Direito administrativo sanitário(1)

Autor: Clenio Jair Schulze

Juiz Federal, Mestre em Ciência Jurídica

publicado em 28.08.2015



Resumo

Aborda o direito administrativo à luz da judicialização da saúde e apresenta justificativas para a criação de uma nova área denominada direito administrativo sanitário.

Palavras-chave: Direito administrativo sanitário. Administração pública. Sistema Único de Saúde.

Sumário: Introdução. 1 Os direitos fundamentais sociais. 2 Direito administrativo sanitário. Considerações finais. Referências bibliográficas.

Introdução

O direito administrativo renasceu a partir de novas compreensões acerca da teoria dos direitos fundamentais e, principalmente, em razão do aumento gigantesco da judicialização instaurada no Brasil.

Atualmente existem quase cem milhões de processos em tramitação no Judiciário brasileiro.(2) Significa que há, em média, um processo para cada dois habitantes. Essa é a real fotografia da crise do Estado (pós-)social, decorrente de uma exagerada expectativa quanto à capacidade do Estado-juiz de resolução de todos os problemas da sociedade.

E uma das grandes influências ocasionadas no direito administrativo decorre da judicialização da saúde.

Segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça – CNJ em junho de 2014, existiam aproximadamente 400 mil processos judiciais sobre direito à saúde. Seguramente o número é muito maior, pois muitos tribunais ainda não adotaram a tabela de assuntos do CNJ na classificação dos seus processos, sem contar que várias cortes sequer informaram a sua demanda sobre o tema.(3)

Nesse contexto, o presente artigo analisa essa recente dinâmica trazida ao direito administrativo, com destaque para a nova percepção sobre os direitos fundamentais sociais, sobre o aumento da judicialização da saúde, e, principalmente, justifica a necessidade de criação de uma nova área denominada direito administrativo sanitário.

1 Os direitos fundamentais sociais

Durante muito tempo, os direitos fundamentais sociais deixaram de ser efetivados ao argumento de que configuram meras normas programáticas e por isso o Estado não estaria vinculado à sua observância.

Entendia-se, assim, que a Constituição enunciava um programa de ação, uma política pública, e que os destinatários da norma constitucional – geralmente os Poderes Legislativo e Executivo – teriam apenas a faculdade de efetivar os direitos fundamentais sociais.

O Judiciário, igualmente, chancelava tal posição, entendendo que não poderia ingressar no mérito da decisão administrativa, porquanto estava protegida pela cláusula da discricionariedade. Atuava, assim, em deferência e em respeito aos demais poderes da República Federativa do Brasil.

Esse foi o cenário adotado até o período anterior à última década.

A submissão da autoridade judiciária às decisões proferidas – ou omitidas – pelos demais agentes públicos chegou ao limite a partir da adoção de uma postura mais proativa e materializadora dos direitos fundamentais.

O Estado-juiz deixou de compreender o texto da Constituição como um documento estático, passando a interpretá-lo a partir da gênese da teoria dos direitos fundamentais sociais e com base na leitura que preconiza a força normativa da Constituição. Os valores constitucionais plasmados na dignidade da pessoa humana, na fundamentalidade, na universalidade, na inalienabilidade, na historicidade e na aplicabilidade imediata dos direitos ensejaram a mudança de perspectiva.

Iniciou-se uma participação mais ampla e intensa do Poder Judiciário na concretização dos fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação do Legislativo e do Executivo.

A transição da inefetividade para a efetividade dos direitos fundamentais também decorreu do amadurecimento da sociedade brasileira, que deixou a passividade para assumir ativamente a responsabilidade de discutir seus direitos e se proteger de ilegalidades historicamente praticadas nas relações com o Estado – na perspectiva tributária, administrativa, previdenciária – e nas relações entre os próprios particulares – direito de vizinhança, direito de propriedade, etc.

Fez-se, assim, uma leitura adequada do princípio da universalidade de jurisdição estampado no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição, que se tornou fundamento para a judicialização ilimitada das questões sociais e políticas travadas no Estado brasileiro.

Tudo isso se dá em razão da legitimidade institucional do Poder Judiciário, presente nos artigos 2º e 92 a 126, especialmente no artigo 102 (que legitima o controle de constitucionalidade), todos da Constituição. No plano infraconstitucional, merece destaque o princípio da indeclinabilidade (artigo 126 do CPC), que não dispensa o magistrado da análise das questões judiciais a ele submetidas.

