A desmoralização do Poder Judiciário pela execução fiscal e a necessidade de uma nova visão sobre os deveres do credor

Autor: Ivan Arantes Junqueira Dantas Filho

Juiz Federal Substituto

publicado em 30.06.2015


Dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ (Relatório Justiça em Números 2014)(1) dão conta de que há 3,7 milhões de processos de execução fiscal em trâmite na Justiça Federal, dentro de um universo total de 11,4 milhões de feitos que nela tramitaram em 2013, superando assim mais de 30% do volume de processos em andamento. A grande preocupação reside na taxa de congestionamento dos executivos fiscais, que atinge 91% (o que quer dizer, ainda para 2013, que houve baixa de apenas 9% dos processos dessa natureza que tramitavam ao iniciar o ano).

Embora tal espécie de feito responda por 15% do total de novos casos anuais na primeira instância, ela representa 53,6% do estoque total da Justiça Federal (também na primeira instância).

Os números deixam claro, de forma bastante direta, o quadro de inefetividade desses processos, que se acumulam no primeiro grau de jurisdição, em contínuo crescente.

Há que se ver, porém, que o ponto mais negativo da crise da execução fiscal não está na falta de satisfação do direito do Estado-credor, mas especialmente na desmoralização que, da forma como conduzida, provoca ao Judiciário. Esse processo talvez seja a maior escola de desobediência cívico-social do país.

Praticamente todo executivo fiscal traduz uma coletânea de reiterado descumprimento e pouco caso com os atos e as ordens judiciais.

Não se descura da evidência de que grande parte das pessoas executadas – predominantemente sociedades limitadas – já se encontra, quando sobrevém o ajuizamento da ação, dissolvida de fato. São empresas que, embora juridicamente estruturadas sob forma societária, na prática, têm um único ou principal titular de capital (a figura paradigma do sócio-gerente com 99% das cotas), o qual, àquela altura, já baixou as portas ou passou o ponto a um terceiro (nesse caso, incorporando ao seu patrimônio pessoal o respectivo valor, em prejuízo dos credores da sociedade). E, mesmo que não tenha havido ainda – ao tempo do ajuizamento da execução – a dissolução, ela estará provavelmente em via de ocorrer, haja vista o que se nota na experiência do foro, em que se constata que a maioria das ações acaba inflexivelmente por redundar em redirecionamento fundado na Súmula 435 do Superior Tribunal de Justiça – STJ (“Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”).

O fato é que, dissolvidas ou não as empresas executadas, ou mesmo nos casos em que o demandado é pessoa física (originariamente ou por redirecionamento), vige o quase total menoscabo às determinações judiciais para pagamento ou nomeação de bens à penhora.

Em geral, os feitos executivo-fiscais são processos com uma parte só, no qual operam apenas o demandante (Estado-credor) e a Justiça. Os devedores, citados e intimados, não se apresentam nos autos, sequer para declarar eventual inexistência de patrimônio executável.(2)

Tais processos (tipologicamente, os referentes a uma sociedade limitada pequena ou média, que foi irregularmente dissolvida e cujo sócio-administrador passou a se dedicar a outro negócio, usando o nome de um terceiro e tendo em seu patrimônio pessoal apenas bens legalmente protegidos pela impenhorabilidade ou sem liquidez) correm anos a fio, com a prática de inúmeras diligências inúteis (citação/intimação inicial, consulta ao BacenJud, consulta ao Renajud, penhora de faturamento, mandados de constatação de [in]atividade, busca de bens penhoráveis no estabelecimento, decretação de indisponibilidade de bens nos termos do art. 185-A do Código Tributário Nacional – CTN etc.), para, ao cabo, serem levados ao arquivo, na forma do art. 40 da Lei 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais – LEF).

O problema que aqui se coloca em evidência é essencialmente o do desgaste moral do Judiciário na consecução de medidas inefetivas, em especial aquelas que implicam ordem a devedores e/ou depositários de bens penhorados.

Perdeu-se no país, por exemplo, a noção de seriedade de atos como o previsto no art. 8º, caput, da LEF (“O executado será citado para, no prazo de 5 (cinco) dias, pagar a dívida [...] ou garantir a execução [...]”). Tem-se aí uma peremptória ordem de um poder da República.(3)

É verdade que, em boa parte dos casos, quiçá a maioria deles (como se disse, é muito comum a empresa devedora encontrar-se dissolvida já à época do ajuizamento da ação), o executado não terá dinheiro ou bens para oferecer. Nada obstante, além de não se cumprir a determinação do art. 8º, também não há qualquer tipo de manifestação dos devedores quanto à impossibilidade de fazê-lo. Tem-se que, em quase 100% dos casos, os citandos simplesmente atiram a ordem judicial para dentro de alguma gaveta (quando não lhes dão, supostamente, destinação ainda menos honrosa).

Os credores administrativos ajuízam execuções sem sequer visitar antes, ainda que externamente, o domicílio do devedor. O ônus de diligenciar e descobrir se o executado ainda existe, e se tem bens, é todo carregado sobre o Judiciário, que tem sua estrutura consumida na emissão e na entrega de ordens de pagamento fadadas, desde o início, ao nada. Começa aí o ciclo de banalização institucional da Justiça.

Esses mesmos credores que ajuízam suas execuções ao léu(4) prosseguem, já desrespeitada a ordem judicial de pagamento em cinco dias, com requerimentos de outras diligências, como a penhora de ativos financeiros, a busca de bens no estabelecimento do devedor, a penhora de faturamento, a indisponibilização do patrimônio.

Excetuada aquela primeira providência (penhora de ativos financeiros), que se refere ao bem – dinheiro – apontado pela lei como o de preferencial constrição, e que depende necessariamente de um ato judicial (hoje, o comando de bloqueio por via do sistema BacenJud), as demais não fazem sentido quando o devedor não promoveu qualquer tipo de pesquisa que aponte para algum potencial de efetividade.

Veja-se bem.

Qual é o significado que se deve dar ao fato de o oficial de justiça sair à rua para cumprir um mandado de penhora genérica de bens em certo endereço quando, de antemão, o credor poderia ter comparecido ao local e verificado que a empresa devedora não se encontra mais lá estabelecida?

Indubitavelmente, isso representa uma desmoralização da atividade judiciária. Com efeito, a Justiça estará funcionando como um contínuo do exequente, um seu estafeta de luxo, um longa manus constatador material da inatividade do executado. Muito frequentemente, o máximo que se terá será a entrega ao responsável pela antiga empresa da ordem judicial para pagamento e indicação de bens – ordem essa que será devidamente recolhida a um arquivo de papéis quaisquer ou ao cesto de lixo.

Cumprido assim o trabalho de assessoramento do fisco, provavelmente irá este, em um caso tal, requerer o redirecionamento da demanda àquele ex-gestor da empresa demandada. Todavia, há que se questionar se não deveria o próprio credor ter desempenhado aquela atividade material de constatação, trazendo as provas da dissolução irregular (por exemplo, uma foto do local abandonado) e requerendo desde logo o redirecionamento (contexto no qual somente seria acionado o oficial de justiça se remanescesse dúvida do juiz quanto à situação de fato – já agora sendo desempenhada uma vera função de auxiliar do juízo, e não de office boy da parte).(5)

No mais, ainda que a empresa executada encontre-se em funcionamento, é muito comum que os bens por ela possuídos não ostentem qualquer liquidez para efeito de venda em hasta (caso real, por exemplo, de uma velha padaria, situada em prédio alugado e cujo mobiliário é totalmente desgastado e obsoleto). Em um caso como esse, se há algum bem suscetível de penhora idônea, seria o estabelecimento como um todo, na perspectiva dos seus ativos intangíveis, tais como o ponto e a clientela.

Nada obstante, o que pedem os exequentes? A penhora genérica de bens do estabelecimento por oficial de justiça. E por que o pedem? Porque sequer comparecem antes ao local (de acesso público) para verificar a situação do devedor. E onde fica o Judiciário nessa história? Fica a servir de olheiro do credor, buscando bens que nada valem, por idas e vindas, em um processo que, à altura cronológica dessa diligência, já terá corrido por cerca de um ou dois anos (na melhor das hipóteses), em prejuízo dos poucos outros que poderiam implicar alguma efetividade.

A verdade é que praticamente todas as diligências promovidas in loco no interesse dos credores fiscais (busca de bens, constatação de atividade, constatação de endereço etc.) encontram-se indevidamente a cargo do Poder Judiciário. Enquanto o Estado-credor – a parte interessada – atua apenas no papel, de dentro de seus gabinetes, o Estado-juiz vai às ruas descobrir se o devedor tem bens, quando não para averiguar, inclusive, se ele ainda existe.

O contexto atual de crise da execução fiscal, marcado por alto volume e congestionamento, como acima visto, não autoriza mais o uso de antolhos pelo Judiciário ao interpretar as disposições legais relativas à busca de bens penhoráveis.(6) É necessário que, sob pena de concorrerem para o descrédito de suas próprias autoridades, os tribunais atuem sobretudo com amor próprio e, deixando de servir como assessores do fisco (o que seria, aliás, a postura mais consentânea com o postulado constitucional da imparcialidade), exijam da parte interessada o desempenho das pesquisas de situação dos devedores e de seus bens, reservando-se apenas para aqueles atos sob reserva de jurisdição (por exemplo, a colheita de informações bancárias ou a efetiva constrição de patrimônio, bem como, evidentemente, sua expropriação). Tudo o mais que estiver ao alcance da parte para atendimento de seu (correspondentemente) parcial interesse haverá de a ela competir.

Vale referir, nessa senda, um outro exemplo, constante no foro, de ordem judicial inócua: a penhora de faturamento deferida sem prévia demonstração de potencial de efetividade.

Trata-se de medida permanentemente requerida pelos credores fiscais, sempre que não encontrados bens; passados já dois ou três anos de trâmite processual, não penhorados outros bens e não constatada a inatividade da empresa, a providência seguinte dos exequentes é certa: pedir genericamente, por requerimento-padrão, penhora de 5% ou 10% de faturamento.

É nessa oportunidade que, talvez, se tenha a melhor visualização da queda de autoridade do Judiciário e da escola de desobediência representada pelo sistema de execução fiscal.

Na melhor forma genérica e padronizada, tal como lhe é requerido, faz-se o Poder Judiciário pródigo em lançar mão de suas minutas-modelo de deferimento da penhora de faturamento, sem qualquer estudo mais aprofundado do caso concreto e das possibilidades de sucesso do ato.

Na quase totalidade dos casos, tal medida consiste em ordem para que o gestor da empresa executada deposite em juízo 5% do faturamento mensal. A ordem é dada com base no só fato de, estando a empresa devedora supostamente em atividade, não terem sido encontrados outros bens para penhora. Nenhuma outra análise ou cuidado é exigido.

Sempre fazendo referência ao que de ordinário ocorre na lida forense, não se estuda previamente qual o faturamento da executada-alvo, nem se exige do exequente qualquer indicativo que, estando ao seu alcance, possa comprovar a existência de receitas relevantes a ponto de justificarem a movimentação da máquina judicial e a expedição daquilo que vem se tornando um símbolo de banalidade, qual seja, a ordem do juiz.

Lembre-se, especialmente no caso da credora tributária União (esta, de longe, a grande demandante perante os juízos federais de execução fiscal), que pode ela não apenas, como qualquer credor, promover diligência in loco para registrar (por vídeo, foto, nota fiscal, recibo, folheto de propaganda, contato com terceiros ou qualquer outro meio lícito) o funcionamento da empresa e o relevante faturamento pela comercialização de seus produtos ou serviços, como ainda valer-se de seus poderes específicos de acesso às informações patrimoniais do contribuinte (dentre outros, v. art. 145, § 1º, da Constituição Federal – CF; arts. 195 a 197 do CTN) para proceder a verificações junto ao sujeito executado no que toca às suas receitas. Pode a União, assim, juntar documentação fiscal recente, obtida frente à Receita Federal ou perante as receitas locais (v.g., apuração de ICMS) – art. 199 do CTN –, que aponte para a existência de faturamento relevante pela parte executada. Aludidos poderes da administração fiscal, se utilizáveis para o lançamento de tributos, com muito mais razão serão utilizáveis para efeito de permitir a cobrança desses tributos, uma vez que esta – a efetiva arrecadação – é a providência que dá, afinal, sentido a todo o sistema tributário.(7)

Um trabalho de instrução assim realizado permitiria à Justiça separar os casos com e sem potencial de efetividade da penhora sobre faturamento, dirigindo apenas àqueles a força de sua autoridade e o empenho de sua congestionada estrutura. Mas não é o que ocorre.

Os juízes, complacentes e passivos, sem qualquer estudo aprofundado do caso (nivelando-se, pois, no particular, à parte requerente), deferem, por meio de suas minutas-padrão, a ordem requerida.

Novamente, sai o oficial de justiça para proceder a mais uma intimação que redundará quase sempre em inocuidade e inobediência – quando não no comum escárnio – do devedor perante a autoridade judiciária.

Em primeiro lugar, não se atenta a uma vicissitude nuclear desse proceder: sem que se tenham, previamente, indícios mínimos da dimensão do faturamento da empresa executada, não se terá nenhum parâmetro concreto para aferir eventual desobediência à ordem judicial.

Ficando a cargo do gestor-depositário a demonstração das receitas da empresa (base de cálculo do percentual de penhora), resta ao alvedrio dele decidir quanto declarará ao juízo, que não terá qualquer elemento de controle de veracidade. Não raro, fica assim o juiz como um bobo que dá uma ordem e nunca sabe se ela está sendo devidamente cumprida.

Alguns dias na condução de uma vara de execuções fiscais e qualquer magistrado perceberá que há numerosos feitos nos quais o depositário recolhe mensalmente um valor relativamente irrisório, suficiente para, ao mesmo tempo em que faz de conta que está cumprindo o dever imposto, manter parado o processo (limitando-se o exequente a periodicamente requerer a transformação em pagamento ou a conversão em renda dos valores depositados). Nem o credor tem seu direito satisfeito, nem, muito menos, o Judiciário cumpre seu mister de autêntica pacificação da crise de direito material. Ao contrário, envenena-se com mais um processo a congestionar suas secretarias, cego às fraudes mensais que, a cada depósito, lhe vitimarão a autoridade. Não raro, os depósitos irrisórios são efetuados por sócios de empresas já dissolvidas com escopo único de evitar redirecionamento (já que, como de costume, as fazendas cobram de quem sequer sabem se ainda existe – porque não diligenciam para saber).

Por outro lado, o mais comum é que nenhum depósito seja efetuado. Ocorre que, mais uma vez, não saberá o juiz o que está acontecendo: se há faturamento sem retenção do percentual penhorado ou se sequer há faturamento.

Sempre no plano da generalidade e sem atenção ao caso concreto, reza a jurisprudência predominante que, frente ao descumprimento da ordem de penhora, dever-se-á então intimar o depositário sob pena de multa. É o que o credor sempre requer, ao lado da remessa de peças ao socorro universal de todas as causas malconduzidas, a saber, a instância criminal.

Todavia, de que adianta ameaçar com multa quem já não paga o principal? Não seria mais uma ordem judicial fadada à inobservância, ridicularizando ainda outra vez a Justiça? De outra banda, mesmo que se fale em uma multa aplicada pessoalmente ao depositário (art. 14, V e parágrafo único, do CPC), ter-se-á quase igual ineficácia, visto que, como dito, a realidade majoritária da execução fiscal é representada por cobranças promovidas contra sociedades limitadas em que há intensa confusão de patrimônio entre sócio e sociedade. Ou seja, multar o sócio ou a sociedade é, na prática, quase a mesma coisa.

Enfim, cuida-se de autoflagelação institucional, também em matéria de penhora de faturamento, a postura judiciária de deferir incondicionalmente o pleito do exequente sem antes exigir-lhe prova mínima do potencial de efetividade da medida.(8)

Verificados exemplos concretos de como a passividade do Judiciário em admitir tudo que genericamente lhe pedem os credores fiscais corrói sua autoridade, impõe-se a adoção de uma nova postura.

Não cabe aqui tratar das mudanças que deveriam ocorrer no seio da administração, muito menos das propostas para uma assim chamada execução fiscal administrativa (inovações que implicassem incremento da estrutura administrativa de cobrança, inclusive para realização de diligências de campo, seriam extremamente oportunas, ressalvada a inconstitucionalidade de qualquer disposição que viesse a autorizar o fisco à prática de atos sob reserva de jurisdição). Sobre esses temas já há muito sendo escrito e debatido. Aliás, em verdade, mais que alterações normativas (visto que tão caras à inoperante burocracia estatal brasileira e ao costume de tudo resolver por lei/decreto/portaria), uma solução – ou melhora – efetiva poderia passar pela extinção da maioria dos cargos de procurador da Fazenda Nacional e pelo emprego do dinheiro economizado na contratação de empresas de cobrança (da mesma sorte como fazem os bancos no interesse de seus créditos), de tal modo que, ao ajuizar uma execução, o fisco já soubesse, pelo menos, se o devedor cobrado ainda opera ou, sendo pessoa física, se ainda vive.(9)

O que aqui se propõe é algo mais imediato e independente de alterações legislativas. Trata-se de propugnar por uma nova postura judiciária, preocupada com sua própria dignidade, que, ao mesmo tempo em que desempenhe o dever constitucional de prestar jurisdição, praticando todos os atos sob reserva de proclamação judicial necessários à tutela do direito do credor, exija deste, a cada instante e a cada requerimento, demonstração concretamente fundamentada de seu interesse jurídico (indicativos de utilidade efetiva do ato) e, especialmente, de que já promoveu todas as diligências a seu alcance que seriam potencialmente capazes de revelar a situação do devedor e a existência de bens penhoráveis.

Ou seja: o oficial de justiça, exemplificativamente, somente sairia à rua para cumprir mandado de penhora quando se tivessem indícios mínimos da existência de bens penhoráveis em tal ou qual endereço, tudo com base nas informações devidamente pesquisadas pelo credor interessado. De uma maioria de atos inúteis, imediatamente se passaria a uma maioria de atos úteis; a parte credora não poderia mais empurrar suas demandas com a barriga; processos sem perspectiva de constrição de bens iriam desde logo ao arquivo, neles não se esgotando inocuamente as forças do Judiciário; devedores com patrimônio penhorável seriam mais rápida e efetivamente alcançados; ordens judiciais teriam menor índice de descumprimento, porque idoneamente instruídas e direcionadas; a dignidade da Justiça começaria a ser resgatada, e a banalização do sistema, revertida.

A execução fiscal, antes que um problema jurídico ou administrativo, é um problema psiquiátrico e moral, de masoquismo e subserviência judiciária.

Notas

1. Disponível em: <ftp://ftp.cnj.jus.br/Justica_em_Numeros/relatorio_jn2014.pdf>. Acesso em: 19 dez. 2014.

2. É interessante notar que, ao traduzir processos de uma só parte, considerável parcela das execuções fiscais não chega aos tribunais, tendo em conta a inexistência de postulações contrárias e, assim, de decisões ensejadoras de recursos. Essa circunstância impede que as cúpulas judiciárias tenham uma visão completa e devidamente dimensionada do caos operacional – e, como aqui se diz, moral – representado por essa espécie de processo, cujo problema está mais no imenso volume de processos que nunca vão às instâncias revisoras (e onde se praticam dezenas de atos absolutamente inúteis) que naquela pequena fração em que se verifica algum contraditório.

3. É oportuno também recordar outro expressivo preceito, qual o do art. 600, V, do Código de Processo Civil – CPC, que assim se vaza: “Considera-se atentatório à dignidade da Justiça o ato do executado que: [...] intimado, não indica ao juiz, em 5 (cinco) dias, quais são e onde se encontram os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores”.

4. Sem que isto signifique necessariamente uma crítica, vale lembrar que o ciclo de ajuizamento de executivos federais da União é hoje praticamente todo ele automático/sem intervenção humana. Excluídos os poucos casos decorrentes de lançamento de ofício, tem-se que, apresentada eletronicamente a declaração fiscal pelo sujeito passivo e não recolhido o tributo – assim constituído – em dado prazo, o próprio sistema encaminha o débito para inscrição em dívida ativa e, já ligado ao sistema judiciário processual eletrônico, ajuíza a execução fiscal, sem que o procurador que tem sua suposta assinatura colocada na petição inicial sequer saiba que praticou esse ato. Na prática, o procurador apenas terá ciência de que o sistema ajuizou a execução valendo-se de seu nome quando for, mais tarde, intimado de algum ato processual, já quando em ulterior trâmite da demanda.

5. Há jurisprudência sugerindo que a constatação da inatividade da empresa por oficial de justiça é necessária para se deferir o redirecionamento. Ocorre que “[todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, (...), são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”, tal como prescreve o art. 332 do CPC (diploma que também coloca como ônus das partes – e não da Justiça – a prova dos fatos que lhes interessam). Quando o Judiciário assume incondicionalmente para si a incumbência de fazer originariamente uma prova – a da dissolução do devedor –, constata-se que está entregue ao ciclo vicioso de sua desmoralização e subserviência.

6. Por exemplo, art. 652, § 1º, do CPC: “Não efetuado o pagamento, munido da segunda via do mandado, o oficial de justiça procederá de imediato à penhora de bens e a sua avaliação, lavrando-se o respectivo auto e de tais atos intimando, na mesma oportunidade, o executado”.

7. Abstraindo-se aqui, é verdade, o notório fato de que a administração prefere, para levantar recursos, aumentar a tributação dos adimplentes a se empenhar na estruturação de seus órgãos de cobrança dos inadimplentes e de persecução dos sonegadores (e por essa opção padecerá o Judiciário, que processará um executivo fiscal tocado de qualquer jeito pela própria parte interessada – ele, Judiciário, passivamente suprindo aquela falta de estrutura administrativa, diligenciando no lugar da parte e, com isso, minando a si mesmo).

8. No âmbito da 5ª Vara Federal de Blumenau, assim se vem decidindo frente a pedidos não concretamente fundamentados de penhora sobre faturamento, em especial nas demandas movidas pela União para cobrança de tributos (v.g., processo 5003612-68.2013.404.7205 – as decisões quase sempre são reformadas pelo Tribunal):
“Verifica-se não haver nos autos qualquer comprovação de que a parte executada aufira entradas atuais que justifiquem a medida.
De fato, sem que se tenham indícios mínimos de faturamento relevante frente ao montante do débito executado, não se justifica o deferimento da penhora. Isso porque não se terá nenhum parâmetro concreto para aferir eventual desobediência à ordem judicial (a menos que seja nomeado um interventor judicial na empresa executada, expediente esse cuja viabilidade igualmente não se encontra delineada nos autos).
A experiência deste juízo vem demonstrando que, na quase totalidade dos casos em que determinada a penhora sobre faturamento, não se alcança resultado útil à satisfação do direito do credor.
Os administradores das empresas executadas, nomeados depositários, reiteradamente se omitem no depósito do percentual penhorado ou, quando promovem o recolhimento, fazem-no em cifras baixas, sendo inviável ao juízo, frente à falta de maiores elementos de prova, concluir se houve ou não faturamento, e se o eventual depósito observou o percentual determinado.
Registre-se que, por decisão do Supremo Tribunal Federal, não cabe mais a prisão civil do depositário infiel. Ademais, apesar da rotineira crença dos credores de que a ordem judicial de penhora teria forte efeito persuasivo em virtude da possibilidade de persecução penal, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região tem jurisprudência firme no sentido de que a omissão do administrador em efetuar o recolhimento do percentual penhorado não caracteriza crime de desobediência, bem como que seu desvio, enquanto por ele praticado na qualidade de gestor da empresa executada, não configura apropriação indébita.
Dessa forma, em um contexto de inefetividade da medida, gera-se um ambiente de extrema insegurança jurídica, no qual (a) o Poder Judiciário fica sem controle do cumprimento correto de sua decisão e (b) a parte credora invariavelmente não vê satisfeito seu direito, sem que sequer se tenha sanção para a desobediência (a mera fixação de multa cominatória, a par de estender o litígio, não implica efeito prático).
A providência, assim, concorre não apenas para se criar alto volume de trabalho inútil, atravancando a já sobrecarregada vara e prejudicando o processamento das execuções fiscais com potencial de efetiva satisfação, mas especialmente para desmoralizar as instituições estatais e o Poder Judiciário, que fica à mercê da vontade dos administradores das empresas executadas.
É importante ainda frisar que, tendo faturamento, as empresas executadas, quando probamente geridas, podem, em regra, valer-se do parcelamento de seus débitos (com prazo, pela hipótese geral do art. 10 da Lei 10.522/02, de até cinco anos). Quando assim não fazem, o comum é que seus administradores, tendo em vista a impossibilidade de controle judicial, aproveitem-se da penhora de valores ridículos de faturamento como forma de neutralizar outras medidas executórias, em especial o redirecionamento às suas próprias pessoas.
De outra banda, a penhora mensal de um valor diminuto ou irrisório, ainda que corretamente observada pelo devedor, traduz, ao cabo (já que, normalmente, a parte exequente deixa de promover outras diligências), um parcelamento não previsto em lei, com prazo secular de cumprimento, cuja gestão fica a cargo do Judiciário (novamente desgastado por incumbência infrutífera, e reduzido à condição de tesouraria bancária, a controlar depósitos em seus centavos e subsequentes conversões em renda). Alfim, perdem os próprios exequentes, já que a tramitação das execuções com viabilidade de resultado entram em vicioso ciclo de lentidão, dado o comprometimento das forças da vara com medidas ineficazes.
Lembre-se, de qualquer modo, que, na maioria dos casos, nem sequer um centavo é depositado, sendo completo o menoscabo – impune – à determinação judicial.
Por isso tudo, devem ser rejeitados os pedidos genéricos de penhora sobre faturamento, entendidos como tais os que não se façam acompanhados de elementos mínimos que indiquem o potencial de efetividade e seriedade da medida, possibilitando controle concreto de seu cumprimento.
No caso da União, pode ela, por exemplo, juntar documentação fiscal recente, obtida frente à Receita Federal ou perante as receitas locais (v.g., apuração de ICMS) – art. 199 do CTN –, que aponte para a existência de faturamento relevante pela parte executada, sem prejuízo de promover diligência in loco, para registrar (por vídeo, foto, nota fiscal, recibo, folheto de propaganda, contato com terceiros ou qualquer outro meio lícito) o funcionamento da empresa e o relevante faturamento pela comercialização de seus produtos ou serviços.
Assim, indefiro o pedido de penhora por faturamentoressalvada nova análise em caso de melhor instrução do pleito e demonstração concreta do potencial de efetividade da medida.
Intime-se.”

9. Veja-se a inefetividade do sistema atual: para pesquisa do automóvel do devedor, consulta-se o cadastro do Denatran/Detran. Exceto em um ou outro caso específico, isso é tudo que se faz, e as procuradorias fazendárias dedicam-se quase integralmente a essa e outras diligências de escritório equivalentes. Se, nada obstante, tivesse um cobrador de campo a seu serviço, poderia o credor saber, por exemplo, se o devedor não está por aí a circular em uma Ferrari – ou mesmo veículo mais modesto – fraudulentamente licenciada em nome de terceiro.



Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., jun. 2015. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS