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publicado em 30.04.2015 |
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Não obstante o instituto da coisa julgada tenha sido historicamente protegido em nosso ordenamento jurídico, até mesmo como decorrência do princípio da segurança jurídica, recentemente se tem verificado o surgimento de vasta doutrina recomendando a relativização do instituto, bem como inovações legislativas introduzindo a desconsideração de decisões transitadas em julgado em desconformidade com a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal à Constituição da República. Além disso, deve ser observada a regra do artigo 471 do Código de Processo Civil, segundo a qual as relações jurídicas de trato sucessivo, ainda que objeto de decisão com trânsito em julgado, perderiam essa eficácia sempre que houvesse alteração no estado de fato ou de direito existente por ocasião da prolação da decisão transitada em julgado. Por outro lado, dentro do prazo do artigo 495 do Código de Processo Civil, caberá ação rescisória para desconstituir sentença transitada em julgado que tenha incidido em qualquer dos vícios do artigo 485 do Código de Processo Civil. Por fim, são referidos precedentes jurisprudenciais em que houve alegação de coisa julgada inconstitucional, tanto com acolhimento como com indeferimento da tese das partes. Palavras-chave: Direito Tributário. Coisa julgada. Eficácia temporal da sentença. Eficácia da declaração de inconstitucionalidade. Desconstituição da sentença transitada em julgado. Relativização da coisa julgada. Ação rescisória. Sumário: Introdução. 1 Garantia constitucional da proteção à coisa julgada. 2 Coisa julgada e inconstitucionalidade da norma. 3 Ação rescisória e coisa julgada inconstitucional. 4 Casos específicos de relativização da coisa julgada em matéria tributária. Conclusão. Referências bibliográficas. Introdução A coisa julgada material, definida pelo artigo 467 do Código de Processo Civil como a eficácia “que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário e extraordinário”, trata-se de um dos mais importantes institutos do ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que cria e modifica direitos subjetivos das partes sujeitas à sentença e impede a rediscussão de questões já examinadas judicialmente entre as mesmas partes, até mesmo com o objetivo de impedir a eternização dos conflitos. Na lição de Ovídio Baptista da Silva, a coisa julgada pode ser conceituada como “a virtude própria de certas sentenças judiciais, que as faz imunes às futuras controvérsias, impedindo que se modifique, ou discuta, em um processo subsequente, aquilo que o juiz tiver declarado como sendo ‘a lei do caso concreto’."(1) Não obstante, no âmbito específico do Direito Tributário, em que é comum a prolação de sentenças dispondo sobre relações jurídicas de trato continuado, a investigação sobre a efetiva eficácia dessa imutabilidade da sentença transitada em julgado toma relevo especial, seja em razão de eventuais modificações na condição individual do contribuinte, seja de alterações no panorama legislativo aplicável à relação jurídica objeto dessa sentença. No presente trabalho se examinará, em linhas gerais, o alcance da proteção à coisa julgada no ordenamento jurídico brasileiro, com ênfase especial no âmbito do Direito Tributário. 1 Garantia constitucional da proteção à coisa julgada Estabeleceu a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no inciso XXXVI de seu artigo 5º, a garantia de que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Trata-se, na verdade, de proteção à estabilidade dos direitos subjetivos, em obediência ao princípio da segurança jurídica, o qual, nos dizeres de José Afonso da Silva, “está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída”.(2) Nesse sentido, Luiz Guilherme Marinoni também identifica a coisa julgada material como atributo indispensável ao Estado Democrático de Direito e à efetividade do direito fundamental de acesso ao Poder Judiciário, referindo que “de nada adianta falar em direito de acesso à justiça sem dar ao cidadão o direito de ver o seu conflito solucionado definitivamente”.(3) Assim, uma vez transitada em julgado a sentença, o titular do direito subjetivo reconhecido passa a tê-lo integrado definitivamente ao seu patrimônio, ainda que sobrevenha alteração do panorama jurídico vigente à época da prolação da sentença. Também Antônio do Passo Cabral identifica a proteção atribuída à coisa julgada pela doutrina tradicional como consequência da exigência de garantias à segurança jurídica(4): “A hipervalorização histórica de institutos como a coisa julgada decorreu da exigência de segurança individual contra o arbítrio. Também coincidiu com a era das codificações e a crença no poder do legislador, que gerou a subsequente necessidade de emprestar segurança também à lei concretizada, a lex specialis. Entretanto, nos últimos tempos, muita coisa mudou. Na mesma direção da crítica à hipervalorização do princípio da segurança jurídica, observo que o artigo 471 do Código de Processo Civil traz exceção a essa proteção, ao determinar que, nas relações jurídicas continuativas, sobrevindo modificação no estado de fato ou de direito, poderá a parte pedir revisão do que foi estatuído na sentença. No âmbito do Direito Tributário, por sua vez, é comum a prolação de sentenças dispondo sobre relações jurídicas de trato continuado, sendo possível que, após o trânsito em julgado, sobrevenha alteração normativa aplicável a essa relação jurídica continuativa, sem que, nesse caso, se possa invocar a garantia constitucional da coisa julgada, na medida em que a discussão se dá no âmbito da eficácia temporal da sentença, e não no da imutabilidade da sentença transitada em julgado. É nesse sentido a lição de Deborah Sales e Tiago Asfor Rocha Lima(5): “O legislador processual, no art. 471, inc. I, do CPC (...), reconhece a existência das relações jurídicas continuadas, pelo que teve a cautela de evitar o engessamento de decisões judiciais passíveis de sofrer alteração nos fatos e no direito que lhe serviram de suporte. Assim, em primeiro lugar, mostra-se necessário limitar o alcance da garantia constitucional do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República às sentenças referentes a relações jurídicas instantâneas, na medida em que, para as relações jurídicas de trato continuado, ainda que objeto de decisão judicial transitada em julgado, eventual alteração do panorama legislativo poderá acarretar a ineficácia da sentença para os fatos futuros. 2 Coisa julgada e inconstitucionalidade da norma Ao lado da hipótese de perda da eficácia da sentença transitada em julgado, nos casos em que há alteração do panorama normativo aplicável às relações jurídicas continuativas, examinadas no item anterior, é importante também verificar a eficácia das sentenças, ainda que relativas a relações jurídicas instantâneas, fundamentadas em normativo posteriormente declarado inconstitucional. Nesse caso, a desconstituição da coisa julgada se faria não pelo advento de lei nova, o que é vedado pelo artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República, nem pela alteração dos fatos ou do direito em uma relação jurídica de trato sucessivo, o que é autorizado pelo artigo 471 do Código de Processo Civil, mas sim pela exclusão do mundo jurídico de norma declarada inconstitucional. Isso porque, possuindo as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade eficácia declaratória e efeitos ex tunc, a manutenção da sentença fundada em dispositivo declarado inconstitucional implicaria necessariamente a atribuição de efeitos jurídicos a norma que jamais possuiu validade no mundo jurídico, em face da sua incompatibilidade com a Constituição. Acerca da eficácia das sentenças proferidas pelo STF em sede de controle abstrato de constitucionalidade, refere-se a lição de Gilmar Ferreira Mendes ao discorrer sobre a doutrina tradicional sobre o tema, bem como sobre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em sentido contrário(6): “Se o Supremo Tribunal Federal chegar à conclusão, no processo de controle abstrato de normas, de que as disposições do direito federal ou do direito estadual revelam-se incompatíveis com a Constituição, então ele as declarará inconstitucionais. (...) Ainda sobre esse tema, é imprescindível também destacar a lição de Teori Albino Zavascki, segundo o qual a eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade seria referente à validade da norma, mas não ao efeito vinculante da decisão do Supremo Tribunal Federal, cujo termo inicial seria a decisão que teria declarado a inconstitucionalidade da norma, uma vez que do efeito vinculante não decorreria automaticamente a nulidade da norma, mas sim da sentença que a apreciaria(7): “Assim considerado o termo a quo do efeito vinculante, explica-se por que as decisões tomadas em ações de controle concentrado não produzem a automática desconstituição das relações jurídicas anteriores a elas contrárias. Para que se desfaçam tais relações, notadamente quando afirmadas por sentença judicial, é insuficiente a sentença proferida no âmbito do controle abstrato. Em outras palavras: não basta que sejam situações incompatíveis com a Constituição; é indispensável que essa incompatibilidade seja também reconhecida por ato estatal específico, com força vinculativa, ato esse que, nas situações examinadas, não existia à época em que as referidas relações jurídicas foram constituídas. O efeito vinculante da sentença no controle concentrado foi-lhes superveniente. Por outro lado, a natureza objetiva do processo, no qual não figuram partes nem se levam em consideração relações jurídicas ou direitos subjetivos, importa a consequência de inviabilizar, nele mesmo, em regra, a adoção de providências de natureza executiva. Não é processo com caráter satisfativo, ‘não legitima, em face de sua natureza mesma, a adoção de quaisquer providências satisfativas tendentes a concretizar o atendimento de injunções determinadas pelo tribunal. Em suma: a ação direta não pode ultrapassar, sob pena de descaracterizar-se como via de tutela abstrata do direito constitucional positivo, os seus próprios fins, que se traduzem na exclusão, do ordenamento estatal, dos atos incompatíveis com o texto da Constituição’. Essa a jurisprudência antiga do Supremo Tribunal Federal, que, em linhas gerais, permanece aplicável, no que se refere às situações jurídicas constituídas em data anterior ao julgamento da ação de controle abstrato. Entretanto, e apesar da orientação doutrinária e jurisprudencial acima referida, sobreveio, em 22 de dezembro de 2005, a Lei nº 11.232, acrescentando um parágrafo único ao artigo 741 do Código de Processo Civil, para declarar que se considera “também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal”, reiterando o entendimento da nulidade ipso jure e ex tunc da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF. Em sentido favorável à referida inovação legislativa, destaca-se o entendimento de Carina Bellini Cancella(8): “Com isso, não se deve admitir a intangibilidade da coisa julgada que traga consigo uma decisão de conteúdo contrário à Constituição. Havendo conflito entre o texto constitucional e a injustiça de executar uma sentença judicial que se respalda nela mesma, e em nada mais – uma vez que a lei ou o ato normativo que a respaldavam nunca existiram no mundo jurídico, por causa do vício primário de inconstitucionalidade –, deve prevalecer a Constituição. Não obstante, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça editou, em junho de 2012, o Enunciado 487 da Súmula de Jurisprudência, segundo o qual o “parágrafo único do art. 741 do CPC não se aplica às sentenças transitadas em julgado em data anterior à da sua vigência”. Dessa maneira, embora o referido tribunal não tenha reconhecido a inconstitucionalidade da norma, afastou a sua aplicação aos processos com trânsito em julgado anterior à sua vigência, com fundamento na garantia constitucional de inaplicabilidade da lei nova às relações jurídicas protegidas pela coisa julgada, referindo expressamente em seus fundamentos o artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição. No caso, transcreve-se trecho do voto do Ministro Teori Albino Zavascki nos autos do Recurso Especial nº 720.953/SC, julgado pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça em 28 de junho de 2005,(9) julgado esse que foi um dos precedentes dos quais decorreu a edição da súmula referida: “Quanto à questão do direito intertemporal, está assentada a inaplicabilidade da norma às sentenças transitadas em julgado em data anterior à da sua vigência. Com efeito, o parágrafo único do art. 741 do CPC foi introduzido pela Medida Provisória 2.180-35, de 24.08.2001. Sendo norma de natureza processual, tem aplicação imediata, alcançando os processos em curso. Todavia, não pode ser aplicada retroativamente. Como todas as normas infraconstitucionais, também ela está sujeita à cláusula do art. 5º, XXXVI, da Constituição, segundo a qual ‘a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada’. Em observância a essa garantia, não há como supor legítima a invocação da eficácia rescisória dos embargos à execução relativamente às sentenças cujo trânsito em julgado tenha ocorrido em data anterior à da sua vigência. Há, em favor do beneficiado pela sentença, o direito adquirido de preservar a coisa julgada com a higidez própria do regime processual da época em que foi formada, que não previa a modalidade de sua rescisão por via de embargos.” De qualquer forma, a questão da constitucionalidade do parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil está pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, tendo sido reconhecida por aquela Corte a repercussão geral da matéria nos autos dos Recursos Extraordinários 586.068/PR e 611.503/SP: “Processo civil. Execução. Inexigibilidade do título executivo judicial (artigo 741, parágrafo único, do CPC). Aplicabilidade no âmbito dos juizados especiais. Pensão por morte (Lei nº 9.032/1995). Decisão do Supremo Tribunal Federal. Extensão do precedente aos casos com trânsito em julgado. Coisa julgada (artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal). Existência de repercussão geral, dada a relevância da questão versada.” (RE 586068 RG, Relator(a): Min. Ellen Gracie, julgado em 02.08.2008, DJe-157, Divulg. 21.08.2008, Public. 22.08.2008, Ement. VOL-02329-04, PP-00687) “CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. ADEQUAÇÃO DOS TÍTULOS JUDICIAIS EXEQUENDOS ÀS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 741 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. COISA JULGADA. PRESENÇA DA REPERCUSSÃO GERAL NA QUESTÃO CONSTITUCIONAL DISCUTIDA. Até o momento da conclusão do presente estudo, ainda não havia notícia de julgamento definitivo dos referidos recursos. 3 Ação rescisória e coisa julgada inconstitucional O próprio Código de Processo Civil, que estabelece os limites e os efeitos da coisa julgada, também prevê hipótese específica de desconstituição de sentença transitada em julgado, qual seja a ação rescisória, regulada nos artigos 485 e seguintes do Código. Nos dizeres de Nelson Nery Junior, a previsão legal da ação rescisória seria “consequência da incidência do princípio constitucional da proporcionalidade, em face da extrema gravidade de que se reveste a sentença com os vícios arrolados em numerus clausus pelo CPC 485”.(10) Embora o artigo 485 do Código de Processo Civil não arrole, nas hipóteses de cabimento da ação rescisória, a prolação de sentença fundamentada em dispositivo inconstitucional, ou fundamentada em suposta inconstitucionalidade de norma posteriormente declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, o inciso V do referido dispositivo estabelece o cabimento da ação rescisória quando a sentença de mérito “violar literal disposição de lei”. Interpretando o artigo 798, inciso I, alínea c, do Código de Processo Civil de 1939, cuja redação é semelhante à do atual artigo 485, inciso V, editou o Supremo Tribunal Federal, ainda em 1963, o Enunciado nº 343 de sua Súmula de Jurisprudência, segundo o qual “não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”. Não obstante, o próprio Supremo Tribunal Federal admite exceção à aplicabilidade da Súmula nº 343 nos casos em que a matéria discutida for de cunho constitucional, mesmo que a decisão objeto da ação rescisória tenha sido fundamentada em interpretação controvertida ou anterior à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal, priorizando a interpretação da Constituição dada por aquela Corte em detrimento da estabilidade e da segurança jurídica decorrentes do trânsito em julgado da sentença rescidenda, conforme ensina Teori Albino Zavascki(11): “O exame dessa orientação em face das súmulas revela duas preocupações fundamentais da Corte Suprema: a primeira, a de preservar, em qualquer circunstância, a supremacia da Constituição e a sua aplicação uniforme a todos os destinatários; a segunda, a de preservar a sua autoridade de guardião da Constituição, de órgão com legitimidade constitucional para dar a palavra definitiva em temas relacionados com a interpretação e a aplicação da Carta Magna. Supremacia da norma constitucional, tratamento igualitário e autoridade do STF são, na verdade, valores associados e, como tais, têm sentido transcendental. Há, entre eles, relação de meio e fim.” Também nesse sentido é o entendimento de Juvêncio Vasconcelos Viana(12): “De qualquer sorte, parece-nos inequívoco que a norma constitucional é uma norma diferenciada (não bastasse sua qualidade de norma ‘estruturante’ de todo o sistema, há todo um aparato para sua proteção, vias especiais de controle à sua violação, etc.). Seu status e sua condição de supremacia dentro do ordenamento jurídico justificam o abrandamento da súmula no caso de rescisórias em face de sentenças inconstitucionais. Assim, dentro do prazo de dois anos estabelecido pelo artigo 495 do Código de Processo Civil, seria legítima a propositura de ação rescisória como meio de desconstituir sentença transitada em julgado fundamentada em desacordo com a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal à Constituição da República. 4 Casos específicos de relativização da coisa julgada em matéria tributária Em setembro de 2008, o Plenário do Supremo Tribunal Federal pôs fim a longa divergência jurisprudencial ao decidir pela constitucionalidade da revogação da isenção da Cofins para as sociedades civis de profissão regulamentada, asseverando que a Lei Complementar nº 70/1991 seria apenas formalmente complementar, mas materialmente ordinária em relação aos dispositivos que tratavam da contribuição por ela instituída, podendo ser revogada, nesse ponto, por lei ordinária: “Contribuição social sobre o faturamento – Cofins (CF, art. 195, I). Ficou ainda afastada no julgamento a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão, aplicando-se o atributo da repercussão geral ao tema, na forma do artigo 543-C do Código de Processo Civil. Não obstante diversos julgados tenham acabado por transitar em julgado no sentido da inconstitucionalidade da revogação em questão, o que ensejaria a manutenção da isenção do tributo às sociedades civis de profissões regulamentadas, apesar da declaração, pelo Supremo Tribunal Federal, de constitucionalidade do artigo 56 da Lei nº 9.430/96, sobrevieram novas alterações no regime jurídico da Cofins com o advento da Lei nº 9.718/1998, determinando que todas as pessoas jurídicas de direito privado seriam contribuintes da Cofins, e da Lei nº 10.833/2003, estabelecendo que a Cofins incidiria sobre as receitas auferidas “pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil”. Dessa forma, tratando-se de relações jurídicas continuativas, ainda que objeto de sentença transitada em julgado, as alterações no estado de direito que fundamentaram essa decisão acarretam a aplicação das normas posteriores ao caso, limitando-se a eficácia da coisa julgada no tempo, na forma do artigo 471 do Código de Processo Civil. É nesse sentido a lição de Marcus Abraham(13): “Aqui está, portanto, a mudança na circunstância jurídica, objeto da cláusula rebus sic stantibus, que limita os efeitos da coisa julgada que declarou ilegítima a revogação da isenção da Cofins. Esses acórdãos apenas afastavam do ordenamento jurídico o artigo 56 da Lei nº 9.430/96 e, a partir deles, a consequência lógica seria a isenção. Vindo, entretanto, nova legislação superveniente a afirmar categoricamente que a Cofins será devida por todas as pessoas jurídicas de direito privado, aquela isenção anteriormente mantida por força de um pronunciamento judicial cai por terra diante do novo suporte jurídico.” (grifos no original) Também o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 739.784/PE, reconheceu a aplicabilidade do artigo 471 do Código de Processo Civil no caso da alteração legislativa promovida pela Lei nº 10.833/2003, relativizando o trânsito em julgado de decisão proferida em sede de mandado de segurança, por se tratar de relação jurídica de trato sucessivo, em razão da modificação do panorama jurídico: “PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. COFINS. SOCIEDADES CIVIS PRESTADORAS DE SERVIÇO. ISENÇÃO. LC Nº 70/91. REVOGAÇÃO. LEI Nº 9.430/96. SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº 10.833/03. RETENÇÃO NA FONTE PELOS TOMADORES DE SERVIÇO. ALTERAÇÃO DA SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. ART. 463 DO CPC. APLICAÇÃO. RELAÇÃO FÁTICO-JURÍDICA NOVA. OFENSA À COISA JULGADA. NÃO OCORRÊNCIA, IN CASU. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA NOS MOLDES LEGAIS. Assim, no caso específico da Cofins, a relativização da coisa julgada decorreu da aplicação da regra do artigo 471 do Código de Processo Civil. Por outro lado, no que tange à CSLL, embora o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido a constitucionalidade da Lei nº 7.689/1988, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.118.893/MG, considerou que as alterações promovidas no regime do referido tributo pela Lei nº 7.856/1989, pela Lei nº 8.034/1990, pela Lei Complementar nº 70/1991, pela Lei nº 8.383/1991 e pela Lei nº 8.541/1992, por não terem criado nova relação tributária, não caracterizariam modificação no estado jurídico capaz de relativizar o trânsito em julgado das sentenças que teriam declarado a inconstitucionalidade da exação: “CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. RITO DO ART. 543-C DO CPC. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO – CSLL. COISA JULGADA. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 7.689/88 E DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICO-TRIBUTÁRIA. SÚMULA 239/STF. ALCANCE. OFENSA AOS ARTS. 467 E 471, CAPUT, DO CPC CARACTERIZADA. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL CONFIGURADA. PRECEDENTES DA PRIMEIRA SEÇÃO DO STJ. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO. Logo, no caso específico da CSLL, decidiu o Superior Tribunal de Justiça pela impossibilidade de relativização da coisa julgada com fundamento no art. 471 do Código de Processo Civil. Já em relação à incidência do imposto de renda da pessoa jurídica incidente sobre o lucro apurado mas não distribuído, em que houve reconhecimento da inconstitucionalidade parcial do artigo 35 da Lei nº 7.713/1988 pelo Supremo Tribunal Federal, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça afastou a aplicação da Súmula 343/STF, não obstante se tratar de matéria objeto de interpretação controvertida nos tribunais: “TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. TRIBUTAÇÃO NA FONTE. LUCRO APURADO MAS NÃO DISTRIBUÍDO. SÓCIO. ART. 38 DA LEI Nº 7.713/88. INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL. NÃO INCIDÊNCIA DA SÚMULA 343/STF. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO RESCISÓRIA. Logo, em relação ao imposto de renda incidente sobre os lucros da pessoa jurídica não distribuídos aos sócios, admitiu o Superior Tribunal de Justiça o afastamento da coisa julgada, por meio da ação rescisória, com fundamento no artigo 485, inciso V, do Código de Processo Civil. Por fim, no tocante à prescrição da ação de repetição de indébito, considerou a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento da Ação Rescisória 3.212/RS, que não houve discussão de matéria constitucional, mas apenas de interpretação do Código Tributário Nacional, razão pela qual se rejeitou o pedido rescisório com fundamento no entendimento consolidado na Súmula 343/STF: “AÇÃO RESCISÓRIA. PRESCRIÇÃO. ARTS. 150, § 4º, 156, VII, E 168 DO CTN. TRIBUTO DECLARADO INCONSTITUCIONAL. HIPÓTESE NÃO PREVISTA NO ART. 485 DO CPC. INTERPRETAÇÃO DE DISPOSITIVOS INFRACONSTITUCIONAIS CONTROVERTIDA NOS TRIBUNAIS À ÉPOCA EM QUE PROFERIDA A DECISÃO RESCINDENDA. SÚMULA 343/STF. PROCESSO EXTINTO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. Assim, no caso da prescrição da ação de repetição de indébito tributário, decidiu o Superior Tribunal de Justiça pela impossibilidade de manejo da ação rescisória como forma de desconstituição da decisão transitada em julgado. Conclusão Por todo o exposto, verifica-se que, apesar da importância histórica do instituto da coisa julgada, decorrência natural dos princípios da segurança jurídica e do Estado Democrático de Direito, outros princípios constitucionais de mesma estatura eventualmente podem restar desconsiderados pela prolação de decisão inconstitucional, como os princípios da isonomia e da primazia da Constituição, sendo legítima a instituição de mecanismos capazes de propiciar a mitigação ou a relativização da coisa julgada. Como visto, tais mecanismos devem estar expressamente previstos na legislação, até mesmo para evitar a total descaracterização e ineficácia da coisa julgada, motivo pelo qual seus requisitos devem ser restritos e específicos, limitando-se o afastamento da proteção da coisa julgada a casos excepcionais. De qualquer forma, tratando-se a coisa julgada de instituto predominantemente de direito processual, sua natureza instrumental deve servir aos propósitos do direito material, seja ele a proteção da segurança jurídica, seja o primado das normas constitucionais, e da interpretação dada a essas normas pelo Supremo Tribunal Federal, não se podendo admitir a invulnerabilidade de instrumento processual tão somente por sua regularidade formalística. Nos casos extremos de irregularidade material, como é o caso da desconsideração de normas fundamentais, como as normas da Constituição da República, é legítima e razoável a adoção dos mecanismos disponíveis de desconsideração da coisa julgada inconstitucional. Referências bibliográficas ABRAHAM, Marcus. Coisa julgada em matéria tributária: relativização ou limitação? Estudo de caso da Cofins das sociedades civis. Revista da PGFN/Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, Brasília, v. 1, n. 1, jan./jun. 2011. CABRAL, Antônio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. Salvador: Jus Podivm, 2013. CANCELLA, Carina Bellini. Da relativização da coisa julgada inconstitucional. Revista da AGU – Advocacia-Geral da União, Brasília, a. VII, n. 17, jul./set. 2008. NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. MACHADO, Hugo de Brito (org.). Coisa julgada, constitucionalidade e legalidade em matéria tributária. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários, 2006. MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Revista de Doutrina da 4ª Região. Porto Alegre, n. 16, fev. 2007. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao016/Luiz_Marinoni.htm>. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil: processo de conhecimento. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 1. ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. Notas
1. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil: processo de conhecimento. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 1. p. 484. 2. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 431. 3. MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 16, fev. 2007. 4. CABRAL, Antônio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. Salvador: Jus Podivm, 2013. p. 302-303. 5. MACHADO, Hugo de Brito (org.). Coisa julgada, constitucionalidade e legalidade em matéria tributária. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários, 2006. p. 48. 6. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 260-262. 7. ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 54-57. 8. CANCELLA, Carina Bellini. Da relativização da coisa julgada inconstitucional. Revista da AGU – Advocacia-Geral da União, Brasília, a. VII, n. 17, jul./set. 2008. p. 33.
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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