A verdade é que o Judiciário é destinatário de todas as normas constitucionais, que norteiam e servem de parâmetro à sua atuação. Deve, portanto, cumprir as normas de direitos fundamentais, com necessidade de observância dos objetivos do Estado brasileiro – artigo 3º da Constituição.

Tudo isso é suficiente para permitir a atuação do Judiciário, em prol da observância ao texto da Constituição (dirigente, programático e que orienta para o progresso da sociedade brasileira).

O Brasil é exemplo de modernidade tardia, em que os direitos demoraram a chegar e, essencialmente, a concretizar as políticas fixadas na Constituição. Por isso a viragem institucional do Judiciário no trato das questões relacionadas a direitos fundamentais.

Importante decisão que passou a balizar a atuação do Poder Judiciário foi a proferida pelo Ministro Celso de Mello na ADPF 45, em que se estabeleceram alguns fundamentos e parâmetros para a atuação do Estado-juiz no controle das omissões relacionadas a direitos fundamentais sociais e políticas públicas. Nessa decisão, assentou-se que os direitos sociais não podem tornar-se promessas inconsequentes, cabendo ao Judiciário o controle das omissões para a implementação da pretensão estatal fixada na Constituição.(4)

2 Direito administrativo sanitário

A existência de uma nova visão em relação ao direito fundamental à saúde – ainda que se permita compreender como direito não absoluto – e a verificação de milhares de processos judiciais exigem a construção de uma nova área, denominada direito administrativo sanitário.

O direito administrativo sanitário nasce, portanto, para permitir uma mudança de postura em relação à atuação do Estado, na perspectiva da administração pública.

Essa nova dimensão do direito administrativo deve tratar de assuntos voltados à tentativa de permitir maior qualificação dos serviços de saúde e apontar – essencialmente – pontos para superar os obstáculos que impedem a redução de processos judiciais sobre saúde no Brasil.

É claro que a nova postura deve mirar, com atenção especial, o funcionamento do Sistema Único de Saúde – SUS.

Quais são, então, os obstáculos que o direito administrativo deve superar para reduzir a judicialização e permitir o adequado funcionamento do Estado administrador?

Em primeiro lugar, cabe ao direito administrativo sanitário reduzir o fenômeno da cultura do litígio. O Brasil é campeão mundial de judicialização se observada a proporção entre processos e habitantes. A média é de praticamente um processo para cada cidadão brasileiro. Tudo é levado à porta dos tribunais, sem qualquer limite ou contenção. Isso decorre, muitas vezes, do burocratismo vigente no Executivo e no Legislativo.

Em segundo lugar, o direito administrativo sanitário deve fomentar a construção de uma governança pública. Com efeito, é muito baixo o controle de resultados da atuação estatal. A governança pública adequada permite maior controle da gestão, com notórios ganhos na execução de políticas públicas de saúde em prol da população. Governar significa dirigir, monitorar e avaliar. A questão envolve, também, a implantação de noções de planejamento estratégico, com auxílio na implantação de rotinas e metas e no respectivo controle do desempenho da atuação estatal.

O Decreto-Lei 200/67 já estabelece, no artigo 10 e parágrafo 4º, que a execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada e que compete à estrutura central de direção o estabelecimento das normas, dos critérios, dos programas e dos princípios, que os serviços responsáveis pela execução são obrigados a respeitar na solução dos casos individuais e no desempenho de suas atribuições. Tal previsão precisa ser efetivamente concretizada e ampliada a fim de pulverizar a noção de boa governança pública.

Em terceiro lugar, o direito administrativo sanitário precisa fomentar a ocupação adequada dos cargos públicos. A gestão da saúde no Brasil ainda é pouco profissionalizada. A ausência de meritocracia impede a melhoria da qualidade da prestação de serviços em saúde, especialmente do SUS e, principalmente, nos municípios. Isso reduz a eficácia do Estado-administração e fomenta a judicialização.

A meritocracia prestigia o profissional que reúne melhores condições de aptidão, capacidade, excelência e qualificação para o cargo público.(5)

Em quarto lugar, cabe ao direito administrativo sanitário o cumprimento do dever fundamental de exercer a boa administração pública.

Afirma-se, na atual quadra, que o cidadão possui direito fundamental à boa administração, vale dizer, "o direito à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação e à plena responsabilidade por suas condutas comissivas e omissivas" ou "o direito à administração preventiva, precavida e eficaz (não apenas eficiente), vale dizer, comprometida com resultados em sintonia com os objetivos fundamentais do Estado Democrático e, nessa medida, redutora dos conflitos intertemporais, que só fazem aumentar os chamados custos de transação.(6)

Em quinto lugar, o direito administrativo sanitário exige a melhoria da qualidade de serviços dos médicos do SUS. A despeito da previsão, no Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931/2009), da necessidade de observância e respeito à legislação de regência e à adoção da medicina de evidência, é muito comum ver médicos no Brasil prescrevendo medicamentos e tratamentos sem qualquer base científica. É a crise do ensino médico e a crise dos profissionais da área médica. A prática da medicina de experiência ou da medicina da eminência precisa ser exterminada, pois é fomentadora de processos judiciais. Além disso, é muito difícil de controlar a relação dos médicos com a indústria farmacêutica. E a judicialização pode acelerar a entrada de novos medicamentos em um mercado que movimenta bilhões de reais ao ano.

Portanto, o papel do direito administrativo sanitário é instruir e educar de modo adequado os médicos e profissionais da área da saúde que integram os quadros do serviço público.

Em sexto lugar, o Executivo precisa considerar as consequências das decisões como critério de direito administrativo. Com efeito, se o SUS opta por incorporar determinado tratamento ou medicamento, deve, automaticamente, adotar mecanismos para a imediata concretização dessa decisão. O direito administrativo sanitário deve, assim, promover regras adequadas de licitação, tendentes a permitir a aquisição tempestiva dos medicamentos incorporados ao sistema. O novo direito administrativo também deve, v.g., ajustar seu orçamento para fazer frente às novas exigências.

Em sétimo lugar, é missão do direito administrativo sanitário ampliar o controle e a concretização do papel da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias – Conitec no SUS. Cabe a tal entidade assessorar o Ministério da Saúde na incorporação, na exclusão ou na alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, além de auxiliar a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica.

O papel da Conitec é desenvolver estudo técnico para auxiliar o Ministério da Saúde na incorporação de novas tecnologias. A decisão pela incorporação ou não incorporação da nova tecnologia é proferida de forma democrática, tendo em vista que a Conitec é entidade plural, cuja composição deverá contemplar um representante indicado pelo Conselho Nacional de Saúde e de um representante, especialista na área, indicado pelo Conselho Federal de Medicina.

Todos os relatórios e decisões da entidade são publicados, a fim de conferir a necessária legitimidade da atividade desenvolvida pela instituição.(7)

Em oitavo lugar, o direito administrativo sanitário deverá informar à autoridade judiciária responsável por conduzir processo em que se postula a concessão de medicamento, tratamento ou tecnologia, o teor das decisões proferidas pela Conitec, visto que são baseadas em critérios técnicos.

Se a decisão da Conitec foi favorável à incorporação da tecnologia no SUS, parece evidente que o magistrado não pode contrariá-la, salvo comprovação científica contrária, contemporânea ou superveniente. De outro lado, se a posição da aludida entidade é para não autorizar a incorporação da tecnologia no âmbito do SUS, o juiz somente poderá deferir o pedido veiculado na via judicial se houver prova técnica – e apenas técnica – refutando a conclusão da Conitec.

Na hipótese de ausência de decisão técnica na via administrativa, a autoridade judiciária pode se valer de consulta à Conitec, inclusive por e-mail, apresentando todos os questionamentos acerca de produtos e tecnologias postulados na via judicial.

Em nono lugar, é papel do direito administrativo sanitário auxiliar o juiz na análise do caso judicializado, apresentando a investigação do diagnóstico, o quadro clínico e principalmente, a comprovação da melhor prática de evidência científica, além da eficácia, da acurácia, da efetividade e da segurança do medicamento, produto ou procedimento postulado, sem dispensar, também, a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas (observância da relação custo-benefício).

Considerando que o Judiciário tem criado políticas públicas de saúde, proferindo decisões judiciais de concessão de medicamentos e tratamentos não previstos no âmbito do SUS, é inegável que a decisão judicial deverá ser acompanhada pelos agentes de políticas públicas de saúde.

Em décimo lugar, o direito administrativo sanitário exige dos membros da advocacia que representam os entes públicos em juízo que atuem de forma dialógica, pois, na missão de defender o interesse da administração, também devem auxiliar o juízo, prestando informações técnicas adequadas, principalmente na área da saúde, já que a matéria jurídica é de conhecimento do magistrado. Exige a superação, portanto, do papel comum exercido pelos advogados públicos, de alegar apenas questões jurídicas nos processos sobre direito à saúde. É indispensável avançar para que o processo passe a ser alimentado por informações técnicas e do sistema de saúde.

Em décimo primeiro lugar, o direito administrativo sanitário exige do Estado o cumprimento do dever fundamental de praticar todos os atos necessários a conferir presteza, eficiência e eficácia à tutela do direito fundamental à saúde, sob pena de insuficiência de proteção ou violação à proibição de déficit (Untermassverbot).

A vedação de proteção insuficiente é uma decorrência do princípio da proporcionalidade – plasmado implicitamente no art. 5º, LIV, da Constituição Federal – que se destina à proteção de um direito fundamental.

Canotilho afirma que "existe um defeito de protecção quando as entidades sobre as quais recai um dever de protecção (Schutzpflicht) adoptam medidas insuficientes para garantir uma protecção constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais".(8)

É incontroverso que existe o dever estatal de prestar de forma articulada os serviços de saúde preventivos e curativos, individuais e coletivos, no seu aspecto mais amplo possível. Trata-se da dimensão objetiva do direito fundamental à saúde, que produz uma eficácia irradiante e condiciona a atuação do legislador, do administrativo e do julgador, no exercício e no controle daquelas políticas públicas de saúde.

Isso significa que o Estado está cercado de um tríplice plexo de deveres: (a) dever de respeito: que proíbe o Estado de violar o direito fundamental à saúde; (b) dever de proteção: no qual o Estado não pode permitir a violação do direito fundamental à saúde; e (c) dever de promoção: em que o Estado deve proporcionar condições básicas para o pleno exercício do direito fundamental à saúde.(9)

Ao mesmo tempo, também se protege a dimensão subjetiva do direito fundamental à saúde. Assim, na hipótese de descumprimento – imediato ou potencial – do princípio da integralidade, permite-se ao cidadão a possibilidade de solicitar ao Estado-juiz o respeito e a reparação da violação àquele direito fundamental.

Em décimo segundo lugar, o direito administrativo sanitário também não pode pecar pelo excesso, ou seja, deve atuar na medida suficiente para cumprir as determinações constitucionais, sem abuso.

Nas palavras de Jorge Reis Novais(10):

"Não há, hoje, controlo judicial das restrições aos direitos fundamentais, sem o recurso sistemático, permanente, imprescindível, ao princípio da proibição do excesso, nas suas diferentes dimensões, máximas ou subprincípios. Para além de outros requisitos, qualquer restrição ou intervenção restritiva em um direito fundamental só passa no teste de constitucionalidade se se puder sucessivamente demonstrar que é apta para realizar um fim legítimo e de peso superior ao direito fundamental em questão; que é indispensável à realização de tal fim; que não é desproporcionada; que não é desrazoável; que não é indeterminada."

Em décimo terceiro lugar, o direito administrativo sanitário deve estabelecer um rol de prioridades no cumprimento do direito fundamental à saúde. É papel do Estado, nesse aspecto, optar por escolhas. E que essa escolha seja a mais adequada ao cidadão, à luz do cumprimento de política de saúde contemplada constitucionalmente.

Cabe ao direito administrativo sanitário, portanto, conferir maior eficiência aos gastos públicos de saúde, tendo em vista a inexorável limitação orçamentária.
(11) Os resultados da atuação estatal também precisam ser maximizados.

Em décimo quarto lugar, cabe ao direito administrativo sanitário ampliar a criação de redes – envolvendo União, estados e municípios – que possam dialogar com os juízes do Brasil a fim de facilitar o julgamento de processos sobre direito à saúde. A criação de núcleos de apoio técnico formados por médicos e agentes de saúde pode auxiliar os magistrados com a apresentação de pareceres médicos e de outras informações sobre a questão deduzida em juízo.

Nesse caso, o órgão auxiliar pode (a) analisar e informar ao juiz sobre a existência de evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento; (b) fazer a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível (observar a relação custo-benefício) e; (c) observar se o pedido judicial está em conformidade com as Recomendações 31 e 36 do Conselho Nacional de Justiça.

Em décimo quinto lugar, cabe ao direito administrativo sanitário controlar e acompanhar o sujeito ativo do processo judicial e, na hipótese de procedência do pedido, fiscalizar o cumprimento dos parâmetros para cumprimento da decisão, a fim de verificar a evolução do quadro clínico e permitir a regular e periódica consulta para análise do real estado de saúde do paciente, a fim de constatar, no transcurso de certo espaço de tempo, se ainda persistem os sintomas que ensejam o uso da medicação cuja entrega foi determinada judicialmente.

Em décimo sexto lugar, cabe ao direito administrativo sanitário exigir dos agentes integrantes do sistema de saúde, principalmente aos profissionais médicos do SUS, a responsabilidade pela execução e pelo cumprimento da sentença judicial, nos casos de concessão de medicamento ou tratamento, devendo atuar com base nos postulados fixados na medicina e, a partir das normas da Lei 12.401/11, avaliar regularmente e com razoabilidade o quadro clínico do paciente.

Em décimo sétimo lugar, cabe ao direito administrativo sanitário o fomento à teoria dos diálogos institucionais (ou teoria dos diálogos constitucionais), exigindo uma nova postura dos integrantes dos poderes do Estado.

Vale dizer, os agentes públicos responsáveis pela concretização do direito à saúde precisam exercer suas funções, sempre que possível, mantendo diálogos constitucionais – institucionais. Se todos os agentes públicos devem obediência ao texto da Constituição, é indispensável que as relações estatais se estabeleçam a partir da interpretação das normas constitucionais empreendida coletiva e harmonicamente entre os poderes.

Ou seja, a teoria dos diálogos institucionais existe para permitir a aproximação entre o gestor de saúde e o magistrado, com o fim de contribuir para a melhoria da prestação jurisdicional e também do funcionamento da saúde pública.

Em décimo oitavo lugar, cabe ao direito administrativo sanitário a adoção ampla e irrestrita do conceito de sustentabilidade.

A noção de sustentabilidade enseja a escolha de uma política menos impactante orçamentária e politicamente nas relações fáticas e jurídicas.

Conforme orienta Freitas, a sustentabilidade é multidimensional e deve contemplar cinco vertentes, a saber: (a) jurídico-política – que engloba um grupo de deveres, tais como educação, saúde, processo, informação, moradia, ambiente limpo, entre outros, e que exige a adaptação do regime administrativo, especialmente na contratação de agentes e de obras públicas e na prática de atos administrativos; (b) social – vincula todos os seres, como a proteção do trabalhador, evitando a mão de obra escrava; (c) econômica – preconiza escolha de políticas econômicas sustentáveis, combate ao desperdício, controle rigoroso de licitações e de obras públicas; (d) ambiental – dignidade do ambiente, responsabilidade ambiental, redução da poluição, preservação das espécies; (e) ética – aplicada na perspectiva intersubjetiva, de materializar o compromisso das atuais gerações sem prejudicar as futuras gerações. Fomentar o bem-estar íntimo e social.(12)

É inegável que a administração possui discricionariedade para a escolha na alocação de recursos, mas tal liberdade não é absoluta, diante da necessidade de observância aos direitos fundamentais e aos princípios encapsulados no texto da Constituição. Pelo mesmo fundamento, o Legislativo não possui irrestrita liberdade de conformação, ante a necessidade de obediência às diretrizes constitucionais.

A sustentabilidade exige um rigoroso controle no gasto público. Há casos graves de malversação de verbas públicas na área da saúde, tal qual o pagamento de mais de meio milhão de reais para a apresentação de uma cantora de axé music na inauguração de um hospital.(13)

A atuação sustentável exige do Executivo o esclarecimento e a publicação dos procedimentos de compra, inclusive com a demonstração de abusos e excessos praticados pelos laboratórios. O Estado não pode ficar refém dos fabricantes de fármacos.

Em décimo nono lugar, cabe ao direito administrativo sanitário fomentar a realização de audiências públicas para permitir a participação do cidadão na escolha das opções existentes em matéria de saúde pública, legitimando o modelo democrático instaurado pelo Constituição vigente. Se há limitação financeira, a alocação de recursos não pode ficar circunscrita à administração, cabendo ao cidadão, ainda que de forma reduzida, opinar sobre parte do orçamento da saúde.

Em vigésimo lugar, cabe ao direito administrativo sanitário, à luz da atuação sustentável do Estado administrador e do Estado legislador, avançar na efetiva repartição de competências e na redefinição do modelo federativo sanitário brasileiro.

Com efeito, é preciso uma efetiva e concreta descentralização das atuações do sistema de saúde pública com ênfase nas unidades federativas mais próximas do cidadão. Os municípios são depositários de inúmeras obrigações de saúde previstas na Lei 8.080/90, mas não possuem a necessária contrapartida orçamentária.

A centralização dos recursos na União é prejudicial ao progresso das políticas públicas de saúde. A transferência de recursos do ente federativo central sempre passa pela infeliz e lamentável drenagem irregular que produz violações à atuação proba e ética exigida dos agentes públicos. É, em outras palavras, exemplo de facilitação da prática de crimes contra a administração pública em detrimento da sociedade e, principalmente, dos cidadãos que aguardam a atuação estatal eficiente na condução da política de saúde pública. O problema existe e precisa ser combatido em prol dos princípios da moralidade e da eficiência que norteiam a atuação estatal.

Considerações finais

A proposta veiculada no presente texto demonstra que há necessidade de criação de uma área específica no direito administrativo, com a finalidade de tutelar adequadamente o direito à saúde.

O direito administrativo sanitário nasce, assim, diante da necessidade de melhoria e ampliação do atendimento no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.

A missão do direito administrativo sanitário resume-se, em última análise, ao cumprimento da Constituição.

O direito à saúde é um direito de satisfação progressiva e tem como destinatário toda a sociedade. Não cabe ao Estado, portanto, negar concretização a direito fundamental, em razão de inércia e omissão.

Assim, o Poder Executivo precisa analisar com atenção as demandas de saúde.

E o direito administrativo sanitário é o caminho adequado para, entre outras atribuições, ampliar (1) a melhoria da gestão do SUS, (2) a qualificação adequada dos agentes públicos de saúde, (3) a fixação do planejamento estratégico da saúde brasileira e (4) a compatibilização entre o direito fundamental à saúde e a limitação de recursos humanos e financeiros.
Demonstra-se, assim, com o novo direito administrativo sanitário, que é possível reduzir a judicialização da saúde, a fim de permitir o cumprimento equilibrado do direito fundamental à saúde estampado na Constituição da República Federativa do Brasil.

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Notas

1. O presente artigo foi elaborado em razão da participação do autor no Curso de Currículo Permanente, Módulo de Direito Administrativo, promovido pela Escola da Magistratura – Emagis do TRF 4ª Região.

2. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ. Relatório Justiça em Números. Brasília: CNJ, 2013. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficiencia-modernizacao-e-transparencia/pj-justica-em-numeros/relatorios>. Acesso em: 28 out. 2014.

3. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ. Relatórios de cumprimento da Resolução CNJ n. 107. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/programas/forumdasaude/
demandasnostribunais.forumSaude.pdf>. Acesso em: 28 out. 2014. Observa-se que, dos Tribunais Federais, o TRF4 apresenta o maior número de processos (35.287), e o TRF5, o menor, com apenas 11 (o que demonstra que tal informação não está correta). Dos Tribunais de Justiça, o TJRS é o campeão, com 113.953 processos em tramitação, e o TJAC possui apenas 7 processos em andamento. TJAM, TJPE e TJPB não prestaram informações.

4. “ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA ‘RESERVA DO POSSÍVEL’. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO ‘MÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45. Relator: Min. Celso de Mello. Julgado em 29.04.2004, DJ 04.05.2004.

5. SCHULZE, Clenio Jair. A meritocracia e os cargos em comissão. In: VAZ, Paulo Afonso Brum; PEREIRA, Ricardo Teixeira do Valle; BACELLAR FILHO, Romeu Felipe (org.). Curso Modular de Direito Administrativo. Florianópolis: Conceito, 2009. p. 431-444.

6. FREITAS, Juarez. Carreiras de Estado e o direito fundamental à boa administração pública. Interesse Público, n. 53, p. 13-14.

7. COMISSÃO NACIONAL DE INCORPORAÇÃO DE TECNOLOGIAS NO SUS – CONITEC. Brasília: 2014. Disponível em: <http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-mais-o-ministerio/259-sctie-raiz/dgits-raiz/conitec/l2-conitec/8777-propostas>. Acesso em: 30 out. 2014.

8. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. 6. reimp. Coimbra: Almedina, 2003. p. 273.

9. MARMELSTEIN, George. Direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2009.

10. NOVAIS, Jorge Reis. Direito fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006. p. 101.

11. AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

12. FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011.

13. Jornal Estado de São Paulo, São Paulo, 24 jan. 2013.



Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., ago. 2015. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS