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publicado em 28.08.2015 |
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A sociedade atual está cada vez mais complexa, em razão da multiplicidade de relações jurídicas surgidas, principalmente, com a redemocratização do país feita pela CF/88. Com a criação do Estado Democrático de Direito, sendo a nova carta republicana chamada de Constituição cidadã, passa-se a desenvolver no seio da comunidade a “conscientização dos seus direitos”. Assim, a partir da CF/88, bem como com a promulgação do Código do Consumidor, os cidadãos brasileiros passam a exigir, no plano concreto, os seus direitos, que agora estão reconhecidos, no plano teórico, na lei fundamental da República Federativa do Brasil e na legislação infraconstitucional. Nesse contexto, o Judiciário investe-se na função de agente transformador da realidade social, e não de mero aplicador cego das leis. Os magistrados deixam de ser meramente “bocas da lei”, alcunha da época do Estado Liberal, e passam a ser atores na busca dos objetivos da nossa República, dentre eles o de criar uma sociedade justa, igualitária, buscando combater a pobreza e a discriminação, previsto no art. 3° da CF/88. Não se trata de ditadura judicial, mas sim de um maior ativismo judicial, exigido, inclusive, pela própria Constituição/88, a fim de que a função estatal judicial cumpra corretamente seu mister: a busca pela efetivação dos direitos sociais garantidos pelo novo Estado Democrático de Direito. Logo, a atuação do juiz não será pautada pelas suas intenções pessoais, o que gera muito subjetivismo, crítica constante feita aos adeptos da Escola do Direito Livre, mas sim limitada objetivamente pelos princípios constitucionais implícitos e explícitos emanados da Carta Republicana de 1988. Assim, no pós-positivismo contemporâneo em que vivemos, o Judiciário, como poder de Estado, não é mero espectador ilhado dos dilemas da sociedade, mas sim agente transformador e pacificador, buscando a solução dos problemas sociais com base na aplicação objetiva dos ditames constitucionais. Nossa Constituição de 1988 manteve o sistema capitalista, fundado na livre-iniciativa e na propriedade privada. Contudo, garantiu uma série de direitos sociais e individuais aos trabalhadores e aos cidadãos, a ponto de Carlos Ari Sundfeld defender que foi adotado um Estado Democrático e Social de Direito.(1) Logo, o capitalismo globalizado não pode mais buscar o lucro exagerado a todo custo, como na época do Estado Liberal, no qual os trabalhadores laboravam quinze horas por dia, tampouco se podem admitir líderes populistas e totalitários existentes no Estado Social, que, em troca de alguns direitos sociais, impunham ditaduras, por meio das quais restringiam fortemente os direitos individuais. Uma das funções do Judiciário, no atual cenário econômico-político-social, é garantir um lucro justo, isto é, aquele inerente ao modo de produção capitalista, mas que respeite os direitos individuais e sociais dos trabalhadores, bem como os direitos difusos, como o meio ambiente, pautado, assim, no desenvolvimento sustentável. Verifica-se que tal função nada mais é que a de conciliar capital e trabalho, já prevista por Durkheim no século XIX, ao prever que “o direito moderno tem, na sua sociologia, a função urgente de garantir acordos entre patrões e empregados, evitando greves e falências que ameaçam a sociedade de desagregação e destruição”.(2) Ocorre que, enquanto Durkheim vê o Direito como fato social, destinado a cumprir a função de estabilização da sociedade, Marx, diversamente, critica efusivamente a mera função do direito como legitimador do status quo, por meio da garantia de uma igualdade meramente formal, totalmente dissociada da realidade social, cuja função precípua é perpetuar a dominação e a subserviência próprias do capitalismo liberal. As ideias marxistas de transformação da ordem vigente por meio da transformação da estrutura econômica fizeram desenvolver, ao longo do século XIX, novas funções promocionais e redistributivas do Direito, alcançando não somente as instituições jurídicas, mas também o papel dos magistrados nesse novo cenário político.(3) Assim, o Judiciário não pode conceber o direito como um fenômeno estático, de mera legitimação da dominação capitalista, visto que se trata de fundamento do já extinto Estado Liberal. No atual Estado Democrático brasileiro em que vivemos, o Judiciário tem o papel de agente transformador da sociedade, mas com poderes limitados e descritos objetivamente pelos princípios constitucionais explícitos e implícitos que são o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico. Como vimos, a CF/88, ao garantir diversos novos direitos aos cidadãos, fez surgir diversas novas lides, principalmente as demandas de massa da tutela coletiva. Garantiu-se, também, o multiculturalismo, fundado na liberdade de crenças, religiões, dogmas, tendo como base o direito à diferença e à tolerância. Nesse contexto, a globalização teve papel fundamental para a criação das sociedades complexas, que, na visão de Melucci, se caracterizam pela presença de três elementos fundamentais: “diferenciación, variabilidad de los sistemas e exceso cultural”.(4) A diferenciação se expressa por meio dos múltiplos códigos e símbolos existentes nas diferentes esferas da vida cotidiana e pela necessidade de se dominar os diferentes códigos para circular entre as várias esferas. A variabilidade dos sistemas está relacionada à velocidade e à frequência das mudanças. "Um sistema é complexo porque muda frequentemente e se transforma velozmente."(5) O excedente cultural refere-se ao conhecimento e às informações colocadas à disposição dos atores. “‘A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, uma vez que, mediante inércia, o poder público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e dos princípios da Lei Fundamental.’ (RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) Dessa forma, verifica-se que, havendo inércia estatal e abusividade governamental em cumprir as determinações ditadas pelo Texto Constitucional, legitimado está o Judiciário a intervir nas políticas públicas, determinando que se cumpra a CF/88, notadamente o seu art. 196, preservando a sua força normativa, não podendo o Estado furtar-se à sua obrigação sob alegações vazias e não comprovadas de ausência de recursos para a efetivação dos direitos sociais ("reserva do possível"), tendo em vista a necessidade de se garantir a todos o mínimo existencial, necessário a se viver com dignidade. Em que pese o fornecimento de medicamentos, em alguns casos, tenha um alto custo, isso, per se, não pode ser empecilho para o seu fornecimento, como já decidido pelo Min. Gilmar Mendes, na STA nº 175 AgR/CE, nos seguintes termos: "o alto custo de um tratamento ou de um medicamento que tem registro na Anvisa não seria suficiente para impedir o seu fornecimento pelo poder público". Deve-se ter sempre em vista que a vida protegida pela CF/88 não é qualquer tipo de sobrevivência, mas sim a vida digna, aquela na qual existe efetivamente um cidadão que possui direitos e deveres que devem ser garantidos e respeitados. Dessa forma, não é qualquer tratamento que deve ser custeado pelo poder público, mas sim aquele mais adequado e eficaz, capaz de ofertar ao enfermo maior dignidade e menor sofrimento, mesmo que seja de alto custo. Nesse sentido são os acórdãos abaixo: “Porém, conforme destacou o min. relator, na aplicação das normas constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais para os setoriais, merecendo destaque a proteção à dignidade humana, valor influente sobre todas as demais questões. Assim, o Estado deverá propiciar aos necessitados não qualquer tratamento, mas o tratamento mais adequado e eficaz, capaz de ofertar ao enfermo maior dignidade e menor sofrimento. Dessarte, entendeu o min. relator que, nas situações limítrofes em que há risco para a saúde humana e uma alegada ineficiência do medicamento, como na hipótese, a resposta judicial não pode deixar a vida humana ao desabrigo, deve propender para a valorização da dignidade da vida humana. Muito embora sejam genótipos diferentes de hepatite e haja dúvida quanto à sua eficácia, a solução deve ser pró-cidadão, há de superar quaisquer barreiras legais. No mesmo sentido, o parecer ministerial ressaltou que, embora a Portaria nº 863/2002 do Ministério da Saúde trace critérios objetivos para o fornecimento gratuito de medicamentos, não pode ela se sobrepor ao direito constitucional à saúde, sendo suficientes a comprovação de hipossuficiência e os laudos médicos indicando a urgência do tratamento. Já o Min. Hamilton Carvalhido observou que a ação do Judiciário mostra-se como um componente do Estado democrático de direito, não podendo ficar inerte diante de fatos de interesse geral, principalmente daqueles que tocam aos direitos fundamentais. Com essas considerações, entre outras, a Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, deu provimento ao recurso para conceder a segurança. Precedente citado do STF: AgRg na STA 175-CE, DJe 30.04.2010.” (RMS 24.197-PR, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 04.05.2010) “EMENTA: ADMINISTRATIVO. MEDICAMENTO. PERÍCIA MÉDICA. ART. 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEI 8.080/90. 1. O fato de ser atribuição dos Centros de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon) credenciados pelo Ministério da Saúde o fornecimento de medicação relacionada ao tratamento de câncer não altera a responsabilidade dos entes federativos de estabelecer um sistema eficaz de operacionalização da prestação do direito constitucional à saúde. 2. Eventual omissão, nas hipóteses em que medicamentos não são contemplados pelas políticas públicas desenvolvidas pelo Ministério da Saúde e executadas pelo SUS, caracteriza violação a norma constitucional garantidora do direito fundamental à saúde, passível de controle pelo Poder Judiciário, já que todas as pessoas têm direito a receber medicações e tratamentos que sejam mais adequados às suas respectivas condições de saúde e que possam ser mais eficazes no combate às doenças. 3. Relativamente ao pedido de fornecimento à parte-autora dos medicamentos pretendidos, destaca-se ter havido a realização de perícia médica, em que foi explicitada a real necessidade da medicação requerida. Informou o senhor perito que o medicamento pretendido ‘é indicado p/ aumentar a sobrevida, a chance de cura e o período livre de doença’; não existe medicamento que produza efeitos similares ou que possa ser utilizado como substitutivo. Complementou o laudo o perito informando que ‘A paciente em questão tem indicação precisa, pois preenche os critérios oncológicos e os marcadores biológicos que corroboram benefício com o uso do trastuzumab’. 4. Apelação provida. Invertida a sucumbência.” (TRF4, 5003541-65.2010.404.7110, D.E. 15.07.2011) Porém, verifica-se que o direito à saúde, apesar de se tratar de um valor estruturante do ordenamento jurídico, corolário do direito à vida, assim como todos os demais direitos, não tem caráter absoluto, devendo ser preenchidos requisitos para a concessão da tutela jurisdicional de fornecimento gratuito de medicamentos, como já ressaltou o próprio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, nos acórdãos prolatados pelas Desas. Federais Marga Inge Barth Tessler e Maria Lúcia Luz Leiria, assim transcritos: "Ementa: DIREITO ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTO ENBREL® (ETARNECEPTE) PARA ARTRITE PSORIÁTICA. PACIENTE ATENDIDA POR MÉDICO PARTICULAR. PLANO DE SAÚDE UNIMED. NÃO PROCUROU ATENDIMENTO JUNTO AO SUS. 1. O medicamento solicitado etarnecepte foi incluído nos protocolos dos SUS, mas para o tratamento da artrite reumatoide, que não é o mal diagnosticado na autora. Nessas condições, pelas evidências dos autos, a autora nunca se tratou pelo SUS, e o receituário apresentado não é de médico pertencente ao SUS, bem como não houve validação deste nos serviços de saúde (SUS). “Em se tratando de fornecimento de medicamentos, tenho adotado determinados parâmetros: a) eventual concessão da liminar não pode causar danos e prejuízos relevantes ao funcionamento do serviço público de saúde; b) o direito de um paciente individualmente não pode, a priori, prevalecer sobre o direito de outros cidadãos igualmente tutelados pelo direito à saúde; c) o direito à saúde não pode ser reconhecido apenas pela via estreita do fornecimento de medicamentos; d) havendo disponibilidade no mercado, deve ser dada preferência aos medicamentos genéricos, porque comprovada sua bioequivalência, resultados práticos idênticos e custo reduzido; e) o fornecimento de medicamentos deve, em regra, observar os protocolos clínicos e a ‘medicina das evidências’, devendo eventual prova pericial, afastado ‘conflito de interesses’ em relação ao médico, demonstrar que tais não se aplicam ao caso concreto; f) medicamentos ainda em fase de experimentação, não enquadrados na listagem ou nos protocolos clínicos, devem ser objeto de especial atenção e verificação, por meio de perícia específica, para comprovação de eficácia em seres humanos e aplicação ao caso concreto como alternativa viável.” (Apelação Cível nº 2009.72.14.000181-3/SC, relatora: Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria) Cumpre também registrar que não é ônus do Judiciário administrar o SUS, não se podendo desconsiderar as consequências que determinadas decisões judiciais podem causar ao sistema. Nesse sentido é o entendimento abaixo, do TRF da 4ª Região: "Não é ônus do Judiciário administrar o SUS, nem se pode, sem conhecimento exato sobre as reais condições dos enfermos, conferir prioridades que só virão em detrimento daqueles pacientes do SUS que já aguardam ou já recebem a medicação e não poderão interromper tratamento. Como os demais enfermos que aguardam o fornecimento do medicamento pela Administração, deve o agravado sujeitar-se à regular dispensação do remédio pretendido. Dessa forma, necessário se faz estabelecer quais os requisitos necessários para o fornecimento de medicamentos, a fim de que, tendo em vista que as necessidades humanas são infinitas e os recursos são finitos, seja garantida a própria higidez do SUS, vedando-se o favorecimento de uns em detrimento da maioria. Assim, entendo ser necessário o preenchimento dos seguintes requisitos: 1) Comprovação da hipossuficiência (REsp 837.591/RS, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 17.08.2006, DJ 11.09.2006, p. 233). Sobre tal ponto, é necessário informar que tal comprovação não se confunde com a simples declaração de pobreza necessária para a concessão da justiça gratuita, mas compreende a juntada aos autos de documentos, como o comprovante de renda ou a cópia da declaração do imposto de renda, comprovando que o jurisdicionado não possui condições de arcar com os custos do seu tratamento sem prejuízo do seu próprio sustento ou do da sua família. 2) Juntada aos autos de quaisquer documentos comprobatórios do estado atual de saúde do autor, tais como certidões médicas, relatórios, termos de internação, dentre outros, que comprovem o seu estado de saúde, a doença que o aflige, bem como o tratamento médico que seja necessário e eficaz para a sua cura. 3) A realização de perícia judicial a fim de se constatar especificamente qual a doença que o autor está enfrentando, corroborando os documentos juntados ao processo, bem como atestando qual o medicamento e o tratamento mais eficaz e adequado para a cura e o pronto restabelecimento da saúde do autor, no menor tempo possível, com o menor sofrimento e a maior dignidade, indicando as razões pelas quais os medicamentos oferecidos pelo SUS devem ser substituídos. Nesse sentido é o entendimento do TRF da 4ª Região (TRF4, 5002811-54.2010.404.7110, D.E. 21.07.2011; TRF4, 5003005-51.2010.404.7208, D.E. 15.07.2011; TRF4, 5003541-65.2010.404.7110, D.E. 15.07.2011). Ressalto que, desde que comprovada a extrema situação de urgência, em razão de comprovado risco de vida para o autor, pode-se conceder imediatamente o remédio requerido, desde que presentes os demais requisitos, marcando-se a posteriori, na data mais breve possível, a realização da referida perícia judicial. 4) O medicamento a ser deferido pela tutela jurisdicional deve estar devidamente registrado na Anvisa com prescrição específica de combate à doença do autor, pois não se pode transformar o cidadão-autor em espécie de cobaia para experimentos médico-farmacêuticos. Dessa forma, enquanto não houver o registro na Anvisa, devidamente comprovado nos autos, não será cabível a concessão do medicamento, mesmo com eventual alegação por parte dos órgãos públicos de que possui bons resultados no tratamento de pacientes com a mesma doença do autor e de que é mais barato do que o remédio que está sendo requerido, o qual possui o devido registro e certificação. 5) A submissão inicial ao tratamento e ao medicamento oferecidos pelo SUS, salvo comprovada ineficácia na sua utilização para a obtenção da cura do autor, devidamente atestada nos documentos particulares juntados pelo autor, bem como corroborada pelo laudo pericial realizado por perito do juízo. Assim, entendo que, preenchidos esses 05 (cinco) requisitos acima elencados, é possível a concessão judicial do medicamento ou tratamento requerido, mesmo que seja de alto custo. 1. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4. ed. 7. tir. São Paulo: Malheiros. p. 56. 2. FERREIRA, Lier Pires; GUANABARA, Ricardo (org.). Curso de Sociologia Jurídica. Campus Elsevier. p. 05.
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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