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publicado em 30.04.2015
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O presente artigo examina a aplicação do artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil às execuções fiscais de crédito tributário, à luz do disposto no artigo 146, III, b, da Constituição Federal, bem como do decidido no Recurso Especial nº 1.120.295/SP. Por dois enfoques, um material e outro formal, busca demonstrar que o Recurso Especial nº 1.120.295/SP não constitui precedente vinculante no que toca à orientação de que a interrupção da prescrição deve retroagir ao ajuizamento da execução fiscal. Do ponto de vista material, porque não foi enfrentada a reserva de lei complementar para dispor sobre prescrição tributária. Do ponto de vista formal, porque a orientação não foi firmada a partir da questão central discutida no recurso especial representativo de controvérsia repetitiva e, antes, consistiu em mero obiter dictum do julgado. Sustenta, assim, a necessidade de o Superior Tribunal de Justiça revisitar a questão na sistemática dos recursos especiais repetitivos. Palavras-chave: Direito tributário. Execução fiscal. Prescrição. Interrupção. Precedente judicial. Sumário: Introdução. 1 Da incidência de lei ordinária em matéria de prescrição tributária. 1.1 Da prescrição em matéria tributária. 1.2 Da reserva de lei complementar. 1.3 Da aplicação do artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil em matéria tributária. 1.4 Do enfrentamento do tema no Recurso Especial nº 1.120.295/SP. 2 Da interrupção da prescrição como tema afetado ao rito dos recursos especiais repetitivos. 2.1 Da definição da “questão central discutida” na sistemática dos recursos especiais repetitivos. 2.2 Da “questão central discutida” no Recurso Especial nº 1.120.295/SP. 2.3 Da retroação da prescrição na vigência da Lei Complementar nº 118/2005 como obiter dictum do Recurso Especial nº 1.120.295/SP. Conclusões. Referências bibliográficas. Introdução A prática judiciária mostra que não é incomum o ajuizamento de execuções fiscais, por parte da Fazenda Pública, de forma temporalmente muito próxima da consumação da prescrição do crédito em cobrança. Os motivos podem ser das mais variadas ordens, mas fato é que isso tem tornado cada vez mais frequente, no Poder Judiciário, a discussão a respeito do termo ad quem do prazo prescricional do crédito executado. Em se tratando de crédito de natureza tributária, essa discussão ganha alguns contornos peculiares, não apenas por representar quantitativamente a grande maioria das execuções fiscais ajuizadas pelo poder público, mas principalmente por conta da especialidade das normas que regem a matéria. Um dos pontos de discussão reside na possível conjugação da interrupção do prazo prescricional pelo despacho citatório, prevista no artigo 174, parágrafo único, inciso I, do Código Tributário Nacional, com a retroação do marco interruptivo à data da propositura da ação, com assento legal no artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil. Como é sabido, a prescrição, em direito tributário, é tema reservado à lei complementar por expressa disposição constitucional (artigo 146, III, b, da Constituição Federal). Existem, porém, relevantes precedentes jurisprudenciais admitindo a incidência da norma de retroação, prevista em lei ordinária, nas execuções fiscais de créditos tributários. As controvérsias que giram em torno da questão, como não poderia deixar de ser, ultrapassam o plano teórico, gerando decisões conflitantes em demandas executivas similares. Contudo, em um Estado de direito em que se pretende conferir tratamento isonômico a todos os cidadãos, ainda mais estando em tema o poder de cobrar tributos, o ideal da segurança jurídica impõe a definição de uma solução homogênea para a questão, de modo a ser conferido tratamento uniforme para casos iguais. Nesse sentido, valioso instrumento de harmonização da jurisprudência foi introduzido no direito brasileiro pela Lei nº 11.672/2008, ao criar o chamado rito dos recursos especiais repetitivos, incrementando a missão constitucional do Superior Tribunal de Justiça de uniformizar a interpretação da lei federal em nível nacional. Com previsão legal no artigo 543-C do Código de Processo Civil, trata-se de instituto jurídico que objetiva unificar o julgamento de recursos especiais múltiplos, fundados em idêntica questão de direito, por meio da apreciação de um ou mais recursos paradigmas, que bem representem a proliferada controvérsia jurídica, tornando, senão vinculante, altamente persuasiva a orientação jurisprudencial firmada para os casos similares. Nesse contexto, não há dúvida de que a questão da retroação da interrupção do prazo prescricional em matéria tributária possui, quantitativa e qualitativamente, a relevância necessária para ser alçada ao procedimento do julgamento dos recursos especiais repetitivos e, assim, receber orientação definitiva e uniforme em todos os níveis jurisdicionais. Bem por isso, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça acabou por julgar o Recurso Especial nº 1.120.295/SP, que fora afetado à sistemática dos recursos representativos de controvérsia, assentando a aplicabilidade do disposto no artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil, em sede de prescrição tributária. Entretanto, apesar da noticiada definição sobre o tema, muitas vezes a jurisprudência de alguns Tribunais Regionais Federais e a do próprio Superior Tribunal de Justiça têm se mostrado renitentes em aplicar a orientação firmada no recurso especial paradigma. Ora afastando a retroação do marco interruptivo da prescrição com base em peculiaridades do caso concreto, ora sustentando que a tese viola a reserva de lei complementar, é inegável que existe um certo desconforto jurisprudencial com a orientação estabelecida pelo julgamento do Recurso Especial nº 1.120.295/SP, do que se extrai a necessidade de revisitar o tema. Por isso, a presente investigação parte da análise de dois aspectos fundamentais para a adequada compreensão do problema, o primeiro de ordem material e o segundo de ordem formal: (a) A tese jurídica firmada no julgamento do Recurso Especial nº 1.120.295/SP enfrentou adequadamente a questão da reserva de lei complementar ao determinar a aplicação de dispositivo de lei ordinária em matéria de prescrição tributária? (b) A tese jurídica firmada no julgamento do Recurso Especial nº 1.120.295/SP constitui precedente de observância obrigatória, nos termos do artigo 543-C do Código de Processo Civil? Busca-se, com este breve estudo, compreender se existe alguma razão para que, mesmo após o julgamento realizado pelo órgão jurisdicional de cúpula em matéria de direito federal infraconstitucional e na forma preconizada pelo artigo 543-C do Código de Processo Civil, permaneça a jurisprudência federal oscilando entre aplicar ou não a tese jurídica firmada no Recurso Especial nº 1.120.295/SP, no que toca à incidência do artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil, em sede de execução fiscal de crédito tributário, após a vigência da Lei Complementar nº 118/2005. 1 Da incidência de lei ordinária em matéria de prescrição tributária 1.1 Da prescrição em matéria tributária Talvez seja na prescrição que se verifica, de forma mais evidente, a influência do fator tempo no âmbito do Direito. O decurso do tempo, quando juridicizado, milita em favor da estabilidade e da segurança das relações jurídicas, seja conferindo a prerrogativa de incorporar ao patrimônio jurídico o direito desfrutado por extenso período, seja gerando a perda de uma pretensão ao indivíduo que longamente deixou de exercer a ação que resguardava direito subjetivo seu. No primeiro caso, tem-se a chamada prescrição aquisitiva, e, no segundo, a prescrição extintiva, que mais interessa à presente análise. A prescrição extintiva pode ser definida, tomando-se emprestada a clássica conceituação de Clóvis Beviláqua, como a “perda da ação atribuída a um direito, e de toda a sua capacidade defensiva, em consequência do não uso desta, durante determinado espaço de tempo”.(1) Esse conceito costuma ser decomposto pela doutrina civilista em três elementos: (a) a inércia do credor, ante a violação de um direito seu; (b) o decurso do período de tempo fixado na lei; e (c) a consequência da perda da ação de que todo o direito vem munido, de modo a privá-lo de capacidade defensiva.(2) É importante frisar que a prescrição, tal como concebida no direito civil e estendida para a maioria dos demais ramos do direito, não atinge o próprio direito subjetivo, mas faz perecer somente a ação ou, em termo mais moderno, a pretensão que o guarnece. Esse efeito extintivo acabou sendo sintetizado no artigo 189 do Código Civil, segundo o qual, “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição (...)”. Essa distinção entre extinção do direito e da pretensão possui importância fundamental no direito civil, o qual resguarda o cumprimento de obrigação efetuado mesmo após consumada a prescrição (v.g., artigo 882 do Código Civil). Já no direito tributário, as questões que giram em torno da prescrição assumem feições peculiares em diversos aspectos. Especificamente quanto às consequências de sua consumação, pode-se afirmar que aqui a prescrição possui um efeito qualificado: mais do que mera extinção de uma pretensão, a prescrição constitui causa de extinção do próprio crédito tributário, conforme disposto no artigo 156, V, do Código Tributário Nacional. É nesse sentido o magistério de Leandro Paulsen: “O art. 156, V, do CTN é inequívoco ao dispor no sentido de que a prescrição, assim como a decadência, extingue o próprio crédito tributário. Com isso, passamos a ter uma peculiaridade relevante no trato da prescrição em matéria tributária. Na medida em que a prescrição deixa de fulminar apenas a ação para extinguir o próprio direito, assemelha-se à decadência quanto aos seus efeitos. Com isso, decorrido o prazo prescricional, não há mais que se falar em crédito tributário. Daí o entendimento de que sempre foi possível, em matéria tributária, o reconhecimento de ofício da prescrição (...). Aliás, tornando-se insubsistente o crédito tributário, a execução perde o seu próprio objeto.”(3) Seja no direito civil, seja no tributário, à prescrição está arraigada a ideia de estabilidade e consolidação das relações jurídicas. Não há dúvida de que ela possui um aspecto desfavorável, na medida em que priva o proprietário daquilo que lhe pertence e impede o credor moroso de embolsar o que lhe é devido. Contudo, cumpre atender não só ao interesse individual, mas também e principalmente ao interesse social subjacente ao instituto: o de que situações de fato consagradas pelo tempo adquiram juridicidade, afastando a indefinida ameaça de desequilíbrio representada pela demanda e, no caso do direito tributário, pelas restrições causadas pela pendência de crédito tributário. Como afirmado por Silvio Rodrigues, “é do interesse da ordem e da paz social liquidar o passado e evitar litígios sobre atos cujos títulos se perderam e cuja lembrança se foi”.(4) Paralelamente ao interesse social, em que se funda a conveniência da prescrição, existe, inegavelmente, uma função de garantia ao devedor: a de que não será, a qualquer tempo e indefinidamente, demandado. Ver afastado o permanente risco de ser acionado judicialmente constitui requisito essencial para que possa planejar sua vida e suas relações jurídicas e, enfim, conhecer com segurança seu patrimônio jurídico. No campo tributário, conforme já sinalizado, essa garantia vai mais além, por dois motivos fundamentais: de um lado, porque a prescrição fulmina o próprio crédito tributário, de modo que o contribuinte não se vê apenas livre do risco de ser judicialmente cobrado em execução forçada, mas pode ter a segurança de que a sua dívida mesmo deixou de existir; de outro, porque o risco de ser demandado judicialmente não constitui a única restrição que o contribuinte com débitos tributários em aberto possui, uma vez que a pendência de crédito tributário exigível lhe acarreta uma série de outras limitações, como, por exemplo, a impossibilidade de expedição de certidão negativa de débitos fiscais e de contratar com o poder público. É o que lembra o tributarista Hugo de Brito Machado, ao comentar o efeito da prescrição em matéria tributária: “O CTN, todavia, diz expressamente que a prescrição extingue o crédito tributário (art. 156, V). Assim, nos termos do Código, a prescrição não atinge apenas a ação para cobrança do crédito tributário, mas o próprio crédito, vale dizer, a relação material tributária. Em síntese, porque a prescrição extingue o crédito tributário e, por conseguinte, restaura direitos do sujeito passivo (como o de obter certidão negativa de débitos), constitui ela garantia fundamental ao contribuinte, caracterizada como importante limitação ao poder do Estado de tributar e de cobrar tributos, conforme adiante se retomará. 1.2 Da reserva de lei complementar A Constituição Federal de 1988 reservou algumas matérias, no campo do sistema tributário nacional, à regulação somente por lei complementar. No que interessa ao presente estudo, vale transcrever o artigo 146, incisos II e III, alínea b, do texto constitucional: “Art. 146. Cabe à lei complementar: Interpretando o que a Constituição Federal pretende significar quando fala sobre normas gerais em matéria de legislação tributária, Paulo de Barros Carvalho aponta certa redundância da Carta Constitucional ao incluir nessa classe as normas sobre limitações constitucionais ao poder de tributar: “Qual a compreensão que devemos ter do papel a ser cumprido pelas normas gerais de direito tributário, no novo sistema? Evidentemente, o detalhamento que as alíneas conferem ao citado inciso III demonstra que a Constituição pretendeu conferir certa autonomia às normas gerais sobre legislação tributária em relação às limitações ao poder de tributar e mesmo sobre os conflitos de competência em matéria tributária. É dizer, existem outras tantas matérias que merecem tratamento jurídico uniforme para todas as pessoas políticas, ainda que não se liguem diretamente ao poder de tributar e aos conflitos de competência. No entanto, inegavelmente existe um certo ponto de sobreposição entre a pretensão de reservar à lei complementar a regulação das limitações ao poder de tributar e o estabelecimento de normas gerais de direito tributário. Na verdade, essa sobreposição poderia ser exemplificada graficamente por dois círculos, um contido no outro, em que o primeiro se refere às limitações do poder de tributar e o segundo, maior, às normas gerais em matéria de legislação tributária. De qualquer forma, como antes salientado, a prescrição do crédito tributário não apenas constitui matéria cuja uniformização é recomendada como também se liga intimamente ao próprio poder do Estado de exigir tributos, reclamando, assim, tratamento exclusivo por lei complementar, independentemente de expressa previsão no texto constitucional, como, ao fim e ao cabo, houve. Visto que compete à lei complementar estabelecer normas gerais sobre prescrição em direito tributário, resta saber se a expressão “normas gerais” alcança minúcias como prazos e causas de suspensão e interrupção do prazo prescricional. De início, importa ressaltar que o termo “gerais” não é sinônimo de “genéricas” no contexto da norma constitucional, conforme assentado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 433.352 AgR: “(...) A observância de normas gerais em matéria tributária é imperativo de segurança jurídica, na medida em que é necessário assegurar tratamento centralizado a alguns temas para que seja possível estabilizar legitimamente expectativas. Nesse contexto, ‘gerais’ não significa ‘genéricas’, mas sim ‘aptas a vincular todos os entes federados e os administrados’ (...).” (STF, RE 433352 AgR, Relator(a): Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, julgado em 20.04.2010, DJe-096, Divulg. 27.05.2010, Public. 28.05.2010, Ement. VOL-02403-05, PP-01353, RDDT n. 179, 2010, p. 188-191) Por outro lado, a doutrina de Leandro Paulsen ensina que a reserva de lei complementar para o tratamento das normas gerais abrange a prescrição nos seus diversos aspectos, incluindo prazos e causas suspensivas e interruptivas: “O art. 146, III, b, da CF, ao exigir lei complementar para dispor sobre normas gerais de Direito Tributário, refere-se expressamente à decadência e à prescrição. A prescrição é, assim, considerada pela própria Constituição, inequivocamente, norma geral de Direito Tributário sob reserva de lei complementar. E, como não se pode conceber prescrição sem termo inicial ou sem prazo, tampouco negar que as suspensões ou interrupções interferem diretamente na sua contagem, impõe-se concluir que todos esses aspectos, pois, estão sob reserva de lei complementar. Assim, não têm validade termos, prazos, hipóteses de suspensão ou de interrupção estabelecidos por lei ordinária, que desbordem do regime constante do CTN, recepcionado que foi este como lei complementar.”(7) A assertiva possui amparo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a inconstitucionalidade da fixação de prazos prescricionais diferenciados, em matéria tributária, por lei ordinária. Caso clássico se refere ao art. 46 da Lei nº 8.212/1991, que estipulava prazo prescricional de 10 anos para a cobrança dos créditos da Seguridade Social, inclusive os de natureza tributária.(8) Quanto à suspensão do prazo prescricional, a Corte Constitucional declarou a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977, o qual estabelecia a suspensão da prescrição de créditos de pequeno valor, por invadir matéria reservada à lei complementar. Juntamente com o caso anteriormente citado, a questão foi objeto da Súmula Vinculante nº 8, cujo teor é: “São inconstitucionais o parágrafo único do art. 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário”. O Supremo Tribunal Federal afastou, ainda, ao julgar o RE 106.217, a suspensão da prescrição por tempo indefinido com base no art. 40 da Lei nº 6.830/1980, por ser incompatível com o disposto no Código Tributário Nacional, recepcionado com status de lei complementar.(9) Também o Superior Tribunal de Justiça possui precedentes no sentido de que o § 3º do art. 2º da Lei nº 6.830/1980, que estabelece a suspensão da prescrição por 180 dias pela inscrição da dívida, não se aplica em matéria tributária, porquanto haveria hipótese de suspensão do prazo prescricional criada por lei ordinária.(10) Enfim, quanto à interrupção da prescrição, a Corte Superior de Justiça reconheceu a inconstitucionalidade do art. 8º, § 2º, da mesma Lei de Execuções Fiscais, que estabelece que "O despacho do juiz que ordenar a citação interrompe a prescrição”, por dispor de forma diferente do estipulado no art. 174, parágrafo único, inciso I, do Código Tributário Nacional, em redação anterior à Lei Complementar nº 118/2005, que dispunha que a interrupção da prescrição se dava pela citação pessoal feita ao devedor.(11) Como se vê, existe amparo doutrinário e jurisprudencial sólido no sentido de que as questões dos prazos e das causas suspensivas e interruptivas da prescrição constituem matérias inerentes às normas gerais de direito tributário e, portanto, reservadas à lei complementar. De fato, pouco adiantaria reservar-se à lei complementar a estipulação apenas dos prazos prescricionais se, por meio de lei ordinária, fosse possível estipular causas suspensivas e interruptivas da prescrição. Sem dúvida, haveria verdadeira burla à reserva de lei complementar, pois, no caso da suspensão, poder-se-ia prorrogar indefinidamente o lapso prescricional e, em se tratando de interrupção, alargar-se, na prática, os prazos fixados em lei complementar. Esta última observação, por manter estreita relação com o objeto deste estudo, será melhor analisada no tópico subsequente. 1.3 Da aplicação do artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil em matéria tributária O artigo 219 do Código de Processo Civil dispõe que a citação válida da parte demandada interrompe a prescrição. Já de seus parágrafos se extrai que, feita a citação no prazo legal, a interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação. Vale transcrever o dispositivo e seus §§ 1º a 4º: “Art. 219. A citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa; e, ainda quando ordenada por juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição. De início, importa ressaltar que o § 1º supracitado foi introduzido no Código de Processo Civil pela Lei Ordinária nº 8.952/1994, portanto, em princípio, não poderia dispor sobre prazo prescricional em matéria tributária, reservado à lei complementar. De resto, a determinação de que a interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação constitui, na prática, a alteração do marco interruptivo estipulado em lei complementar, em desfavor do contribuinte-executado, passando a ser não mais o despacho citatório, mas a propositura da ação. A essa conclusão chegou o voto condutor do julgamento do Recurso Especial nº 1.120.295/SP, assentando expressamente que, “Se a interrupção retroage à data da propositura da ação, isso significa que é a propositura, e não a citação, que interrompe a prescrição”. Não é absurdo cogitar – e a experiência judiciária mostra ser frequente – de execução fiscal ajuizada dias antes da consumação da prescrição do crédito tributário em cobrança. Possui o juiz o prazo de dois dias para despachar a petição inicial (artigo 189, I, do Código de Processo Civil), mas não é incomum, na prática, que o despacho ordenatório da citação do executado somente ocorra após consumada a prescrição, na forma do artigo 174, parágrafo único, inciso I, do Código Tributário Nacional, seja porque o despacho inicial determinou a emenda da petição inicial, seja em decorrência de simples atraso motivado pela carga excessiva de processos (realidade da maioria das varas de execuções fiscais no Brasil). Em caso assim, estaria a Fazenda Pública albergada da prescrição, pela retroação da interrupção do prazo prescricional, promovida pelo § 1º do artigo 219 do Código de Processo Civil. Isso representa verdadeira alteração do marco interruptivo estipulado pelo Código Tributário Nacional, que possui status de lei complementar, mediante aplicação de lei ordinária. É certo que a prescrição, tradicionalmente, sempre esteve ligada à ideia de inércia do credor, de modo que, cessada a sua inércia pela propositura da ação, não faz sentido prosseguir o curso do prazo prescricional. Nesse sentido, a inércia da Fazenda Pública cessa com o ajuizamento da execução fiscal, devendo ser esse, com base nessa orientação, o termo ad quem da prescrição. No entanto, conforme bem lembrado por Luciano Amaro, não é estranha à sistemática do Código Tributário Nacional a possibilidade de correr prazo fatal contra o Fisco sem que nenhuma conduta dele seja exigível. É, por exemplo, o caso do chamado lançamento por homologação, em que o prazo decadencial retroage à data em que se considera ocorrido o fato gerador, mesmo que a declaração do contribuinte somente seja apresentada em momento posterior.(12) O tributarista prossegue, trazendo os ensinamentos de Aliomar Baleeiro sobre a questão, para sustentar que o sistema tributário brasileiro convive com hipóteses em que corre a prescrição sem que se possa atribuir ao Fisco desídia: “Baleeiro, em longo arrazoado, sustenta que as causas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário suspendem a exigibilidade, e não a prescrição; a interpretação literal nessa matéria (expressamente determinada pelo art. 111, I, do CTN) impede extensão do comando da lei, que não dá às causas suspensivas da exigibilidade (art. 151) o efeito de suspender a prescrição; interposta uma reclamação ou um recurso, as autoridades devem ser céleres no exame dos processos, não podendo tirar proveito de sua própria negligência; a solução de lege ferenda, a exemplo da Argentina, poderia ser a suspensão (por norma expressa e por prazo curto); por fim, aduz o financista que, em matéria reservada à lei (art. 97, VI), sujeita a interpretação literal (art. 111, I), não cabe a invocação de parêmias (como aquela segundo a qual contra non valentem agere non currit praescriptio), pois o préstimo dos brocardos (que não se confundem com princípios) está em ilustrar o que a lei estatuiu, não podendo contrariá-la; por fim, anota que o único caso em que não corre a prescrição na pendência de causa de suspensão da exigibilidade está expresso no Código Tributário Nacional, art. 155, parágrafo único, não extensível a outras situações.”(13) Em que pese não tratar da questão da fluência do prazo prescricional após a propositura da ação de cobrança, o magistério de Luciano Amaro demonstra muito bem que a mera existência de inconsistências no sistema tributário nacional não autoriza que, sem amparo legal válido e menos ainda contra legem, sejam resolvidas em desfavor do contribuinte. Sobretudo no caso da prescrição tributária, em que se cuida de garantia do contribuinte reservada à disposição por lei complementar, está vedado ao intérprete buscar resolver a incoerência ora versada em prejuízo do contribuinte. Cabe salientar que a questão da interrupção da prescrição pelo despacho que determina a citação do sujeito passivo não comporta lacuna ou ambiguidade, para que se possa valer da norma de integração prevista no artigo 108 do Código Tributário Nacional. Em situação análoga, já teve o próprio Superior Tribunal de Justiça a oportunidade de rechaçar a incidência desse dispositivo, por entender que sua aplicação não cabe nos casos em que a matéria já se encontra regulada integralmente por normas próprias: “A interpretação a contrario sensu do art. 108 do CTN conduz à conclusão no sentido de que a extensa regulamentação emanada das autoridades administrativas impõe-se como óbice à integração da legislação tributária pela lei civil (...)”.(14) Enfim, resta analisar se o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.120.295/SP, enfrentou adequadamente a questão da aplicação de lei ordinária em matéria reservada à lei complementar. É o que se passa a fazer. 1.4 Do enfrentamento do tema no Recurso Especial nº 1.120.295/SP A aplicação conjugada do artigo 174, parágrafo único, inciso I, do Código Tributário Nacional com o artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil foi alcançada no julgamento do Recurso Especial nº 1.120.295/SP mediante simples constatação de que a inércia do exequente – elemento próprio do instituto da prescrição – encerra-se com a propositura da ação. Confiram-se os mais pertinentes excertos do voto condutor do precedente em exame: “Contudo, é certo que o surgimento do fato jurídico prescricional pressupõe o decurso do intervalo de tempo prescrito em lei associado à inércia do titular do direito de ação (direito subjetivo público de pleitear prestação jurisdicional) pelo seu não exercício, desde que inexistente fato ou ato a que a lei atribua eficácia impeditiva, suspensiva ou interruptiva do curso prescricional. Como visto, para se chegar à posição firmada no julgamento do Recurso Especial nº 1.120.295/SP, não houve nenhuma menção à aplicação de norma prevista em lei ordinária em matéria reservada à lei complementar, em que pese o aparente confronto com o disposto no artigo 146, III, b, da Constituição Federal. Trata-se de precedente relevante, a que se atribui ter sido julgado sob o rito dos recursos especiais repetitivos (artigo 543-C do Código de Processo Civil). Nada mais natural que precedente que se pretenda de observância obrigatória esgote ou, ao menos, procure esgotar os fundamentos jurídicos envoltos na questão a ser julgada. Bem por isso, ao regulamentar os procedimentos relativos ao processamento e ao julgamento de recursos especiais repetitivos, o Superior Tribunal de Justiça editou a Resolução nº 08, de 07.08.2008, segundo a qual, em seu artigo 1º, § 1º, devem ser selecionados para julgamento os recursos “que contiverem maior diversidade de fundamentos no acórdão e de argumentos no recurso especial”, objetivando que a decisão enfrente da forma mais completa possível todos os vieses envoltos na questão. Cumpre, pois, anotar que, em especial, os Tribunais Regionais Federais da 3ª e da 4ª Regiões possuem precedentes negando aplicação da orientação firmada no Recurso Especial nº 1.120.295/SP, por contrariar o disposto no artigo 146, III, b, da Constituição Federal. Confiram-se trechos dos acórdãos: “– O disposto no § 1º do artigo 219 do Código de Processo Civil, segundo o qual a interrupção da prescrição deve retroagir à propositura da ação, não se aplica à espécie, porquanto a Constituição Federal expressamente determina que cabe à lei complementar dispor acerca de normas gerais em matéria tributária, especialmente sobre prescrição. (...)” (TRF 3ª Região, Quarta Turma, AC 0041655-69.2004.4.03.6182, Rel. Desembargador Federal Andre Nabarrete, julgado em 02.10.2014, e-DJF3 Judicial 1, Data: 17.10.2014) “5. A orientação desta Turma é de que o art. 219, § 1º, do CPC, isoladamente, mostra-se inaplicável aos executivos fiscais de natureza tributária, pois nos executivos fiscais deve ser observado o disposto no art. 174, parágrafo único, do CTN, por se tratar de legislação específica, sendo o Código de Processo Civil aplicado apenas subsidiariamente, nos termos do art. 1º da Lei nº 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais), quando não houver regra disciplinando a matéria. 6. A inaplicabilidade do art. 174 do CTN (com redação anterior à LC nº 118/05) às execuções fiscais ajuizadas anteriormente à lei complementar implica violação da cláusula de reserva de plenário e enseja reclamação por infringência da Súmula Vinculante nº 10, verbis: ‘Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte’. (...)” (TRF4, AC 0012599-75.2012.404.9999, Segunda Turma, Relatora Luciane Amaral Corrêa Münch, D.E. 30.04.2013) Nesse sentido, a crítica que faz a doutrina aos Tribunais Regionais Federais em relutar em seguir a orientação jurisprudencial firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, mesmo em sede de recurso especial repetitivo,(16) deve ser temperada pela consideração não apenas do aspecto formal do julgamento, consistente no fato de ter sido proferido na forma do artigo 543-C do Código de Processo Civil, mas também do aspecto material da decisão, ou seja, da legitimidade do precedente para se tornar obrigatório por força da qualidade do julgamento. Sendo assim, a conclusão natural a que se chega é de que a orientação jurídica firmada no Recurso Especial nº 1.120.295/SP, quanto à aplicação do artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil, não se presta como precedente capaz de se fazer observar pelas instâncias jurisdicionais ordinárias, uma vez que relevante fundamento em torno da questão jurídica, apto a provocar mudança na orientação jurisprudencial, não foi apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça. Nesse aspecto, recomendável seria o Superior Tribunal de Justiça revisitar a questão, enfrentando-a em todos os seus nuances fundamentais, de modo a consolidar de vez a posição já adotada ou adotar orientação diversa.(17) 2 Da interrupção da prescrição como tema afetado ao rito dos recursos especiais repetitivos 2.1 Da definição da “questão central discutida” na sistemática dos recursos especiais repetitivos Ainda é recente a reação da comunidade jurídica nacional contra mazelas que atingem o sistema judicial brasileiro. Morosidade da justiça, imprevisibilidade das decisões, proliferação de infindáveis recursos, instabilidade da jurisprudência são questões levantadas para justificar pequenas, mas importantes, mudanças no Poder Judiciário. Talvez o grande passo tenha sido dado com a chamada Reforma do Judiciário, por meio da Emenda Constitucional nº 45/2004, a qual, entre tantas outras inovações, instituiu verdadeiro filtro de recursos remetidos ao Supremo Tribunal Federal, por meio da necessidade de demonstração da repercussão geral das questões constitucionais discutidas, como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário (art. 102, § 3º, da Constituição Federal). O novo instituto foi regulamentado pela Lei nº 11.418/2006, que acrescentou os artigos 543-A e 543-B ao Código de Processo Civil, instituindo o julgamento por amostragem dos processos com repercussão geral reconhecida. Como desdobramento dessas inovações processuais, em 2008 foi introduzido no Código de Processo Civil, pela Lei nº 11.672/2008, o artigo 543-C, o qual dispõe sobre regras para julgamento de recursos especiais múltiplos, “com fundamento em idêntica questão de direito”, merecendo ainda regulamentação, em nível infralegal, pela Resolução nº 08/2008 do Superior Tribunal de Justiça. De acordo com essa sistemática, no caso de múltiplos recursos especiais orbitando o mesmo tema, “caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo” do Tribunal Superior (art. 543-C, § 1º). Anote-se que a doutrina especializada defende se tratar de mecanismo de objetivação do julgamento dos recursos especiais, com a análise, em abstrato, de questões reiteradamente conduzidas à apreciação daquela Corte Superior.(18) A partir do julgamento de um ou mais casos selecionados como paradigmas, o Superior Tribunal de Justiça assenta seu entendimento, o qual passa a orientar a atuação das instâncias ordinárias. É importante referir que o procedimento previsto tanto no Código de Processo Civil quanto na Resolução nº 08/2008 do Superior Tribunal de Justiça visa a assegurar que o recurso selecionado seja o mais representativo possível da controvérsia e a decisão tomada seja a que da melhor forma possível enfrente a questão submetida a julgamento, justamente por constituir precedente a ser observado pelas instâncias inferiores. Nesse sentido, quanto ao recurso a ser afetado ao procedimento especial, merecem destaques as disposições da Resolução nº 08/2008 do STJ, no sentido de que, como dito alhures, devem ser selecionados os recursos “que contiverem maior diversidade de fundamentos no acórdão e de argumentos no recurso especial” (artigo 1º, § 1º). Para facilitar a compreensão da controvérsia posta a julgamento, dispõe a Resolução que “O agrupamento de recursos repetitivos levará em consideração apenas a questão central discutida (...)” (artigo 1º, § 2º). Por outro lado, visando atingir a máxima qualidade da decisão a ser tomada, o Código de Processo Civil estabelece ainda que o relator poderá solicitar aos tribunais federais e estaduais informações a respeito da controvérsia jurídica (artigo 543-C, § 3º), bem como pluralizar o debate mediante a admissão de manifestações de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia (artigo 543-C, § 4º). O primeiro passo para uma adequada decisão, que bem represente a controvérsia jurídica que se multiplica no Poder Judiciário e enfrente adequadamente todas as questões postas em debate, passa pela correta identificação da “questão central discutida”. Sem que isso se faça, não poderão estar os Ministros da Corte Superior, que julgarão a questão, bem instruídos sobre o tema em julgamento. Não saberão, ainda, os tribunais federais e estaduais inferiores prestar adequadamente as informações deles esperadas. Enfim, os terceiros admitidos como amici curiae no processo estarão sujeitos à apresentação de manifestações irrelevantes ou até mesmo tumultuárias. Bem por isso, há quem sustente que os recursos monotemáticos devem ter primazia sobre os politemáticos, de forma a melhor clarificar a tese a ser discutida no procedimento dos recursos repetitivos. Confira-se a doutrina de Erik Navarro Wolkart: “Já que se vai tomar decisão em caráter objetivo, com influxo direto sobre múltiplos processos sobrestados – quiçá em todo o país –, melhor que se faça a partir da questão isolada, sem a influência de outras, adjacentes, turbadoras do tema repetitivo. Questão interessante que da admissão de recursos politemáticos se extrai consiste em saber se esses temas periféricos, que necessariamente devem compor o julgamento do recurso paradigma – porquanto, apesar da objetivação do julgamento, o Superior Tribunal de Justiça não está desobrigado de julgar o caso concreto –, constituirão também a orientação jurídica cuja observância o § 7º do artigo 543-C do Código de Processo Civil impõe ao tribunais de segunda instância. A conclusão que deflui do artigo 543-C do Código de Processo Civil e da Resolução nº 08/2008 do Superior Tribunal de Justiça somente pode ser negativa. Como visto, existe um procedimento estabelecido para identificar a “questão central discutida” nesses recursos repetitivos, agrupando-os por tema. A própria concepção de uma “multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito”, como dispõe o Código, indica que o instituto se dedica a solver apenas a controvérsia jurídica que origina a abundância de processos. Depois, a identificação da quaestio iuris a ser definida possui relevância fundamental para que se colham informações dos tribunais inferiores e se admita a manifestação de terceiros, sendo inviável esperar que venham a contribuir com todas as questões postas em juízo nos casos singulares tomados como paradigmas. É certo que não se pode esperar que o julgamento seja cindido entre o que constitui a questão central discutida, de competência da Seção ou da Corte Especial (artigo 543-C, § 6º), e o que constitui questão adjacente, ordinariamente de competência das Turmas. Evidentemente, trata-se de caso de afetar o julgamento todo ao órgão mais abrangente, o que é admitido pelo Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça (artigo 34, XII). No entanto, isso não significa que de todo o julgamento, em todas as suas nuances, possam ser extraídas orientações jurídicas autônomas para o fim a que se presta o instituto dos recursos especiais repetitivos. Nesse caso, impõe-se ao Tribunal não apenas identificar adequadamente a “questão central discutida”, como também sintetizar de forma mais clara possível a tese jurídica cuja observância pelas instâncias inferiores se requer. Assentada a premissa de que somente a orientação extraída da questão central discutida vale para os fins previstos no artigo 543-C, § 7º, do Código de Processo Civil, cabe examinar qual a tese jurídica firmada a partir do julgamento do Recurso Especial nº 1.120.295/SP. 2.2 Da “questão central discutida” no Recurso Especial nº 1.120.295/SP A importante tarefa de se identificar a “questão central discutida” em recurso especial selecionado para julgamento na sistemática do artigo 543-C do Código de Processo Civil foi muito bem cumprida pelo Ministro Luiz Fux, relator do Recurso Especial nº 1.120.295/SP, ao sintetizar a controvérsia, logo no início do voto condutor, nos seguintes termos: “A insurgência especial cinge-se à definição do termo inicial do prazo prescricional para o exercício da pretensão de cobrança judicial dos créditos tributários declarados pelo contribuinte, mas não pagos na época oportuna.” De fato, a controvérsia que levou a afetação do Recurso Especial nº 1.120.295/SP ao procedimento de julgamento dos recursos especiais repetitivos não diz respeito ao termo ad quem, mas ao termo a quo do prazo prescricional da execução forçada de créditos tributários, particularmente quando constituídos mediante declaração do contribuinte. Analisando detidamente o precedente em questão,(20) é possível perceber que o caso tratava de embargos à execução fiscal, em que se alegava a prescrição dos créditos tributários executados, por ter decorrido o quinquênio legal desde a apresentação da declaração de imposto de renda pelo contribuinte. Em primeiro grau de jurisdição, o julgador singular rejeitou os embargos, ao entendimento de que o prazo prescricional somente foi iniciado cinco anos após a entrega da declaração pelo contribuinte, computando antes o prazo que a Fazenda possuía para lançar o tributo (artigo 173, I, do Código Tributário Nacional). Já em segundo grau de jurisdição, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, os embargos foram acolhidos à consideração de que a prescrição se iniciou com a entrega da declaração de rendimentos pelo contribuinte. Aspecto que merece ser destacado do acórdão regional diz respeito à aplicação do entendimento segundo o qual é a propositura da ação o marco interruptivo do lapso prescricional. Confira-se: “Ademais e superiormente, entende a Egrégia Terceira Turma desta Colenda Corte pela incidência do consagrado por meio da Súmula 106 do E. STJ, segundo a qual é suficiente a propositura da ação para interrupção do prazo prescricional: portanto, ajuizado o executivo em pauta em 05.03.2002 (fls. 35), foi consumado o evento prescricional para os débitos supracitados.” Evidentemente, a adoção dessa tese pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, com aplicação da Súmula nº 106 do STJ, favoreceu a parte exequente (Fazenda Nacional), que desse aspecto do acórdão não poderia ter recorrido, insurgindo-se apenas quanto ao termo inicial do prazo prescricional, para sustentar, na linha do que decidido em primeira instância, que a prescrição somente se inicia após escoado o prazo previsto no artigo 173, I, do Código Tributário Nacional, ou seja, prazo de cinco anos em que o tributo poderia ter sido lançado pelo Fisco. Enfim, sobreveio o julgamento do recurso especial, tendo a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça assentado a orientação sobre a controvérsia repetitiva no sentido de que, como a entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo o débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensando qualquer outra providência por parte do Fisco, o prazo prescricional quinquenal para cobrança judicial conta-se da data estipulada como vencimento para pagamento da obrigação tributária declarada, porém não adimplida. Como se percebe, a controvérsia que fez instaurar o procedimento previsto no artigo 543-C do Código de Processo Civil, ou seja, a “questão central discutida”, ficou adstrita ao dies a quo do prazo prescricional no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, quando o contribuinte cumpre a obrigação acessória de declarar a exação devida, porém deixa de efetuar o pagamento do tributo no prazo legal. Verifica-se, portanto, que a questão da interrupção do prazo prescricional, bem como de sua retroação à data da propositura da ação, constituía tema adjacente no Recurso Especial nº 1.120.295/SP, não se prestando, por isso, para vincular as instâncias ordinárias na forma do § 7º do artigo 543-C do Código de Processo Civil. Visto que a conjugação do artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil com o artigo 174, parágrafo único, inciso I, do Código Tributário Nacional, após a entrada em vigor da Lei Complementar nº 118/2005, não constituía a “questão central discutida” no Recurso Especial nº 1.120.295/SP, cabe examinar se a questão constituiu a ratio decidendi do julgado ou mero obiter dictum. É o que se passa a fazer no tópico seguinte. 2.3 Da retroação da prescrição na vigência da Lei Complementar nº 118/2005 como obiter dictum do Recurso Especial nº 1.120.295/SP Nesse ponto, convém relembrar a classificação, originária do common law, segundo a qual os argumentos existentes na fundamentação da decisão judicial se dividem em ratio decidendi e em obiter dictum. O processualista Fredie Didier Jr. oferece definição bastante pedagógica a respeito da classificação: “A ratio decidendi – ou, para os norte-americanos, a holding – são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi; trata-se da tese jurídica acolhida pelo órgão julgador no caso concreto.”(21) “O obiter dictum (obiter dicta, no plural), ou simplesmente dictum, consiste nos argumentos que são expostos apenas de passagem na motivação da decisão, consubstanciando juízos acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro elemento que não tenha influência relevante e substancial para a decisão (‘prescindível para o deslinde da controvérsia’). Normalmente é definido de forma negativa: é obiter dictum a proposição ou regra de Direito que não compuser a ratio decidendi. É apenas algo que se fez constar ‘de passagem’, não podendo ser utilizado com força vinculativa por não ter sido determinante para a decisão.”(22) Por fim, valendo-se da doutrina de Cruz e Tucci, arremata o processualista baiano ao afirmar que somente a ratio decidendi possui aptidão para constituir o precedente judicial: “De acordo com Cruz e Tucci, ‘todo precedente é composto de duas partes distintas: a) as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório’. Assim, embora comumente se faça referência à eficácia obrigatória ou persuasiva do precedente, deve-se entender que o que tem caráter obrigatório ou persuasivo é a sua ratio decidendi, que é apenas um dos elementos que compõem o precedente.”(23) Prosseguindo na análise do julgamento do Recurso Especial nº 1.120.295/SP, é possível verificar que tanto na ementa quanto no voto condutor do acórdão constou a passagem, senão mais emblemática, que mais tem gerado controvérsias na jurisprudência federal. Confira-se o teor do item 14 da ementa do julgado: “14. O Codex processual, no § 1º do artigo 219, estabelece que a interrupção da prescrição, pela citação, retroage à data da propositura da ação, o que, na seara tributária, após as alterações promovidas pela Lei Complementar 118⁄2005, conduz ao entendimento de que o marco interruptivo atinente à prolação do despacho que ordena a citação do executado retroage à data do ajuizamento do feito executivo, a qual deve ser empreendida no prazo prescricional.” Disso se extrai a conclusão de que o disposto no § 1º do artigo 219 do Código de Processo Civil não seria aplicável somente à redação anterior do artigo 174, parágrafo único, inciso I, do Código Tributário Nacional, que dispunha que a prescrição era interrompida pela citação do devedor, época em que a questão recebia tratamento similar em um e outro códigos. Do excerto é possível inferir a tese de que a retroação da prescrição alcança até mesmo a nova redação do artigo 174, parágrafo único, inciso I, do Código Tributário Nacional, conferida pela Lei Complementar nº 118/2005, para assentar que a interrupção da prescrição se dá “pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal”. Contudo, exame detido do julgado revela que a matéria posta em julgamento não comportava a aplicação da Lei Complementar nº 118/2005, no que alterou para o despacho citatório o marco interruptivo da prescrição. Confira-se o item 18 da ementa: “18. Consequentemente, tendo em vista que o exercício do direito de ação deu-se em 05.03.2002, antes de escoado o lapso quinquenal (30.04.2002), iniciado com a entrega da declaração de rendimentos (30.04.1997), não se revela prescrita a pretensão executiva fiscal, ainda que o despacho inicial e a citação do devedor tenham sobrevindo em junho de 2002.” Ora, a Lei Complementar nº 118/2005 somente entrou em vigor no dia 09 de junho de 2005 (artigo 4º), muito depois, portanto, das datas da propositura da execução fiscal (05.03.2002), do despacho que ordenou a citação e mesmo da efetiva citação (junho de 2002). O próprio Superior Tribunal de Justiça assentou, no julgamento do Recurso Especial nº 999.091/RS,(24) representativo de controvérsia, que a retroatividade da interrupção da prescrição somente alcança as execuções fiscais ajuizadas antes de 09.06.2005 se o despacho ordenador da citação tenha ocorrido quando já em vigor a Lei Complementar nº 118/2005, o que evidentemente não é o caso. Desse modo, a afirmação de que o artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil deve ser aplicado conjuntamente com o artigo 174, parágrafo único, inciso I, do Código Tributário Nacional, mesmo após a entrada em vigor da Lei Complementar nº 118/2005, em julgamento em que a incidência dessa lei complementar não estava em jogo, constitui nada mais do que mero obiter dictum do eminente relator. Sendo assim, a orientação não possui aptidão para compor ou se tornar um verdadeiro precedente, muito menos um precedente vinculante. Conclusões 1. A Constituição Federal de 1988 reservou a matéria da prescrição no direito tributário à disciplina por lei complementar, não apenas por considerá-la merecedora de tratamento uniforme por todas as pessoas políticas, como também por erigi-la a limitação do poder de cobrar tributos. 2. A definição dos prazos prescricionais e das hipóteses de suspensão e de interrupção da prescrição insere-se na reserva de lei complementar, estatuída pela Constituição Federal. 3. A reserva de lei complementar para disciplinar a matéria da prescrição tributária torna inviável a aplicação do art. 219, § 1º, do Código de Processo Civil às execuções fiscais de crédito tributário, por consistir em norma prevista em lei ordinária. 4. A mera inconsistência do sistema tributário nacional, ao permitir o prosseguimento do curso da prescrição tributária após o ajuizamento da execução fiscal, não autoriza ao intérprete aplicar, contra legem e em desfavor do contribuinte, norma prevista em lei ordinária em matéria reservada à lei complementar. 5. O julgamento do Recurso Especial nº 1.120.295/SP, ao determinar a aplicação do art. 219, § 1º, do Código de Processo Civil às execuções fiscais de crédito tributário, não levou em consideração a reserva de lei complementar para dispor sobre prescrição tributária, de modo que perde legitimidade como precedente judicial a ser observado na forma do artigo 543-C do Código de Processo Civil. 6. A orientação jurídica a ser assentada pelo Superior Tribunal de Justiça e observada pelas instâncias judiciais ordinárias, na forma do artigo 543-C do Código de Processo Civil, refere-se apenas àquela extraída diretamente da “questão central discutida” nos recursos especiais selecionados como representativos de controvérsia, e não das questões adjacentes presentes no recurso. 7. A questão central discutida no Recurso Especial nº 1.120.295/SP diz respeito ao termo inicial do prazo prescricional para o exercício da pretensão de cobrança judicial dos créditos tributários declarados pelo contribuinte, mas não pagos na época própria. Assim, por não constituir questão central discutida no recurso, a interrupção da prescrição pelo despacho citatório e a correlata retroação do marco interruptivo à propositura da ação, na forma do artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil, não constitui precedente vinculante. 8. A orientação jurídica extraída do Recurso Especial nº 1.120.295/SP, no sentido de que se aplica o artigo 219, § 1º, do Código de Processo Civil às execuções fiscais de crédito tributário conjuntamente com o artigo 174, parágrafo único, inciso I, do Código Tributário Nacional, na redação conferida pela Lei Complementar nº 118/2005, constitui mero obiter dictum do acórdão, não configurando sequer precedente judicial, muito menos vinculante. 9. Assim, seja porque o decidido no Recurso Especial nº 1.120.295/SP não possui legitimidade material para firmar-se como precedente judicial vinculante, seja porque, formalmente, era diversa a questão central nele discutida e mesmo a sua ratio decidendi, pode-se concluir que inexiste precedente judicial vinculante cuja orientação seja a retroação da interrupção da prescrição ao ajuizamento de execução fiscal de crédito tributário na vigência da Lei Complementar nº 118/2005, pelo que cumpre ao Superior Tribunal de Justiça definir, na forma do artigo 543-C do Código de Processo Civil, sua orientação quanto à matéria. Referências bibliográficas AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. 4. ed. Salvador: JusPodium, 2009. v. 2. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 30. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. MONTEIRO, Washington de Barros; FRANÇA PINTO, Ana Cristina de Barros Monteiro. Curso de direito civil: Parte Geral. 42. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 1. PAULSEN, Leandro. Direito tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 16. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Esmafe, 2014. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Parte Geral. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. WOLKART, Erik Navarro. Precedente judicial no processo civil brasileiro: mecanismos de objetivação do processo. Salvador: JusPodium, 2013. Notas
1. BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Apud MONTEIRO, Washington de Barros; FRANÇA PINTO, Ana Cristina de Barros Monteiro. Curso de direito civil: Parte Geral. 42. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 1. p. 353. 3. PAULSEN, Leandro. Direito tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 16. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Esmafe, 2014. Comentário ao art. 156, V, do CTN. p. 1227. 5. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 30. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 224. 6. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 266. 8. STF, RE 559943, Relator(a): Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 12.06.2008, Repercussão Geral – Mérito, DJe-182, Divulg. 25.09.2008, Public. 26.09.2008, Ement. VOL-02334-10, PP-02169, LEXSTF v. 30, n. 359, 2008, p. 321-366. 9. STF, RE 106217, Relator(a): Min. Octavio Gallotti, Primeira Turma, julgado em 08.08.1986, DJ 12.09.1986, PP-16425, Ement. VOL-01432-02. PP-00411. 10. STJ, REsp 249.262/DF, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 18.05.2000, DJ 19.06.2000, p. 120. 11. STJ, AgRg no Ag 1037765/SP, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Corte Especial, julgado em 16.05.2012, DJe 25.05.2012. 14. STJ, REsp 960.239/SC, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 09.06.2010, DJe 24.06.2010. 15. STJ, REsp 1120295/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 12.05.2010, DJe 21.05.2010 – destaques no original. 16. V.g., MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 492. 17. É importante salientar que o REsp nº 1.120.295/SP ainda não transitou em julgado, encontrando-se perante o Supremo Tribunal Federal no ARE 773.000/DF, Rel. Min. Dias Toffoli. 18. WOLKART, Erik Navarro. Precedente judicial no processo civil brasileiro: mecanismos de objetivação do processo. Salvador: JusPodium, 2013. p. 131. 20. Parte-se da premissa de que a interpretação do precedente judicial, ao contrário da lei, necessariamente passa pela análise do caso submetido a julgamento, tal como apresentado pela Corte. MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 248. 21. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. 4. ed. Salvador: JusPodium, 2009. v. 2. p. 381.
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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