A separação de poderes e a tutela dos direitos sociais

Autor: Tiago do Carmo Martins

Juiz Federal, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da Univali

publicado em 27.02.2015



Resumo

Desde o início do século XX, os ordenamentos nacionais passaram a contemplar direitos sociais, movimento que se intensificou no segundo pós-guerra. No entanto, a enunciação dessa gama de direitos não foi acompanhada suficientemente dos correlatos instrumentos de garantia. O princípio clássico da tripartição de poderes dá mostras de insuficiência para responder a direitos como saúde, educação, trabalho, previdência e assistência social, porquanto a concentração da gestão desses direitos em órgãos da burocracia estatal finda por relegar primordialmente à discricionariedade política sua efetivação. Assim, impende analisar, a partir da doutrina de Luigi Ferrajoli e de exemplos trazidos pelo constitucionalismo latino-americano, novos mecanismos de garantia dos direitos sociais.

Palavras-chave: Separação de poderes. Estado Social. Direitos sociais. Instituições de garantia. Autonomia e independência. Constitucionalismo latino-americano.

Abstract

Since the early twentieth century, national systems started to contemplate social rights, movement which was intensified in the second postwar. However, the enunciation of this range of rights was not sufficiently accompanied by the related security instruments. The classic principle of tripartite division of powers demonstrates a failure to answer for rights such as health, education, labor, social security and social assistance, because the concentration of the administration of these rights in agencies of state bureaucracy relegates their effectiveness primarily to political discretion. Thus, it is essential to analyze, from the doctrine of Luigi Ferrajoli and examples brought by Latin American constitutionalism, new mechanisms to guarantee social rights.

Keywords: Separation of powers. Social state. Social rights. Guarantee institutions. Autonomy and independence. Latin American constitutionalism.

Introdução

Os movimentos revolucionários do final do século XVIII legaram ao constitucionalismo ocidental o modelo tripartite de separação de poderes, dogma que acabou por ser o arquétipo sobre o qual os Estados passaram a se organizar e que, em um contexto marcado pelos ideais liberais, refratários ao intervencionismo estatal, respondeu suficientemente à tutela dos direitos individuais, para os quais a postura negativa, ou omissiva, do poder público se fazia bastante.

Contudo, o advento do Estado Social e dos direitos sociais que contemplava passou a exigir uma postura ativa dos entes estatais, pois se achavam sob o influxo de satisfazer as prestações positivas garantidas pelos direitos da segunda geração.

Essas prestações, por intuitivo, trouxeram um custo orçamentário nada desprezível e, por consequência, impuseram aos Estados a necessidade de aplicar receitas tributárias nas áreas contempladas pelos direitos sociais, como saúde, educação, trabalho, previdência e assistência social.

O resultado é que se tornou necessário realocar valores para distribuir as riquezas, sendo as classes mais favorecidas chamadas a um esforço contributivo em favor dos indivíduos necessitados daquelas prestações, lançando sobre a classe política a pressão de tomar posições eventualmente indesejadas por setores de seu eleitorado.

Desse modo, a satisfação dos direitos fundamentais, pelo menos os de caráter social, restou sujeita à esfera discricionária da política, muito embora a cogência dos mandamentos constitucionais que os asseguravam.

Esse fenômeno ainda projeta efeitos. A Constituição brasileira de 1988 ostenta uma série de compromissos sociais sem concretude, tais como os relativos à saúde, carentes de um regramento mais explícito acerca dos limites e dos termos de exercício dos direitos dos que deles necessitam; à educação, ainda ofertada pelo poder público em nível precário, pelo menos no que se refere à educação infantil e ao ensino fundamental e médio; e no campo da assistência social e da redução das desigualdades sociais e regionais, em que as políticas de cunho assistencialista, descompromissadas com a superação das causas das carências, são a regra.

Nessa senda, é pertinente questionar a suficiência do modelo clássico de separação de poderes para responder às demandas impostas pelos direitos sociais ao Estado de Direito e a atual submissão dessa gama de direitos fundamentais a critérios exclusivamente políticos, exame que se faz à luz da doutrina de Luigi Ferrajoli sobre a democracia constitucional e também de exemplos legados pelo novo constitucionalismo latino-americano.

