Resumo
Este artigo trata da reserva de lei complementar para a regulação das imunidades tributárias, enfocando criticamente a orientação perfilhada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 1.802 MC. Inicialmente, consigna-se que há, de fato, reserva de lei complementar, consagrada pelo art. 146, II, da Constituição da República. Ato contínuo, evidencia-se a inaptidão das leis ordinárias para regular limitações constitucionais ao poder de tributar, porquanto ditas limitações são vocacionadas a subjugar o legislador ordinário, que, por óbvio, não pode conformá-las a seu bel-prazer. Após, procede-se a uma desconstrução da tese da reserva parcial acolhida no julgamento citado, denunciando se tratar do fruto de uma leitura equivocada não só de uma decisão antiga do STF, mas também do entendimento doutrinário. Arremata-se evidenciando a sua insustentabilidade lógica.
Palavras-chave: Imunidades tributárias. Reserva de lei complementar. Regulação. Limites objetivos (materiais) e subjetivos
Sumário: Introdução. 1 Fundamento constitucional da reserva de lei complementar 2 Inaptidão das leis ordinárias para regular limitações constitucionais ao poder de tributar. 3 A indevida distinção entre limites objetivos e subjetivos. 3.1 A incorreta interpretação da decisão proferida no RE 93.770. 3.2 A equivocada leitura do entendimento doutrinário. 3.3 A impropriedade do recurso ao “argumento da dissociação”. 3.4 A insustentabilidade lógica da distinção. Conclusões. Referências bibliográficas.
Introdução
Este artigo versa sobre um tema que, apesar de ostentar elevada relevância teórica e prática, está sendo descurado pela ainda vacilante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: a reserva de lei complementar para a regulação das imunidades tributárias.
Aprecia-se especificamente a questionável limitação da reserva aos “lindes objetivos” das imunidades, a fim de denunciar a sua manifesta impropriedade e, assim, incitar a revisão do entendimento que vem sendo esboçado pela Suprema Corte.
Para tanto, indica-se o fundamento constitucional da reserva de lei complementar (Capítulo I), denuncia-se a inaptidão das leis ordinárias para regular limitações constitucionais ao poder de tributar (Capítulo II) e aborda-se criticamente a orientação esboçada pela Pretório Excelso no julgamento da ADI 1.802 MC (Capítulo III).
1 Fundamento constitucional da reserva de lei complementar
A regulação das imunidades constitui matéria reservada à lei complementar, por força do estabelecido no seu art. 146, II, da Constituição da República.
Este dispositivo constitucional dispõe caber à lei complementar “regular as limitações constitucionais ao poder de tributar”.
Pode haver dúvidas sobre quais são as limitações específicas a que o art. 146, II, da Carta Política se refere, mas não quanto ao fato de as imunidades estarem por ele abrangidas, haja vista constituírem o caso central, o exemplo mais nítido e emblemático de limitação constitucional ao poder de tributar.
As imunidades limitam o poder de tributar na sua gênese, rejeitando-o de modo expresso já no plano constitucional. Conjugam-se com as regras atributivas de competência para delimitar o alcance do poder tributário das pessoas políticas. Daí serem denominadas regras de incompetência tributária.
Essa conclusão é corroborada pela organização do texto constitucional, que dedica uma seção específica às “limitações do poder de tributar” (Seção II do capítulo intitulado “Do Sistema Tributário Nacional”) e, no seu artigo inaugural, consagra as imunidades frente a impostos, dentre as quais se destaca a imunidade das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, prevista no art. 150, VI, c, da Carta de 1988.
É verdade que a imunidade das instituições beneficentes de assistência social frente a contribuições de seguridade social (art. 195, § 7º) não consta nessa seção – e sequer dentro do capítulo dedicado a estruturar o “Sistema Tributário Nacional” –, mas isso se deve à opção do constituinte de consolidar a regulação da seguridade social em um capítulo específico, que, consoante a pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não tem o condão de afastar a natureza tributária das contribuições securitárias e tampouco de desqualificar a desoneração veiculada pelo art. 195, § 7º, como uma verdadeira imunidade, tal qual a estabelecida pelo art. 150, VI, c.
Afirma-se constituir matéria reservada à lei complementar com plena ciência da tradicional jurisprudência do STF quanto ao tema – no sentido de que a reserva de lei complementar sempre há de ser expressa, jamais implícita(1) – e do fato de os dispositivos constitucionais citados somente se reportarem aos “requisitos” e às “exigências” da “lei”, sem qualificá-la como complementar.
Como referido, há um preceito constitucional estabelecendo, de modo expresso, a reserva de lei complementar. Se o art. 146, II, da Carta Constitucional já submete, com clareza solar, a regulação das limitações constitucionais ao poder de tributar à reserva de lei complementar, seria visivelmente desnecessário reiterar a reserva em cada preceito que veicule tais limitações.
Situação similar se verifica com o art. 195, § 4º, da CF, que consagra a competência residual da União para instituir novas contribuições de seguridade social, referindo que a “lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social”. Embora esse preceito aluda à “lei”, e não à “lei complementar”, é inquestionável que as novas contribuições devem ser instituídas por esse instrumento legislativo, dada a referência constante no art. 154, I, ao qual o art. 195, § 4º, se reporta.
Essa, aliás, é a orientação subjacente às decisões que reconhecem a existência de reserva de lei complementar para regular os lindes materiais das imunidades, mas a rejeitam no que diz respeito aos “requisitos subjetivos”. A reserva decorre precisamente do art. 146, II, da Carta de 1988.
Está superada, portanto, a tese da inexistência de reserva de lei complementar por falta de adjetivação da lei regulamentadora nos arts. 150, VI, c, e 195, § 7º.(2)
Há, sem dúvida alguma, reserva de lei complementar para a regulação das imunidades tributárias, estabelecida de modo expresso pelo art. 146, II, da Carta da República.
O que cabe analisar não é a existência, mas a extensão da reserva.
É o que se fará a seguir, após evidenciar um fato óbvio, mas de suma relevância para a compreensão do tema: a total inaptidão das leis ordinárias para regular as limitações constitucionais ao poder impositivo estatal.
2 Inaptidão das leis ordinárias para regular limitações constitucionais ao poder de tributar
É facilmente compreensível a razão que fundamenta a reserva de lei complementar para regular as limitações constitucionais ao poder de tributar, consagrada no art. 146, II, da Constituição da República.
Em primeiro lugar, a lei ordinária não pode instituir limites efetivos ao legislador tributário, pelo simples fato de as normas impositivas serem introduzidas no ordenamento jurídico justamente por tal instrumento legislativo.
Limitações autônomas – instituídas pelo ente supostamente “limitado” – não constituem veras limitações. São meras concessões. As limitações constitucionais são restrições heterônomas, estabelecidas por um poder superior, distinto do poder limitado. Constituem postulados impositivos.
Logo, não se pode conceber que o legislador tenha o poder de conformá-las a seu bel-prazer. Se o constituinte fosse deixar a critério do poder tributante a fixação dos requisitos necessários para o gozo da imunidade, à evidência poderia ele criar tal nível de obstáculos que viria a frustrar a finalidade para a qual a imunidade foi inserida na Lei Maior. Como adverte Celso Ribeiro Bastos:
“É que, se ao legislador ordinário fosse outorgado o direito de estabelecer condições à imunidade constitucional, poderia inviabilizá-la pro domo suo. Por esta razão, a lei complementar, que é lei nacional e de Federação, é a única capaz de impor limitações, de resto já plasmadas no art. 14 do Código Tributário Nacional.”(3)
A sabedoria do constituinte ao exigir lei complementar para regular as limitações ao poder de tributar tem sido demonstrada pela insistência com que, na ânsia de atender a objetivos puramente arrecadatórios, são estabelecidos, na legislação tributária (leis e atos normativos infralegais), requisitos voltados a obstaculizar a fruição da garantia constitucional, como a determinação de que a imunidade das entidades beneficentes de assistência social (art. 195, § 7º, da CR/88) somente seja reconhecida mediante a apresentação de “certidão negativa ou certidão positiva com efeito de negativa de débitos relativos aos tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e certificado de regularidade do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS” (art. 29, III, da Lei 12.101/2009).
Em segundo lugar, a regulação das imunidades deve ser uniforme em todo o território nacional, notadamente porque a lei não pode alterá-las e, assim, não faz sentido permitir a existência de regulações díspares para uma mesma imunidade, que implicaria a sua fragmentação em inúmeras imunidades com alcances distintos e denotaria a ação conformadora do legislador com respeito à matéria de status constitucional, que o sujeita e que não está sujeita aos seus desígnios.
O Professor Ives Gandra da Silva Martins defende enfaticamente essa posição:
“(...) se fosse por lei ordinária sua veiculação, poderíamos ter 5.500 definições de imunidade, 5.500 tipos diferentes de regimes jurídicos para conformá-las no concernente às instituições de educação e assistência social, o que não se pode admitir, até para não atribuir atestado de poucas luzes – para não dizer termo pior – ao constituinte. Haveria uma definição de imunidade, conformada na legislação ordinária de cada entidade federativa!!! Nesta hipótese, o constituinte ao invés de ordenar o sistema brasileiro teria ofertado notável contribuição de dessistematização, de geração de caos constitucional.”(4)
Em síntese, as leis ordinárias carecem em absoluto do poder de regular as limitações que a Lei Maior impõe ao legislador tributário. E, por óbvio, carecem do poder de fazê-lo de modo nacionalmente uniforme, em ordem a subjugar a atuação legislativa de todos os entes federativos.
3 A indevida distinção entre limites objetivos e subjetivos
As decisões do Supremo Tribunal Federal inclinam-se por restringir o âmbito da reserva de lei complementar à regulamentação dos “limites materiais” das imunidades, na esteira da decisão proferida na ADI 1.802 MC, em agosto de 1998.
Nessa decisão liminar, exarada em um processo cujo mérito ainda pende de julgamento pela Corte, acolheu-se uma questionável distinção entre os “limites objetivos” e “subjetivos” da imunidade para se afirmar que a reserva de lei complementar estabelecida pelo art. 146, II, da Lei Maior somente alcança a regulamentação daqueles, não destes, in verbis:
“(...) II. Imunidade tributária (CF, art. 150, VI, c, e 146, II): ‘instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei’: delimitação dos âmbitos da matéria reservada, no ponto, à intermediação da lei complementar e da lei ordinária: análise, a partir daí, dos preceitos impugnados (L. 9.532/97, arts. 12 a 14): cautelar parcialmente deferida. 1. Conforme precedente no STF (RE 93.770, Muñoz, RTJ 102/304) e na linha da melhor doutrina, o que a Constituição remete à lei ordinária, no tocante à imunidade tributária considerada, é a fixação de normas sobre a constituição e o funcionamento da entidade educacional ou assistencial imune; não, o que diga respeito aos lindes da imunidade, que, quando susceptíveis de disciplina infraconstitucional, ficou reservado à lei complementar.(...)”(5)
A análise do acórdão evidencia que os “lindes da imunidade” são entendidos como os seus limites materiais, em contraposição aos “limites subjetivos”, que diriam respeito a normas sobre a constituição e o funcionamento dos entes imunes, as quais repercutem no “âmbito material dos requisitos subjetivos”(6) e levam à determinação dos entes tutelados pela imunidade.
ADI 1802 MC – Reserva de lei complementar |
Lei complementar |
Lei ordinária |
Definição dos limites materiais (objetivos) da imunidade: patrimônio, renda e serviços das entidades imunes |
Definição dos limites subjetivos: normas sobre constituição e funcionamento, que repercutem no “âmbito material dos requisitos subjetivos” e servem para qualificar a instituição como de assistência social, sem fins lucrativos |
Com a devida vênia, essa distinção não tem suporte constitucional algum. O art. 146, II, da Constituição da República submete à reserva de lei complementar a regulação integral das “limitações constitucionais ao poder de tributar”, e não apenas dos seus limites materiais ou objetivos.
Se a Carta Constitucional não consagra tal distinção, qual seria o fundamento jurídico para os “limites subjetivos” serem excluídos do alcance da reserva de lei?
De acordo com a ementa supracitada, haveria uma decisão da Suprema Corte em tal sentido, proferida no RE 93.770, à luz da Constituição decaída.
3.1 A incorreta interpretação da decisão proferida no RE 93.770
Na ementa do Recurso Extraordinário 93.770, apreciado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal em março de 1981, realmente há menção à lei ordinária, à qual caberia regular as imunidades então consagradas no art. 19, III, c, da Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional 1/69:
“IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. IMUNIDADE. O artigo 19, III, c, da Constituição Federal não trata de isenção, mas de imunidade. A configuração desta está na Lei Maior. Os requisitos da lei ordinária, que o mencionado dispositivo manda observar, não dizem respeito aos lindes da imunidade, mas àquelas normas reguladoras da constituição e funcionamento da entidade imune. Inaplicação do art-17 do Decreto-lei nº 37/66. Recurso extraordinário conhecido e provido.”(7)
No entanto, a análise do inteiro teor do julgado, que jamais pode ser olvidada pela doutrina e pela jurisprudência, evidencia um fato de extrema importância: a alusão à lei “ordinária” foi acrescentada na redação da ementa, sem qualquer respaldo nos votos proferidos.
No único voto apresentado, o relator, Ministro Soares Muñoz, afirmou textualmente: “Os requisitos da lei que o art. 19, III, c, da Constituição manda observar não dizem respeito à configuração da imunidade, mas àquelas normas reguladoras da constituição e funcionamento da entidade imune”.
Note-se: o relator alude aos “requisitos da lei”, não aos “requisitos da lei ordinária”. A qualificação foi acrescentada na redação da ementa, que não é objeto de deliberação – e sequer costuma ser submetida à apreciação dos demais Ministros.
Ademais, o julgado não tratava da reserva de lei complementar, mas do próprio alcance da imunidade, que foi assegurada ao contribuinte.(8)
Tratava-se especificamente de um mandado de segurança impetrado pelo Sesi para o reconhecimento de imunidade na importação de mercadorias necessárias ao desempenho das atividades de um centro médico. O acórdão de origem, proferido pelo extinto Tribunal Federal de Recursos, havia negado a imunidade, por entendê-la condicionada aos requisitos estabelecidos em lei, que só reconhecia a “isenção” às mercadorias sem similar nacional.
No julgamento do RE 93.770, a Primeira Turma da Corte Suprema não negou a existência de reserva de lei complementar para regular o tema. O assunto sequer estava em pauta. O que se discutia era o alcance da imunidade e a possibilidade de a lei estabelecer requisitos para o seu gozo. Isto foi rechaçado pela Corte, que reconheceu a imunidade na importação de mercadorias, independentemente de previsão legal.
Não só, afirmou-se que o alcance da imunidade decorre imediatamente da Constituição, e não da legislação infraconstitucional. Essa somente pode tratar das regras sobre a “constituição e o funcionamento da entidade imune”, jamais pretender conformar os lindes da imunidade.
Para aclarar esse fato, pede-se vênia para transcrever a íntegra do parágrafo em que está inserida a célebre – e deturpada – assertiva:
“Esse Decreto-lei [refere-se ao DL 37/66], anterior à Constituição Federal em vigor, não pode, no particular, ser aplicado, porque ele impõe à imunidade, a qual não se confunde com isenção, uma restrição que não está no texto constitucional. Os requisitos da lei que o art. 19, III, c, da Constituição manda observar não dizem respeito à configuração da imunidade, mas àquelas normas reguladoras da constituição e do funcionamento da entidade imune.”
Em seguida, o Ministro Soares Muñoz indica, em obter dictum, que a referência aos requisitos fixados em lei se destina apenas a evitar fraude, com o reconhecimento da imunidade a falsas instituições de assistência e educação: “Cumpre evitar-se que falsas instituições de assistência e educação sejam favorecidas pela imunidade. É para evitar fraude que a Constituição determina sejam observados os requisitos da lei”.
Ninguém questiona a necessidade de regulamentação da imunidade, notadamente com esse fito específico, de evitar fraudes. O que se discute é qual o instrumento legislativo apto a veicular tal regulação; e isso não foi objeto do RE 93.770.
Em suma, o RE 93.770 não versava sobre reserva de lei complementar. Tratava do alcance material da imunidade, reconhecido em toda a sua amplitude pelo Supremo Tribunal Federal, que afastou os condicionamentos da legislação em vigor. E em momento algum houve referência à lei “ordinária”, salvo na ementa, que se destina a resumir, e não a alterar o teor do julgamento.
3.2 A equivocada leitura do entendimento doutrinário
Se não havia respaldo constitucional e sequer jurisprudencial, a distinção talvez pudesse estar assentada na lição da “melhor doutrina”, como se indicou na ementa da ADI 1.802 MC.
No voto do relator, Ministro Sepúlveda Pertence, constata-se que a referência diz respeito à abalizada doutrina de Aliomar Baleeiro (fl. 14 do acórdão), exposta no seu consagrado livro intitulado “Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar”.
No entanto, o notável tributarista baiano jamais defendeu tal distinção. O que ele sustentava, escrevendo sob a égide da Emenda Constitucional 1/69, era a absoluta inexistência de reserva de lei complementar. Para Baleeiro, a imunidade poderia ser regulada na sua integralidade por lei ordinária: “A lei que fixará os requisitos é a ordinária.”(9) Isso foi exposto com acerto no voto do relator, Ministro Sepúlveda Pertence,(10) mas terminou por ser distorcido na ementa, quando se indicou que a “melhor doutrina” defendia a reserva parcial de lei complementar.
Vale consignar, outrossim, que Baleeiro defendia a inexistência de reserva de lei complementar por contrastar a redação da cláusula de imunidade do art. 2º, IV, c, da EC 18/65 (que se reportava aos “requisitos fixados em lei complementar”) com aquela do art. 20, III, c, da CF/67 (que, assim como a atual, somente se reporta à “lei”, sem qualificá-la).(11)
Com distanciamento temporal, pode-se compreender a razão da alteração, vendo-a por outro prisma, acolhido pela jurisprudência que reconhece a reserva de lei complementar. A supressão do adjetivo nesta cláusula específica decorreu da ampliação da reserva de lei complementar havida com o advento da Constituição de 1967, que submeteu a tal espécie legislativa a edição de todas as “normas gerais de direito tributário”, inclusive daquelas que regulam “limitações constitucionais do poder de tributar” (art. 19, § 1º, da CF/67), alçando, por consequência, o Código Tributário Nacional ao status de lei complementar.
Com o advento da Constituição de 1988, a reserva de lei complementar tornou-se evidente, pois se dedicou uma seção específica às “limitações do poder de tributar” e, nela, se consagrou a imunidade das instituições de educação e de assistência social.
Diante de tal contexto, não há mais como sustentar a posição antagônica, de que inexiste reserva de lei complementar. Consciente disso, Misabel Derzi defende, em nota de atualização à referida obra de Aliomar Baleeiro, a reserva plena de lei complementar:
“ À luz do Texto de 1988, não resta dúvida de que somente lei complementar da União poderá criar requisitos, que regulamentem os limites ao poder de tributar, dentro das fronteiras da própria Constituição, por força do que estabelece o art. 146, II:
Cabe à lei complementar:
(...)
II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar.
E a Seção II do Capítulo I, “Sistema Tributário”, que elenca as imunidades gerais, de forma não exaustiva, intitula-se, exatamente, “Das Limitações do Poder de Tributar”, seção que se inicia no art. 150 da Constituição. Por isso, não se deve sustentar mais a tese de que a lei ordinária possa cumprir o papel de regular as imunidades, em sua função de plasmar e definir a competência tributária.”(12)
A lei ordinária somente poderia dispor sobre a constituição e a formalização das entidades, como faz o Código Civil, jamais sobre os requisitos para o gozo da imunidade.(13)
Percebe-se, portanto, que a cisão da reserva de lei complementar decorreu de uma leitura equivocada do RE 93.770, sem respaldo algum na jurisprudência pretérita ou na doutrina.
3.3 A impropriedade do recurso ao “argumento da dissociação”
A leitura da ADI 1.802 MC evidencia ter sido acolhida uma “solução de consenso” com respeito à reserva de lei complementar. Após expor as teses dos contribuintes e do Fisco, pela completa existência ou inexistência da reserva, o Ministro Sepúlveda Pertence externou:
“À delibação, sabe-me que ambas as posturas contrapostas pecam por excesso.
(...)
Estou, a um primeiro exame, em que a conciliação entre os dois preceitos constitucionais, aparentemente antinômicos, já fora estabelecida na jurisprudência do Tribunal, e prestigiada na melhor doutrina.
(...)
Em síntese, o precedente reduz a reserva de lei complementar da regra constitucional ao que diga respeito “aos lindes da imunidade”, à demarcação do objeto material da vedação constitucional de tributar – o patrimônio, a renda e os serviços das instituições por ela beneficiados, o que inclui, por força do § 3º, do mesmo art. 150, CF, a sua relação “com as finalidades essenciais das entidades nele mencionadas”; mas remete à lei ordinária “as normas reguladoras da Constituição e do funcionamento da entidade imune”, votadas (sic) a obviar que “falsas instituições de assistência e educação sejam favorecidas pela imunidade”, em fraude à Constituição.”
Para acolher essa exegese salomônica, recorreu-se ao argomento della dissociazione, que, por uma sutil distinção, implica significativa restrição do alcance do dispositivo interpretado – e, no caso, da fundamental garantia dos contribuintes.
Riccardo Guastini descreve com precisão essa técnica retórica:
(...) l‘argomento della dissociazione consiste nell‘introdurre surrettiziamente nel discorso del legislatore una distinzione cui il legislatore non ha pensato affatto, in modo tale da ridurre il campo de applicazione di una disposizione ad alcune soltanto delle fatispecie da essa previste.(14)
Repisa-se: há uma restrição da garantia outorgada pelo constituinte, que não foi introduzida por este, mas pelo intérprete. No caso, estabeleceu-se uma distinção entre requisitos objetivos e subjetivos da imunidade para se afirmar que o art. 146, II, da Constituição da República somente é aplicável aos requisitos objetivos, sendo os requisitos subjetivos entregues à atuação do legislador ordinário.
Ocorre que o art. 146, II, da Carta de 1988 não distingue entre requisitos subjetivos e objetivos, prescrevendo, de forma clara e ampla, que cabe à lei complementar “regular as limitações constitucionais ao poder de tributar” (gênero do qual as imunidades são importantíssima espécie).
Verifica-se, assim, que até mesmo o argumento literal, utilizado para sustentar a tese oposta, pesa, com mais força, a favor da reserva plena de lei complementar para a regulação das imunidades.
Não se olvide, outrossim, a necessária complementação da interpretação literal pela sistemática, que é imprescindível para evitar sérios equívocos interpretativos e conduz à exegese dos arts. 150, VI, c, e 195, § 7º, à luz do mandamento expresso do art. 146, II, da Carta de 1988.(15)
3.4 A insustentabilidade lógica da distinção
Além de carecer de supedâneo constitucional, a distinção entre os “lindes da imunidade” e os “requisitos subjetivos” para o seu gozo revela-se logicamente insustentável, caindo por terra após um exame atento.
A imunidade das instituições de assistência social, sem fins lucrativos, qualifica-se justamente como uma imunidade subjetiva, concedida a entidades determinadas. Apesar de ter uma extensão material definida, é inconfundível com as imunidades objetivas, outorgadas a certos fatos ou operações econômicas, como a imunidade das exportações frente ao ICMS (art. 155, § 10, a, da CF/88).
Se a imunidade é subjetiva, como afirmar que os requisitos subjetivos não repercutem, de modo direto, no seu alcance? Como diferenciar entre a regulação dos “lindes da imunidade” e a dos “requisitos subjetivos”?
É absolutamente inviável estabelecer essa distinção, pois são precisamente os requisitos subjetivos que determinarão as instituições albergadas pela imunidade dos arts. 150, VI, c, e 195, § 7º, da Carta Constitucional.
Essa impossibilidade lógica é denunciada pelo próprio relator da ADI 1.802 MC, ao aludir a normas que repercutem no “âmbito material dos requisitos subjetivos” e levam à determinação de quais entes são tutelados pela imunidade.(16) Se se pretende diferenciar entre os limites materiais e os limites subjetivos da imunidade, como falar em “âmbito material dos requisitos subjetivos”?
Embora seja possível diferenciar a especificação do objeto material da imunidade (no caso, o patrimônio, a renda e os serviços das instituições imunes) perante a definição das entidades imunes (os conceitos de instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos), não há como negar que ambos dizem respeito aos lindes das imunidades – e, ademais, que a conceituação de tais entidades constitui a tarefa primordial do legislador complementar, no seu mister constitucional de regulamentar a limitação ao poder de tributar.
Também é viável diferenciar as normas de constituição e funcionamento das entidades imunes frente aos requisitos para o gozo da imunidade, como faz Misabel Derzi.(17) Porém, referidas normas devem ser bem compreendidas: trata-se de normas de Direito Privado, relativas à instituição e à organização interna das entidades imunes, como as estabelecidas nos arts. 44 e seguintes do Código Civil, inconfundíveis com as normas tributárias que as definem, delimitando o alcance da própria imunidade constitucional.
Essa foi a confusão em que incorreu o ilustre relator da ADI 1.802 MC, ao enquadrar, na categoria das “normas reguladoras da constituição e do funcionamento da entidade imune”, o art. 12 da Lei 9.532/1997, que veiculava um conceito de instituição de educação ou de assistência social, para fins de reconhecimento da imunidade.
Curioso é que a repercussão dessa norma no âmbito da imunidade foi consignada pelo próprio relator, ao expor as controvérsias relativas à definição acolhida pelo preceito citado, todas elas pendentes de definição pela Corte:
“Não desconheço que a propósito da definição básica de entidade de assistência social imune, o art. 12 caput fará recrudescer controvérsias de soluções ainda não consolidadas no Tribunal, qual a exigência ou não de gratuidade dos serviços prestados (cf. RE 132.136, Gallotti) ou a abrangência ou não de instituições beneficentes de clientelas restritas (cf. RE 115.970, RTJ 126/847 e RE 193.775, de julgamento inconcluso), afora a acesa polêmica em torno da imunidade de previdência privada (já negada pela 2ª Turma: RE 175.871, Velloso, DJ 30.05.97).”
A toda evidência, a definição do art. 12, caput, da Lei 9.532/1997 não dizia respeito a normas de constituição e funcionamento das entidades imunes, mas à própria conceituação destas e, consequentemente, à delimitação do alcance da imunidade.
Em síntese, é viável estabelecer as referidas distinções, mas não se pode pretender diferenciar a regulamentação dos “lindes da imunidade” frente à dos requisitos subjetivos ou objetivos para o seu gozo e, muito menos, afirmar que o estabelecimento de tais requisitos não constitui regulação de limites constitucionais ao poder de tributar.
Conclusões
Pretende-se haver demonstrado, no curso deste sucinto artigo, a existência de uma reserva ampla de lei complementar para regular as imunidades tributárias, bem como o equívoco do entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal Federal no instante do julgamento da ADI 1.802 MC, oportunidade em que se mutilou o alcance da reserva, limitando-a à regulação dos “limites objetivos” (matéria de ínfima relevância prática) e, consequentemente, relegando à atuação do legislador ordinário (e do Poder Executivo) a efetiva regulação das imunidades inscritas nos arts. 150, VI, c, e 195, § 7º, da Constituição da República.
Não se pode negar, contudo, que há significativos óbices ao reconhecimento da reserva de lei complementar para a regulação das imunidades tributárias, sobretudo da imunidade das instituições beneficentes de seguridade social frente às contribuições securitárias, elencada no art. 195, § 7º, da Lei Maior.
Há mais de vinte anos essa regra constitucional vem sendo regulada por lei ordinária, sem que o Supremo Tribunal Federal tenha, em momento algum, pronunciado a inconstitucionalidade de tal procedimento, por violar a reserva de lei complementar estabelecida no art. 146, II, da Constituição da República.
A imunidade foi regulada inicialmente pela Lei 8.212/1991, cujo art. 51 já estabelecia, em sua redação original, requisitos rigorosos para a sua fruição, tais quais: o reconhecimento da instituição como de utilidade pública federal, estadual ou municipal (inciso I) e a obtenção do Certificado ou do Registro de Entidade de Fins Filantrópicos, fornecido pelo antigo Conselho Nacional de Serviço Social (inciso II).
Após sofrer alterações significativas, como as impostas pela Lei 9.732/1998 e pela MP 2.129/2001, o art. 55 da Lei 8.212/1991 foi revogado pela Lei 12.101/2009, que regula detidamente “os procedimentos de isenção de contribuições para a seguridade social”, exigindo, entre inúmeros outros requisitos, percentuais de gratuidade (filantropia) para o reconhecimento da imunidade.
Caso o Supremo Tribunal Federal pronuncie, após mais de vinte anos da promulgação da Lei 8.212/1991, a inconstitucionalidade da regulação das imunidades em foco por lei ordinária, cairá a exigência de atuação filantrópica, que não consta entre os requisitos do art. 14 do Código Tributário Nacional, mas é vista por muitos como uma exigência extremamente salutar, haja vista beneficiar a população carente.
Esse importante reflexo da pronúncia de inconstitucionalidade certamente pesa contra o reconhecimento, em sua plenitude, da reserva de lei complementar, contribuindo para a reiteração do equivocado posicionamento acolhido no momento da apreciação da medida cautelar na ADI 1.802.
Nada impede que a Suprema Corte pondere esse fato ao efetuar o controle de constitucionalidade das leis que regulam as imunidades das instituições de assistência social. Porém, deve fazê-lo explicitamente, consignando os efetivos fundamentos da sua decisão, a fim de enriquecer o debate sobre a questão e, eventualmente, abrir ensejo à utilização de instrumentos como a modulação de efeitos (art. 27 da Lei 9.868/1999).
Se as únicas opções forem, de fato, a perpetuação da negativa de reconhecimento de uma garantia constitucional ou o seu reconhecimento para o futuro, esta será, sem dúvida alguma, a melhor alternativa.
Referências bibliográficas
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BASTOS, Celso Ribeiro. “Imunidade tributária”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Imunidades Tributárias. São Paulo: Revista dos Tribunais: Centro de Extensão Universitária, 1998 (Pesquisas Tributárias. Nova Série; n. 4).
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MARTINS, Ives Gandra da Silva; coatualizador Rogério Gandra Martins. O sistema tributário na Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
MELIS, Giuseppe. L´interpretazione nel diritto tributario. Padova: Cedam, 2003.
SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes: “Leis adequadas para a disciplina de matérias relacionadas com as imunidades tributárias”. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, a. 4, nº 19, p. 43-50, jan./fev. 2006.
VELLOSO, Carlos Mário da Silva. “Lei complementar tributária”. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 235, p. 117-138, jan./mar. 2004.
Notas
1. Conferir, por todos, STF, Pleno, ADC 8 MC, rel. Min. Celso de Mello, julgada em 13.10.1999.
2. Para uma competente exposição dessa tese, que preconiza a inexistência da reserva de lei complementar, vide este artigo do Consultor da União Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho: “Leis adequadas para a disciplina de matérias relacionadas com as imunidades tributárias”. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, ano 4, n. 19, p. 43-50, jan./fev. 2006.
3. BASTOS, Celso Ribeiro. Imunidade tributária, p. 246.
4. MARTINS, Ives Gandra da Silva. O sistema tributário na Constituição, 6. ed., p. 308.
5. STF, Pleno, ADI 1.802 MC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgada em 27.08.1998, excerto da ementa.
6. A expressão é do relator, constando à fl. 18 do acórdão.
7. STF, 1ª Turma, RE 93.770, rel. Min. Soares Muñoz, julgado em 17.03.1981.
8. O Ministro Carlos Velloso já havia denunciado esse fato em estudo doutrinário. Após analisar detidamente o caso, concluiu: “Do mencionado acórdão, portanto – RE 93.770-RJ – não se pode tirar a ilação no sentido de que teria ele feito distinção entre lei ordinária e lei complementar. A primeira, para uma coisa; a segunda, para outra” (Lei complementar tributária, p. 131).
9. BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 8. ed, p. 505.
11. BALEEIRO, ob. cit., p. 567.
12. Notas, in: BALEEIRO. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 8. ed. p. 509.
14. GUASTINI, Riccardo. Le fonti del Diritto e l´interpretazione, p. 377.
15. Aos artigos 150, VI, c, e 195, § 7º, é plenamente aplicável, pois, a lição de Giuseppe Melis, no sentido de que: “l‘inserimento di un enunciato in un contesto implica collegamenti tra disposizioni che non possono essere trascurate, se non assumendosi il rischio di pervenire ad attribuizioni di significato del tutto erronee” (L´interpretazione nel diritto tributario, p. 103).
17. Notas, In: BALEEIRO. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 8. ed. p. 512.
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