IPI na importação de veículos por pessoas físicas

Autor: Fernando Tonding Etges

Juiz Federal Substituto, Pós-Graduado em Direito Processual Civil

publicado em 30.04.2015



Resumo

O imposto sobre produtos industrializados ganhou assento na legislação pátria, nos moldes como é atualmente, com a Emenda Constitucional nº 18/1965, quando lhe foram atribuídas as características da seletividade e da não cumulatividade, vindo a ser regulado pelo CTN um ano depois, muito embora ele, incidente sobre o consumo, já estivesse consignado na Constituição Federal desde 1934. O STF, diante do teor do enunciado da súmula 660, aplicável ao ICMS, vem reconhecendo a ausência de relação jurídico-tributária a exigir a incidência do IPI no caso de importação de veículo por pessoa física para uso próprio. Tal posição se guia pela premissa de que o princípio da não cumulatividade não admite a exigência do imposto quando se trata de incidência única, como é o caso. Ocorre que se deve diferenciar incidência única de incidência cumulativa, sem contar que não se pode trazer ao IPI características que alcançam apenas o ICMS. O TRF4, todavia, vem combatendo a tese acolhida no STF, pois, além do ponto citado, ela ofende os princípios da capacidade contributiva e da isonomia. A questão, de qualquer sorte, está na iminência de ser reexaminada pelo STF em sede de repercussão geral.

Palavras-chave: Imposto. Produtos industrializados. Importação. Pessoa física. Não cumulatividade.

Sumário: Introdução. 1 Do imposto sobre produtos industrializados – preceitos gerais e históricos. 2 Da incidência do IPI na importação por pessoa física para uso pessoal. 2.1 Da posição do STF e do enunciado da súmula nº 660. 2.1.1 Do Recurso Extraordinário nº 203.075-DF e da posição atual. 2.2 Da não cumulatividade. 2.2.1 Da extrafiscalidade do imposto. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

Trata-se de artigo elaborado em decorrência do encerramento das aulas do Currículo Permanente – Módulo I – Direito Tributário 2014, curso promovido pela Emagis no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Diante da qualidade do curso ofertado, em que foi possível conferir a opinião de respeitados estudiosos no âmbito do Direito Tributário, mostra-se, em um primeiro momento, intrincada a tarefa de encontrar tema que possa contribuir de maneira satisfatória para a continuidade do debate na seara tributária.

De qualquer sorte, visando a discorrer sobre assunto que ganha assento no cotidiano da Justiça Federal e que, além disso, é objeto de discordância entre tribunais, notadamente entre o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, concluiu-se prudente a análise da técnica da não cumulatividade do imposto sobre produtos industrializados – IPI, especificamente na importação de veículos por pessoas físicas para uso próprio, em especial a fim de se examinar a questão da incidência ou não de tal imposto nessa operação.

Ainda que se cuide de tema bem específico, direcionado a debate de um pequeno tópico de imposto tão repleto de controvérsias, tem-se que a análise das teses hoje discordantes e a apuração das razões que cercam cada uma delas pode contribuir inclusive para clarear outras polêmicas que permeiam o IPI. Aliás, diante da percepção de que a Constituição Federal atual encontra-se em plena vigência há quase vinte e seis anos e é indispensável a busca de segurança jurídica, notadamente na ordem tributária, que demanda planejamento, tem-se a necessidade de se discutir o tema a fundo, a fim de equacionar todas as arestas e, ao final, assentar-se posição que proporcione segurança nos negócios que venham a ser entabulados.

Não se olvide, por outro lado, que o presente trabalho deve atender também às exigências estampadas no Ofício-Circular 2008979 – GPRES/Emagis, especialmente no tocante à extensão, de modo que, ainda que plenamente possível o aprofundamento da matéria, não há falar em seu esgotamento, próprio de alongados debates no seio da doutrina.

Portanto, o presente trabalho busca, inclusive mediante a análise histórica do tributo em questão, discutir as bases que estribam a técnica da não cumulatividade no indigitado imposto, mormente na hipótese fática de importação de veículo por pessoa física, examinando-se a adequação dos entendimentos que circundam o tema às leis e, sobretudo, aos princípios constitucionais que guarnecem o sistema tributário nacional. Demais disso, intenta-se apurar as razões de decidir em alguns julgados envolvendo o tema, a fim de se elucubrar sobre a adequação ou não das posições ao panorama histórico e jurídico.

1 Do imposto sobre produtos industrializados – preceitos gerais e históricos

O imposto sobre produtos industrializados – IPI é espécie tributária presente no ordenamento jurídico brasileiro há longas décadas. A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 01 de 1969 já previam (art. 22, V) que “compete à União decretar impostos sobre (...) produtos industrializados”, espécie tributária que, já naquela época, era seletiva, em função da essencialidade dos produtos, e não cumulativa, consoante § 4º do dispositivo acima indicado.

Antes delas, a Constituição Federal de 1946 consagrava no seu art. 15 a competência da União para instituir imposto sobre “consumo de mercadorias” (inciso II). Por sinal, o inciso II citado seguiu a linha do preconizado no art. 20, I, b, da Constituição Federal de 1937 e do art. 6, I, b, da Constituição Federal de 1934, sendo que este, circunstancialmente, excepcionava a incidência em combustíveis de motor de explosão, cujo tributo cabia aos Estados Federados. De qualquer sorte, cabe lembrar que a Constituição de 1946 foi alterada pela Emenda Constitucional nº 18/65, marco legislativo cujo papel foi o de reformar o sistema tributário nacional, tendo o artigo 11 da emenda assentado que “compete à União o imposto sobre produtos industrializados”, enquanto o parágrafo único do dispositivo apregoou a sua seletividade e a sua não cumulatividade.(1) Portanto, a não cumulatividade do IPI ganhou assento no âmbito constitucional no ano de 1965, mediante a referida alteração constitucional.

Nessa linha, o IPI foi criado na condição de imposto sobre o consumo, vindo a Lei nº 4.502/64 a regulá-lo de forma minuciosa nos seus mais de cem artigos. O artigo 1º, de pronto, já deixava claro que “o Imposto de Consumo incide sobre os produtos industrializados compreendidos na Tabela anexa”. A indigitada lei previa ainda duas hipóteses de incidência: (a) o desembaraço aduaneiro, no caso de produtos estrangeiros, e (b) a saída do estabelecimento produtor, quanto aos produtos nacionais. Na primeira hipótese, aliás, o legislador assentou que o contribuinte do tributo é “o importador e o arrematante de produtos de procedência estrangeira – com relação aos produtos tributados que importarem ou arrematarem” (art. 35, I, b).

Logo no início de sua vigência, portanto, diante do teor da norma constitucional então vigente (CF 1946, sem ainda as alterações promovidas pela EC nº 18/65), que autorizava especificamente a criação de tributo sobre o consumo, e considerando as nuances da regra legal examinada, não havia falar em não cumulatividade.

Pouco tempo depois, na esteira da EC nº 18/65, como ressaltado alhures, ingressou no ordenamento jurídico nacional o Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172/66, cujo início da vigência ocorreu em 01.01.1967. Dentro do capítulo IV, que trata dos “impostos sobre a produção e a circulação”, foi incluído o imposto sobre produtos industrializados dentre as seis espécies ali originalmente lançadas. Com muitas semelhanças em relação ao discorrido na Lei nº 4.502/64, o CTN, seguindo os preceitos constitucionais então vigentes, inovou ao aventar a seletividade do imposto no plano infraconstitucional, focado na essencialidade do produto, bem como ao fixar a sua não cumulatividade, assim prevista:

“Art. 49. O imposto é não cumulativo, dispondo a lei de forma que o montante devido resulte da diferença a maior, em determinado período, entre o imposto referente aos produtos saídos do estabelecimento e o pago relativamente aos produtos nele entrados.
Parágrafo único. O saldo verificado, em determinado período, em favor do contribuinte transfere-se para o período ou períodos seguintes.”

Nessa linha histórica é que surgiu o artigo 153 da atual Constituição Federal, que estatui o seguinte:

“Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
(...)
IV – produtos industrializados;
(...)
§ 1º – É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.
(...)
§ 3º – O imposto previsto no inciso IV:
I – será seletivo, em função da essencialidade do produto;
II – será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores;
III – não incidirá sobre produtos industrializados destinados ao exterior;
IV – terá reduzido seu impacto sobre a aquisição de bens de capital pelo contribuinte do imposto, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

Portanto, em face do arcabouço normativo examinado, está-se diante, no que interessa ao presente artigo, de imposto incidente sobre produtos industrializados, não essenciais, que deve atender à técnica da não cumulatividade.

O artigo 46 do CTN versa que “o imposto, de competência da União, sobre produtos industrializados tem como fato gerador: I – o seu desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira”. Mais que isso, o art. 51, I, do mesmo diploma legal, por sua vez, elenca o sujeito passivo do imposto na hipótese de incidência em questão no “importador ou quem a lei a ele equiparar”.

Diante desses elementos, impende perquirir se a pessoa física que importa um veículo automotor para uso pessoal deve ou não arcar com o IPI por ocasião do desembaraço aduaneiro.

2 Da incidência do IPI na importação por pessoa física para uso pessoal

Ainda que, como relatado na introdução do estudo, o debate sobre a não cumulatividade do IPI já devesse ter se esgotado, uma vez que a regra encontra-se imutável no ordenamento jurídico há quase cinquenta anos, caso se leve em conta a data do advento da Emenda Constitucional nº 18/65, a verdade é que tal tema é ainda nebuloso na doutrina e na jurisprudência, havendo muitos debates sobre a questão. Uma das correntes, aplicada no âmbito da Receita Federal do Brasil e que ganhou força no Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, como se verá adiante, defende que, por se estar diante de uma importação de produto industrializado, não há qualquer elemento a refutar a existência de relação jurídico-tributária, devendo ser exigido o pagamento do tributo. Há, em síntese, o produto industrializado não essencial – veículo automotor –, o sujeito passivo (importador) e o desembaraço aduaneiro, elencando-se assim todos os pressupostos firmados na lei de regência.

Por outro lado, há a corrente que defende que, por se tratar de imposto não cumulativo, não se poderia exigi-lo na hipótese em apreço, já que a pessoa física importadora é a consumidora final, não contribuinte habitual do imposto, e, por consequência, não poderia compensar o tributo em operações mercantis subsequentes. Em síntese, tal entendimento escora-se na circunstância de que a não cumulatividade não é apenas uma referência em oposição à cumulatividade, mas sim técnica imprescindível na relação tributária a inadmitir a incidência do imposto quando inviável a compensação futura do que se adimpliu em operação anterior.

É essa segunda corrente, inclusive, que vem sendo defendida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

2.1 Da posição do STF e do enunciado da súmula nº 660

Para bem entender a origem da posição assentada na Corte Constitucional, no entanto, cabe lembrar que aquele tribunal, por meio do enunciado da súmula nº 660,(2) manifestou-se da seguinte forma acerca da incidência de ICMS sobre veículo importado por pessoa física: “não incide ICMS na importação de bens por pessoa física ou jurídica que não seja contribuinte do imposto”.

Da leitura dos precedentes que deram azo ao teor do citado enunciado, infere-se que a Corte guiou-se pelo fato de que somente o contribuinte habitual do tributo pode ser sujeito passivo da obrigação (ver, p.e., STF – RE: 191346 RS, Relator: Carlos Velloso, Data de Julgamento: 29.09.1998, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 20.11.1998, PP-00012 Ement. VOL-01932-03 PP-00458). Em verdade, todos os precedentes que subsidiaram tal enunciado seguiram a linha do julgado por aquela Corte no RE 203.075-DF.(3) Consoante se colhe do endereço eletrônico daquela Corte, todos foram, entretanto, anteriores ao advento da Emenda Constitucional nº 33/2001, que alterou a redação do art. 155, § 2º, IX, a, da CF/88, passando a prever o seguinte no tocante ao ICMS:

“§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
(...)
IX – incidirá também:
a) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço.”

Cabe lembrar que a redação anterior do inciso IX era a seguinte, muito semelhante, inclusive, àquela lançada no art. 23 da EC nº 01/1969:

“a) sobre a entrada de mercadoria importada do exterior, ainda quando se tratar de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento, assim como sobre serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatário da mercadoria ou do serviço;”

Em síntese, o poder constituinte derivado infirmou os efeitos do indigitado enunciado sumular ao prever expressamente que, para fins de ICMS, a pessoa física importadora é sim sujeito passivo do tributo.

Ocorre que, a fim de bem delimitar o alcance do tema, impende esmiuçar o que foi, de fato, decidido no âmbito do Supremo Tribunal Federal no RE 203.075-DF, já que esse julgado é emblemático para sustentar a posição atual daquela Corte no tocante ao tema objeto do presente estudo.

2.1.1 Do Recurso Extraordinário nº 203.075-DF e da posição atual

Cuidava o STF de examinar naquele processo recurso extraordinário interposto pelo Distrito Federal em mandado de segurança impetrado por membro do Corpo Diplomático da Embaixada da Itália contra ato da Receita Federal do Distrito Federal que exigiu o recolhimento de ICMS para liberação de veículo importado pelo impetrante. Já no parecer da Procuradoria-Geral da República, opinou-se, escorado em precedente do próprio STF (RE 192630, Relator(a): Min. Carlos Velloso, Segunda Turma, julgado em 19.11.1996, DJ 07.02.1997, PP-01374 Ement. VOL-01856-07, PP-01280), pelo acolhimento do recurso para que se reconhecesse a incidência de ICMS no caso concreto.

Ocorre que vingou a tese defendida pelo Ministro Maurício Correa de que a referência na regra constitucional no sentido de que o imposto cabe ao Estado onde “estiver situado o estabelecimento destinatário da mercadoria ou do serviço” afasta a possibilidade de incidência de importação promovida por pessoa física, de “carne e osso”, como disse o ministro, para consumo. Como obiter dictum, o ministro sinalizou também que, como o ICMS é imposto incidente sobre circulação de mercadorias, “não há como se aplicar o princípio constitucional da não cumulatividade” no caso concreto. Ocorre que esse argumento acessório sequer foi tratado ou discorrido pelos demais ministros. Com efeito, os ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence, Néri da Silveira e Moreira Alves foram enfáticos em assentar a não incidência do imposto no fato de que a regra constitucional era clara ao referir-se a estabelecimento comercial, o que não se confunde com domicílio da pessoa física. Mesmo os dois ministros (Nelson Jobim e Ilmar Galvão) que acolheram a postulação do fisco em momento algum levaram a debate qualquer referência à impossibilidade de lançamento da técnica da não cumulatividade a fim de equacionar a controvérsia.

É bem verdade que o Ministro Carlos Veloso chegou a tratar sobre o assunto, no entanto sob um viés diverso. Disse que a justificativa para o teor da redação do dispositivo constitucional – que trata de estabelecimento – é exatamente a impossibilidade de compensações futuras. Ou seja, não se trata de não incidência decorrente da impossibilidade de uso da técnica da não cumulatividade, mas sim que teria sido essa a motivação do legislador constituinte na escolha das palavras que balizaram o dispositivo constitucional citado no item anterior. Disse ele:

“Ao estabelecer a incidência, no caso, o constituinte, entretanto, optou pelo comerciante, ou pelo industrial, é dizer, por aquele que tem um estabelecimento, certo que o particular, que não é comerciante ou industrial, tem simplesmente domicílio ou residência. E por que procedeu assim o constituinte? Porque o importador, assim o comprador, que é comerciante ou industrial, pode, na operação seguinte, utilizar o crédito do tributo que pagou no ato do desembaraço aduaneiro. O particular, que não é comerciante ou industrial, jamais poderia fazer isso. É dizer, caberia a ele o ônus total do tributo.”

O que se tem de concreto, portanto, é uma decisão paradigmática que, embora venha sendo estendida ao IPI, se fulcrou em elemento específico do ICMS (estabelecimento comercial), previsto na redação então vigente da Constituição Federal.

A alteração constitucional antes citada, levada a efeito pela Emenda Constitucional nº 33, de 11 de dezembro de 2001, colocou fim à discussão, pois solucionou ponto que, de fato, levava à cognição acerca da não incidência de ICMS em importação promovida por pessoa física. Entretanto, por premissa que, ao fim e ao cabo, não foi objeto de debate no julgamento, passou-se a dar solução idêntica ao IPI, muito embora, sabidamente, se cuide de imposto com características próprias. Ou seja, diante da similaridade dos impostos, mas não da regra matriz de incidência, a Colenda Corte Constitucional utilizou-se daquele entendimento pretérito, não mais cabível ao tributo examinado na época, para alicerçar a não incidência do IPI na referida transação, destacando-se o seguinte julgado: RE 255682 AgR, Relator(a): Min. Carlos Velloso, Segunda Turma, julgado em 29.11.2005, DJ 10.02.2006, PP-00014, Ement. VOL-02220-02, PP-00289, RDDT nº 127, 2006, p. 182-186, RIP v. 7, nº 35, 2006, p. 247-251.

Eis que surge, portanto, o ponto nevrálgico da controvérsia, que diz respeito ao alcance da técnica da não cumulatividade, argumento acessório utilizado pelo Ministro Maurício Correa para fundamentar seu voto quanto ao ICMS na importação, ainda antes da EC nº 33/2001, notadamente diante de hipótese (IPI) em que o legislador constituinte não fez menção a estabelecimento comercial.

A jurisprudência do STF, mesmo nos julgados mais recentes, mantém-se no sentido da não incidência do tributo na hipótese em estudo:

“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IPI. IMPORTAÇÃO DE BEM PARA USO PRÓPRIO POR NÃO CONTRIBUINTE. IMPOSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA. PRINCÍPIO DA NÃO CUMULATIVIDADE. AGRAVO IMPROVIDO. I – A exigência de IPI na importação de bem para uso próprio por pessoa não contribuinte do tributo implica violação ao princípio da não cumulatividade. II – Agravo regimental improvido.” (STF – RE: 670876-PR, Relator: Min. Ricardo Lewandowski, Data de Julgamento: 05.03.2013, Segunda Turma, Data de Publicação: Acórdão Eletrônico, DJe-051, Divulg. 15.03.2013, Public. 18.03.2013)

Há também julgados da primeira turma, dos quais destaco o RE: 550170-SP, Relator: Min. Ricardo Lewandowski, Data de Julgamento: 07.06.2011, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-149, Divulg. 03.08.2011, Public. 04.08.2011, Ement. VOL-02559-02, PP-00291.

De qualquer sorte, este tema é objeto de repercussão geral no RE 723651-RS, Relator Min. Marco Aurélio, julgado em 11.04.2013, Processo Eletrônico, DJe-101, Divulg. 28.05.2013, Public. 29.05.2013, feito em que será pontuada a palavra final da Corte sobre o tema. Por ocasião do reconhecimento da repercussão geral, assentou o ministro relator:

“(...) Qual é o tema de fundo? Saber se é constitucional, ou não, considerado o artigo 146 da Carta Federal, preceito do Código Tributário Nacional que prevê expressamente a obrigatoriedade de se recolher o imposto sobre produtos industrializados, tendo em conta produto industrializado e importado.
(...)
O tema de fundo, Presidente – peço vênia ao relator –, merece o crivo do Supremo, até mesmo para definir se é constitucional, ou não, o artigo do Código Tributário que prevê expressamente essa espécie de incidência do tributo, do IPI. Nota-se que o artigo 46 do Código Tributário tem recebido interpretação linear, presentes também a Lei nº 4.502/64 e o Decreto-Lei nº 34/1966.
Em síntese, caberá ao Supremo definir se pessoa natural que não atua na compra e venda de automóveis, importando veículo para o próprio uso, está sujeita à satisfação do tributo. O tribunal de origem cogitou do importador, nesse caso, como substituto tributário do exportador não tributado pelas leis brasileiras, ficando descaracterizado o IPI, por isso, como imposto indireto. Disse da irrelevância da destinação final do produto.”

De conseguinte, infere-se que a análise a ser efetivada pelo STF passa, inclusive, pela própria recepção ou não do artigo 46, I, do CTN frente à Carta Constitucional, no sentido de incidência do IPI frente à importação de produtos industrializados, dispositivo questionado pela doutrina,(4) muito embora não se visualize qualquer ferimento direto à norma constitucional, notadamente diante da singeleza das referências constitucionais sobre o assunto.

De qualquer sorte, a questão a ser enfrentada neste arrazoado centra-se na observância ou não da técnica constitucional da não cumulatividade na incidência de IPI sobre produtos industrializados importados por pessoa física para uso próprio, uma vez que ele, importador, como referido alhures, é o consumidor final e, por consequência, não poderia compensar o tributo em operações mercantis subsequentes.

2.2 Da não cumulatividade

O melhor entendimento da questão passa pela análise da técnica da não cumulatividade e do que ela representa para o imposto em apreço. Nesse sentido, ela, oriunda da value-added norte-americana, é entendida da seguinte forma, conforme a doutrina de Eduardo Sabbag(5):

“Postulado segundo o qual se proíbe a técnica cumulativa, permitindo que em cada operação tributada deva ser abatido o valor do mesmo imposto pago na operação imediatamente anterior (art. 49 do CTN). Com efeito, faz-se o registro contábil com crédito do IPI referente à entrada de uma mercadoria. Por seu turno, faz-se o registro como débito do valor do IPI dos produtos que saírem. No final do período, após a realização dos cálculos, se o débito for maior, o imposto é recolhido; se o crédito for maior, o saldo credor é transferido para uso no período seguinte ou nos períodos seguintes. O IPI, nos documentos fiscais, é destacado separadamente ou, como denomina parte da doutrina, ‘por fora’, somado ao preço e pago pelo adquirente dos insumos.”

Ela evita, segundo Luiz Francisco Lippo,(6) “a incidência reiterada do imposto sobre uma mesma base de cálculo”, visando a impedir “a elevação artificial dos bens e dos serviços”. Já Eduardo Domingos Bottallo(7) explica que a não cumulatividade guarda sintonia com as limitações do poder de tributar do Estado, sendo garantia contra uma tributação abusiva. Diz o autor que ela é “técnica que se volta contra a União, na medida em que cada incidência do imposto determina, inexoravelmente, o surgimento de uma relação de crédito, em favor dos contribuintes”.

No mesmo sentido é a lição de Paulo de Barros Carvalho(8), aventando o caráter principiológico(9) do tema:

“No plano de conteúdo, atinando-se à substância semântica do aludido princípio, a não cumulatividade representa uma técnica mediante a qual o valor do imposto incidente em uma operação poderá ser abatido do montante estipulado na operação subsequente, computando tudo em determinados intervalos de tempo.”

Sobre a questão, aliás, Luiz Francisco Lippo defende também se tratar a não cumulatividade de princípio constitucional, já que(10):

“É um comando normativo repleto de valores extraídos dos anseios da sociedade constituída e permeado de forte conteúdo axiológico. Foi a partir da vontade do povo brasileiro que o legislador constituinte encontrou os argumentos necessários para disciplinar a instituição de tributos cuja característica essencial para apuração do quantum debeatur deve ser o confronto matemático entre a soma dos valores do imposto registrado em cada operação correspondente às mercadorias, aos produtos e aos serviços adquiridos pelo mesmo contribuinte, em um dado período.”

Atualmente, a técnica/princípio da não cumulatividade tem papel relevante na própria organização do sistema tributário, notadamente quando se escora a análise nos princípios da isonomia, da capacidade tributária e da própria vedação ao confisco. Como alerta José Eduardo Soares de Melo(11):

“A não cumulatividade concerne à evolução cultural, social, econômica e jurídica do povo. Sendo essencial, sua supressão do texto constitucional causaria um sério abalo na estrutura sobre a qual foi organizado o Estado. Constituindo-se em um sistema operacional destinado a minimizar o impacto do tributo sobre o preço dos bens, sua eliminação geraria um custo artificialmente indesejável ao preço dos produtos. Caso fosse eliminada, a cumulatividade oneraria o custo de vida da população e encarceraria o processo produtivo e comercial, reduzindo os investimentos empresariais, em face do aumento de custos ocasionados por esse artificialismo tributário oriundo da cumulatividade.”

Do excerto é possível colher, inclusive, o caráter teleológico da técnica em apreço, mormente diante do caráter plurifásico do IPI.(12)

Há, outrossim, duas metodologias distintas para o manejo da técnica, conhecidas como crédito financeiro e crédito físico. Naquela, como explica Marcelo Guerra Martins,(13) “qualquer bem adquirido pela empresa, mesmo que não se destine a integrar produtos por ela produzidos (por exemplo: papéis, canetas, automóveis, computadores, arquivos, materiais de limpeza, etc.), desde que tenha sido tributado pelo IPI, enseja o crédito correspondente”.

Já no crédito físico, somente haverá creditamento quanto ao tributo incidente sobre o produto que integra fisicamente o produto final industrializado. Este, aliás, é o que é utilizado pela legislação pátria, notadamente diante do teor do art. 25, parágrafo 1º, da Lei nº 4.502/64, cuja redação foi dada pelo Decreto-Lei nº 1.136/70, que apregoa que “o direito de dedução só é aplicável aos casos em que os produtos entrados se destinem à comercialização, à industrialização ou ao acondicionamento e desde que os mesmos produtos ou os que resultarem do processo industrial sejam tributados na saída do estabelecimento”.(14) Não é à toa, portanto, a posição firmada na jurisprudência no sentido de que o IPI incidente sobre produtos adquiridos para o ativo fixo da empresa não admite creditamento (STF – RE: 598048-SC, Relator: Min. Roberto Barroso, Data de Julgamento: 20.05.2014, Primeira Turma, Data de Publicação: Acórdão Eletrônico, DJe-116, Divulg. 16.06.2014, Public. 17.06.2014).

De qualquer sorte, não se pode confundir a proibição à incidência cumulativa, que resplandece na norma constitucional citada, com vedação à incidência única. São situações distintas. Com efeito, ao prever que o imposto é não cumulativo, o legislador autorizou a competente compensação do tributo pago na entrada com aquele devido na saída da mercadoria, vedando expressamente a sua incidência cumulativa. Isso não afasta a hipótese de incidência única do tributo, como é o caso da questão envolvendo a incidência de IPI na importação promovida por pessoa física, e tantas outras hipóteses que não são objeto deste estudo, como, por exemplo, a importação por empresa de bem para o ativo fixo.

Em verdade, quando o legislador constituinte menciona que o imposto será “não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”, ele expressamente desautoriza a cumulatividade, ou seja, a conhecida incidência em cascata, mas em momento algum veda a incidência única do tributo. Havendo uma única operação para incidência do imposto, notadamente porque o veículo não se destina à comercialização, não há simplesmente a possibilidade fática de o contribuinte proceder à compensação do tributo com operação posterior, por ser esta inexistente – ainda que abstratamente possa haver um crédito –, o que não infirma a incidência do imposto. Em síntese, ao se caracterizar um tributo como não cumulativo, está-se apenas vedando que, havendo mais de uma etapa, haja nova tributação integral, e não que seja vedada a incidência única do tributo, já que, afinal de contas, essa circunstância não torna o imposto cumulativo, a ferir a norma constitucional.

A não cumulatividade é, na prática, técnica de arrecadação que visa a minorar o impacto dos impostos ao longo da cadeia produtiva, não devendo, portanto, guardar relação com a necessidade de compensação posterior. Ela permite que se compense o tributo outrora pago em operação anterior, mas não que sua incidência dependa da existência de ulterior fato gerador do IPI para êxito na compensação.

O preceito constitucional de que o tributo “será não cumulativo” não se mitiga ou se infirma na hipótese em comento, notadamente porque o imposto não está sendo, de fato, aplicado em cascata. Vale dizer, o que o legislador buscou amparar foi a não incidência do tributo novamente na parcela não agregada, o que não ocorre na circunstância hostilizada.

Como assinala Marcelo Guerra Martins(15):

“Em princípio, poder-se-ia argumentar que a pessoa física não poderia ser sujeito passivo da obrigação do IPI, no caso, apenas o estabelecimento industrial ou equiparado. Contudo, aquele que introduz o bem no território nacional é considerado importador, ainda que não seja industrial ou comerciante. Logo, em hipóteses que tais, este é o responsável pelo pagamento do tributo. Com efeito, dentre as hipóteses legais de incidência do IPI está o desembaraço aduaneiro, independentemente do destino do produto ou da qualidade do sujeito que promove a importação.”

Portanto, o caráter teleológico da obrigação de que o IPI seja não cumulativo assenta-se na plena e irrestrita impossibilidade de se tributar o que excede ao que foi agregado em determinada operação mercantil, não se podendo coligir que, para haver a incidência de IPI, deva haver mais de uma operação.

Em verdade, a incidência do imposto na hipótese em testilha encontra assento no ordenamento jurídico, já que: a) trata-se de produto industrializado (art. 153, IV, da CF); b) atende à seletividade do produto (inciso I do § 3º); c) houve a ocorrência de desembaraço aduaneiro, fato gerador previsto no art. 46, I, do CTN; d) o importador é o sujeito passivo (art. 51, I, do CTN); e, por fim, e) não há a incidência cumulativa do imposto a ferir o inciso II do parágrafo 3º da CF/88.

2.2.1 Da extrafiscalidade do imposto

Não bastasse o estatuído no tópico anterior, verifica-se que a interpretação que reconhece a inexistência de relação jurídico-tributária na hipótese mitiga a própria característica extrafiscal(16) do IPI e, por consequência, a seletividade ínsita ao imposto. Com efeito, ainda que elevados os valores oriundos da arrecadação do citado imposto(17) e sem perder de vista que sabidamente inexiste tributo, como assevera Paulo de Barros Carvalho,(18) tido como puro, ou seja, que tenha apenas fins fiscais (arrecadatórios) ou extrafiscais, é inegável que o IPI exerce elevado papel extrafiscal,(19) o que fica claro do rol de exceções ao princípio da anterioridade do art. 150, parágrafo 1º, da CF/88 e da possibilidade de o próprio Poder Executivo alterar as alíquotas do tributo, consoante art. 153, parágrafo 1º, sem contar as constantes mudanças hodiernamente vistas em relação ao tributo sobre bens de consumo para controle da política de empregos. Por extrafiscalidade, inclusive, entenda-se, conforme ensina e esclarece o doutrinador acima citado, “o emprego de fórmulas jurídico-tributárias para a obtenção de metas que prevalecem sobre os fins simplesmente arrecadatórios de recursos monetários”.(20)

Nesse prisma, a incidência de IPI na importação, nos moldes da lei de regência, aloca a possibilidade de o Poder Executivo utilizar-se de tal ferramenta como elemento de política econômica, inclusive de proteção da indústria nacional.

É bem verdade que esse ponto acaba figurando como elemento acessório, desfocado da controvérsia principal do tema, já que, se inconstitucional a cobrança, pouco importaria eventual característica extrafiscal do imposto, notadamente porque em descompasso com a Constituição Federal. Ocorre que se está diante de imposto que, a teor do art. 146 da CF/88, notadamente do inciso III, a, teve todas as suas diretrizes fixadas em lei complementar, a qual estabelece precisamente o fato gerador (art. 46, I), a base de cálculo (art. 47, I) e os contribuintes (art. 51, I), de modo que a conclusão de ausência de relação jurídico-tributária no caso em apreço leva a evidente óbice ao pleno controle da política econômica, autorizando que veículos importados tenham valores de mercado distintos no país, a depender de quem os importou.

Não se pode admitir também a referência de que a não incidência do imposto estriba-se na ausência de natureza mercantil ou assemelhada da operação, como já defendeu o STJ em diversos precedentes (AgRg no REsp 1416066/CE, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 06.02.2014, DJe 06.03.2014). No caso, aquela Corte, escorando-se em precedentes do STF, arrematou que “entendimento diverso importaria em ofensa ao princípio da não cumulatividade, em face da impossibilidade de compensação posterior, uma vez que o particular não é contribuinte da exação”, a sugerir, vale dizer, que não incide o imposto em face da inocorrência da cadeia produtiva a permitir as compensações ínsitas à técnica em questão, ainda que sob uma roupagem distinta. Como já dito alhures, a tão aventada natureza mercantil exigida pelo STF emergiu da posição firmada no âmbito do ICMS, com base em regras constitucionais não mais vigentes, não sendo fundamento concreto para alcançar o IPI.

De mais a mais, ao adquirir um veículo de um fornecedor estrangeiro, o consumidor final está evidentemente realizando uma operação mercantil, de modo que, ainda que, regularmente, o contribuinte do IPI seja o fornecedor, para a hipótese de importação, o legislador, sem ferimento a qualquer norma constitucional, atribuiu a sujeição passiva ao importador, que, no final das contas, atua como substituto do fornecedor estrangeiro, que não pode ser tributado por realizar suas operações em local alheio ao território nacional.

Diante desse quadro, não é à toa que a posição que reconhece a hipótese de incidência de IPI em importação de veículo por pessoa física para fins próprios vem ganhando relevo. Exemplo disso é que o Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região(21) alterou, recentemente, seu entendimento sobre o tema e passou a compartilhar o raciocínio de que a incidência do IPI sobre veículo automotor importado por pessoa física não ofende o princípio da não cumulatividade. Cabe destacar que a 1ª Seção desta Egrégia Corte, que reúne as duas turmas dotadas de competência tributária, firmou entendimento, por unanimidade, no sentido de que, no caso da importação de bem para uso próprio, não há operações sucessivas, não havendo razão para aplicar a técnica de tributação da não cumulatividade. Eis a ementa de tal julgado:

“TRIBUTÁRIO. IPI. IMPORTAÇÃO DE VEÍCULO POR PESSOA FÍSICA, NÃO COMERCIANTE OU EMPRESÁRIA, PARA USO PRÓPRIO. SUPERADO ENTENDIMENTO ANTERIOR À EC 33/01. PRINCÍPIO DA NÃO CUMULATIVIDADE. NÃO APLICAÇÃO. 1. A incidência de IPI nos casos de importação de veículo por pessoa física, não comerciante ou empresária, para uso próprio, decorre da aplicação dos arts. 51, I, e 46, I, ambos do CTN. 2. As decisões dos tribunais superiores, anteriores à EC 33/01, aplicavam por analogia entendimento já superado (a partir desta EC) em relação ao ICMS. 3. O principal argumento daquelas decisões, o princípio da não cumulatividade, mostra-se equivocado, na medida em que tal técnica de tributação visa a impedir que as incidências sucessivas, nas diversas operações da cadeia econômica de um produto, implicassem ônus tributário muito elevado, em consequência de múltipla tributação sobre a mesma base econômica, o que não ocorre no caso. 4. Igualmente não prospera a tese de afastar a incidência do IPI no caso de bem importado para utilização própria (seja por pessoa natural, seja por pessoa jurídica) por não se tratar de ‘mercadoria’. Tal qualificação é entendida sob o ponto de vista do alienante, nunca do adquirente do bem. No caso do IPI, o contribuinte no Brasil, ao importar, coloca-se como ‘substituto tributário’ do comerciante situado no exterior, que não pode ser alcançado pelas leis brasileiras.” (TRF4, EINF 5049386-28.2011.404.7000, Primeira Seção, Relatora p/ Acórdão Vânia Hack de Almeida, D.E. 14.01.2013)

Chama atenção também recente precedente da 1ª Turma do STJ, que clama pela alteração da jurisprudência assentada no âmbito daquela Corte e do STF no tocante à questão objeto deste estudo:

“TRIBUTÁRIO. MEDIDA CAUTELAR INOMINADA INCIDENTAL QUE OBJETIVA CONFERIR EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO ESPECIAL JÁ INTERPOSTO, MAS SUSPENSO PARA AGUARDAR O JULGAMENTO DE RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA SOBRE A MESMA MATÉRIA EM DEBATE (RESP 1.396.488/SC). IPI. IMPORTAÇÃO DE VEÍCULO, POR PESSOA FÍSICA, PARA USO PRÓPRIO. VELEIDADE CONSUMISTA QUE NÃO DEVE OBTER INCENTIVOS OU DESONERAÇÕES TRIBUTÁRIAS. FUNÇÃO EMINENTEMENTE EXTRAFISCAL DO TRIBUTO. AUSENTES, À PRIMEIRA VISTA, OS REQUISITOS AUTORIZADORES DA MEDIDA EMERGENCIAL. RECURSO ESPECIAL SOBRESTADO NA INSTÂNCIA DE ORIGEM. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS 634 E 635 DO STF. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
(...)
2. É claro que as pessoas abonadas podem gastar os seus recursos como bem entenderem, inclusive adquirindo bens de altíssima sofisticação ou de elevadíssimos custos; porém, o que não parece aceitável é que essa veleidade consumista obtenha incentivos ou desonerações tributárias para o seu desenvolvimento ou expansão; tratando-se de tributos que têm função eminentemente extrafiscal ou regulatória, essas avaliações aparentemente extranormativas ganham particular relevância, por isso que, ao que percebo, a incidência da tributação na importação de tais bens deve ser afirmada pelo Judiciário.
3. Embora se reconheça a existência de precedentes desta Corte afirmando a desoneração do pagamento de IPI quando se tratar de compra de veículo automotor para uso pessoal, reafirmo a minha orientação em sentido contrário, porquanto aquela orientação atendeu, ao espírito do tempo em que se formou, ao contexto então instalado, que não confinava com o veloz incremento de importações de veículos automotores estrangeiros, como agora se constata; por essa razão, reverenciando aqueles precedentes, entendo que as condições em que se dá este pleito são outras e por isso ouso afirmar que aquela diretriz deva ser ajustada a esses novos tempos, é justamente por isso que o tema está novamente em pauta, tanto no STF, em repercussão geral, como nesta Corte, diante do sobrestamento de recurso especial para ser oportunamente julgado como representativo de controvérsia (REsp 1.396.488/SC).
4. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AgRg na MC 22.665/PR, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 05.08.2014, DJe 15.08.2014)

Note-se que, embora precedente esparso(22) e que envolve também questões de ordem processual, ele é recente e explicita a questão singular da extrafiscalidade do imposto.

Não se olvide também que a posição hoje sustentada no âmbito do STF acaba por ofender o princípio da capacidade contributiva, como vem defendendo em vários acórdãos o Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Ora, tal “princípio tem por escopo o atingimento da justiça fiscal, repartindo os encargos do Estado na proporção das possibilidades de cada contribuinte”.(23) Ele emerge do necessário cotejamento existente entre capacidade contributiva e tributação. Nesse prisma, é inconcebível pensar que todo e qualquer cidadão que comprar um veículo nacional ou importado arcará indiretamente com os custos do IPI, exceto aquele que, demonstrando maior capacidade contributiva, envida os esforços necessários para promover a própria importação do veículo.

Impõe-se asseverar, por oportuno, que não se está a defender a tributação por analogia, vedada pelo parágrafo 1º do artigo 108 do CTN, mas sim a interpretação dos dispositivos legais de forma consentânea com o arcabouço principiológico que permeia o sistema tributário nacional.

Por derradeiro, tem-se que a interpretação que afasta a incidência de IPI na hipótese revela evidente desatenção ao princípio da isonomia. É sabido que o artigo 150, II, da CF/88 veda que a União institua “tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente”, de modo que a análise do tema em testilha, à luz dos preceitos constitucionais, leva o intérprete a extrair do enunciado norma adequada ao arcabouço normativo. A ilação de que a pessoa física que importa veículo para uso próprio, não obstante a clareza e a aplicabilidade da legislação de regência, não é sujeito passivo de obrigação tributária atinente ao IPI, haja vista uma interpretação de que a análise da incidência do imposto pressupõe uma cadeia de operações mercantis, é inconstitucional em decorrência do ferimento da isonomia, notadamente porque a pessoa física que adquire veículo importado de pessoa jurídica instalada no país arca com tal tributo. Mais que isso, tem-se, ao fim e ao cabo, que qualquer veículo comprado no Brasil, com incentivo ao mercado de trabalho interno, é tributado com o IPI, enquanto que aquele produzido no exterior ingressa no país sem a incidência de tal imposto.

Como assinala Eduardo Sabbag,(24) “quando o tratamento diferenciado, dispensado pelas normas jurídicas, guarda relação de pertinência lógica com a razão diferencial (motivo da atividade discriminatória), não há que se falar em afronta ao princípio da isonomia”. Por outro lado, segue o doutrinador, “a adoção de um dado fator de discriminação, sem qualquer correspondência com a lógica racional de diferenciação, colocará em xeque a almejada ideia de igualdade”.

Assim, examinando-se também a controvérsia sob o prisma dos princípios consignados que guarnecem o sistema tributário nacional, não há como admitir a incidência do imposto na hipótese em questão.

Conclusão

De início, é oportuno destacar que os cursos promovidos pela Emagis são uma oportunidade ímpar a propiciar um aprofundamento de matérias que, embora possam não estar no nosso cotidiano laborativo, nos são eventualmente trazidas para análise. O módulo de Direito Tributário, especificamente, logrou viabilizar a análise e o debate de diversas questões, alcançados os objetos originalmente propostos. Mais que isso, dele nasceram, ainda que indiretamente, temas para elaboração do trabalho final, a propiciar um compartilhamento de conhecimentos e estudos, tão salutar diante da elevada gama de matérias controversas que cercam nosso dia a dia.

Especificamente sobre a matéria de fundo do trabalho, foi possível apurar que a utilização de determinada argumentação outrora usada em hipótese fática distinta, sem a ponderação das nuances que cercam cada caso concreto, pode muitas vezes levar a conclusões incongruentes com as características de certa questão levada a exame. Tal cenário ganha relevo na seara tributária, em que cada tributo apresenta especificidades próprias que não necessariamente alcançam espécie distinta.

A análise do tema objeto do presente estudo bem esclarece isso. Com efeito, o STF, guiando-se por decisão proferida no momento do exame de caso envolvendo importação e ICMS, cujas regras diferem em muitos aspectos do IPI, notadamente no que toca à referência a estabelecimento comercial, tem estendido a este imposto considerações e características próprias daquele, notadamente diante da redação vigente à época do dispositivo constitucional que regulava a matéria no instante da ocorrência de fatos específicos de determinado processo. Mais que isso, a posição da Corte, a balizar as decisões judiciais de todo o país, assenta-se em tópico acessório que sequer foi objeto de debate no julgamento, logrando estar presente apenas no voto de um dos ministros lá presentes.

Nessa linha, é imperioso, ainda que a legislação, tal como posta, esteja vigendo há muitas décadas, que se reexamine a questão à luz das características próprias do IPI, concentrando-se no texto constitucional vigente, assim como nas normas legais. Tal medida, a ser realizada em futuro próximo pelo STF em sede de repercussão geral, deve atentar para as características da não cumulatividade, bem assim para seu caráter teleológico, inferindo-se que o preceito estampado no art. 153, parágrafo 3º, inciso II, da Constituição Federal não exige a presença de uma cadeia de operações para a incidência do imposto em questão, mas sim que, havendo ela, o imposto deve incidir apenas sobre o valor agregado. Ou seja, a leitura de tal dispositivo deve ser a seguinte: “o imposto previsto no inciso IV, havendo uma cadeia de operações, será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”.

Concluir que a hipótese de incidência única fere preceito constitucional acaba por admitir que a expressão “será não cumulativo” é distinta da expressão “não será cumulativo”, o que se mostra equivocado. Conforme examinado ao longo do trabalho, a técnica da não cumulatividade tem papel importante no sistema tributário ao evitar a tributação em cascata, não tendo o condão de afastar a tributação em hipóteses de incidência única.

O reexame da questão já começou, de qualquer sorte, a ganhar força no âmbito dos tribunais, ganhando destaque a posição sedimentada do Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região e decisões esparsas de alguns outros tribunais regionais, sem contar recente decisão no âmbito do STJ clamando pela reanálise da posição atualmente sedimentada no âmbito daquela Corte.

Portanto, examinando a regra matriz constitucional do tributo e atentando para as características das leis infraconstitucionais que regulamentam o imposto, vê-se a presença inequívoca de todas as características que cercam a relação jurídico-tributária, estando-se presente, quando se trata de importação de veículo por pessoa física para uso próprio, o fato gerador (despacho aduaneiro), o sujeito passivo (importador) e a presença do produto industrializado.

Referências bibliográficas

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SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

Notas

1. A doutrina registra que a tributação sobre o consumo iniciou mais de dois séculos antes do advento da República com a tributação sobre o açúcar e os rolos de tabaco (Carta Régia de 1662) e sobre o tabaco em pó e a aguardente brasileira (Carta Régia de 1692) [Paulo Roberto Cabral Nogueira apud CELLA, João Nelson. Imposto sobre produtos industrializados (IPI): seletividade e não cumulatividade. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br>. Acesso em: 30 ago. 2014. p. 80].

2. Data de Aprovação: Sessão Plenária de 24.09.2003; Fonte de Publicação: DJ de 09.10.2003, p. 3; DJ de 10.10.2003, p. 3; DJ de 13.10.2003, p. 3. Republicação: DJ de 05.08.2004, p. 1; DJ de 06.08.2004, p. 1; DJ de 09.08.2004, p. 1. Republicação: DJ de 28.03.2006, p. 1; DJ de 29.03.2006, p. 1; DJ de 30.03.2006, p. 1.

3. RE 203075, Relator(a): Min. Ilmar Galvão, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Maurício Corrêa, Primeira Turma, julgado em 05.08.1998, DJ 29.10.1999, PP-00018, Ement. VOL-01969-02, PP-00386.

4. MELO, José Eduardo Soares. IPI: teoria e prática. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 16.

5. Manual de Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 1074.

6. A não cumulatividade tributária (ICMS, IPI, ISS, PIS e Cofins). 3. ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 181.

7. Fundamentos do IPI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 44.

8. Isenções tributárias do IPI, em face do princípio da não cumulatividade. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 33, jun. 1998. p. 164.

9. Embora sem maiores repercussões no presente assunto, a circunstância de a não cumulatividade ser ou não princípio guarda sintonia com diversas nuances do tributo, sobretudo em relação à própria receptividade da lei de regência que trata da dicotomia entre crédito físico e financeiro.

10. Op. cit., p. 100.

11. Importação e exportação no Direito Tributário: impostos, taxas e contribuições. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 156.

12. O caráter pluri ou multifásico do imposto o difere do imposto monofásico, que é cobrado uma única vez, em um só ponto do processo de produção.

13. Impostos e contribuições federais. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 277.

14. Cabe anotar a posição de parte da doutrina de que a previsão legal limita indevidamente o alcance do preceito constitucional, autoaplicável.

15. Op. cit., p. 288.

16. No caso concreto, estar-se-ia diante da extrafiscalidade conhecida como indutiva, ou seja, que busca determinado comportamento para controle da economia, e não proibitiva, muito embora em certas hipóteses possa haver uma linha tênue entre as espécies.

17. Hugo de Brito Machado (in Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 275), embora questione a efetiva finalidade do imposto, leciona que o IPI “foi, até pouco tempo, o tributo de maior expressão como fonte de receita, posição que vem sendo ocupada atualmente pelo imposto de renda”.

18. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 235.

19. AMARO, Luciano. Direito Tributário brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 125.

20. Op. cit., p. 236.

21. De qualquer sorte, os demais TRFs mantêm-se firmes na defesa da posição do STF, ainda que com precedentes esparsos em sentido contrário: (TRF-1 – AGA: 494139420124010000 AM 0049413-94.2012.4.01.0000, Relator: Desembargador Federal Novély Vilanova, Data de Julgamento: 21.06.2013, Oitava Turma, Data de Publicação: e-DJF1, p. 763, de 23.08.2013; TRF-2 – REEX: 201151010179399, Relator: Desembargador Federal Eugenio Rosa de Araujo, Data de Julgamento: 21.01.2014, Terceira Turma Especializada, Data de Publicação: 30.01.2014; TRF-3 – AMS: 10184 SP 0010184-31.2011.4.03.6104, Relatora: Desembargadora Federal Marli Ferreira, Data de Julgamento: 06.02.2014, Quarta Turma; TRF5 – PJE: 08027072220134058100, APELREEX/CE, Relator: Desembargador Federal Marcelo Navarro, Terceira Turma, Julgamento: 10.06.2014).

22. A questão de fundo está sendo examinada pelo STJ no REsp 1.396.488/SC, na forma do procedimento do art. 543-C do Código de Processo Civil, regulamentado pela Resolução STJ nº 8/2008, estando atualmente (setembro de 2014) o julgamento com 3 votos favoráveis à incidência do imposto, contra dois votos contrários.

23. HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 387.

24. Op. cit., p. 133.



Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dez. 2014. Disponível em:
<>
Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS