Agências reguladoras: autonomia, atividade normativa, decisões e julgamentos administrativos e reflexos ante o Poder Judiciário

Autor: Daniel Luersen

Juiz Federal

publicado em 28.08.2015



Sumário: Introdução. 1 Jurisdição una e jurisdição dual. Considerações. 2 Autonomia das agências. 2.1 Considerações sobre o aparente déficit democrático. 2.2 Atividade de produção normativa. Regulamentos e espécies permitidas pelo direito pátrio. 3 Especialidade e especificidade. Profissionalismo e caráter técnico da Administração Pública. 3.1 Discricionariedade balizada pela técnica para fins de decisões administrativas. 3.2 Análise de caso de grande repercussão julgado por agência americana. 4 Atividade administrativa decisória e de julgamento. 4.1 Processo e julgamento administrativos. O exemplo americano em contraste com o brasileiro. 4.2 Estrutura e competência dos órgãos de julgamento das agências. A instrumentalidade do processo como condição legitimante da atuação administrativa. Conclusão. Referências.

Introdução

O presente estudo tem por finalidade analisar a atividade normativa das agências e os seus reflexos na atividade decisória administrativa e judicial. Para tanto, abordamos as noções de discricionariedade, buscando divisar o conceito de discricionariedade técnica, e as questões atinentes aos conceitos jurídicos indeterminados. Permeia este texto a propugnação da necessidade de aprimoramento e profissionalismo da Administração Pública. Em sequência, serão feitas digressões acerca dos julgamentos administrativos e das suas consequências no âmbito judicial, bem como breve comparação com o modelo americano. Por fim, será abordada a instrumentalidade do processo como método para atingir o referido profissionalismo para fins de aperfeiçoamento e fortalecimento das decisões administrativas, bem como a delimitação fático-probatória e jurídica de matérias que sejam levadas ao âmbito judicial.

1 Jurisdição una e jurisdição dual. Considerações

O Brasil optou, à semelhança dos Estados Unidos, pelo modelo de jurisdição una, na qual todos os conflitos, inclusive os existentes entre particulares e Administração Pública ou, até mesmo, entre órgãos da Administração, podem ser julgados pelo Poder Judiciário.

Nisso difere, pois, do sistema francês, no qual a jurisdição é dual: há um órgão, integrante do Poder Executivo, cuja competência para proferir julgamentos em sede de conflitos envolvendo a Administração Pública é exclusiva em relação a outros órgãos. Trata-se, pois, do Conseil d’Etat,engendrado por Napoleão, originariamente, como meio de manter o controle dos julgamentos envolvendo o Estado.

No entanto, nas quadras dos anos, o Conseil d’Etat foi afirmando sua independência e autonomia, com diversos julgamentos vanguardistas e ainda utilizados pela jurisprudência hodierna (a propósito, v.g., veja-se a evolução das teorias do risco e da responsabilidade da administração).

No direito americano, apesar da existência de jurisdição una, os conflitos administrativos chegam ao Poder Judiciário em volume infinitamente menor relativamente ao número de decisões administrativas tomadas pelas agências.

Tal fato pode ser explicado, em parte, pelos custos de se mover um processo judicial nos Estados Unidos. Porém, não só. De outra parte, conforme ressaltado na palestra do Juiz Peter Messitte,(1) há advogados especializados em atuar perante determinadas agências, atividade essa que exige um alto grau de especialização – mais especificamente, grande conhecimento da jurisprudência, ou seja, dos precedentes da agência, os quais têm força vinculativa em relação às decisões tomadas por ela.

O simples fato de haver uma especialização de matérias, bem como advogados com forte atuação perante agências, indica um grau maior de amadurecimento da atividade administrativa, ou seja, hão de ser sopesados não somente os custos financeiros do ingresso de uma ação judicial, mas a efetiva existência do direito alegado e a possibilidade de sua procedência em tal âmbito, diante de decisões administrativas respaldadas em matéria fática suficiente e em direito plausível aplicável à espécie, conforme adiante se verá.

Em nosso sistema, verificamos que há decisões administrativas extremamente pobres, seja por um procedimento administrativo fraco, do qual resulta um acervo probatório incipiente, seja pela própria fundamentação deficiente da decisão, ou mesmo por erros de avaliação.

E, ainda, mesmo em se tratando de servidores de reconhecida competência, como no âmbito da Receita Federal, por exemplo, há decisões díspares, ora a favor, ora contra o contribuinte, decorrentes da análise da mesma matéria. É bem verdade que há, hodiernamente, procedimento de edição de ato normativo do advogado-geral da União para que determinadas matérias estejam sujeitas a um determinado tratamento. Nota-se, pois, a adoção de uma tendência semelhante à utilização do precedente, de maneira a orientar a atuação dos agentes administrativos.

No entanto, em nosso sistema uno de jurisdição, há uma plêiade de ações questionando toda e qualquer espécie de ato administrativo, decorrentes dos mais diversos motivos e das mais variadas falhas administrativas ou de entendimentos jurídicos diversos aos amplamente praticados no âmbito judicial.

2 Autonomia das agências

2.1 Considerações sobre o aparente déficit democrático

As agências reguladoras gozam de grau maior de autonomia em relação, inclusive, às demais autarquias, porquanto não estão sujeitas ao poder de tutela ou de supervisão dos respectivos ministérios, havendo relativa independência normativa, executiva e de julgamento – dentro, obviamente, da moldura legal para a qual foi concebida e nos limites do âmbito técnico que pretende regular.

Essa autonomia tem alguns traços caracterizadores, dentre os quais ressaltamos o mandato fixo dos dirigentes, consubstanciado na relativa estabilidade pelo período fixado como mandato na respectiva lei de criação, havendo impossibilidade de exoneração ad nutum por ministro de Estado ou pelo chefe do Executivo, exceto por falta grave apurada mediante devido processo administrativo, bem como o período de quarentena de seus dirigentes, ou seja, após o término do mandato haverá um período durante o qual não poderão exercer qualquer espécie de atividade perante a agência da qual foram dirigentes.

Em outro viés, a autonomia das agências revela-se de modo peculiar na sua capacidade de produção legislativa, fato esse ensejador de grandes debates entre juristas.

Vários autores identificam, nos modelos estruturantes das agências reguladoras, malferimentos a diversos princípios que orientam a construção do Estado político brasileiro.

Frequentemente são apontados fatores que indicam a falta de legitimidade desses entes, seja para sua atuação, seja para sua atividade regulamentar. Em síntese, argui-se um déficit democrático, porquanto não há coincidência entre o mandato do chefe do Executivo e o dos diretores das agências, o que pode levar à adoção de posturas contrárias aos planos de um governo eleito. E a posição dos diretores é ainda mais reforçada pelo fato de eles gozarem de certas prerrogativas que garantem sua (relativa) autonomia e independência em relação à chefia do Executivo.

Essas garantias seriam: sabatina e aprovação pelo Senado; mandato fixo; impossibilidade de exoneração ad nutum; necessidade de instauração de processo específico para fins de destituição.

No entanto, tais óbices levantados somente ganham relevância quando se tem uma visão de Administração Pública permeada de decisões essencialmente políticas e orientada a implementar políticas de determinado grupo que galgou o poder, e não uma administração profissional, objetiva, independente e atemporal, como deveria ser. Nessa linha, pouco importa qual governo nomeia os diretores das agências. O que interessa é a observância ao procedimento indicado em lei para a ocupação daquele cargo. No caso das diretorias das agências, estas são indicadas pelo então chefe do Executivo, mediante aprovação do Senado: nisso reside sua legitimidade. A circunstância de alteração na chefia do Executivo não significa que todo o aparato estatal deva ser alterado conforme a conveniência política do momento. Houve uma indicação de um chefe do Executivo também legitimado pelas urnas, e de um Senado igualmente oriundo de pleito eleitoral.

Em outro viés, está-se a confundir a chefia de governo com a chefia da Administração Pública. Os diretores das agências não devem ter por pauta programas de governo, mas, sim, programas de administração técnica e profissional da coisa pública.

Ademais, programas de governo e administração técnica e profissional não são necessariamente excludentes entre si. Aliás, é desejável, em qualquer plano de governo, que haja pessoal técnico, ciente de suas possibilidades e dos limites da sua atuação.

Impressiona o número de autores, com argumentos respeitabilíssimos, que vê completa contradição na não coincidência de mandatos. Há uma espécie de desejo por um sentimento de uniformidade que, na prática, nunca irá se materializar.

A sociedade é composta por diversos grupos com interesses que, vez por outra, se confundem ou se interseccionam, em maior ou menor grau. A ideia de uniformidade da vontade popular decorrente do sufrágio parece resquício de um inconsciente uniformizador e, de certo modo, autocrata.

A existência de diversas correntes e de contradições dentro de um mesmo governo e as discussões e rupturas provocadas por tais acontecimentos não podem ser vistas exclusivamente em seu caráter negativo, porquanto, não fosse a existência de posicionamentos diferentes, o progresso da humanidade seria muito mais lento. Há, portanto, uma dinâmica política constitucional, reflexiva, em boa parte, dos fatores reais de poder (Lassale), nos quais estão incluídas, obviamente, as forças econômicas. Nessa linha, transcrevo pensamento de Gustavo Zagrebelsky,(2) que percebeu que a atualidade jurídica necessita de novas formulações para o acompanhamento dessa realidade:

“Na falta de melhor expressão, defendi, em outra oportunidade, a exigência de uma dogmática jurídica ‘líquida’ ou ‘fluida’, que pode conter elementos do direito constitucional de nosso tempo, ainda que sejam heterogêneos, agrupando-os em uma construção necessariamente não rígida que dê espaço às combinações que derivem não mais do direito constitucional, mas sim da política constitucional. Trata-se do que se poderia chamar de instabilidade das relações entre os conceitos, consequência da instabilidade resultante do jogo pluralista entre as partes, que se desenvolve na vida constitucional concreta.”

A soberania resultante da eleição por voto popular tem vários limites, decorrentes da vontade superior da própria Constituição, responsável pela ascensão ao poder de determinado governo. E essa mesma Constituição prevê o caráter profissional da Administração Pública, já inchada de inoportunas e fisiológicas interferências políticas causadas pela própria eleição e pela necessidade de arcar com esses compromissos, nem sempre coincidentes com o interesse público.

Ademais, são preferíveis soluções técnicas, as quais têm o mérito de serem baseadas em estudos racionais, à aparente racionalidade do jogo político. Do contrário, a cada troca de governo, como sói acontecer, a troca de cadeiras decorrente de compromissos eleitorais e de favores de campanha em todos os escalões provoca uma descontinuidade na linha a ser seguida nas atividades mais corriqueiras da administração pública.

2.2 Atividade de produção normativa. Regulamentos e espécies permitidas pelo direito pátrio

A atividade normativa das agências resulta, em caráter jurídico-formal, da permissão concedida pelo legislador para, dentro dos standards mais ou menos amplos e genéricos da lei instituidora, serem produzidas normas infralegais que tenham relação de pertinência com seu objeto.

Hodiernamente, há o reconhecimento, pelo próprio legislador, da incapacidade de previsão de toda e qualquer situação da vida, aliada às mudanças em velocidade exponencial dos progressos, em especial nas áreas técnicas. Como meio de suprir essa deficiência, tem-se tornado cada vez mais comum a utilização de conceitos abertos ou conceitos jurídicos indeterminados, bem como da técnica de janelas da lei. Pois bem, esse tipo de arcabouço remete o intérprete para diversas direções: legislação extravagante relacionada à matéria, utilização de conceitos não jurídicos, amparo em estudos de determinada disciplina do conhecimento, etc. O novel Código Civil é um ótimo exemplo da utilização dessas técnicas.

No entanto, devemos fazer uma distinção que reputamos válida: a utilização de conceitos indeterminados nem sempre autorizará que seja produzido regramento infralegal para sua regulamentação. Como exemplo extremo, seria absurda qualquer tentativa que não fosse por meio de doutrina ou jurisprudência para buscar a definição de boa-fé objetiva. Situação diversa é quando há autorização expressa para a produção de norma tendente a complementar e preencher o conteúdo insuficiente da norma genérica produzida pelo Legislativo, como adiante se verá, quando da análise das espécies de regulamentos.

Nesse sentido, existe o espaço necessário para o preenchimento de sentido das normas por meio de atividade infralegislativa. O segundo ponto, no entanto, que costuma ser ressaltado como óbice à edição de normas pelas agências reguladoras é a sua (aparente) falta de legitimidade para assim proceder, em desrespeito à atividade do Legislativo e à separação de poderes.

A tradicional doutrina pátria classifica os regulamentos em executivos, delegados e autônomos. Os regulamentos executivos são aqueles expedidos pelo Poder Executivo para o fiel cumprimento das leis, sem poder desbordar de seus preceitos, tampouco possuir aptidão para inovar na ordem jurídica. Os regulamentos delegados têm por finalidade a edição de norma sobre matéria que deveria ser objeto de lei, mas em relação à qual houve delegação autorizativa legislativa para tanto. A terceira espécie são os regulamentos autônomos, que os ensinamentos clássicos aduzem inexistir no ordenamento jurídico brasileiro, ante a ausência de autorização constitucional, porquanto tais regulamentos poderiam inovar na ordem jurídica, à semelhança da lei, porém careceriam de legitimidade, visto que produzidos por órgão cuja atividade não é a produção de atos normativos desvinculados da respectiva lei.

Com o advento das diversas leis que regem a capacidade de produção legislativa das agências, novamente veio a lume o debate acerca da possibilidade de existência de regulamentos autônomos em nosso sistema jurídico, bem como o questionamento acerca do seu fundamento de validade e da invasão de competência legislativa e, portanto, eventual ofensa à separação de poderes.

É consabido que a atividade legiferante infralegal decorre de uma necessidade prática, oriunda da dinâmica da vida, em que as diversas áreas do conhecimento e da técnica estão em permanente evolução. De outra via, o aprofundamento resultante da especificidade de certas matérias (característica marcante das agências) igualmente reclama o preenchimento de conceitos abertos mediante atividade regulamentar infralegal.

Como ponto a favor dessa atividade, ressalta-se a morosidade na produção legislativa tradicional, bem como o impossível aprofundamento do Congresso em determinadas áreas, de maneira a regular todos os pormenores que determinada atividade econômica, na prática, apresenta.

Nessa senda, fala-se em quadros gerais propostos pelo legislador, ou seja, molduras nas quais se admite liberdade ao editor de normas infralegais para, pouco além de meramente explicitar seu conteúdo, inovar na ordem jurídica, desde que dentro da moldura mais ou menos ampla permitida pelo legislador.

Abordando o conceito de direito maleável ou dúctil ou, ainda, a chamada soft law, Marcelo Pires Torreão faz interessante observação acerca de seu âmbito de utilização(3):

“Por ser menos burocrática e mais eficiente, essa modalidade jurídica prevalece nos campos das comunicações, dos transportes, do saneamento, do meio ambiente, dos recursos naturais e das tecnologias especializadas.
O direito visto de forma fluída é mais indicativo que determinante. Na seara normativa, por exemplo, estimula-se a produção de regras de conteúdo aberto – leis-quadros (lois-cadre ou standards) –, com espaço para que os entes especializados concluam o aperfeiçoamento administrativo, seja por meio da edição de outras normas complementares, seja pelas decisões a serem adotadas diante de situações concretas.”

Fala-se, ainda, em poder normativo de conjuntura, na expressão de Eros Grau,(4) que seria o poder de produzir as normas necessárias para a regulamentação da realidade cambiante em setores econômicos que dela necessitam, inclusive, para a segurança jurídica no trato comercial e financeiro. A esse respeito, as normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários bem exemplificam o exposto.

Tais argumentos, conquanto válidos do ponto de vista racional, no cotejo com as situações-tipo que tal arcabouço destina-se a solucionar, não contêm considerações de ordem exclusivamente jurídica a justificar sua existência.

No plano jurídico, podemos fazer a seguinte classificação dos regulamentos, tendo por parâmetro a lei ou sua inexistência:

1 – Regulamentos secundum legem: são os tradicionais regulamentos, conforme acima explanado, expedidos pelo Executivo para a fiel aplicação da lei, sem aptidão para inovar no mundo jurídico. Alexandre Azambuja Cassepp,(5) ao analisar a ADI nº 1.435-8, condensou os seguintes requisitos extraídos do julgamento: 1) lei prévia; 2) decreto que assegure a execução da lei; 3) agentes da administração pública como destinatários; 4) ausência de estipulação de direito ou obrigação.

2 – Regulamentos contra legem: são regulamentos que destoam do conteúdo da lei e, portanto, são nulos de pleno direito. Evidentemente, um artigo de um regulamento pode encontrar-se nessa condição, o que não invalida sua parte válida.

3 – Regulamentos praeter legem: são os regulamentos autônomos, que inovam na ordem jurídica, conformando fatos da vida como se lei fossem. Geralmente é recusada sua possibilidade pela doutrina mais abalizada, porquanto autorizaria o Executivo a fazer as vezes de Legislativo em situações de ausência de lei.

4 – Regulamentos intra legem: são regulamentos por meio dos quais o Poder Legislativo, expressamente, prevê a possibilidade e autoriza a autoridade administrativa a expedir atos normativos tendentes a complementar seu conteúdo, diante da impossibilidade fática de previsão legislativa de todos os aspectos a serem disciplinados na lei de origem.

Com relação à última espécie, temos que a validade dos regulamentos expedidos pelas agências não se trata, como afirmam diversos autores, de produção normativa autônoma, a qual usurpa a competência do Poder Legislativo e subverte o princípio representativo e a separação dos poderes.

Trata-se de hipóteses em que o próprio Poder Legislativo reconhece e autoriza que determinadas matérias, uma vez observados os parâmetros definidos na respectiva lei de regência, possam ser minudenciadas e reguladas, mediante o preenchimento de seu conteúdo por meio do regulamento. A sua constitucionalidade é admitida pelo Supremo Tribunal Federal, desde que haja observância dos padrões – moldes, quadros – definidos em lei. O leading case, nessa matéria, adveio do julgamento quanto à validade do Decreto 612/92, ao tratar do Seguro de Acidente do Trabalho e complementar o conceito de atividade preponderante para fins de tributação, nos autos do RE 343.446-2/SC,(6) julgado em 20.03.2003.

Do corpo do acórdão, extraio excerto do voto do eminente relator, especificamente quanto à possibilidade de utilização dos regulamentos intra legem no direito brasileiro:

“Em certos casos, entretanto, a aplicação da lei, no caso concreto, exige a aferição de dados e elementos. Nesses casos, a lei, fixando parâmetros e padrões, comete ao regulamento essa aferição. Não há falar, em casos assim, em delegação pura, que é ofensiva ao princípio da legalidade genérica (CF, art. 5º, II) e da legalidade tributária (CF, art. 150, I).
(...)
Registrei, em trabalho doutrinário – Do poder regulamentar, Temas de Direito Público, citado, p. 439 e segs. –, que o regulamento não pode inovar na ordem jurídica, pelo que não tem legitimidade constitucional o regulamento praeter legem. Todavia, o regulamento delegado, autorizado ou intra legem é condizente com a ordem jurídico-constitucional brasileira. Após mencionar a classificação dos regulamentos e dissertar sobre a ilegitimidade do regulamento autônomo, no sistema brasileiro, escrevi:
‘Já o regulamento delegado ou autorizado (item 5) intra legem é admitido pelo Direito Constitucional brasileiro; é claro, porém, que não pode ‘ser elaborado praeter legem, porquanto o seu campo de ação ficou restrito à simples execução de lei’ (Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Princípios Gerais do Dir. Administrativo, 2. ed., Forense, I/354; Celso Bastos, Curso de Dir. Const., Saraiva, 3. ed., p. 177).”

No mesmo sentido:

“EMENTA: – CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO: SEGURO DE ACIDENTE DO TRABALHO – SAT. Lei 7.787/89, arts. 3º e 4º; Lei 8.212/91, art. 22, II, redação da Lei 9.732/98. Decretos 612/92, 2.173/97 e 3.048/99. CF, art. 195, § 4º; art. 154, II; art. 5º, II; art. 150, I. I. – Contribuição para o custeio do Seguro de Acidente do Trabalho – SAT: Lei 7.787/89, art. 3º, II; Lei 8.212/91, art. 22, II: alegação no sentido de que são ofensivos ao art. 195, § 4º, c/c art. 154, I, da Constituição Federal: improcedência. Desnecessidade de observância da técnica da competência residual da União, CF, art. 154, I. Desnecessidade de lei complementar para a instituição da contribuição para o SAT. II. – O art. 3º, II, da Lei 7.787/89 não é ofensivo ao princípio da igualdade, por isso que o art. 4º da mencionada Lei 7.787/89 cuidou de tratar desigualmente aos desiguais. III. – As Leis 7.787/89, art. 3º, II, e 8.212/91, art. 22, II, definem, satisfatoriamente, todos os elementos capazes de fazer nascer a obrigação tributária válida. O fato de a lei deixar para o regulamento a complementação dos conceitos de ‘atividade preponderante’ e ‘grau de risco leve, médio e grave’ não implica ofensa ao princípio da legalidade genérica, CF, art. 5º, II, e da legalidade tributária, CF, art. 150, I. IV. – Se o regulamento vai além do conteúdo da lei, a questão não é de inconstitucionalidade, mas de ilegalidade, matéria que não integra o contencioso constitucional. V. – Caso em que deve ser a agravante condenada ao pagamento de multa: CPC, art. 557, § 2º, redação da Lei 9.756/98. VI. – Agravo não provido.” (AI 499888 AgR/SP – São Paulo, Ag. Reg. no Agravo de Instrumento, Relator(a): Min. Carlos Velloso, Julgamento: 22.06.2004, Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação DJ 06.08.2004, PP-00051, Ement. VOL-02158-15, PP-03101)

“EMENTA: – CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS/SÃO PAULO. CORREÇÃO MONETÁRIA. Lei 6.374, de 1989, art. 109, parág. único, do Estado de São Paulo. Decreto nº 30.356, de 1989, do Estado de São Paulo. I. – Legitimidade da correção monetária do ICMS paulista a partir do décimo dia seguinte à apuração do débito fiscal. Delegação regulamentar legítima: regulamento delegado intra legem, sem quebra do padrão jurídico posto na lei. II. – Improcedência da alegação no sentido de infringência ao princípio da não cumulatividade (CF, art. 155, § 2º, I). III. – Precedentes do STF: RREE 154.273-SP e 172.394-SP, Plenário, 21.06.95. IV. – Discussão em torno da legalidade de índices de indexação diz respeito ao contencioso infraconstitucional, incabível em sede de recurso extraordinário. V. – Agravo não provido.” (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 166.013-0, Relator: Min. Carlos Velloso)

Portanto, a jurisprudência de nossa corte constitucional admite a possibilidade de que o Poder Legislativo trace as linhas genéricas acerca de determinado assunto para que a Administração Pública expeça regulamentos não somente para sua fiel execução como também para fins de complementação e atualização de seu sentido. É, pois, um instrumento do chamado direito dúctil ou maleável, ou soft law.

3 Especialidade e especificidade. Profissionalismo e caráter técnico da Administração Pública

3.1 Discricionariedade balizada pela técnica para fins de decisões administrativas

Quanto maior a especificidade técnica de determinado ramo do conhecimento, menor espaço haverá na tomada de certas decisões, em especial na chamada discricionariedade administrativa, pura e simples, em que a decisão acerca de um tema administrativo ganha tons puramente políticos, sendo, conforme doutrina mais antiga, até mesmo insindicável tal decisão.

A discricionariedade administrativa, em termos clássicos, é, desta feita, a possibilidade de o administrador escolher, dentre as diversas soluções possíveis, aquela que melhor se lhe afigura para atender ao interesse público, baseando sua escolha em critérios de conveniência e oportunidade que só a ele cabe definir. Nessa toada, a discricionariedade contém, em si, a plurissolucionabilidade, ou seja, a existência de duas ou mais alternativas possíveis a serem escolhidas pelo administrador, desde que, evidentemente, inexista lei vinculando sua atuação.

Por outro lado, há aquilo que se chama de discricionariedade técnica. A discricionariedade técnica encontra-se conexa com a existência de conceitos jurídicos indeterminados, os quais devem ser preenchidos pelo administrador, mas não no sentido de permitir a simples e pura escolha mediante critérios de conveniência e oportunidade, mas mediante avaliação e estudo técnico da área do conhecimento pertinente a determinado problema a ser solucionado. Nessa linha, a discricionariedade técnica nem sempre trará consigo a possibilidade de escolha pelo administrador e, nesse sentido, não será verdadeira discricionariedade, porquanto apenas a melhor alternativa técnica é a que deverá ser escolhida, sob pena de olvidar-se dos princípios da eficiência e da economicidade.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro,(7) com apoio em Alessi, assim se pronuncia acerca da discricionariedade técnica:

“No direito italiano, um dos autores que melhor colocaram o tema foi Renato Alessi (Instituciones de Derecho Administrativo. Buenos Aires: Bosch, 1970. Tomo I. p. 195-198). Segundo suas lições, existem casos em que a apreciação do interesse público exige exclusivamente a utilização de critérios administrativos, hipótese em que se tem a discricionariedade administrativa, que se dá, por exemplo, quando se tenha que conceder uma licença para uso de armas, uma licença comercial, um certificado de boa conduta, aplicar uma sanção disciplinar, etc. E, ao contrário, existem casos em que a referida apreciação exige a utilização de critérios técnicos e a solução de questões técnicas que devem realizar-se conforme as regras e os conhecimentos técnicos, como, por exemplo, quando se trata de ordenar o fechamento de locais insalubres, ordenar a matança de animais atacados de enfermidades infecciosas, ordenar o fechamento de um estabelecimento em que se exerça atividade perigosa sem meios suficientes de proteção, ordenar a construção de uma ponte, adotar certo tipo de aeronave etc.
Nesses casos, a solução é diferente conforme os conceitos técnicos estejam ou não ligados a critérios administrativos. Quando há essa vinculação, a Administração faz um juízo de valor; caso contrário, não.
Ele cita duas hipóteses em que os conceitos técnicos estão ligados a critérios administrativos:
a) quando, com base em dados fornecidos por órgão técnico, a Administração deve, no caso concreto, decidir fazendo uma apreciação em consonância com os critérios administrativos de oportunidade e conveniência. Por exemplo: um órgão técnico manifesta-se no sentido de que um prédio ameaça cair; à Administração cabe resolver se essa ameaça representa ou não perigo para o interesse público, de modo a exigir ou não a demolição; nesse caso, a questão técnica fica absorvida pela questão administrativa;
b) em outros casos, a decisão baseia-se em critérios administrativos, considerando também aspectos técnicos; por outras palavras, a Administração tem que escolher os meios técnicos mais adequados para satisfazer o interesse público. Exemplo: a escolha de critérios técnicos para a construção de uma obra pública.
Em todas essas hipóteses, a discricionariedade técnica constitui verdadeira discricionariedade, porque há sempre, por parte da Administração, uma apreciação em face do interesse público. Em outras hipóteses, não há a vinculação de critérios técnicos a critérios administrativos: diante da manifestação do órgão técnico, a Administração não pode valorar em que medida o fato afeta o interesse público; a ela caberá decidir em consonância com as condições técnicas previamente definidas em lei. Por exemplo, quando a lei determina a destruição de mercadorias deterioradas, à Administração cabe apenas constatar a ocorrência de deterioração e determinar sua destruição; não lhe cabe valorar a medida em face do interesse público.
Nesses casos, não existe discricionariedade propriamente dita, porque a Administração não tem liberdade para apreciar a oportunidade e a conveniência do ato; aparecem, então, como inconciliáveis os vocábulos discricionariedade e técnica. Por outras palavras, a distinção entre discricionariedade administrativa e discricionariedade técnica ou imprópria está em que, na primeira, a escolha entre duas ou mais alternativas válidas perante o direito se faz segundo critérios de oportunidade ou conveniência (mérito) e, na segunda, não existe propriamente liberdade de opção, porque a Administração tem que procurar a solução correta segundo critérios técnicos. As decisões sobre se um alimento está ou não deteriorado, se um paciente está ou não com doença contagiosa, não envolvem critérios de oportunidade e conveniência; somente um órgão especializado poderá dar a resposta correta segundo o critério puramente técnico.”

Conforme visto, a discricionariedade técnica pode ou não estar submetida à valoração administrativa. No primeiro caso, o pronunciamento técnico não definirá a decisão a ser tomada pelo administrador, embora seja importante elemento de orientação. No segundo, a decisão do administrador será pautada pela técnica, e não haverá, propriamente, discricionariedade.

No entanto, distinção importante há de ser feita: nem todo termo jurídico indeterminado – ou passível de determinação diante do caso concreto, melhor dizendo – encerrará a possibilidade de utilização da discricionariedade balizada pela técnica, mesmo em se tratando de legislação referente a agências. Existem conceitos que são indeterminados e apenas isso. Não se referem, necessariamente, a determinado âmbito técnico do conhecimento humano e podem ser preenchidos, diante do caso concreto, pelo bom senso, ou, mais apropriadamente, na expressão americana, common sense.

Diversa é a situação em que há conceitos eminentemente técnicos: embora aparentemente indeterminados, com relação a esses, inexiste a possibilidade de preenchimento sem que se recorra a conhecimentos especializados; seu preenchimento, diante das especificidades do caso concreto, tende a resultar em uma única solução possível, qual seja, aquela melhor indicada pela técnica, em obediência aos princípios da eficiência e da economicidade. Restringe-se, portanto, a aparente discricionariedade daí resultante. Como consequência, chega-se a um grau maior de profissionalismo da Administração Pública. Quanto aos conceitos técnicos, Marcos Paulo Veríssimo(8) oferece importante lição, vazada nas seguintes letras:

“Algo semelhante se passa com os chamados conceitos técnicos, de que muito frequentemente lançam mão as leis pertinentes à regulação econômica. Com relação a eles, o fato de a lei utilizá-los também não parece significar, a priori, que tenha sido outorgado ao órgão regulador um cheque em branco para interpretá-los. Também aqui, se a lei resolveu limitar a atuação administrativa mediante o estabelecimento de critérios técnicos para essa atuação, esses critérios passam imediatamente a tornar-se jurídicos, vinculando e comportando alguma esfera de controle. É claro que o órgão judiciário terá, eventualmente, alguma dificuldade adicional para lidar com esses conceitos especializados, mas a dificuldade de empreender o controle sobre o ato, seja pela extrema vagueza da lei, seja pela utilização de referenciais técnicos, não deve gerar, por si só, ausência de controle sobre o órgão administrativo.”

Portanto, a discricionariedade técnica, ou, como preferimos chamar, discricionariedade balizada pela técnica, na segunda acepção acima apresentada, deve ser preponderante no âmbito das agências, haja vista ser emanação da necessidade de aprofundamento em determinada área para fins de tomada de decisão. Nesse viés, tem por efeito 1) servir de parâmetro e limite às alternativas decisórias e 2) vincular a Administração, na medida em que 2.1) a técnica poderá indicar poucas ou apenas uma alternativa viável, delas não podendo fugir o administrador, e 2.2) os elementos do ato administrativo serão conformados pela técnica.

Como efeito, quanto ao item 2.2, os motivos do ato administrativo deverão ser logicamente compreendidos, ou seja: mesmo que, no corpo da decisão administrativa, não haja explicitação dos motivos, ou haja mera referência a eles, sem adentrar em questões mais técnicas ou sem maiores aprofundamentos, devem-se entender como componentes inafastáveis daquela decisão administrativa todos os estudos técnicos que serviram de orientação ou balizamento a ela e que agora a condicionam, como próprio fundamento de validade.

A toda evidência, a despeito das discussões acerca da legitimidade democrática das decisões administrativas da agência, seu fundamento último de legitimidade não se encontra especificamente no princípio democrático. Seu fundamento basilar de legitimidade está na necessidade de estabelecer-se uma Administração Pública – tomada em seu sentido profissional – como emanação do princípio da eficiência.

Com efeito, a necessidade da maior neutralidade política possível das agências reflete-se em necessário afastamento de eventuais indagações legitimantes oriundas do sufrágio universal. Deve-se, pois, virar a bússola para a face contrária, de maneira que o interesse público não seja confundido, exclusivamente, com a vontade daquele administrador que eventualmente restou vitorioso em pleito eleitoral.

Há de se ter presente e implantada a diferença entre Governo e Administração. Em que pese o poder de mando, tanto do Governo quanto da Administração, em nosso sistema, esteja centrado na pessoa do chefe do Executivo, o que leva a confusões tanto na tomada de decisões que seriam puramente de governo – políticas – quanto na de decisões estritamente profissionais de Administração Pública, além da possibilidade, há a urgente necessidade de que sejam divisadas tais searas, sob pena de adentrarmos, como sói acontecer, em populismos, clientelismos e personalismos tão ao sabor das paixões dos governos latinos.

Dessarte, a reunião das figuras de chefe de Governo e chefe da Administração em única pessoa leva a que decisões que deveriam ser eminentemente técnicas descambem para finalidades políticas, perdendo sua legitimação jurídica. Pontue-se que o inverso também pode ocorrer: uma decisão de cunho político que eventualmente desagrade aos eleitores pode travestir-se com roupagem aparentemente técnica, como forma de desviar eventuais responsabilidades no campo do debate e do embate político.

Por conseguinte, o interesse público nem sempre será aquilo que o chefe do Executivo decidir (ou de quem fizer as suas vezes, tal como ministro ou secretário de Estado, v.g.), sob o argumento pífio de representante da vontade popular, mas deverá ser aquilo que, in concreto e sob os auspícios da melhor técnica, fornecer a resposta que melhor resolva o problema a ser enfrentado.

O interesse público, portanto, deixa de ser um ente fantasmagórico, preenchido ao sabor das vontades e das conveniências políticas, para se tornar, em determinado caso concreto, na solução de um problema ou na eleição de alternativa mais viável e racional, passível de uma definição, ainda que aproximada.

Obviamente, critérios técnicos, em todas as áreas do conhecimento, também podem ser questionados, com absoluta validade, porquanto tais critérios também podem ter sido adotados não pela melhor solução técnica, mas, como dito acima, como forma de emprestar aparente roupagem técnica a uma decisão política.

E mesmo aí reside um dos méritos da utilização de critérios técnicos, ainda que eleitos erroneamente: desloca-se o centro da decisão da vontade do soberano para um campo em que se poderá, mediante ponderações e estudos técnicos, negar a própria validade da técnica empregada, que guiava para uma determinada solução.

Portanto, é o ferramental técnico e de conhecimento que dará suporte à eleição de determinada decisão administrativa, podendo, inclusive, servir como meio para arguição da própria nulidade daquela decisão.

Nessa linha, a teoria dos motivos determinantes ganha relevo e especial conotação. De fato, se o cabedal de estudos leva à conclusão de que, e.g., a alternativa hídrica na geração de energia, no país, é melhor que a alternativa eólica ou nuclear, toda a fundamentação utilizada daquela área do conhecimento passará a fazer parte da motivação do ato administrativo, bem como dos demais atos subsequentes que dele forem dependentes (pelo princípio da contaminação).

Sendo a Administração Pública, em um viés semelhante (nunca igual) à administração privada, por imperativos de eficiência, um ente na busca do melhor resultado, os atos administrativos necessitam não somente de embasamento de fato e de direito, mas de embasamento técnico suficientemente capaz de emprestar-lhes sustentação, passando a fazer, portanto, parte inafastável do próprio núcleo do ato, sendo seu locus natural, dentre os elementos do ato administrativo, o motivo.

O motivo do ato, tendo em conta a atual necessidade de aperfeiçoamento da Administração Pública, já não é mais aquele local desfigurado, passível de preenchimento conforme a situação política e a vontade do administrador. É um ato que, ao mesmo tempo em que restam plasmados seus limites, da mesma maneira encontra-se fortalecido, ao amparo de dados, pesquisas, etc., e não somente pela manifestação volitiva do agente político, como supremo legitimado, agora não mais por Deus, mas pelo sufrágio. Não se pode, em pleno século XXI, recorrer a fundamentos legitimantes dessa ordem.

Se, por um lado, o ato administrativo ganha força e legitimidade por um profundo embasamento técnico, por outro, podem-se distinguir algumas situações relativamente a esse ato:

1 – os fatos não são verdadeiros;
2 – os fatos são verdadeiros, mas há erro quanto à sua percepção e/ou valoração;
3 – os parâmetros técnicos são incorretos;
4 – os parâmetros técnicos são corretos, mas há falha em seu desenvolvimento e/ou sua aplicação e, portanto, o resultado obtido é falso.

Nessa linha de ideias, o que resulta, no campo dos julgamentos administrativos, é a efetiva possibilidade de arguição de invalidade com supedâneo, igualmente, em estudos, pesquisas e conhecimento técnico. Portanto, se o ato administrativo ganha força ao ser adequada e profundamente alicerçado em bases técnicas, de igual maneira será possível seu debate em torno de bases técnicas suficientes, e não mais com amparo em discursos políticos ou qualquer coisa do gênero.

É exatamente aí que reside o fundamento de validade constitucional e democrático do ato administrativo das agências e, por conseguinte, do julgamento que vier a resultar da apreciação de uma contenda em âmbito administrativo: não somente na possibilidade de requerimento de sua invalidade, mas na necessidade de que tal requerimento, igualmente, tenha amparo suficiente para que essa discussão ocorra em um patamar de conhecimento técnico de grau igual ou maior em relação ao utilizado para fundamentar o ato e, portanto, a decisão.

Consequência disso será a elevação dos níveis de discussão na seara administrativa. Deveras, para a resolução de determinada contenda e para fins de manutenção da imparcialidade e da neutralidade necessárias, conforme o caso, deverão ser nomeadas equipes técnicas independentes para emissão de parecer, bem como aberta a possibilidade de produção de ampla prova técnica pericial.

Inclusive, diante da magnitude de determinados debates e dos atores envolvidos ou das populações e/ou dos interesses/direitos afetados (difusos, coletivos, individuais homogêneos), haverá a necessidade de audiências públicas, debates e inquirições dos interessados e de técnicos perante comissões independentes, dentre outros meios de conformação e de atividade probatória para fins de decisão.

Quanto mais centralizador for o governo e seu chefe, maior será tendência de enfraquecimento das agências. E todas as tentativas de centralização decorrem 1) da falha de formação e de visão técnica, ou seja, de conhecimento; 2) da crença de que o sufrágio universal é amplamente legitimador, inclusive para fins de menosprezar o caráter técnico de determinados assuntos; e 3) da necessidade, em decorrência do item anterior, de concentrar poder, em atitude contrária à própria estrutura e ao caráter profissional de que deve ser revestida a Administração Pública.

Podemos, inclusive, entrever o deslocamento, no futuro, de certas discussões que envolvem temas estritamente técnicos, os quais, hoje em dia, têm lugar no âmbito do Poder Judiciário, para seu foro adequado em termos de especialização técnica na área de conhecimento (v.g., energia, telefonia, etc.), que seria o órgão com melhores condições de levantamento de todas as questões, muitas vezes sem algumas das travas típicas de um Código de Processo Civil.

Trata-se, pois, de processo de amadurecimento não somente institucional, mas de visão da Administração Pública brasileira e das mentalidades, e, nesse andar das coisas, avanços e retrocessos podem ocorrer.

3.2 Análise de caso de grande repercussão julgado por agência americana

Caso emblemático de atuação e independência técnica de uma agência, para ilustrar o que buscamos demonstrar acima, foi o julgamento do ciclista Lance Armstrong, então sete vezes campeão do Tour de France, a competição ciclística mais prestigiosa mundialmente falando, sendo o maior evento anual esportivo, superado somente pelas olimpíadas.

Pois bem, foi amplamente divulgada na mídia a cassação de seus títulos pela utilização de prohibited performance enhance drugs, ou seja, drogas proibidas melhoradoras da performance. O que chamou a atenção, em especial, nesse caso – além, obviamente, de seu apelo público diante de um herói nacional americano, com uma carreira vitoriosa após sobreviver a uma morte quase certa decorrente de câncer –, é que uma corte administrativa foi a responsável pela decisão.

O veredito de cassação das vitórias no Tour de France e o banimento definitivo do esporte advieram da Usada (United States Anti-Doping Agency), ou seja, a Agência Antidoping Americana.

Pessoalmente, acompanhei, durante anos, o caso pela imprensa, envolvendo as trocas de acusações entre os ciclistas ex-integrantes da equipe de Lance Armstrong e os processos judiciais daí decorrentes. Detalhe: pratico ciclismo há mais de vinte anos, portanto acompanhei sob um duplo ponto de vista – como magistrado e como amante e estudioso do esporte. Nos processos judiciais movidos contra Armstrong, havia acusações de doping organizado da equipe e, inclusive, coação para que alguns atletas fizessem uso de substâncias proibidas.

Não pude deixar de notar que, em especial, as primeiras acusações e seus respectivos processos não lograram maiores êxitos. Também notei que se tratava de processos judiciais e, em princípio, dotados de um rigorismo procedimental maior.

No entanto, nenhum desses processos logrou demonstrar, efetivamente, a ocorrência de doping. Com efeito, tratando-se da necessidade de demonstração de fatos ocorridos há vários anos, em que a prova principal para eventual reconhecimento da existência de doping seria exame de sangue e sua contraprova, realizados imediatamente após a prova, esta 1) ou não existia mais, ou, 2) se existente, não mais se prestava para os exames necessários.

Mais! Havia evidências da utilização de drogas que mascaram o resultado do exame, tais como corticóide, mas sempre havia um motivo médico, com a respectiva prescrição para a utilização do medicamento. Portanto, nunca se conseguia afirmar, ou melhor, provar, com um mínimo de certeza, que efetivamente houve doping.

Portanto, arquivados os casos nas cortes europeias e americanas, causou alvoroço o trabalho efetuado no seio da Usada, pelo seu CEO Travis T. Tyggart, dando novo impulso a um caso considerado encerrado.

De acordo com o relatório, nenhuma das evidências adveio da ação criminal que fora arquivada pelo U.S. District Attorney Andre Birotte, conforme se extrai do trecho a seguir transcrito(9):

None of the evidence USADA summarizes in this Reasoned Decision was obtained from the United States federal law enforcement investigation involving Mr. Armstrong. After the announcement by U.S. District Attorney Andre Birotte on February 3, 2012, that he was discontinuing the criminal investigation of Armstrong’s conduct, USADA formally requested copies of non-grand jury evidence from the case. However, no documents have been received to date. As a result, none of the evidence assembled by USADA has come from federal law enforcement.”

Dessa maneira, verifica-se que 1) os órgãos encarregados da persecução criminal e da valoração da conduta de Lance Armstrong entenderam por interromper a investigação; 2) os resultados da investigação da Usada não contaram com documentos oriundos de processo judicial, ou mesmo de fase pré-judicial, ou seja, investigatória; 3) o resultado da decisão da agência administrativa foi baseado em série consistente de evidências, as quais, embora aparentemente insuficientes para continuidade de um processo judicial, foram suficientes para uma decisão administrativa.

Sobressai, de plano, a independência de atuação de uma agência administrativa nos Estados Unidos. Enquanto o caminho mais fácil e, por uma questão de respeito ou de uma aparente hierarquia entre a instância judicial e a administrativa, seria o arquivamento em âmbito administrativo, a Usada continuou com o procedimento administrativo.

E, além da independência, a prolação de uma decisão com base em meios próprios, sem a necessidade de utilização de documentos produzidos em sede investigatória (pré-processual) ou em âmbito judicial.

Ressalte-se que a decisão da agência americana surtiu efeitos não somente dentro dos Estados Unidos, mas também na UCI (Union Cycliste International), órgão responsável pela regulação do ciclismo e das competições no mundo, na qual foi acolhido.

É interessante notar, por outro viés, que, na Europa continental, cujo sistema de direito é o mesmo adotado em nosso país, diversos ciclistas, sujeitos a uma diversidade de procedimentos administrativos e criminais, não tiveram processo capaz de fazer com que perdessem seus títulos ou que fossem punidos, fato esse que reputo 1) à ausência de flexibilidade do sistema jurídico europeu continental ou romano-germânico e, 2) assim como nos Estado Unidos, ao formalismo e ao procedimentalismo existentes em âmbito judicial.

Evidentemente, pode-se especular que a interrupção das investigações pelo U.S. District Attorney Andre Birotte tenha algum conteúdo político, diante do fato de que tais cargos, naquele país, são alcançados por via eletiva, com posterior ratificação de alguma autoridade (v.g., presidente da República, governador de estado).

Some-se a isso o fato de Lance Armstrong ter movimentado bilhões de dólares na economia mundial em termos de venda de artigos esportivos, televisionamento, propagandas e patrocínios.

Estamos traçando esse panorama para ressaltar a força de imposição da decisão de uma agência dotada de independência suficiente, mesmo diante de todos os óbices apontados.

Poder-se-ia objetar que se trata de uma agência destinada ao controle do esporte, e não de atividades econômicas. Ora, tal argumento reforça ainda mais a tese. Com efeito, trata-se de um veredito de uma agência que trata de atividades esportivas, o que, como visto, é uma coisa levada extremamente a sério, principalmente por movimentar uma indústria de bilhões de dólares e dizer respeito, direta ou indiretamente, à saúde de milhões de atletas profissionais e amadores.

Se é (ou deve ser) assim no esporte, com a mesma ou maior razão ainda deverá ser nos setores econômicos estratégicos do país: ubi eadem ratio ibi eadem jus.

O arquétipo relativo a esse caso é semelhante a diversos casos envolvendo a atividade privada e a regulamentação e imposição de penalidades ou de decisões com vistas a que sejam observadas determinadas condutas: há a violação de uma norma, as provas da conduta tida por contrária à norma, o devido processo administrativo e a prolação de um julgamento administrativo, de maneira a sanar eventual inobservância da norma.

4 Atividade administrativa decisória e de julgamento

4.1 Processo e julgamento administrativos. O exemplo americano em contraste com o brasileiro

Tendo esse panorama, adentramos os ensinamentos advindos da palestra do Federal Judge Peter Messitte,(10) extraindo dela alguns pontos que entendemos relevantes no que tange à atividade relativa ao proferimento de decisões pelos órgãos administrativos com atribuição para tanto, buscando fazer um paralelo e uma análise construtiva com a realidade institucional administrativa brasileira nessa matéria.

Conforme a palestra do Juiz Peter Messitte, os órgãos julgadores de primeira instância das agências são compostos por servidores recrutados por meio de processo seletivo, que vêm a ser os Administrative Law Judges (ALJs), os quais não são efetivamente juízes, por fazerem parte do Poder Executivo, porém gozam de bastante independência para a realização de suas funções. Conforme o palestrante, esses ALJs detêm poderes instrutórios, tais como realizar audiências, colher prova testemunhal sob juramento, proceder à dilação probatória, efetuar diligências, conduzir o contraditório, expedir recomendações jurídicas aos diretores da agência, além, obviamente, de proferir julgamentos na contenda administrativa levada à sua apreciação.

Ressaltou, ainda, que os ALJs, a despeito de fazerem parte do Poder Executivo, detêm alto grau de independência, porquanto não há ingerência dos investigadores e demais funcionário das agências sobre o trabalho deles, além de haver proteção da influência política e de somente poderem ser demitidos por justa causa mediante devido processo disciplinar, sendo isentos de avaliação de desempenho. No entanto, não possuem vitaliciedade como os membros da magistratura. Não podem, ainda, aplicar sanções ou executar suas decisões sem uma ordem proveniente de uma corte distrital (judicial).

Dessa maneira, verifica-se, no direito americano, um corpo de servidores especializados, com características semijudiciais, cuja atribuição específica é efetuar os julgamentos em sede administrativa.

A toda evidência, o simples fato de sua existência e o cumprimento da finalidade para a qual instituídos os ALJs têm o condão de fazer com que as decisões sejam tomadas de maneira 1) independente, 2) relativamente imparcial, 3) técnica e 4) com fundamentação específica adequada à matéria.

Ora, tal arcabouço tem o condão de elevar o nível de conhecimento e discussão da matéria dentro da própria agência e, por consequência, fortalecer a decisão administrativa e, se for o caso, fixar as bases para eventual discussão judicial (ou seja, em linguagem processual, a pretensão resistida objeto da lide).

O que vemos, muitas vezes, na práxis de diversos órgãos públicos federais é a total inocorrência dessas salutares características acima citadas. Por vezes, importantes decisões administrativas são levadas a efeito por servidores sem formação específica, tampouco treinamento para exercer uma função julgadora (ainda que administrativa). Por conseguinte, o resultado são decisões bastante frágeis, com inobservância de postulados básicos do devido processo legal no âmbito administrativo, tais como: 1) o direito a formular suas alegações e 2) de que elas sejam levadas em conta na formulação da decisão; 3) a observância das regras procedimentais; 4) o direito à produção de provas; 5) o exercício do contraditório e da ampla defesa; 6) a adequada fixação dos pontos controvertidos e do objeto do julgamento; 7) a fundamentação técnica e suficiente das decisões.

Portanto, ao chegarem determinadas causas ao Poder Judiciário, nota-se uma deficiência do procedimento administrativo decisório, de maneira a causar no juiz incerteza quanto a quais são os efetivos pontos controvertidos e qual é o real objeto da lide, em face de uma decisão administrativa frágil, amparada em provas debilmente produzidas e com fundamentação ressentida de maior densidade.

Essa falta de atenção ao aprimoramento e à especialização dos julgamentos administrativos, sua ausência de independência e de liberdade decisória acarretam a necessidade de sua constante reforma por parte dos órgãos judiciais, findando por provocar o inchaço do Poder Judiciário, uma vez que os maiores litigantes são entes públicos ou entes privados dirigidos e mantidos mediante recursos públicos, tais como bancos públicos, conforme pesquisa do Conselho Nacional de Justiça(11):

Clique aqui para visualizar a Tabela com a listagem dos maiores setores por Justiça contendo o percentual de processos em relação aos 100 maiores litigantes da Justiça


Nessa linha, o profissionalismo, a autonomia e a independência, bem como a observância dos ditames técnicos, pelas agências, ao expedir recomendações, impor sanções e julgar contendas administrativas, poderão vir a se tornar exemplo para os demais órgãos da Administração Pública.

O ilustre juiz norte-americano enfatizou, ainda, que as decisões proferidas pela instância máxima das agências têm a força de precedente vinculante, orientando as decisões de casos futuros que com elas guardem relação de igualdade ou semelhança. Incluem-se aí não somente as decisões, mas as interpretações e as diretrizes proferidas na apreciação de um caso.

Revelou, ainda, a necessidade de exaurimento de todas as instâncias administrativas antes do ingresso no Judiciário. É interessante notar que, na Justiça Federal, principalmente em causas previdenciárias, há um tímido (no sentido de sua relatividade e extensão), porém pacífico entendimento de que é necessário que haja, ao menos, a negativa em primeiro grau administrativo, de maneira a configurar a pretensão resistida, para legitimar o ajuizamento da causa. E, da mesma maneira que nos Estados Unidos, aqui também é garantido o acesso à jurisdição, porém de maneira bastante mais aberta, não sendo raro o desinteresse da parte na discussão em âmbito administrativo, buscando amparo direto no Judiciário.

Ainda, no que tange ao judicial review das decisões das agências, a possibilidade de seu reexame, tal qual no direito brasileiro, é a regra, e, de acordo com o magistrado Messitte, a delimitação da causa, no âmbito judiciário, é feita pelo que foi discutido na via administrativa. Toda a atividade probatória a ser utilizada no julgamento será aquela oriunda do procedimento administrativo. Caso se verifique a necessidade de complementação de provas, a corte federal de apelação, cuja competência é originária para o julgamento e a revisão dessas decisões administrativas, poderá determinar que assim se faça, mas a execução dessa complementação será feita pela respectiva agência. A corte federal não aborda o mérito da decisão, tampouco a correção na aplicação do direito. Limita-se a verificar se a decisão administrativa está baseada em “evidências substanciais” (substantial evidences). Há uma certa elasticidade quanto ao alcance das interpretações legais feitas pelas agências, mas, geralmente, os juízes, a despeito de seus posicionamentos pessoais, mantêm a interpretação e a decisão dadas, desde que razoáveis. Portanto, ante a clareza da lei, se a decisão administrativa for errada, poderá haver pronunciamento da corte. Caso a lei não seja tão clara, mas a interpretação for razoável, mantém-se a interpretação dada pela agência, diante das diretrizes oriundas do precedente Chevron, Inc. v. National Resources Defense Council da Suprema Corte dos Estados Unidos, que se convencionou chamar de duplo teste, o qual prestigia, ou seja, faz deferência à decisão administrativa, porquanto, se não a melhor, é razoável e oriunda de órgão com conhecimento técnico de sua área de atuação.

Trata-se, pois, mutatis mutandis, de posição bastante semelhante à da doutrina brasileira, no sentido de que não cabe ao Judiciário a análise do mérito do ato administrativo discricionário, porquanto o binômio conveniência e oportunidade é de exclusiva valoração do Executivo. No entanto, conforme salientado pelo Juiz Messitte, a corte pode analisar as “evidências substanciais”. Ora, em linguagem de direito probatório, tal como a utilizada, isso não é nada mais do que averiguar os fatos que embasam os motivos utilizados na decisão, sua adequação em relação ao objeto e a existência de desvio ou não de sua finalidade.

Portanto, por uma determinada via, se a decisão administrativa basear-se em falso lastro probatório ou premissas erradas de julgamento, poderá a corte pronunciar-se sobre esse mérito. No entanto, cabe aqui a indagação: poderá a corte substituir-se à Administração e continuar no julgamento, ou deverá determinar o retorno da questão à seara administrativa para reapreciação da questão sob enfoque diverso do originalmente adotado? Tal questionamento também é válido para o direito pátrio, na medida em que não é desejável que o juiz frequentemente substitua o administrador em suas avaliações quanto ao mérito do ato administrativo, sob pena de invasão de competências constitucionais.

Quanto à utilização da prova, as instâncias julgadoras brasileiras, em especial as de primeiro grau, salvo quanto a provas documentais carreadas ao procedimento administrativo, não têm o costume de determinar o retorno à instância administrativa para a produção de prova pericial, por exemplo, ou de prova oral – salvo nas justificações administrativas perante o INSS.

Ao abordar este tema, vem-me à lembrança processo no qual oficiei, em que a autoridade administrativa efetuou determinado lançamento tributário. Nos embargos à execução, a parte requeria a declaração de inaplicabilidade de determinado regramento para aquela empresa, pelos fundamentos x ou y, arguindo que possuía direito a tal regime tributário.

Verificando o procedimento administrativo e sua respectiva decisão, notei que a autoridade fazendária não negou o direito a tal regime à empresa autora. Esta fora notificada, por três vezes, para juntar os balancetes para fins de análise para prova da alegação de que, efetivamente, teria direito a tal regime tributário.

Não juntando os documentos solicitados, a autoridade administrativa julgou “improcedente” o pedido efetuado. Verifiquei, pois, que não houve a análise do mérito – direito ao regime tributário pleiteado – pela própria inércia da parte, e, no caso específico, de seu procurador, em providenciar a juntada dos documentos naquela esfera. Ajuizada a ação, em tese, a empresa autora teria direito ao regime tributário, caso passasse desapercebida a necessidade de análise dos balanços para a verificação do direito pleiteado.

Determinei, portanto, o retorno à esfera administrativa, para que a parte oportunizasse, mediante a juntada dos documentos, juízo da autoridade fazendária com todos os elementos e, portanto, abordando o direito posto em causa.

Verifica-se, portanto, no caso acima relatado, 1) a indução do julgador administrativo a uma decisão indeferitória, com vistas a, presumivelmente, ingresso no Poder Judiciário para discussão e obtenção do direito com base apenas na tese jurídica postulada, a qual, aparentemente, era plausível, conforme jurisprudência; e 2) que tal decisão administrativa, que, em sua parte “dispositiva”, negava o direito à empresa, na verdade, não tinha todos os elementos para uma decisão correta, sendo necessário verificar todos os atos do procedimento administrativo que levaram a tal conclusão, bem como os demais fundamentos de fato e de direito utilizados na decisão.

4.2 Estrutura e competência dos órgãos de julgamento das agências. A instrumentalidade do processo como condição legitimante da atuação administrativa

Para a finalidade em epígrafe, procedemos à análise das leis de regência e dos respectivos regulamentos das seguintes agências: Aneel, Anatel, Anvisa e ANS.

Conforme palestra do ilustre Desembargador Federal Fernando Quadros da Silva,(12) um dos traços característicos das agências é a formação de comissões, de maneira que 1) mais de uma pessoa possa analisar a matéria e 2) haja distribuição das responsabilidades decisórias.

Com efeito, constatamos ser traço comum a todos os esquemas organizacionais a existência de uma diretoria colegiada, responsável pelas decisões finais ou em grau máximo das autarquias. Há, via de regra, extenso rol de atribuições, em sua maioria tipicamente executivas – o que não quer dizer que não haja alguma espécie de deliberação e avaliação por parte da Administração –, no sentido de sua preponderância.

Verifica-se, no caso da Aneel, a inexistência de um rol de atribuições da diretoria colegiada, constando somente de seu regulamento.

Encontramos algumas regras esparsas para fins de procedimentos, no que andou bem o legislador, tendo em vista a existência de uma lei de caráter geral que disciplina o processo administrativo em âmbito federal (Lei 9.784/99). Destoa dessa salutar diretiva o constante no art. 8º, § 5º, do regulamento da Aneel, na qual, aparentemente, há outorga de competência, por via de regulamento, para estabelecimento de processo decisório. No entanto, caso não haja conflito com a Lei 9.784 e contenha caráter de regulamento secundum legem, não haverá maiores problemas.

Verificamos, ainda, a existência de típicas atribuições ou competências de julgamento. Evidentemente, de uma decisão preponderantemente executiva ou de alguma outra atribuição poderá resultar a necessidade de instauração de um processo administrativo visando a uma decisão e, em alguma medida, a um julgamento. No entanto, o que referimos é que há algumas poucas regras de competência prevendo especificamente, de modo relativamente genérico, a atribuição para proferir julgamentos administrativos, os quais, obviamente, pressupõem a ocorrência de um contencioso administrativo e a existência de contrariedade por parte do(s) administrado(s) relativamente a um ato administrativo proveniente da autarquia. Verificamos, ainda, a existência, no regulamento da Anatel, de competência para julgamento administrativo de conflitos entre administrados que exercem atividade econômica submetida à regulação pela autarquia (art. 16, incisos XVIII e XIX), o que chama a atenção pelo fato de que a competência judicial para dirimir conflitos particulares é, em princípio, estadual. No entanto, tal competência pode ser explicada pela atividade desenvolvida e pela competência regulatória da agência, ou seja, pelo evidente interesse da União na matéria em comento.

Em geral, as leis e os regulamentos em comento contêm a previsão de recurso, como última instância de julgamento administrativo, para a diretoria colegiada. Note-se que inexiste a possibilidade de recurso para órgão diverso da Administração Pública Federal ou mesmo para o ministério que também tenha atribuição sobre a matéria. Inexiste, por conseguinte, qualquer possibilidade de avocação, recurso ou apreciação de petição por ministro de Estado e mesmo pelo chefe do Poder Executivo.

Eventual revisão de julgamento administrativo pelas agências reguladoras deverá ocorrer na via judicial. Daí advém a importância de todo o exposto acima acerca da necessidade de profissionalização, utilização da adequada técnica (específica à área de atuação) e também de suficiente substrato fático (substantial evidence) e fundamentação jurídica e técnica adequada à matéria.

Com efeito, o que se deseja é o aperfeiçoamento da atividade administrativa e, portanto, da decisão administrativa. A todos, em âmbito judicial e administrativo, é assegurado o devido processo legal (Constituição, art. 5º, inc. LIV), tanto em sua vertente procedimental quanto substancial (procedural due process of law and substantial due process of law).

A eventual inobservância do próprio procedimento, as falhas no procedimento e, em especial, sua inexistência findam por retirar a legitimidade de atos, decisões e julgamentos administrativos, mesmo que acertados o ato, a decisão e o julgamento proferido. A assertiva não implica a supervalorização do processo, mas o reconhecimento de que sua instrumentalidade é indissociável da própria atividade administrativa, ganhando especial contorno quando se trata de restrição ou supressão de direitos.

Nesse viés, o processo, encarado em sua instrumentalidade, conforme Torreão,(13) é meio indelével para tais desideratos:

“O pensamento instrumental confere maior dinamismo ao processo para adequá-lo às alterações políticas, tecnológicas, econômicas e sociais. A instrumentalidade do processo representa um movimento em defesa da justiça ampla, acessível, célere e crítica.
(...)
A instrumentalidade também admite que o processo seja mutável, capaz de acompanhar o desenvolvimento das necessidades sociais em constante evolução. Aqui reside outra semelhança entre a instrumentalidade do processo e a do Direito Flexível da regulação. A relativa atenuação das formalidades, para fins de prestigiar a aplicação eficaz do direito, também está presente no processo instrumental, tal como no Direito Maleável.”

Em passagem seguinte, o autor aborda a questão da necessidade de segurança jurídica e previsibilidade do direito – e, por conseguinte, das decisões judiciais – para que seja alcançado um nível de confiança que permita às atividades econômicas e sociais o ambiente adequado para seu florescimento:

“(...) Amparadas em estrutura processual adequada, as agências ganham maior legitimidade, credibilidade e eficiência. Como instituições, mercados e governo estão atrelados em relação de interdependência, o reforço da legitimidade das agências reguladoras é capaz de reduzir os riscos de falhas de mercado e de governo. Ao propiciar maior eficiência, equilíbrio e legitimidade às atividades reguladoras, a visão processual resulta, em grande parte, na redução de gastos e de custos de transação, especialmente pelo aumento da transparência das informações e pela redução de litígios.”

Trata-se, pois, da necessidade – seja para o funcionamento das instituições, seja para que o Poder Judiciário veja diminuído o imenso acervo processual decorrente de litígios contra a Administração Pública – de redução do grau de incerteza quanto à provável decisão administrativa. É da experiência pessoal de quase todos sermos surpreendidos com decisões em caráter individual ou incidentes sobre determinada coletividade (v.g.: telefonia) em que há alguma espécie de ilegalidade, tornando-se necessário recorrer à via judicial. Quanto à certeza – e, portanto, à previsibilidade – das decisões administrativas, Sérgio Varella Bruna(14) assim se posiciona:

“(...) Os custos de transação costumam ser completamente ignorados nos modelos econômicos tradicionais que normalmente adotam, como um de seus pressupostos teóricos, a plenitude de conhecimento dos agentes econômicos quanto a todas as informações relevantes de mercado. Estão eles intimamente associados à deficiência de conhecimento de tais informações, variando diretamente conforme seja maior ou menor a ‘incerteza’ reinante nos mercados, isto é, a não plenitude de informações. Possuem estreito relacionamento com as assim chamadas ‘instituições’, cuja função é, em última análise, reduzir a ‘incerteza’ que embaraça as relações econômicas e, assim, facilitar o exercício da produção de trocas.”

No que concerne à citação acima, recordo de aula do Prof. Luiz Melíbio Uiraçaba Machado, desembargador aposentado do TJRS, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na qual relatou que, em seu escritório de advocacia, fora agendada uma consulta por alemães, na qual foi questionado sobre os vários posicionamentos jurisprudenciais das câmaras e dos grupos do TJRS. Posteriormente viera ele a saber que aquele grupo econômico estrangeiro havia desistido de se instalar no estado, em parte em decorrência da insegurança jurídica por eles sentida.

Dessarte, se essa insegurança se faz sentir no âmbito do Poder Judiciário, o mesmo também ocorre no âmbito administrativo e, provavelmente, de maneira muito mais forte, devido à dimensão gigantesca de sua atuação em comparação com a dos órgãos judiciais. Apenas para ressaltar um número representativo dessa última assertiva, menos de 10% dos benefícios concedidos ou indeferidos pelo INSS são questionados na Justiça, a qual, mesmo assim, se vê sobrecarregada de processos previdenciários.

Desta feita, a redução de litígios poderá decorrer, especificamente, de elevação do nível técnico-decisório da Administração Pública, a qual deve ocorrer mediante um adequado processo decisório e um corpo de julgadores com relativa independência e acentuada responsabilidade, além de formação técnica para a área em que atuem.

Consequência natural será a diminuição das lides que chegam ao Poder Judiciário, chamado a se pronunciar, por vezes, sobre matérias que envolvem atividade exclusivamente administrativa, ou devido a erros decisórios decorrentes da falta de preparação específica do órgão prolator administrativo, de falha do processo administrativo, ou, mesmo, devido a normativas internas que engessam sobremaneira a Administração Pública, em especial os escalões decisórios inferiores.

Conclusão

Do acima exposto, extrai-se a imperiosa necessidade de formação de um corpo decisório dotado de relativa independência e com caráter eminentemente técnico e, tanto quanto possível, distanciado de influências políticas para fins de que seja alcançado um verdadeiro profissionalismo da Administração Pública, a qual é perene, em contraste com a chefia de governo, que é temporária. No entanto, em nosso modelo, a mesma figura exerce uma função perene (chefia do Poder Executivo), a qual deve ser, tanto quanto possível, técnica e apolítica, e também a chefia de governo, de cunho eminentemente político. Esse fato, por eventuais mudanças de orientação política e por mudanças de postos de comando, impede um trilhar firme no sentido da qualificação da Administração Pública, em especial de seu processo decisório.

Há uma variedade de bons instrumentos jurídicos à disposição do administrador público para o atendimento dessas finalidades, entre os quais se inserem os regulamentos, os conceitos discricionários balizados pela técnica e o processo decisório administrativo em seu caráter instrumental, além da possibilidade de organização e aperfeiçoamento das carreiras públicas. Caso sobrevenha atuação nessa linha, os reflexos no Poder Judiciário, bem como na espécie de causas que chegam a ele e em sua qualidade, certamente surtirão efeitos desejados para toda a sociedade, tendo em vista que o maior litigante tanto da esfera estadual quanto em âmbito federal é o Estado.

Referências

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. 100 maiores litigantes. Brasília: 2011. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf>. Acesso em: 16 abr. 2015.

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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-9-FEVEREIRO-2007-MARIA%20SYLVIA.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2015.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Anti-Doping Agency. Reasoned Decision of the United States Anti-Doping Agency on Disqualification and Ineligibility: United States Anti-Doping Agency versus Lance Armstrong. USADA, 2012.

GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros.

TORREÃO, Marcelo Pires. Devido processo da regulação: o encontro entre o direito flexível e a instrumentalidade processual administrativa nas agências reguladoras. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, a. 9, n. 33, abr./jun. 2011, p. 17. Disponível em: <http://bid.editoraforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=73414>. Acesso em: 9 abr. 2015.

VERÍSSIMO, Marcos Paulo; ARAGÃO, Alexandre Santos de et al. (coord.). O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

Notas

1. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Escola da Magistratura Federal – Emagis. Currículo Permanente – Módulo II – Direito Administrativo: Porto Alegre, 11 de setembro de 2014.

2. Apud TORREÃO, Marcelo Pires. Devido processo da regulação: o encontro entre o direito flexível e a instrumentalidade processual administrativa nas agências reguladoras. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, a. 9, n. 33, abr./jun. 2011, p. 9. Disponível em: <http://bid.editoraforum.com.br/bid/
PDI0006.aspx?pdiCntd=73414
>. Acesso em: 9 abr. 2015.

3. TORREÃO, op. cit., p. 3.

4. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 171 e segs.

5. CASSEPP, Alexandre Azambuja. Limites do poder regulamentar. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/
artigo,limites-do-poder-regulamentar,45959.html
>. Acesso em: 14 abr. 2015.

6. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 343.446-2/SC – Distrito Federal. Relator: Min. Carlos Velloso. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 14 abr. 2015.

7. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-9-FEVEREIRO-2007-MARIA%20SYLVIA.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2015.

8. VERÍSSIMO, Marcos Paulo; ARAGÃO, Alexandre Santos de et al. (coord.). O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 405.

9. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Anti-Doping Agency. Reasoned Decision of the United States Anti-Doping Agency on Disqualification and Ineligibility: United States Anti-Doping Agency versus Lance Armstrong. USADA, 2012. p. 8: “Nenhuma das evidências que a Usada arrola nesta decisão arrazoada foi obtida a partir dos órgãos federais de investigação dos Estados Unidos envolvendo o Sr. Armstrong. Depois do anúncio pelo Procurador Distrital Andre Birotte, em 3 de fevereiro de 2012, de que ele estava interrompendo a investigação criminal da conduta de Armstrong, a Usada requereu formalmente cópias das evidências que não fossem do grande júri relativas ao caso. Entretanto, nenhum documento foi recebido até o momento. Como resultado, nenhuma das evidências coletadas pela Usada adveio dos órgãos aplicadores das leis federais” (trad. livre). Disponível em: <http://cyclinginvestigation.usada.org>. Acesso em: 13 abr. 2015.

10. Loc. cit.

11. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. 100 maiores litigantes. Brasília: 2011. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf>. Acesso em: 16 abr. 2015.

12. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Escola da Magistratura Federal – Emagis. Currículo Permanente – Módulo II – Direito Administrativo: Curitiba, 17 de outubro de 2014.

13. Op. cit., p. 8.

14. Apud TORREÃO, Marcelo Pires. Op. cit.



Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., ago. 2015. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS