Considerações acerca do testamento conjuntivo (análise do artigo 1.863 do Código Civil)

Autor: Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz

Desembargador Federal do TRF da 4ª Região, Diretor da Escola da Magistratura (Emagis) do TRF4

publicado em 27.02.2015


Le testament, en soi, tient ses droits de l’équité naturelle, il est la conséquence et le complément du droit de propriété; il est la consolation du père de famille, et répond aux besoins d’un coeur d’une épouse, le mérites d’un fils, les services d’un ami. Un peuple n’est pas libre s’il n’a pas le droit de tester, et la liberté du testament est l’une des plus grandes preuves de sa liberté civile.

M. Troplong, in Droit Civil expliqué: des testaments, Paris, 1855, Tomo 1º, p. CL-CLI.

Dispõe o artigo 1.863 do Código Civil brasileiro, nos mesmos termos que o diploma de 1916, que é proibido o testamento conjuntivo, seja simultâneo, recíproco ou correspectivo.

Acerca do alcance do citado dispositivo legal, escreveu a ilustre professora da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a eminente jurista Maria Helena Diniz, verbis:

“Proibição de testamento conjuntivo. Devido ao caráter personalíssimo do testamento, vedado está testamento conjuntivo, ou seja, ninguém poderá, juntamente com outrem, mesmo sendo marido e mulher, dispor, em um só instrumento, de seus bens (RT, 134:111). A proibição de testamento conjuntivo, seja ele simultâneo, recíproco ou correspectivo, dá-se por ser inadmissível o pacto sucessório em nosso direito. Nada impede que marido e mulher (JB, 162:259), em instrumentos diferentes, na mesma data, deixem bens um para o outro (RF, 140:328; RT 787:189, 150:652 e 165:680; JTJ, 264:280, 149:116; EJSTJ, 2:47 e 84).

Testamento simultâneo. O testamento simultâneo ou de mão comum ocorre quando dois testadores, no mesmo ato, beneficiam, conjuntamente, terceira pessoa.

Testamento recíproco. No testamento recíproco, os testadores, em um só ato, beneficiam-se mutuamente, instituindo herdeiro o que sobreviver.

Testamento correspectivo. No testamento correspectivo, os testadores efetuam, em um mesmo instrumento, disposições testamentárias em retribuição de outras correspondentes.”(1)

O testamento conjuntivo, no dizer da melhor doutrina, é aquele em que duas ou mais pessoas, mediante um único instrumento, fazem disposições de última vontade acerca de seus bens.

A proibição do testamento conjuntivo, lembra Epitácio Pessoa,(2) em todas as suas modalidades, tem justificativa pela cláusula de quase absoluta irrevogabilidade que implicitamente o acompanha e, por conseguinte, não se concilia com a natureza dos atos de última vontade, motivo pelo qual tem sido banido na generalidade dos códigos, desde o velho direito português, como a Ord. L. 4, T. 80, que regulou a forma dos testamentos e dele não cogitou.

Desde a vigência do artigo 1.630 do diploma de 1916, muito se tem discutido sobre a proibição ali constante, uma vez que a maioria dos juristas interpreta o artigo 1.863 do Código Civil como somente proibindo os testamentos conjuntivos quando celebrados no mesmo ato, ou seja, uno contextu, e não quando realizados em instrumentos diversos.

A propósito, é categórico o saudoso Mestre Pontes de Miranda, quando consigna, verbis:

“Foi proibido o testamento conjuntivo ou de mão comum, feito pelos cônjuges, em que se instituíam herdeiros. Se um vinha a testar de modo diferente, ou com revogação do testamento de mão comum, o outro era atingido no que concernia ao ato do outro cônjuge.

A proibição, explícita no art. 1.630 do Código Civil, não se estende aos atos dos cônjuges que em testamentos separados e sem a ligação vedada se beneficiam reciprocamente. Aí, a reciprocidade é apenas ocasional, a despeito dos entendimentos prévios. Nenhum deles se privou da liberdade de testar. Se um revoga a cláusula de liberalidade ao outro, o que o outro dispusera persiste, sem qualquer repercussão no testamento posterior.”(3)

Nessa linha de compreensão, Carlos Maximiliano, em sua festejada obra Direito das sucessões, sinala, verbis:

“O testamento conjuntivo, ou de mão comum (dois atos, de marido e mulher, reunidos em um só), está explicitamente vedado pelo Código Civil, art. 1.630. Tal proibição não impede que duas pessoas combinem o modo de dispor dos seus bens, desde que o façam em atos separados; é lícito estabelecerem tanto a reciprocidade do benefício como a simultaneidade, isto é, uma deixar a fortuna para a outra, ou as duas para um terceiro. Em tal hipótese, entretanto, há de conservar cada testador a sua plena liberdade de ação; quando um só revoga a sua liberdade, a do outro prevalece; apenas, se dispôs Lívio a favor de Públio e este em prol daquele unicamente, a morte do primeiro torna caduco o testamento do sobrevivo. A jurisprudência francesa até admite os dois atos na mesma folha de papel (hológrafos), um antes, no anverso, outro depois, no reverso.”(4)

Da mesma forma, Itabaiana de Oliveira, verbis:

“O Código Civil, no art. 1.630, proibiu o testamento conjuntivo, ou de mão comum, seja simultâneo, recíproco, ou correspectivo; sem obstar, entretanto, que, em atos separados, os cônjuges façam liberalidades recíprocas ou mútuas, ou em favor de terceiros.”(5)

Desse entendimento não discrepa Ferreira Alves, autor do Direito das Sucessões no clássico Manual do Código Civil brasileiro organizado por Paulo de Lacerda, verbis:

“A proibição da lei compreende unicamente o testamento feito por duas ou mais pessoas no mesmo ato, não impede que duas ou mais pessoas convenham, cada uma por sua parte, dispor de seus bens, a favor de um terceiro, ou em favor de um e de outro, ficando cada um legalmente com o direito de revogar seu testamento, quando parecer conveniente.”(6)

O saudoso Professor Washington de Barros Monteiro, ao discorrer sobre as formas de testamento na prestigiada Enciclopédia Saraiva de Direito, após referir autorizada doutrina, bem explicita o seu pensamento acerca da quaestio juris, verbis:

“No art. 1.630, de modo terminante, o Código proscreve o testamento conjuntivo, seja simultâneo, recíproco ou correspectivo. Pelo primeiro, os testadores, em um só ato, uno contextu, dispunham conjuntamente em favor de terceira pessoa; pelo segundo, eles se beneficiavam mutuamente, sendo herdeiro o que sobrevivesse; pelo terceiro, finalmente, os testadores efetuavam disposições em retribuição de outras correspondentes.

O Código proibiu indistintamente todas essas disposições, não só porque constituíam modalidades de pactos sucessórios, como também porque contrariavam um dos caracteres irredutíveis do testamento, sua revogabilidade. Efetivamente, em um testamento recíproco, admitir a revogação será ir de encontro à reciprocidade estipulada; não admiti-la será desnaturar a índole de ato essencialmente revogável. Todavia, em alguns países, como a Alemanha, a Suécia, a Inglaterra e muitos Estados dos EUA, são permitidos e bastante comuns testamentos conjuntivos, efetuados por marido e mulher.

É válido, porém, testamento de mão comum (ou mancomunado), anterior ao CC, embora o testador venha a falecer na vigência deste (tempus regit actum).

Cumpre acrescentar ainda, nessa ordem de ideias, que não incidem na proibição legal testamentos de duas pessoas, feitos na mesma data, em termos semelhantes e no mesmo tabelião, deixando os bens um para o outro. Tais testamentos não se consideram conjuntivos, pois cada um deles, isoladamente, conserva a própria autonomia.”(7)

A seu turno, Carlos Roberto Gonçalves, em seu já consagrado Direito Civil brasileiro, em sua última edição, ensina, verbis:

“Nada impede que o casal, desejando testar simultaneamente, compareça ao Cartório de Notas e ali cada qual faça o seu testamento, em cédulas testamentárias distintas. É vedada somente a confecção conjunta por marido e mulher, no mesmo testamento. Elaborando-os separadamente, ainda que na mesma ocasião e perante o mesmo tabelião, podem deixar os bens um para o outro. Nesse caso, os testamentos não são considerados conjuntivos, pois cada qual conserva a sua autonomia.”(8)

Diverso não é o caminho seguido pela doutrina estrangeira, notadamente ao interpretar o artigo 968 do Código de Napoleão, monumento legislativo que já completou o seu bicentenário.

Em seus comentários ao Código Civil francês, Théophile Huc aduziu, verbis:

L’art. 968 ne s’oppose pas d’ailleurs à ce que deux personnes s’entendent pour faire simultanément des dispositions testamentaires au profit l’une de l’autre ou d’un tiers, ni même à ce qu’elles écrivent leur testament sur la même feuille de papier, pourvu qu’elles forment des actes séparés.(9)

Aubry et Rau anotam, verbis:

Un testament ne peut renfermer que les dernières volontés d’un seul individu. Tout testament, par lequel plusieurs personnes auraient simultanément fait des dispositions de dernière volonté, serait nul, soit qu’elles eussent réciproquement disposé l’une au profit de l’autre, soit qu’elles eussent disposé au profit d’un tiers. Art. 968 et 1001.

Mais rien n’empeche que plusieurs personnes ne fassent, en faveur l’une de l’autre, par des acts séparés, quoique rédigés au même moment, des dispositions réciproques de dernière volonté.(10)

Baudry-Lacantinerie, em seu consagrado tratado de Direito Civil, conclui, verbis:

Pour qu’il y ait lieu à l’application de l’art. 968, il faut que deux ou plusieurs personnes aient testé dans un seul et même acte, c’est-à-dire dans un contexte unique, de telle sorte que les dispositions faites par les divers testateurs se trouvent enchevêtrées les une dans le autres et ne forment qu’un seul et même testament.

(...)

1853. Mais dès qu’il n’y a pas un contexte unique, dès que les testaments ne sont pas contenus dans un seul et même acte, la règle de l’art. 968 cesse d’être applicable.(11)

No mesmo sentido, Zachariae, verbis:

Deux ou plusieurs personnes ne peuvent faire leur testament par un seul et même acte, soit au profit d’un tiers, soit à titre de disposition mutuelle et réciproque, art. 968. L’acte testamentaire qui contiendrait les déclarations de dernière volonté de deux ou plusieurs personnes serait donc absolument nul, art. 1001. Mais rien n’empêche deux ou plusieurs personnes de tester en même temps, pourvu que ce soit par des actes distincts, au profit l’une de l’autre, ou toutes le deux au profit d’un tiers.(12)

Nesse sentido, ainda, expressiva é a doutrina, nacional e estrangeira: J. M. de Carvalho Santos, in Código Civil interpretado. 9. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1964. v. XXII. p. 421; René Savatier, in Cours de Droit Civil. 10. ed. Paris: L.G.D.J., 1951. p. 509. n. 1.011; Domenico Barbero, in Sistema istituzionale di Diritto Privato italiano. 2. ed. Torino: Unione Tipográfico, Torinese, 1949. v. II. p. 920-1. n. 1.115; Leão Vieira Starling, in Inventários e partilhas. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1957. p. 300-1. n. 92; Caio Mario da Silva Pereira, in Instituições de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 154. n. 547; Luiz da Cunha Gonçalves, in Tratado de Direito Civil. 1. ed. brasileira, anotada por H. Dantas de Freitas. São Paulo: Max Limonad. v. IX. Tomo II. p. 655-6. n. 1.366, “c”; A. Colin/H. Capitant, in Cours élémentaire de Droit Civil. 4. ed. Paris: Dalloz, 1925. Tomo 3º. p. 843; Henri y Léon Mazeaud, in Leciones de Derecho Civil. Traduzido por Alcalá-Zamora y Castillo. Buenos Aires: EJEA, 1965. Parte cuarta. v. II. p. 354-5. n. 966; Vittorio Polacco, in Delle successioni. Roma: Athenaeum, Società Editrice Romana, 1928. Tomo I. p. 143-4; Roberto de Ruggiero, in Istituzioni di Diritto Privato. 8. ed. Milano: Giuseppe Principato, 1952. v. 1º. p. 457-8; Emidio Pacifici-Mazzoni, in Codice Civile italiano commentato: Trattato delle Successioni – parte prima. 4. ed. Firenze: Fratelli Cammelli, 1905. v. II. p. 69; Calogero Gangi, in La successione testamentaria. Milano: Giuffré, 1947. v. I. p. 52; Alberto Trabucchi, in Istituzioni di Diritto Civile. 32. ed. Cedam-Padova, 1991. p. 782; F. Laurent, in Principes de Droit Civil français. 3. ed. Bruxelles: Bruylant, 1878. Tomo 13. p. 153-4. n. 146; V. Thiry, in Cours de Droit Civil. Liége: H. Vaillant-Carmanne, 1892. Tomo II. p. 384. n. 393.

A par da doutrina, nessa linha de pensamento orienta-se a jurisprudência dos nossos tribunais.

Assim, deliberou o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão proferido no dia 20 de março de 1944, consoante consta de sua ementa, verbis:

“TESTAMENTO – Disposições contemporâneas feitas pelo casal, constituindo-se legatários recíprocos – Se incorrem na proibição constante do art. 1.630 do Código Civil.

O dispositivo do art. 1.630 do Código Civil, segundo a melhor doutrina, não obsta a que duas pessoas, em atos separados, embora na mesma data e nos mesmos termos, disponham em proveito recíproco. O que é essencial é que procedam com inteira independência de vontades e conservem plena liberdade de ação no presente e para o futuro.

Nº 21.597 – Capital – Apelante: D. Judite Fernandes Oliveira Souza, assistida de seu marido – Apelada: D. Maria da Conceição Fernandes – (1º ofício).”(13)

No corpo do julgado, destaca-se, verbis:

“O testamento impugnado não incidiu, manifestamente, na proibição do artigo 1.630 do Código Civil, porque, conforme anotam Carlos Maximiliano (Sucessões, nº 366) e Carvalho Santos (Cód. Civil anotado), o dispositivo em apreço, segundo a melhor doutrina, não obsta a que duas pessoas, em atos separados, embora na mesma data e nos mesmos termos, disponham em proveito recíproco. O que é essencial é que procedam com inteira independência de vontade e conservem plena liberdade de ação no presente e para o futuro. E, na espécie, tudo está a indicar que os testadores, marido e mulher, sem embargo de terem testado no mesmo dia e estabelecido benefícios recíprocos, legando um ao outro a respectiva meação disponível, agiram livre e independentemente, de forma que a vontade do falecido pai da autora deve ser respeitada.”(14)

Em julgamento concluído em maio de 1994, decidiu o Egrégio Supremo Tribunal Federal, verbis:

“Recurso extraordinário. Testamentos públicos, em instrumentos distintos e sucessivos, feitos por marido e mulher, na mesma data, no mesmo local e perante as mesmas testemunhas e tabelião. 2. Testadores casados pelo regime de comunhão universal de bens sem descendentes, que legaram, nos testamentos aludidos, um ao outro, a respectiva meação disponível. Cada qual, na cédula testamentária própria, estipulou que, por falta do legatário instituído, a parte disponível se destinaria aos irmãos e sobrinhos por consanguinidade. 3. Ação declaratória de nulidade dos referidos testamentos, alegando-se infringência ao art. 1630 do Código Civil, que proíbe o testamento conjunto, seja simultâneo, recíproco ou correspectivo. 4. Recurso extraordinário, por negativa de vigência do art. 1630 do Código Civil. 5. Não ocorreu, no caso, testamento conjuntivo, uno contextu, ou de mão comum, mas foram feitos dois testamentos em separado, relativamente aos quais o tabelião, com sua fé, certificou, sem qualquer elemento de prova em contrário, a plena capacidade dos testadores e a livre manifestação de sua vontade. 6. Não incidem na proibição do art. 1630 do Código Civil os testamentos de duas pessoas, feitos na mesma data, no mesmo tabelião e em termos semelhantes, deixando os bens um para o outro, pois cada um deles, isoladamente, conserva a própria autonomia e unipessoalidade. Cada testador pode livremente modificar ou revogar o seu testamento. A eventual reciprocidade, resultante de atos distintos, unilateralmente revogáveis, não sacrifica a revogabilidade, que é da essência do testamento. Não cabe, também, falar em pacto sucessório, em se tratando de testamentos distintos. 6. Exame da doutrina e da jurisprudência sobre a compreensão do art. 1630 do Código Civil. Precedentes. 7. O fato de marido e mulher fazerem, cada qual, o seu testamento, na mesma data, local e perante as mesmas testemunhas e tabelião, legando um ao outro a respectiva parte disponível, não importa em se tolherem, mutuamente, a liberdade, desde que o façam em testamentos distintos. Cada um conserva a liberdade de revogar ou modificar o seu testamento. 8. No caso concreto, o acórdão, ao anular dois testamentos feitos em 1936, com atenção às formalidades da lei, fazendo incidir o art. 1630 do Código Civil, relativamente a hipótese não compreendida em sua proibição, negou-lhe vigência. 9. Recurso extraordinário conhecido, por negativa de vigência do art. 1630 do Código Civil, e provido, para julgar improcedente a ação declaratória de nulidade dos referidos testamentos.”(15)

Com efeito, a jurisprudência do Pretório Excelso, desde as épocas mais remotas, cristalizou-se no sentido de que as nulidades das declarações de última vontade só devem ser decretadas em face de evidentes provas de postergação da lei, pois, como escreveu Troplong, há qualquer coisa de sagrado na manifestação de última vontade do testador.

Estas foram as suas palavras, no prefácio do seu clássico tratado, verbis:

La volonté de l’homme, quand elle a été idéalisée par la mort, est une des plus grandes puissances morales de ce monde. Nous voyons dans les livres saints que la bénédiction des patriarches s’étend sur la famille comme un décret venu de Dieu. Partout et dans tous les pays connus, civilisés ou non, les désirs exprimés par le père, dans son moment suprème, parlent plus haut aux enfants recueillis que toutes les lois de l’ordre civil. Le testament de César fit trembler ses ennemis; celui de Louis XVI a condamné ou désarmé les siens, et la dernière larme versée sur la France par l’exilé de Sainte-Helène touche le coeur aussi profondément que les exploits du vainqueur de l’Europe excitent l’admiration.(16)

Ora, o que o artigo 1.863 do Código Civil veda é que alguém teste conjuntamente com outrem, isto é, no mesmo instrumento.

A proibição, conforme já demonstrado, não se refere à substância da disposição recíproca ou simultânea, mas alude, apenas e exclusivamente, à forma externa. Se os cônjuges instituírem-se reciprocamente herdeiros, em instrumentos distintos, na mesma data, o testamento é plenamente válido, não incidindo na sanção do artigo 1.863 da Lei Civil.

A vedação legal abrange tão somente o testamento feito conjuntamente por duas ou mais pessoas, em um mesmo e único ato, por ser inadmissível o pacto sucessório em nosso direito, contrariando essa forma de testar o caráter de revogabilidade que é essencial às disposições testamentárias.

Demonstra lucidamente Roubier, de maneira que se me afigura irretorquível, que a interdição do testamento conjuntivo tem por finalidade assegurar a revogabilidade da declaração de última vontade, e o faz com estas palavras lapidares, verbis:

C’est en effet pour assurer la révocabilité de l’acte testamentaire que les codes modernes ont interdit le testament conjonctif, et c’est là un but qui doit être réalisé, même au regard des testaments en cours: le législateur considère qu’un testament, dans lequel la liberté de révocation n’est pas tout à fait entière, ne répond pas à son concept du testament, et de même qu’il peut ôter leur valeur, sans rétroactivité, à tous les actes en cours de constitution qui ne lui paraissent pas devoir être juridiquement reconnus dans leur contenu et leur effet, de même il retirera aux testaments conjonctifs antérieurs leur valeur par une disposition qui vient prohiber cette manière de disposer.(17)

Minime sunt mutanda, quae interpretationem certam semper habuerunt (Paulo, Digesto, Liv. 1, Tít. 3, Frag. 23).

Notas

1. In Código Civil anotado. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 1.424.

2. In Pareceres jurídicos. ed. rev. e org. pelo INL, Ministério da Educação e Cultura. Rio de Janeiro: 1959. Tomo I. p. 249-250. Nesse sentido, também, os seguintes autores: M. Fréderic Mourlon, in Répétitions écrites sur le Code Civil. Paris: Garniers Frères, 1885. Tomo 2º. p. 417; Hermenegildo de Barros, in Manual do Código Civil brasileiro: do Direito das Sucessões. 2. tir. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1929. v. XVIII. p. 482-4. n. 298; Orosimbo Nonato, in Estudos sobre a sucessão testamentária. Rio de Janeiro: Forense, 1957. v. I. p. 113. n. 67; Paul Roubier, in Les conflits de lois dans le temps. Paris: Recueil Sirey, 1933. Tomo 2º. p. 409-410. n. 115; Clovis Bevilaqua, in Código Civil comentado. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1935. v. VI. p. 91; Henri de Page, in Traité élémentaire de Droit Civil belge. Bruxelles: Émile Bruylant, 1947. Tomo 8º. v. II. p. 934 e seguintes; Nicola Stolfi, in Diritto Civile. Torino: UTET, 1934. v. 6º. p. 458. n. 1.028; Louis Josserand, in Cours de Droit Civil Positif français. Paris: Sirey, 1940. v. 3. p. 788. n. 1.293.

3. In Tratado de Direito Privado: parte especial. 3. ed., reimp. Rio de Janeiro: Borsoi, 1973. Tomo LVIII. p. 336. § 5.856.

4. In Direito das Sucessões. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958. v. I. p. 396. n. 366.

5. In Tratado de Direito das Sucessões. 3. ed. Rio de Janeiro: Jacintho, 1926. v. II. p. 18. § 339.

6. In Manual do Código Civil brasileiro: do Direito das Sucessões. 2. ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1928. v. XIX. p. 99-100. n. 32.

7. In Enciclopédia Saraiva de Direito. Saraiva, 1982. v. 73. p. 75-6.

8. In Direito Civil brasileiro: Direito das Sucessões. 8. ed. Saraiva, 2014. v. 7. p. 254. n. 2.

9. In Commentaire theorique & pratique du Code Civil. Paris: F. Pichon, 1894. Tomo 6º. p. 339-340. n. 267.

10. In Droit Civil français. 5. ed. Paris: Libr. Générale de Jurisprudence, 1918. Tomo 10. p. 611. § 667.

11.. In Traité theorique et pratique de Droit Civil. 3. ed. Paris: Libr. de La Société Générale des Lois e des Arrêts, 1905. Tomo 10. p. 19. n. 1.852-3.

12. In Le Droit Civil français. Traduzido por G. Massé et Ch. Vergé. Paris: Auguste Durand, 1857. Tomo 3º. p. 81. § 431.

13. In Revista dos Tribunais, v. 150, p. 652.

14. In Op. cit., p. 652. Nesse sentido, também, julgado do mesmo tribunal, in RT165/682, e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, in Arquivo judiciário, v. 75, p. 436.

15. RE nº 93.603-GO, rel. Ministro Néri da Silveira, in RTJ 156/940-941. Anteriormente, o STF já havia julgado questão idêntica no RE nº 16.045-MG, rel. Ministro Orosimbo Nonato, in Arquivo judiciário, v. 96, p. 315.

16. In Droit Civil expliqué: des donations entre-vifs et des testaments. Paris: Charles Hingray, 1855. Tomo 1º. p. CLI.

17. In Op. cit., Tomo 2º. p. 409-410. n. 115.




Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., fev. 2015. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS