Resumo
O texto é uma reflexão a respeito da atividade tributária na contemporaneidade. As sociedades, em nível global, atingiram um grau de complexidade não antes visto, decorrência de múltiplos fatores que marcam a crise das estruturas modernas, tais como o fluxo global de informações e capital, a velocidade de novas tecnologias e redes de comunicação, a expansão de novos e incontroláveis riscos e um sentimento difuso de desconfiança na capacidade operativa das tradicionais estruturas estatais. A tradicional complexidade das articulações tributárias e a polarização de interesses entre Fisco e contribuinte têm se acentuado no contexto contemporâneo, trazendo novos desafios à tributação. Em um mundo que se fragmenta e se transforma constantemente, novas formas de negócios impulsionam o fluxo de capitais e a circulação de bens de maneira não antes vista, tornando dificultosa e, por vezes, inoperante a atividade tributária do Estado. Na atualidade, o que se percebe é um aumento da litigiosidade na relação tributária, alimentando um círculo vicioso que passa pela falta de confiança na capacidade operativa do Estado frente à complexidade do mundo contemporâneo, pela ausência de diálogo entre Administração e contribuinte, pela insatisfação generalizada com a destinação dos recursos, pelo desconhecimento da legislação e por uma postura não colaborativa no ato de pagar tributo.
Palavras-chave: Tributação. Desafios. Complexidade. Globalização.
Sumário: Introdução. 1 Uma leitura da sociedade complexa. 2 Desafios da tributação na lógica global. 3 Desafios na relação entre contribuinte e Fisco. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
A complexidade da sociedade contemporânea desafia a atividade tributária do Estado. Sabe-se que a tributação é um ato de soberania e que a organização de sistemas tributários tem acompanhado a evolução do Estado Moderno, absorvendo o contexto em que está inserida. De fato, “a tributação reflete a organização econômica em seu específico momento histórico”,(1) não sendo diferente nos dias atuais.
Quando falamos em sociedade complexa, fazemos uma leitura da contemporaneidade, sem pretensão de instituir uma nova verdade ou aderir a rótulos ou modismos pós-modernos. O fato é que nossas sociedades, em nível global, atingiram um grau de complexidade não antes visto, decorrência de múltiplos fatores que marcam a crise das estruturas modernas, tais como o fluxo global de informações e capital, a velocidade de novas tecnologias e redes de comunicação, a expansão de novos e incontroláveis riscos e um sentimento difuso de desconfiança na capacidade operativa das tradicionais estruturas estatais.
O Estado, organização burocrática racionalmente moldada pelo pensamento moderno (hoje em crise), por sua vez, vem enfrentando desafios nas suas mais tradicionais atividades, não sendo diferente na tributação. Especificamente em relação a esse aspecto, destaca-se que a tradicional complexidade das articulações tributárias (de domínio de especialistas e pequena parcela da população) e a polarização de interesses entre Fisco e contribuinte tem se acentuado no contexto contemporâneo, trazendo novos desafios à tributação.
Tendo esse contexto como pano de fundo, os desafios da tributação na sociedade complexa se manifestam de múltiplas formas. No presente trabalho, identificaremos alguns deles, sem pretensão de esgotar a temática ou apresentar soluções definitivas, pois qualquer intenção nesse sentido seria desconsiderar a riqueza e a complexidade do tema em face das limitações do presente texto.
1 Uma leitura da sociedade complexa
A complexidade da sociedade contemporânea tem sido objeto de análise por inúmeros estudiosos, sob as mais diferentes perspectivas. De fato, essa complexidade manifesta-se de múltiplas formas e tem repercussões das mais diversas, de modo que, aqui, o enfoque será o impacto em certas estruturas do Estado moderno e da organização social.
Antes de avançar, algumas premissas devem ser estabelecidas. A palavra moderno, segundo Baumer, “pode simplesmente significar recente ou presente, o que implica que haja sempre ‘modernos’ em todas as gerações. Por outro lado, o termo pode referir-se a um conjunto de ideias e atitudes específicas”.(2) Aqui, utilizamo-nos do segundo sentido, em que a modernidade pode ser vista como um modo de civilização que impulsionou os homens a uma incessante racionalização do real, espalhando-se pelo ocidente e servindo de berço para a articulação do Estado moderno. Sobre esse, breves linhas se fazem necessárias.
No século XVIII, o projeto racionalista moderno assentava-se na ideia de que a razão deveria dominar as emoções e o homem deveria ser educado para a vida em sociedade. O apelo à liberdade passou a ocupar um eixo central na insurreição dos indivíduos em face das estruturas absolutistas da época e orientou a racionalização de uma nova forma de organização social.(3) Nesse período, a lei passa a ser vista como sinônimo de garantia, e a liberdade, concebida como o direito de fazer o que a lei permite. Nessa perspectiva, a segurança do indivíduo, a liberdade religiosa, a liberdade de pensamento, entre outras, eram liberdades garantidas pela e na sociedade e fixadas pela lei.
Dentro da ideologia moderna, as instituições políticas tinham o papel precípuo de criadoras de código e agenda de condutas dirigidos à sociedade, a qual, por sua vez, acreditava ser capaz de transformar a si mesma e ao mundo por meio da concretização das utopias plasmadas nos grandes projetos político-constitucionais e das grandes narrativas de mobilização política, reinventando constantemente a ordem social. O homem deveria ser ensinado para a vida em sociedade, desenvolvendo a razão e contendo suas paixões. Esse papel foi, em grande parte, atribuído aos legisladores, de maneira que, no desenvolver da modernidade, a legislação era tida como o principal instrumento para criar uma “agenda de opções” aos indivíduos, separando “o reino da viabilidade prática do leque de possibilidades teóricas”,(4) e a educação era tida como o principal instrumento para a criação de um “código de escolha”.(5) Para tanto, era necessário um Estado politicamente forte e dotado de uma estrutura que comportasse a completude do projeto proposto. Sob esse contexto, é articulado o Estado de Direito, moldado e reinventado a cada contexto histórico.
Na atualidade, as sociedades ocidentais têm experimentado uma crescente perda de legitimidade das instituições democráticas, manifestada tanto na falta de confiança dos indivíduos nas articulações políticas quanto na crise operacional das estruturas estatais. Muito se tem dito sobre estarmos vivendo a “era da despolitização”, marcada pelo esfacelamento dos valores políticos tradicionais. Segundo Franco de Sá, “dir-se-ia que vivemos hoje, nas democracias liberais do Ocidente, como se o político tivesse desaparecido do mundo, como se tivéssemos entrado em uma era da pós-política”.(6) Para o autor, como caracterização do período em que vivemos, é possível apontar:
“o desinteresse crescente pela vida pública por parte de importantes sectores populacionais no seio das democracias liberais ocidentais; ou a sua concentração exclusiva na sua vida privada; ou a entrega da economia às simples leis de um mercado para cuja legalidade imanente a dimensão do político não pode deixar de surgir como uma interferência perturbadora; ou a entrega do desenvolvimento técnico a uma pura lei imanente de crescimento ininterrupto, diante da qual as tentativas políticas ou jurídicas de regulamentação não parecem ser senão intrusões provisórias; ou a tentativa para encontrar uma paz mundial assente na constituição de uma ‘lei dos povos’, a qual surja como uma legalidade internacional que ultrapasse o plano estritamente político de uma ‘lei de Estados’ tendencialmente e agressivos; ou a ideia de que a história chegou ao fim no seu estatuto de percurso movido por grandes narrativas de mobilização política. Diante de todos esses exemplos, dir-se-ia então que hoje, de um modo geral, a vida política é marcada pela perda de importância do plano político; e que é a essa perda que justamente se pode chamar despolitização.”(7)
É possível dizer que a ideia inicial moderna de uma liberdade que propiciasse aos indivíduos agir de acordo com sua razão, atualmente, perdeu muito de sua credibilidade. A liberdade, que no projeto moderno era concebida como o direito de fazer o que a lei permite, hoje se aproxima muito mais da ausência de restrições impostas por uma autoridade política, em face do enfraquecimento das instituições tradicionais frente às novas lógicas de política, mercado e comunicação globais, emolduradas por uma exacerbação das individualidades que esfacela os laços de coesão social, do que depende, em grande parte, o sucesso de um projeto político. Em um processo global, as instituições políticas vigentes vivem um processo de enfraquecimento, rumo ao abandono, de seu papel de agendar opções e definir códigos de escolha dirigidos aos indivíduos, função essa que está sendo transferida das instituições políticas para outras forças sociais.(8)
Em meio à complexidade da sociedade contemporânea, o verdadeiro poder é caracterizado pela fluidez e pela extraterritorialidade. Assim, ao passo que a política estatal continua sendo uma articulação que exige a mobilização de estruturas locais, as inter-relações sociais são perpassadas pelo fluxo, seja ele de poder, capital ou informação. Isto é, um processo não mais essencialmente sujeito a coerções espaciais e temporais, transtornando a racionalidade política moderna. Essa complexidade impacta o sistema tributário de diversas formas, seja da perspectiva da nova lógica global, seja ainda das articulações internas ao sistema tributário, culminando em um desencontro na relação estabelecida entre Fisco e contribuinte.
2 Desafios da tributação na lógica global
Múltiplos são os fatores a desafiar a atividade tributária do Estado na perspectiva da sociedade complexa, sendo que parte desses desafios é inerente à própria lógica global. Com efeito, a globalização representa um processo histórico de profundas mudanças nas instituições e nas estruturas próprias das sociedades modernas. Segundo Fariñas Dulce, o termo globalização pode ser determinado desde múltiplos aspectos: trata-se de um termo polissêmico e pluridimensional, podendo ser utilizado para expressar diferentes dimensões de um mesmo processo (globalização da técnica e das comunicações, globalização econômica e financeira, globalização cultural, política, jurídica e econômica), e que faz referência a um processo dinâmico, que impede uma definição substancial, conduzindo sempre a definições procedimentais (fala-se em processo de globalização como algo em constante transformação, gerador de expectativas). Paradoxalmente, esse processo globalizador não gera ordem, coesão social, uniformidade, unidade, estabilidade, certeza e harmonia, mas sim risco, tensão, complexidade, desordem, contingência, desintegração e desigualdade.(9)
A globalização tem imposto inúmeros desafios às articulações do Estado Moderno. De fato, desde o final do século XX, o Estado Social se vê politicamente aprisionado pela nova rede de interdependências da política internacional e pelos compromissos que assume frente à sociedade internacional.(10) A clássica concepção de cidadania é substituída por uma noção de cidadania global, a partir da qual cidadãos de diversas nacionalidades procuram fazer pressão sobre diferentes Estados para que ajam de determinada forma ou abstenham-se de determinadas políticas. Por sua vez, o território como elemento clássico da soberania também se enfraquece: “sob o ponto de vista político-internacional, o território deixou de ser barreira intransponível à ingerência ou à intervenção internacional, quer de natureza humanitária, quer de outra natureza, para se abrir à ação internacional (...)”.(11)
A lógica global passa a interferir política e economicamente na gestão interna dos Estados, deixando de mãos atadas a grande maioria dos governos locais. De uma perspectiva que tem em foco o fluxo de capitais, Bosoer e Leiras afirmam que a lógica atual acaba por exigir dos governantes um neodecisionismo,(12) discurso esse que buscará legitimar as políticas adotadas pelo governo no intuito de ajustar a economia nacional às orientações de uma lógica de economia global. Dizem os autores que o sistema global, baseado no livre funcionamento do mercado, exige uma política que desmonte o aparato estatal regulador e prestador de serviços. Esse neodecisionismo representa, muitas vezes, a negação dos princípios de um rígido constitucionalismo, dando origem ao que chamam de “democracias iliberais”.(13) Isto é, a despolitização do Estado, a aparente ausência de alternativas e a centralidade da questão do poder deram origem a regimes democráticos nos quais a irrelevância dos limites constitucionais ao exercício do poder e as fortes restrições ao exercício de direitos e garantias individuais tornou-se realidade. Trata-se de um cenário internacional de regimes democráticos eleitos, cuja principal característica é a irrelevância dos limites constitucionais sobre o poder.
De fato, na lógica atual, os pilares da democracia constitucional parecem subordinar-se ao que hoje se chama governabilidade. As ações de governo são baseadas em decisões eficazes como a única fonte de legitimidade. O resultado, por sua vez, é o esvaziamento ou o descrédito das recentes democracias constitucionais. Bosoer e Leiras sintetizam:
“regímenes democráticos emergentes con sociedades civiles débiles o incipientes y estados jaqueados por fuerzas centrífugas y presiones centrípetas derivan, en el mejor de los casos, en democracias que no pueden resolver la ecuación legitimidad-governabilidad. O toman por el camino de la gobernabilidad en detrimento de su legitimidad y hacen
descansar ésta última sobre las aptitudes de un liderazgo plebiscitario, o a la inversa, mantienen su legitimidad de origen y ejercicio a costa de un debilitamiento y pérdida de su capacidad de gobierno.”(14)
Em um mundo que se fragmenta e se transforma constantemente, novas formas de negócios impulsionam o fluxo de capitais e a circulação de bens de maneira não antes vista, tornando dificultosa e, por vezes, inoperante a atividade tributária do Estado. Tanzi chega a identificar a existência de “cupins tributários” (fiscal termites) que sutilmente estariam agindo de forma a levar ao colapso os sistemas tributários.(15) Nesse contexto, a globalização traz também novos desafios à tributação, de modo que os novos desafios não sejam encarados com decisões simplistas e decisionistas, como, por exemplo, o mero aumento de tributos. O primeiro passo, portanto, é identificar o fenômeno.
Um dos “cupins tributários” identificados por Tanzi é o aumento do comércio eletrônico e a dificuldade de tributação.(16) Com efeito, o comércio eletrônico tem se expandido desde o início dos anos 2000, com salto exponencial nos últimos anos, em razão da difusão da Internet e da facilidade de acesso a ela até mesmo por aparelhos celulares. A complexidade da atividade tributária, nesse particular, resulta da própria complexidade dos negócios envolvidos, sendo possível didaticamente dividi-los em venda de bens e serviços tangíveis e intangíveis.(17)
O primeiro caso, também chamado de comércio eletrônico impróprio ou indireto, abrange a aquisição de bens e serviços em que o contato entre consumidor e fornecedor ocorre por meio da Internet, mas a entrega física ocorre pelos meios tradicionais de transporte, fora da rede de computadores.(18) Nesse caso, os tributos incidirão da mesma forma que sobre os produtos comercializados por uma empresa não virtual, não oferecendo maiores dificuldades de compreensão.
No segundo caso, porém, a comercialização e a entrega ocorrem virtualmente (por meio de downloads ou streaming, na execução de filmes, aulas e músicas, por exemplo), transtornando os conceitos tradicionais de bens e serviços, bem como de origem e destino (para fins de cobrança de ICMS) ou de local de prestação do serviço (para fins de incidência do ISS),(19) considerando que a concretização do negócio em momento algum transcende o meio virtual, “propício à fuga fiscal, onde a fiscalização é de difícil implementação e as leis de proteção à privacidade dos contratos online criam obstáculos à tributação desse tipo de negócio”.(20)
Outro cupim tributário identificado por Tanzi é o aumento do uso do dinheiro eletrônico (e-money ou e-cash).(21) Trata-se de instrumento usado em transações eletrônicas sem papel-moeda, em que um valor monetário é eletronicamente creditado ou debitado, facilitando o comércio entre pessoas de diferentes países. Percebe-se, pois, que o dinheiro digital não respeita fronteiras e não pode ser controlado por Banco Central de determinado país, circunstância que certamente desafia a atividade tributária dos Estados.
Reflexo da rapidez e da complexidade do mundo contemporâneo, o próprio formato do dinheiro eletrônico tem mudado constantemente. Fala-se, inclusive, que gigantes da Internet como Google, Apple e Facebook já estão se preparando para fazer uso do dinheiro eletrônico em breve, possibilitando pagamentos sem a utilização de qualquer papel-moeda, cartão ou chip, mas tão somente do aparelho celular. O fato é que essa tendência vem a dificultar o rastreamento das operações, e assim também a tributação.
Tanzi identifica outros “cupins tributários”, todos eles ligados ao processo de globalização, como, por exemplo, o aumento de negócios intrafirma (intracompany trade) e o fluxo de capitais para os centros financeiros offshore (tax haven).(22) Nesse contexto, em que o processo globalizador apresenta-se em toda a sua complexidade e constante transformação, o desafio da tributação não passa por posturas que a ele se contraponham ou decisões simplificadoras.
Nesse contexto, os desafios da tributação passam, como dito, pela compreensão do fenômeno e pela superação de posturas decisionistas que culminam, por exemplo, em constante aumento do tributo diante de um diagnóstico de ineficiência do sistema tributário. A questão não é singela, mas o fato é que a atividade tributária tem de acompanhar o processo globalizador, desenvolvendo-se com as transformações do mundo contemporâneo.
Tanzi chega a sugerir que os governos devem desenvolver meios de monitorar o comércio eletrônico e o dinheiro eletrônico, concebendo, eventualmente, novas taxas ou até bit taxes.(23) Maciel sugere a criação de novas bases imponíveis sobre movimentações financeiras, a adoção de instrumentos de gestão fiscal (como cadastro de contribuintes), convênios internacionais para troca de informações e o incremento de obrigações acessórias.(24)
3 Desafios na relação entre contribuinte e Fisco
Os desafios da tributação na sociedade complexa passam também pela relação entre Fisco e contribuinte. As dificuldades de assentimento populacional com a atividade tributária por parte do Fisco não são questão nova, remontando há séculos. Na atualidade, o que se percebe é um aumento da litigiosidade nessa relação, alimentando um círculo vicioso que passa pela falta de confiança na capacidade operativa do Estado frente à complexidade do mundo contemporâneo, pela ausência de diálogo entre Administração e contribuinte, pela insatisfação generalizada com a destinação dos recursos, pelo desconhecimento da legislação e por uma postura não colaborativa no ato de pagar tributo.
Não se trata de uma postura uniforme, mas de uma tendência comum nessa relação. Refletindo sobre a moral tributária dos contribuintes, Tipke elencou as diferentes (todas aversas) atitudes mentais diante do tributo da seguinte forma: o homo oeconomicus (cultivando um individualismo racional-egoístico, não reconhece dever moral em sua conduta de pagar impostos, calculando seus atos com base no grau de risco de ser descoberto); o "barganhista" (característico dos grandes contribuintes, sabe que depende das prestações estatais, mas crê que o poder público faz o mínimo em suas prestações, o que lhe autoriza a pagar o mínimo de tributo); o "desgostoso com o Estado" (aborrecido com a direção global da política e com o emprego de recursos com indivíduos antissociais, pensa dever-se gastar o menos possível em tributos para tirar da administração o apoio financeiro); o "liberal" (sente o tributo como limitação de sua liberdade e o classifica como quotas de sacrifício sem contraprestação); o "elusor fiscal legalístico" (tenta organizar sua conduta de tal modo que possa, com o aproveitamento das lacunas da lei e de favorecimentos fiscais, pagar o menos possível de tributos); o "inexperiente" (presta as declarações tributárias sem compreender a legislação pertinente); o "sensível à justiça" (o direito tributário vigente, com suas cargas desiguais e seu número excessivo de favorecimentos a determinados círculos, é um insulto e irrita sua consciência jurídica, de maneira que defende a desobediência para restabelecer a igualdade).(25)
Na atualidade, parece haver um pouco de tudo o que foi elencado por Tipke. É fácil perceber que a população, em sua grande maioria, não confia na atividade tributária do Estado, sendo esse um dos reflexos do enfraquecimento das instituições políticas vigentes, delineado no tópico anterior. O contribuinte não compreende a legislação tributária e não acredita que o Estado seja capaz de cumprir com sua agenda social em um mundo globalizado caracterizado pela fluidez do poder, parecendo não ver a destinação dada aos impostos pagos, ao mesmo tempo em que reclama da alta carga tributária. O resultado é uma resistência ao adimplemento de tributos e o fomento da litigiosidade como característica inerente à relação tributária. Fala-se, inclusive, em uma “litigiosidade perniciosa”,(26) na qual a falta de diálogo entre contribuinte e Fisco resulta em litígios que "se fecham em si" sem contribuir para o crescimento do sistema tributário, deixando de retroalimentar positivamente a legislação.
Analisando as relações entre Fisco e cidadão, Cartaxo(27) vê como características do contencioso administrativo tensão e antagonismo, litigiosidade, baixa cooperação, pouca transparência, bem como as dificuldades de compreensão por parte do cidadão quanto ao papel do Estado e o seu financiamento, ao sistema tributário nacional, à contraprestação do Estado (funções públicas), à justiça fiscal e à ética redistributiva.
De fato, as raízes da litigiosidade são múltiplas, tendo em comum, porém, o não assentimento à atividade tributária do Estado e uma baixa consciência fiscal cidadã, reforçadas pela pouca legitimidade na área fiscal e pela baixa qualidade do gasto público. Segundo Appy e Messias,
“As razões para o alto grau de litigiosidade tributária no Brasil são muitas. Para o Fisco, esta decorre essencialmente de ações protelatórias das empresas, que buscam brechas interpretativas para não pagar ou pelo menos postergar ao máximo o recolhimento de tributos. Para as empresas, é o resultado de uma legislação tributária imprecisa e de uma postura agressiva do Fisco, cujo pressuposto seria o de que as empresas sempre estão agindo de má-fé, buscando elidir suas obrigações tributárias.”(28)
Com enfoque na situação nacional, Appy e Messias(29) destacam que o grau de litigiosidade tributária no Brasil está entre os mais elevados do mundo, com consequências negativas para o desenvolvimento do país, considerando que a insegurança jurídica desestimula o investimento e implica elevado custo tanto para empresas quanto para o governo. Em outro estudo, Messias destaca que, de acordo com a Receita Federal do Brasil, o valor do passivo tributário referente a litígios na esfera administrativa totalizava US$ 230 bilhões, somado a um montante de cerca de US$ 100 bilhões em discussão no Poder Judiciário (valor referente apenas a alguns casos emblemáticos, de modo que o valor real excede ao montante exposto), totalizando cerca de US$ 330 bilhões, equivalente a 15% do PIB brasileiro.(30)
Constitui desafio da tributação na sociedade complexa, pois, superar essa crise de assentimento da população em relação à atividade tributária do Estado. E como não é possível lutar contra a lógica global em um mundo cada vez mais fragmentado, percebendo-se que a raiz do problema é a falta de confiança, de diálogo e de compreensão, possível caminho para a recuperação do assentimento da população em relação à tributação passa pelo reforço dos laços entre Fisco e contribuinte. Não se trata propriamente de um único projeto, mas sim de um conjunto de ações que culminem em moldar a forma como o contribuinte vê o ato de pagar tributo, e o Fisco, de cobrá-lo. Para Cartaxo, por exemplo, os pilares do cumprimento voluntário por parte do contribuinte passam tanto pela consciência fiscal e pela cultura cidadã quanto pela ampliação do risco subjetivo em caso de inadimplemento tributário, isto é, agilidade e efetividade punitiva.(31)
Com relação à consciência fiscal, o foco é reduzir o caráter litigioso do ato de pagar tributo, de maneira que a redução da litigiosidade passa pela compreensão do papel do Estado, dos seus mecanismos de financiamento e desempenho de funções públicas, pelo entendimento da função socioeconômica do tributo e dos procedimentos fiscais de combate às desigualdades sociais.(32)
Pensamos, porém, que, nas atuais sociedades complexas, a questão passa não só pela compreensão, mas também por um processo de recuperação da confiança do contribuinte na capacidade operativa do Estado em cumprir com essas tarefas que lhe são atribuídas desde a modernidade. E essa recuperação de confiança não é algo que se conquiste mantendo a lógica litigiosa na relação tributária, mas algo que passa pelo investimento em ações que reforcem uma ética recíproca entre Fisco e contribuinte.
O primeiro passo, portanto, é a efetiva compreensão da relação tributária por parte do contribuinte. Nesse ponto, o Estado exerce um papel importante no sentido de simplificar o sistema tributário, combatendo sua complexidade por meio de uma legislação compreensível não apenas por técnicos, mas pela população em geral, o que deve vir acompanhado de medidas educativas. Mas não é só. Deve-se buscar o aperfeiçoamento do sistema, por meio de ampliação do debate e pacificação de conceitos e teses tributárias, estabelecendo um ambiente cooperativo e colaborativo entre Fisco e contribuinte, retroalimentando positivamente o sistema.(33)
No mesmo sentido, Cartaxo fala na superação de uma "litigiosidade perniciosa" do contencioso administrativo e no advento de uma "litigiosidade virtuosa". Nesse último aspecto, a litigiosidade ganharia em importância para a credibilidade e a legitimidade das administrações tributárias, retroalimentando o sistema tributário. O resultado, segundo a pesquisadora, seria um impacto positivo no ambiente de negócios, com desenvolvimento e competitividade; segurança jurídica, transparência e publicidade; aprofundamento democrático, com repercussões na composição, na estrutura e na redução da assimetria na relação fisco-contribuinte.(34) Enfim, "uma atuação mais coordenada entre os contribuintes e o Fisco, em que as divergências de interpretação pudessem ser rapidamente identificadas e, na medida do possível, equacionadas de comum acordo, certamente reduziria o número de litígios".(35) Os laços de confiança devem ainda ser reforçados pelo controle social da boa aplicação dos recursos públicos e pelo combate às práticas nocivas na gestão pública (corrupção, malversação de recursos, sonegação, competição fiscal predatória). O resultado é o fortalecimento do Estado Democrático de Direito em seu aspecto substancial e a consolidação da relação tributária como instrumento de cidadania fiscal.
Conclusão
Nessas breves linhas, procuramos identificar alguns dos desafios trazidos à tributação em meio à complexidade das sociedades contemporâneas. Esses desafios são múltiplos, e toda tentativa de elencá-los acaba por constituir um recorte no problema. Portanto, nossa pretensão não foi exaurir a temática, mas sim chamar atenção para a complexidade da questão.
1 – Diz-se que a sociedade contemporânea é caracterizada pela complexidade. Trata-se de manifestações do desenvolvimento constante de novas técnicas e do fluxo de informações, da quebra das certezas das ideologias modernas que culminaram nos Estados-nação da modernidade, do sentimento de aceleração e ansiedade social, com consequente perda de legitimidade das instituições democráticas, manifestada tanto na falta de confiança dos indivíduos nas articulações políticas quanto na crise operacional das estruturas estatais.
2 – Destacamos que a complexidade do mundo contemporâneo impacta a atividade tributária do Estado de diferentes formas, sejam elas decorrentes do próprio desenvolvimento tecnológico e da nova ordem global, sejam também decorrentes do déficit de confiança gerado nos contribuintes em relação à atividade estatal. Como visto, em um mundo que se fragmenta e se transforma constantemente, novas formas de negócios impulsionam o fluxo de capitais e a circulação de bens de maneira não antes vista, tornando dificultosa e, por vezes, inoperante a atividade tributária do Estado. Foi o que se ilustrou com a expansão do comércio eletrônico cujo ciclo negocial se encerra em âmbito virtual e a tendência de crescimento da utilização do dinheiro eletrônico, o qual desconhece fronteiras e não pode ser controlado por Banco Central de determinado país.
3 – Nesse contexto, os desafios da tributação na sociedade complexa passam, portanto, pela compreensão do fenômeno e do desenvolvimento do sistema tributário, de modo que a resposta para a ineficiência não seja unicamente o aumento de tributos, buscando-se novas respostas para novos problemas. Mas não é só.
4 – Os desafios da tributação na sociedade complexa passam também pela relação entre Fisco e contribuinte. As dificuldades de assentimento populacional em relação à atividade tributária do Estado parecem ter se acentuado no mundo contemporâneo, alimentando um círculo vicioso que passa pela falta de confiança na capacidade operativa do Estado, pela ausência de diálogo entre Administração e contribuinte, pela insatisfação generalizada com a destinação dos recursos, pelo desconhecimento da legislação e por uma postura não colaborativa no ato de pagar tributo.
5 – Dessa perspectiva, possível caminho para a recuperação do assentimento da população em relação à tributação passa pelo reforço dos laços entre Fisco e contribuinte e pela mudança do enfoque litigioso do contencioso administrativo tributário, o que se conquista pelo investimento em ações que reforcem uma ética recíproca. O foco, portanto, deve ser a ampliação do debate e a pacificação de conceitos e teses tributárias, estabelecendo um ambiente cooperativo e colaborativo entre Fisco e contribuinte, de maneira que os litígios retroalimentem positivamente o sistema tributário e a legislação. Por fim, o fortalecimento do Estado Democrático de Direito em seu aspecto substancial e a consolidação da relação tributária como instrumento de cidadania fiscal passam também pela boa aplicação dos recursos públicos e pelo combate às práticas nocivas na gestão pública.
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Notas
1. MACIEL, Everardo et al. Condicionantes e perspectivas da tributação no Brasil. Estudo Tributário 07. Brasília: Ministério da Fazenda, 2002. p. 3.
2. BAUMER, Franklin Le Van. O pensamento europeu moderno: v. I Séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1977. p. 40.
3. SIMMEL, Georg. On individuality and social forms. Chicago: The University of Chicago Press, 1971. p. 218.
4. BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 79.
6. FRANCO DE SÁ, Alexandre. Metamorfose do poder: prolegomenos schmittianos a toda a sociedade futura. Coimbra: Ariadne, 2004. p. 111.
7. Idem. Ibidem.
8. BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., p. 79-81.
9. FARIÑAS-DULCE, Maria José. Globalización, ciudadanía y derechos humanos. Madrid: Dykinson, 2000. p. 5-10.
10. BRITO, Wladimir. Do Estado da construção à desconstrução do conceito de Estado-Nação. Revista de História das Ideias, v. 26 p. 300.
11. BRITO, Wladimir. Op. cit., p. 304.
12. Pode-se entender o termo neodecisionismo como um modelo em que a decisão política está fortemente concentrada no Poder Executivo, de onde se pressupõe sua supremacia sobre os demais poderes, com o intuito de imprimir eficácia à política de governo (Cf. BOSOER, Fabián; LEIRAS, Santiago. Posguerra fría, “neodecisionismo” y nueva fase del capitalismo: el alegato del Príncipe-gobernante en el escenario global de los ’90. In: BORON, Atílio A.; GAMBINA, Julio C.; MINSBURG, Naúm (comp.). Tiempos violentos. Buenos Aires: CLACSO, 2004. p. 166-167).
14. BOSOER, Fabián; LEIRAS, Santiago. Op. cit., p. 183.
15. TANZI, Vito. Globalization, technological developments, and the work of the fiscal termites. International Monetary Fund, 2000. p. 3.
21. TANZI, Vito. Op. cit., p. 8.
22. Para aprofundamento, ver: TANZI, Vito. Globalization, technological developments, and the work of the fiscal termites. International Monetary Fund, 2000.
24. Ideias apresentadas na palestra “Administração tributária eficiente, obrigações acessórias e custo Brasil”. Currículo Permanente de Direito Tributário. Módulo I. Edição Florianópolis, 11 de abril de 2014. Emagis – Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região.
25. TIPKE, Klaus. Moral tributária do Estado e dos contribuintes. Traduzido por Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2012. p. 103-111.
26. CARTAXO, Fátima. Prerrogativas e funções do contencioso administrativo fiscal (apresentação em slides). São Paulo, 12 abr. 2013.
31. CARTAXO, Fátima. Op. cit.
33. Algumas das ideias aqui expostas foram inspiradas na palestra de Andreia Cristina Scapin: Tributação como instrumento de desenvolvimento. Currículo Permanente de Direito Tributário. Módulo I. Florianópolis, 11 de abril de 2014. Emagis – Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região.
34. CARTAXO, Fátima. Op. cit.
35. APPY, Bernard; MESSIAS, Lorreine. Op. cit.
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