1 Separação de poderes

A busca do modelo de governo ideal ocupa os pensadores desde a antiguidade. Daquela época até o Renascimento, era comum a classificação das formas de governo em reino, ou governo de um só, cuja degeneração constituía o despotismo; aristocracia, ou governo de poucos, que poderia se degenerar em oligarquia; e democracia, ou governo de muitos, que tinha como forma degenerada a oclocracia ou anarquia.(1)

Essa organização não se amparava em um documento escrito, tal como a Constituição contemporânea. Na realidade, toda a organização política se baseava no costume, nas tradições e até na força, usada para conquistar novos territórios e constituir novos governos. Era recorrente nos pensadores de então a preocupação com a falta de estabilidade dos governos, fadados que estavam a encontrar suas formas degeneradas.

Na Idade Média, essa forma de organização consuetudinária já era uma noção consolidada, como consolidada era também a percepção de que o equilíbrio governamental haveria de ser encontrado na Constituição Mista Medieval, ideia representativa de acordos, tratados, ajustes históricos e costumes seculares que lastreavam um governo monárquico, exercido com o suporte da nobreza e alguma participação popular (assembleias).

Era uma noção que partia primordialmente da experiência britânica, cuja organização política apresentava uma tripartição nítida, não de poderes de Estado, mas de distribuição da representação, em que a monarquia concentrava as principais funções executivas, mas sofria influxos do Parlamento, no qual se achavam representadas a aristocracia (Lordes) e também o povo (commons).

Em fins do século XVIII, a Constituição Medieval estava dando lugar à Constituição Moderna, marcada pelo retorno à busca de limites ao poder e ao estabelecimento de garantias aos cidadãos. Essa percepção é bem acentuada por Zagrebelsky,(2) ao dizer:

“A constituição da monarquia francesa havia se formado dos contínuos intentos da nação e da nobreza – uma para obter direitos, outra privilégios – e por esforços de grande parte dos reis para impor seu poder absoluto. O objetivo moderno da constituição deveria ter sido justamente o de impedir tudo isso, sujeitando as forças concretas a um esquema de relações predeterminado.”

A ideia contemporânea de Constituição está muito ligada aos movimentos revolucionários do final do século XVIII, especialmente a independência das Treze Colônias do Atlântico Norte e a Revolução Francesa.

Naquele contexto, a França, ainda uma monarquia amparada na Constituição Mista Medieval, achava-se em plena crise do regime monárquico, pressionado pela classe burguesa e pelo povo, sedentos por mais poder (primeira) e mais direitos (segundo).

Os Estados Unidos, a seu turno, viviam um cenário diverso. O ideal era também libertário, mas o foco da opressão não era um estamento social específico, e sim a metrópole inglesa, que desde o outro lado do oceano pressionava a colônia por maior recolhimento de tributos, em um esforço para equilibrar as convalidas finanças, debilitadas após a Guerra dos Sete Anos.

Era esse o contexto em que a Constituição escrita despontava como mecanismo de organização do poder e, especialmente, como instrumento de sua limitação. Havia o reconhecimento da necessidade de que o poder constituísse um freio ao próprio poder,(3) o que seria alcançado com a atribuição das três funções do Estado a órgãos distintos, atribuindo-se a um ramo a função de fazer as leis, a outro a de executá-las e ao terceiro a tarefa de exercer a jurisdição.

Esse modelo de checks and balances visava evitar o absolutismo decorrente da concentração em uma única mão de toda a potestade estatal e garantir o respeito à organização e às prerrogativas de cada ente político, preocupação central no constitucionalismo norte-americano. Ao mesmo tempo, estaria o indivíduo protegido do Estado, pois este deveria agir nos estritos termos da lei criada pelo Legislativo e não poderia atentar contra os direitos individuais outorgados ao cidadão.

2 O Estado Social

Contudo, já no alvorecer do século XX a postura absenteísta do Estado, lastreada nas preocupações exclusivamente individualistas que inspiravam o constitucionalismo, de inspiração eminentemente liberal, passa a dar lugar a um novo comportamento estatal, agora também comprometido com a satisfação de necessidades sociais.

O Estado passa a assumir “responsabilidades organizativas e diretivas do conjunto da economia do país, em vez de simplesmente exercer poderes gerais de legislação e polícia, próprias do perfil do Estado mínimo, como era até então conhecido”.(4)

Essa transformação tem como marco normativo a Constituição do México de 1917 e a de Weimar, de 1919, a qual enunciava, em seu art. 151, que “a vida econômica deve ser organizada em conformidade com os princípios da justiça e a fim de garantir a todos uma existência digna”.

Nasce, assim, o Estado de bem-estar social (Welfare State), caracterizado como “aquele que garante tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todo cidadão, não como caridade, mas como direito político”.(5)

Esse movimento é encampado pelas Constituições italiana de 1948, de Bonn, de 1949, portuguesa de 1976 e espanhola de 1978, que “sancionaron los derechos al trabajo, la salud, la educación, la subsistencia y la seguridad social, como correlativos a la obligación de un papel activo del Estado”.(6)

Entretanto, as novas garantias albergadas no seio do Estado de bem-estar não se fizeram acompanhar, pelo menos em momento inicial, de mecanismos próprios para sua efetivação. É dizer, os novos direitos foram declarados, mas a estrutura estatal, forjada sobre a tradição individualista de inspiração liberal, não sofrera, ao mesmo tempo, alterações de profundidade equivalente.

3 A garantia dos direitos sociais

Os direitos sociais, no constitucionalismo contemporâneo, ostentam a mesma natureza fundamental dos direitos individuais. A Constituição brasileira de 1988, por exemplo, os trata no mesmo título, dedicado aos direitos e garantias fundamentais.

Para além de mero rigor de sistematização, essa constatação é fundamental para clarear o espectro de proteção a ser dedicado aos direitos sociais. Nessa tarefa, é de se recorrer ao magistério de Ferrajoli acerca da “esfera do indecidível”.(7)

Segundo o professor florentino, trata-se de um “conjunto de princípios que, na democracia, estão subtraídos da vontade das maiorias”,(8) espelhando uma noção jurídica, expressa nas constituições rígidas por meio de cláusulas de indecidibilidade absoluta, pondo certas questões a salvo de reforma constitucional; ou de indecidibilidade relativa, casos em que a reforma é possível, desde que observado procedimento mais rígido.

Esses princípios são, em essência, limites e vínculos impostos ao poder público, inclusive ao Poder Legislativo, que assumem o caráter de princípios jurídicos atestadores da legitimidade ou da invalidade da ação estatal, indo muito além da mera função de legitimação política das suas ações.

Entretanto, além de delimitar o que não pode ser decidido, esse espectro do indecídivel revela uma outra face, caracterizada pelas questões que devem ser decididas pelo Estado. Como preleciona Ferrajoli(9):

La primera esfera es de las prohibiciones, esto es, la de los limites negativos impuestos a la legislación en garantia de los derechos de liberdad; la segunda es de las obligaciones, es decir, de los vínculos positivos igualmente impuestos a la legislación en garantia de los derechos sociales.”

O conjunto das duas esferas, do que não pode ser decidido e do que deve ser decidido, corresponde ao conjunto das garantias dos direitos constitucionalmente estabelecidos, dirigidas a assegurar sua efetividade, projetando-se diante dos poderes constituídos, mas também em face dos poderes privados, constituindo limites à autonomia negocial. É, pois, a faceta operativa do garantismo.(10)

Desse modo, se a Constituição garante, como faz a brasileira de 1988, “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria” (art. 208, I); ou o direito à saúde, enunciado como “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art. 196); está, ao mesmo tempo, ordenando ao Estado uma conduta e criando prerrogativas em face do cidadão.

Frisa-se, não há mera enunciação de programas, relegados à fluidez da discricionariedade político-administrativa. Há, isto sim, a imposição de uma obrigação ao Estado, que, uma vez inadimplida, marca a omissão com a pecha da inconstitucionalidade.

No entanto, ainda que em relação a isso inexista maior celeuma, são incipientes os mecanismos de garantia dos direitos sociais, especialmente em virtude da timidez dos remédios constitucionais para tais inconstitucionalidades, do que constitui exemplo o mandado de injunção, tradicionalmente jungido a constituir em mora o poder omisso em regulamentar a fruição de direito fundamental.(11)

4 Insuficiência do aparato estatal para efetividade dos direitos sociais

Contudo, mais efetivo que os mecanismos repreensivos da inconstitucionalidade por omissão seria o redesenho da máquina administrativa, de modo a eliminar as causas primeiras de tais omissões, o que seria possível por meio da diminuição da esfera de discricionariedade dos entes encarregados de satisfazer os direitos sociais, mediante um replanejamento orgânico das instituições encarregadas desse mister.

Nessa senda, propõe Ferrajoli(12) uma revisão da clássica teoria tripartite de separação dos poderes, por meio da identificação de funções e instituições de garantia, destinadas a dar cumprimento aos direitos inseridos na esfera do indecidível; e de funções e instituições de governo, cujo espectro de atuação reside nas questões afetas à esfera do que deve ser decidido.

As funções e as instituições de garantia devem ser dotadas de independência e autonomia administrativa, legitimadas unicamente pela lei e comprometidas com a tutela de direitos individuais. Como preleciona Ferrajoli, “además de las funciones e instituciones judiciales, también las administrativas de garantía, igualmente legitimadas por la aplicación substancial y no por el simples respecto a la ley”.

A independência que devem ostentar se justifica na sua finalidade precípua de aplicação da lei, uma vez que “son poderes de cognición, legitimados en cuanto tales por la aplicación de la ley, o sea por la observancia de los pressupuestos legales de las decisiones, sean judiciales o administrativas”.(13)

Tal o caminho apontado pelo professor italiano para evitar os inconvenientes de se relegar o trato dos direitos sociais como, por exemplo, educação, saúde e seguridade social à esfera da burocracia ordinária que marca o Poder Executivo, mais permeável aos influxos das conveniências políticas.

Esse pensamento é complementado por Ferrajoli em outro estudo, no qual assevera(14):

Un derecho social podrá ser garantizado de manera tanto más igualitaria, plena, simple e eficaz en el plano jurídico, tanto menos costosa en el económico y tanto más a cubierto de la discricionalidad político-administrativa y, con ello, de la selectividad y de la corrupción que la misma alimenta, cuanto más se reduzca la intermediación burocrática requerida para su satisfacción, y mejor todavia si ésta llegara a eliminarse mediante el establecimiento de una garantia ex lege, igual para todos y prestada en forma tendencialmente gratuita.”

Já as funções e instituições de governo, jungidas à esfera do que deve ser decidido, têm por escopo a tutela de interesses gerais, haurindo fundamento na representação política, expressa pelo voto popular. A elas se reserva a fundamental tarefa de implementar as instituições de garantia, “es decir, su creación y su regulación en acatamiento del mandamento constitucional: en acatamiento, precisamente, de la obligación de producir una legislación de actuación de los derechos e sus garantías”.(15)

Desse modo, à política remanesce a prerrogativa basilar de criar e implementar os órgãos que irão garantir os direitos sociais, dotando-os dos instrumentos normativos e financeiros para tanto necessários. Mas, embora basilar, não se pode olvidar que sua função é instrumental, fadada a dar cumprimento aos direitos fundamentais circunscritos na esfera do indecidível. Daí a advertência de Ferrajoli(16):

Antes de la creación de las constituciones rígidas, en el Estado legislativo de derecho, la política, como expressión de la mayoria, era de todo omnipotente. Las constituciones rígidas han puesto fin a este residuo de absolutismo. La política, gracias a ellas, há sido sometida al derecho y precisamente a la esfera de lo indecidible, imponiendo que esté regida por dunciones de garantia independientes.”

Com efeito, é inconteste que em democracias menos avançadas a tutela dos direitos sociais não encontra a efetividade desejada. No entanto, no que tange às fórmulas aptas a combater esse déficit de efetividade, ainda não há nem princípio de consenso.

Nessa senda, as ideias de Ferrajoli podem representar um bom começo. Mesmo que a ciência jurídica não forme consenso, ou que as instâncias políticas não considerem que seja possível ou desejável a redefinição da separação de poderes, há na doutrina do mestre italiano uma importante convocação à reflexão, que tem por centro a constatação de que o modelo atual, de submissão primordial da tutela dos direitos sociais à discricionariedade política, está esgotado.

5 Algumas experiências latino-americanas

A experiência constitucional que se formou em alguns países latino-americanos desde a década de 1990 revela traços de identificação com o redesenho da organização de poderes proposta por Ferrajoli.

São variados os exemplos de nações que, desde o início dos anos 1990, passaram a instituir nas suas cartas constitucionais instituições destinadas a dar maior efetividade aos direitos sociais, algumas com redefinição mais profunda da separação de poderes, outras sem mexer na tradicional tripartição, mas com agregação de novos entes, dotados de autonomia e independência equiparáveis aos fruídos pelos tradicionais poderes de Estado.(17)

O exemplo mais marcante advém da Venezuela, cuja Constituição de 1999 divide o poder em cinco branches, consoante se vê em seu art. 136: “El Poder Público Nacional se divide en Legislativo, Ejecutivo, Judicial, Ciudadano y Electoral”.

Além dos três poderes clássicos, desponta o Poder Cidadão, formado por “la Defensoría del Pueblo, el Ministerio Público y la Contraloría General de la República” (art. 273) e encarregado das tarefas de “prevenir, investigar y sancionar los hechos que atenten contra la ética pública y la moral administrativa; velar por la buena gestión y la legalidad en el uso del patrimonio público” (art. 274).

O mesmo dispositivo acomete a tal poder a tutela do princípio da legalidade na atividade administrativa do Estado e lhe impõe “promover la educación como proceso creador de la ciudadanía, así como la solidaridad, la libertad, la democracia, la responsabilidad social y el trabajo”.

O Poder Eleitoral, completamente dissociado do Poder Judiciário, ostenta o encargo de zelar pela lisura dos pleitos eleitorais, inclusive sindicais, tendo poder normativo regulamentar em sua esfera de competência e atribuições de fiscalização do financiamento das campanhas eleitorais (art. 293).

A Constituição colombiana de 1991 não alterou o modelo de tripartição do poder (art. 113), mas trouxe como mecanismos de garantia dos direitos sociais, por exemplo, um Conselho Eleitoral independente(18) e a vinculação de receitas tributárias à satisfação de específicos direitos sociais,(19) bem como a estipulação de percentuais mínimos de receitas(20) a serem aplicados para satisfação de direitos sociais.(21)

Também o Equador, na Constituição de 2008, acometeu a instituições de garantia independentes o controle e a fiscalização do processo eleitoral (art. 217) e a tutela da legalidade e da probidade na atividade administrativa e na prestação de serviços públicos (art. 204).(22)

A Constituição boliviana de 2009 previu instituição de garantia dos direitos políticos (art. 215) e para a tutela da legalidade e da moralidade na atividade pública (art. 224), além de instituir o Ministério Público (art. 236) e a Defensoria Pública (art. 229), com atribuições de tutela de direitos fundamentais, instituições essas que, aliás, também se acham nas Constituições acima mencionadas.

Dessarte, os exemplos enunciados permitem constatar a preocupação dos referidos Estados com a maior efetividade dos direitos sociais, expressa na criação de instituições de garantia destinadas ao cumprimento desse mister.

Os resultados colhidos haverão de ser verificados ao longo do tempo. Contudo, para o sucesso da empreitada, não se pode olvidar ser essencial, além de boa normatividade, a ação humana voltada a tornar as normas operáveis, no que é primordial o respeito ao Direito e aos princípios democrático e republicano.

Considerações finais

É inconteste a necessidade de mecanismos que garantam maior efetividade aos direitos sociais. Passadas mais de duas décadas da proclamação da Constituição de 1988, o Brasil ainda ostenta severo déficit em satisfazê-los.

Veja-se, por exemplo, o sistema de saúde, que revela filas imensas e atendimento de pacientes nos corredores de hospitais. O acesso universal e integral declarado pela Constituição, por falta de regulamentação e de instituições com autonomia que as desvincule do emaranhado burocrático, é ainda promessa a concretizar, no mais das vezes só realizável por intermédio do Poder Judiciário.

A Previdência Social, a seu turno, revela severas dificuldades para atender milhões de segurados. Demonstra problemas de custeio, espelhados em sucessivos déficits anuais; de atendimento a segurados, pois o tempo de espera, em especial para marcação de perícias médicas, é, ainda, em muitas agências, superior ao razoável; além de deficiências no próprio resultado final do trabalho realizado, já que parcela significativa de sua atividade é contestada em juízo.(23)

A educação, outrossim, é oferecida de forma precária pelo setor público, o que garantiu ao Brasil a 88ª posição em ranking que avaliou o nível do ensino ofertado em 122 países, elaborado pelo Fórum Econômico Mundial.(24)

Esses exemplos denotam a necessidade de aperfeiçoar a prestação dos direitos sociais pelo Estado. Se é inconteste ser este um dever estatal, o de garantir o acesso aos direitos sociais na forma prevista constitucionalmente, não pode o poder público fazer de conta que realiza tais direitos.

As superestruturas criadas concentram parcela significativa de recursos humanos e materiais na manutenção da burocracia, tantas vezes permeável a práticas ilícitas. Enquanto isso, na realização da atividade final se constata a falta de médicos, professores e demais profissionais para atendimento do cidadão.

A resposta para tornar tais direitos efetivos não reside necessariamente na criação de outros “poderes de Estado”, cada um destinado a satisfazer um direito social enunciado. Passa, isto sim, pela desvinculação da atividade administrativa encarregada de prestá-los da esfera exclusivamente discricionária da política.

Isso seria alcançado com uma disciplina normativa clara que estabelecesse um programa de metas e objetivos a serem alcançados por cada área, acompanhado da criação das instituições encarregadas de satisfazer cada um desses misteres, as quais haveriam de ser dotadas de autonomia orçamentária e independência de atuação em relação às instâncias políticas, comprometidas e legitimadas exclusivamente pelo seu estatuto jurídico próprio.

Os gestores de tais instituições, necessariamente escolhidos por critérios técnicos e com mandato certo, responderiam apenas ao estatuto, pelo que seriam independentes dos influxos burocráticos, mas sujeitos à exclusão, caso não honrados os deveres do cargo e os objetivos institucionais.

À política restaria a essencial tarefa de criar essas instituições e definir sua disciplina legal. Estaria no exercício da esfera do decidível, delimitando o campo operacional da esfera do indecidível. Dito de outro modo, estaria escolhendo o caminho e os meios pelos quais os pontos constitucionais insuscetíveis de negociação política seriam efetivamente garantidos.

Talvez desse modo os direitos sociais se tornem mais protegidos da excessiva discricionariedade política, da burocracia e até mesmo da corrupção.

Referências das fontes citadas

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ZAGREBELSKY, Gustavo. História y Constitución. Madri: Trotta, 2005.

Notas

1. BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Brasília: UNB, 1998.

2. ZAGREBELSKY, Gustavo. Historia e Constitución. Madrid: Trotta, 2005. p. 33.

3. “Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder contenha o poder.” (MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 164)

4. STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 72.

5. Op. cit., p. 79.

6. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris. Teoría del derecho y de la democracia. Traduzido por Perfecto Andre Ibañes, Carlos Bayon, Marina Gascón, Luis Prieto Sanchís e Alfonso Ruiz Miguel. Madrid: Trotta, 2011. v. 2, Teoria de la democracia. p. 381.

7. FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo, p. 102-104.

8. Op. cit., p. 102.

9. Op. cit., p. 103.

10. Aqui, toma-se a expressão garantismo como o estabelecimento de técnicas de garantia idôneas a assegurar o maior grau de eficácia dos direitos constitucionalmente reconhecidos.

11. Ainda que essa tendência, felizmente, pareça estar se invertendo no Brasil desde o julgamento do Mandado de Injunção 721 pelo Supremo Tribunal Federal (STF, MI 721, Relator Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 30.08.2007, DJe-152, divulg. 29.11.2007).

12. FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo, p. 104-109.

13. Op. cit., p. 107.

14. FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris. Teoría del derecho y de la democracia. Traduzido por Perfecto Andre Ibañes, Carlos Bayon, Marina Gascón, Luis Prieto Sanchís e Alfonso Ruiz Miguel. Madrid: Trotta, 2011. v. 2, Teoria de la democracia. p. 386.

15. FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo, p. 108.

16. FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo, p. 108.

17. A Constituição do Brasil de 1988 apresenta instituições que também podem ser classificadas como “de garantia”, por exemplo, o Ministério Público e a Defensoria Pública. No entanto, por ser de momento político anterior e de ciclo distinto das demais aqui mencionadas, segundo classificação proposta por Raquel Z. Yrigoyen Fajardo (FAJARDO, Raquel Z. Yrigoyen. El pluralismo jurídico en la história constitucional latinoamericana: de la sujeción a la descolonización. Disponível em: <HTTP://6ccr.pgr.mpf.gov.br/destaques-do-site/3_RYF_2010_CONSTITUCIONALISMO_Y_PLURALISMO_BR.pdf>. Acesso em: 30 out. 2014); por ser declaradamente lastreada na clássica tripartição de poderes (art. 2º); e por ser o foco central da reflexão ora visada, como pródiga em enunciar direitos sociais, mas ainda carente em concretizá-los, não será objeto de análise pormenorizada neste tópico.

18. “ARTICULO 264. El Consejo Nacional Electoral se compondrá de nueve (9) miembros elegidos por el Congreso de la República en pleno, para un período institucional de cuatro (4) años, mediante el Sistema de Cifra Repartidora, previa postulación de los partidos o movimientos políticos con personería jurídica o por coaliciones entre ellos. Sus miembros serán servidores públicos de dedicación exclusiva, tendrán las mismas calidades, inhabilidades, incompatibilidades y derechos de los magistrados de la Corte Suprema de Justicia y podrán ser reelegidos por una sola vez”.

19. “ARTICULO 336. (...) Las rentas obtenidas en el ejercicio de los monopolios de suerte y azar estarán destinadas exclusivamente a los servicios de salud.
Las rentas obtenidas en el ejercicio del monopolio de licores, estarán destinadas preferentemente a los servicios de salud y educación. (...)

20. Essa medida também é apontada por Ferrajoli como idônea à garantia dos direitos sociais quando fala da insuficiência do controle de constitucionalidade por omissão no cumprimento desses direitos: “Hay una medida que podría asociarse ese control. Me refiero a la introducción en las cartas constitucionales de rígidos vínculos presepuestarios en materia de gasto social mediante la estipulación para cada derecho social constitucionalmente establecido de la cuota mínima de presupuesto del Estado que debe destinarse a su garantia, por exemplo, el 25% a la educación, otro tanto a la seguridad y similares” (FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris. Teoría del derecho y de la democracia. Madrid: Trotta, 2011. v. 2, Teoria de la democracia. p. 388).

21. “ARTICULO 359. (...) 4. El 25% de los recursos del impuesto del valor agregado IVA que se recaude a nivel nacional, se destinarán única y exclusivamente al fortalecimiento de los planes y programas de inversión social en un 13% para los municipios con menos de 25.000 habitantes, un 4% para todos los corregimientos, un 4% para los resguardos indígenas y un 4% para los estratos uno (1), dos (2) y tres (3) de los Distritos y Municipios del país.
Estos recursos destinados según el numeral anterior, se distribuirán en los siguientes sectores así:
Para la salud básica primaria, acueductos, electrificación, alcantarillado domiciliario y hogares comunitarios.
Para educación básica primaria, educación en técnicas agropecuarias y de pesca, reforestación de especies autóctonas, técnicas en tratamientos de ríos, lagunas y ciénagas.
Para créditos agropecuarios, para asistencia técnica y mejoramiento de calidad de vida del campesino.
Para el tratamiento de enfermedades infantiles de alto costo no incluidas en el régimen de salud.
Para desarrollo de planes de vivienda, salud y educación para la población desplazada por la violencia.
Para subsidio de tarifas de energía, acueducto y alcantarillado de los estratos 1, 2 y 3.
Para fortalecer el fondo pensional de los jubilados de las Universidades Públicas, el cual será inembargable.
Para seguridad social y reubicación de vendedores ambulantes y estacionarios.
Para garantizar planes de vivienda y seguridad social para los periodistas y artistas colombianos, definidos en la Ley 25 de 1985, y
Para el deporte.
Para la protección y la asistencia de las personas de la tercera edad, y para la atención especializada que requieran los disminuidos físicos, sensoriales y síquicos. (...)

22. “La Función de Transparencia y Control Social promoverá e impulsará el control de las entidades y organismos del sector público, y de las personas naturales o jurídicas del sector privado que presten servicios o desarrollen actividades de interés público, para que los realicen con responsabilidad, transparencia y equidad; fomentará e incentivará la participación ciudadana; protegerá el ejercicio y cumplimiento de los derechos; y prevendrá y combatirá la corrupción”.

23. O Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) ocupa o primeiro lugar no ranking das organizações públicas e privadas com mais processos no Judiciário Trabalhista, Federal e dos estados, segundo levantamento produzido pelo Conselho Nacional de Justiça em 2013. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/21877:
orgaos-federais-e-estaduais-lideram-100-maiores-litigantes-da-justi
ca>. Acesso em: 14 nov. 2014.

24. Disponível em: <http://www3.weforum.org>. Acesso em: 14 nov. 2014.




Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., fev. 2015. Disponível em:
<>
Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS