books). Trata-se de um caso em que é possível vislumbrar, de forma clara, a perversidade da interpretação literal, conforme preconiza o art. 111, II, do CTN, tendo em vista que, se adotada, ela excluirá do âmbito de incidência da imunidade referidos produtos.
Isso porque a corrente restritiva, conforme destacou o Ministro Dias Toffoli em seu voto,(38) possui um viés literal, defendendo que a imunidade alcança somente aquilo que puder ser compreendido na expressão “papel destinado à sua impressão”. Segundo os entusiastas dessa corrente, ao tempo da promulgação da Constituição Federal, já existiam outros meios de difusão da cultura, tendo o constituinte originário optado por contemplar somente o papel na norma imunizante. Assim, estender a benesse para outras hipóteses desvirtuaria a vontade expressa do legislador constituinte.
Tal posicionamento deve ser rechaçado de plano. Isso porque, interpretando-se a norma constitucional com base na sua finalidade (e não restritivamente, como determina o CTN), percebe-se que o foco da desoneração não é o suporte, mas a difusão das obras literárias e afins. A intenção do constituinte originário, ao editar referida norma, foi dar efetivação aos princípios da livre manifestação do pensamento e da livre expressão da atividade intelectual, difundindo, assim, o livre acesso à cultura e à informação. Diante disso, é certo que a imunidade do art. 150, VI, d, da CF deve ser estendida aos livros eletrônicos e a todo e qualquer meio de transmissão de ideias que cumpra função similar.
Destaca-se, ainda, que, de acordo com Torres,(39) quando o art. 111 do CTN prescreve a interpretação literal de isenções, ele apenas está impedindo, em homenagem ao postulado da legalidade, o recurso à analogia e à equidade, como formas de integração, mas não impõe qualquer método específico de interpretação. Essa seria a única leitura plausível do artigo, na medida em que, da forma como está atualmente redigido, ele tem causado diversos problemas ao intérprete – que se vê compelido a utilizar a interpretação literal – e ao contribuinte – que corre o risco de ser indevidamente excluído da incidência de determinada norma isentiva.
Diante de todo o exposto, está claro que os dispositivos do Código Tributário Nacional atinentes à interpretação e à integração da legislação tributária precisam ser, no mínimo, revistos, quiçá extirpados do ordenamento jurídico. Eles representam uma doutrina hermenêutica ultrapassada e conservadora, desatualizada e desconectada com a conjectura interpretativa atual, o que denota a sua inutilidade. Trata-se de mudança que deve ser levada a efeito o mais brevemente possível, a fim de que os diversos atores da lide tributária, seja ela administrativa, seja ela judicial, possam vislumbrar um contexto de maior segurança jurídica.
Conclusão
Ante tudo o que foi exposto, é possível tecer alguns comentários conclusivos a respeito do tema proposto. Ei-los:
(a) O direito tributário é ramo da ciência jurídica que não possui, em relação à hermenêutica, diferenças substanciais dos demais ramos do direito, razão pela qual a interpretação das regras jurídicas tributárias não detém especialidades.
(b) O conceito tradicional de interpretação jurídica – de que ela consistiria na reconstrução do pensamento ínsito da lei e no esclarecimento dos elementos jurídicos substanciais já existentes – encontra-se superado.
(c) Atualmente, interpretar é descrever, decidir e criar. Trata-se, assim, de atividade complexa, tendo em vista que envolve processos distintos, submetidos a critérios de objetividade diversos.
(d) A interpretação, além de ser uma atividade descritiva, decisionista e criativa, utiliza como base argumentos linguísticos, históricos, genéticos, teleológicos, sistemáticos, e consequencialistas, mediante técnicas e regras de prevalência entre os argumentos trazidos à baila pelo intérprete. Portanto, a interpretação deve utilizar os métodos interpretativos como ferramentas na construção dos significados.
(e) As normas previstas no Capítulo IV do Título I do Livro Segundo do Código Tributário Nacional, as quais dispõem sobre a interpretação e a integração da legislação tributária, são ambíguas, insuficientes e redundantes, porque carentes elas próprias de interpretação. Além disso, tais normas são inválidas, pois têm sua eficácia comprometida pelo caráter ideológico que possuem, e por terem sua legitimidade conspurcada pelo desequilíbrio que introduzem nos sistemas de valores jurídicos e dos poderes estatais.
(f) Os dispositivos do Código Tributário Nacional atinentes à interpretação e à integração da legislação tributária precisam ser, no mínimo, revistos, tendo em vista que representam uma doutrina hermenêutica ultrapassada e conservadora, desatualizada e desconectada com a conjectura interpretativa atual. Com efeito, o direito tributário não pode ficar alheio às modificações na interpretação jurídica ocorridas nas últimas décadas.
(g) Propõe-se, enquanto tais disposições não forem modificadas, que o intérprete utilize, no desempenho da sua atividade, os métodos interpretativos aplicáveis às demais normas jurídicas, bem como os modelos neoconstitucionalistas, principalmente a força normativa dos princípios. Recomenda-se, ainda, que, ao utilizar tais métodos, o intérprete tenha como norte a segurança jurídica, privilegiando aqueles sentidos do texto a ser interpretado que mais se coadunem com referido postulado.
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WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995.
Notas
1. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007. p. 171.
2. VIGO, Rodolfo Luis. Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XIX às novas perspectivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 37-38.
3. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 314-315.
4. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 110-112.
5. ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 178.
6. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 52.
7. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2011. p. 461.
8. FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 67.
9. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 1.
10. STRECK, Lênio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 323.
11. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 252.
15. WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995. p. 38.
24. TORRES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do direito tributário. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 317.
38. Documento disponível no endereço eletrônico: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=2848329>. Acesso em: 26 ago. 2014.
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