A política nacional de recursos hídricos e o processo de licenciamento ambiental de usinas hidrelétricas

Autora: Priscilla Mielke Wickert Piva

Juíza Federal Substituta

publicado em 28.08.2015



Resumo


Licenciamento ambiental de empreendimentos hidrelétricos. Condicionantes relacionadas à preservação da ictiofauna e aos usos múltiplos e à qualidade da água. Necessidade de gestão e planejamento ambiental. Sugestão de utilização da bacia hidrográfica como parâmetro aos licenciamentos ambientais.

Palavras-chave: Ambiental. Licenciamento. Usinas hidrelétricas. Judicialização. Condicionantes.

Sumário: Introdução. 1 A política energética nacional e a gestão dos recursos hídricos na Constituição Federal e na Lei nº 9.433/1997. 2 Pontos passíveis de discussão judicial em licenciamentos ambientais de empreendimentos hidrelétricos. 2.1 Mecanismos de transposição da ictiofauna: canais laterais. 2.2 O volume da vazão remanescente de água a jusante do barramento até a casa de força – trecho de vazão reduzida. 2.3 Retirada da vegetação na área objeto de inundação para a formação do reservatório. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

As usinas hidrelétricas representam a principal fonte de geração de energia no Brasil (78%), com a geração térmica exercendo a função de complementaridade nos momentos de pico do sistema (FACURI, 2004, p. 6). A título de contextualização, é preciso conferir destaque à Resolução nº 30, de 11 de dezembro de 2002, do Ministério do Meio Ambiente/Conselho Nacional dos Recursos Hídricos, a qual codificou as bacias hidrográficas em âmbito nacional.

Segundo ORTIZ e PAIM (2006, p. 77), bacia hidrográfica significa toda a área drenada pelas águas de um rio principal e de seus afluentes. A mais importante da Região Sul do Brasil é a Bacia do Rio Uruguai, a qual

“(...) forma-se na região sul do Brasil, entre os Estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, a partir da confluência dos rios Canoas e Pelotas. A partir da confluência com o rio Peperi-Guaçu, na sua margem direita, o rio Uruguai passa a definir a fronteira entre o Brasil e a Argentina. Esta situação se mantém até a confluência com o rio Quaraí, quando o rio Uruguai passa a definir a fronteira entre a Argentina e o Uruguai, até formar o rio da Prata, juntamente com o rio Paraná.
A área da bacia do rio Uruguai no trecho brasileiro (...) cobre uma área total de, aproximadamente, 75.000 km2.
As nascentes dos rios Canoas e Pelotas estão localizadas em uma região de campos, a uma altitude que ultrapassa os 1500 m, e a confluência do rio Uruguai com o Peperi-Guaçu está a cerca de 150 m de altitude.” (COLLISCHONN e TUCCI, 2005, p. 45)

Tais dados de relevo explicam o grande potencial hidroenergético da Bacia do Uruguai, uma vez que a presença de quedas naturais no curso d’água propicia o aproveitamento para fins de geração de energia.

No tocante ao licenciamento ambiental dos empreendimentos hidrelétricos, este se inicia com os estudos de inventário para estimativa do potencial hidrelétrico (Resolução nº 393 da Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel) e aprovação dos Estudos de Viabilidade e Projeto Básico de empreendimentos de geração hidrelétrica (Resolução nº 395 da Aneel). Na sequência, conforme Resoluções 006/1987 e 237/1997 do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama, expede-se: 

a) Licença Prévia (LP), na fase preliminar do planejamento do empreendimento ou da atividade, a qual aprova sua localização e sua concepção, atestando a viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos nas próximas fases de sua implementação. Essa fase contempla a elaboração e a apresentação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto Ambiental (Rima) e a realização de audiências públicas. Com as normas do novo modelo do setor elétrico (consolidado pelas Leis nº 10.847 e nº 10.848, de 15 de março de 2004), a LP é necessária para a licitação de concessão de aproveitamento hidrelétrico do empreendimento;
b) Licença de instalação (LI), a qual autoriza o início das obras ou instalação do empreendimento ou da atividade, de acordo com as especificações constantes dos planos, dos programas e dos projetos aprovados, incluindo as medidas de controle ambiental e demais condicionantes. Para hidrelétricas, nesta etapa devem ser apresentados o Relatório do Estudo de Viabilidade e cópia do Decreto de Outorga de Concessão de Aproveitamento Hidrelétrico concedida pela Agência Nacional de Águas (ANA). Também nesta fase é elaborado o Plano Básico Ambiental (PBA), o Plano de Controle Ambiental (PCA) e o Inventário Florestal, que subsidia a autorização de supressão de vegetação a ser dada pelo órgão ambiental licenciador para a retirada da madeira antes do enchimento do reservatório/lago;
c) Licença de Operação (LO), que autoriza a operação da atividade ou do empreendimento, após a verificação do efetivo cumprimento do que consta das licenças anteriores e das medidas de controle ambiental e condicionantes determinados para a operação.

Muito importantes ao longo desse procedimento são os princípios da informação e da participação.

No plano internacional, diversos instrumentos consagram a necessidade da publicidade e de informações sobre o ambiente, destacando-se o Princípio 10 da Declaração do Rio. Em âmbito interno, a Lei Federal nº 10.650, de 2003, conhecida como Lei da Informação Ambiental, determina que as informações relativas a pedidos de licenciamento ambiental, licenças concedidas, autorizações de desmatamento e autos de infração administrativa, entre outros, devem estar disponíveis ao público em geral e em local de fácil acesso. Ademais, quatro são as características exigidas para essas informações: a sua veracidade, a sua amplitude, a sua tempestividade e a sua acessibilidade (NARDY, SAMPAIO e WOLD, 2006, p. 77).

E somente por meio de uma população informada é que se efetiva o direito de participação nos processos decisórios ambientais, ao qual corresponde um dever correlato (op. cit., p. 80).

Este tema foi objeto da proposta do Brasil aprovada na XVI Cúpula Judicial Ibero-Americana acerca da atuação dos juízes e Poderes Judiciários relativamente à informação, à participação pública e ao acesso à justiça em matéria de meio ambiente (LEAL JÚNIOR, 2012, p. 24):

“Art. 31 – Mecanismos processuais para participação social e proteção ambiental. Os mecanismos processuais de cada país devem permitir e assegurar ampla participação da sociedade e dos cidadãos em ações ambientais e em matéria de proteção ao meio ambiente.”

Com efeito, a sociedade civil organizada deve protagonizar o processo de licenciamento ambiental, devendo ter voz ativa em relação a desconformidades encontradas, a fim de que somente aportem ao Poder Judiciário questões cuja resolução restou inviável por meio do diálogo e das pressões sociais no sentido do cumprimento das condicionantes das licenças prévia, de instalação e de operação.
           

1 A Política Energética Nacional e a Gestão dos Recursos Hídricos na Constituição Federal e na Lei nº 9.433/1997

A Política Energética Nacional está regulada na Lei nº 9.478/1997. O art. 1º elenca os seus objetivos:

“Art. 1º As políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia visarão aos seguintes objetivos:
(...)
IV – proteger o meio ambiente e promover a conservação de energia;”

Denota-se claramente a preocupação que todo o ordenamento jurídico pátrio nutre em relação à preservação ambiental. No atual momento histórico nacional, especificamente em relação à gestão dos recursos hídricos, está ela pautada pelos usos múltiplos das águas, em superação a um pensamento – dominante até há poucos anos – que conferia predominância de uso ao setor energético.
A Constituição Federal de 1988 (CF) manifesta preocupação com o aproveitamento energético, o que se denota do art. 21, inciso XII, alínea b e do inciso XIX, in verbis:

“Art. 21. Compete à União: (...) XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: (...) b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos; (...) XIX – instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso;”

O art. 22, inciso IV, trata da competência legislativa, estabelecendo competência privativa da União para legislar sobre águas e energia, daí se podendo extrair o seu papel preponderante no tocante aos recursos hídricos. Não se olvida, contudo, que “lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo” (art. 22, parágrafo único), competindo também aos Estados acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios (art. 23, inciso XI).

Nota-se que a CF conferiu à União competência para instituir sistema nacional de recursos hídricos e fixar critérios para outorga de direito do seu uso. O mandamento constitucional foi regulamentado pela Lei nº 9.433/1997, a qual define a água como bem de domínio público (art. 1º, inciso I) dotado de valor econômico. A entidade responsável pela implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos é a Agência Nacional de Águas (ANA), criada pela Lei nº 9.984/2000.

É preciso deixar claro que não mais existe a antiga classificação do Código de Águas (Decreto 24.643/1934), que previa a existência de águas privadas, além das públicas e comuns. De fato, as águas são inapropriáveis e inalienáveis, existindo tão somente o direito de uso (art. 18 da Lei nº 9.433/1997), o qual é sujeito a outorga (art. 11 da mesma Lei).

Desse modo, por se tratar de recurso natural limitado, dotado de valor econômico, e, portanto, sujeito a gerenciamento, a cobrança pela sua utilização constitui instrumento de política nacional que consagra o princípio do usuário-pagador no ordenamento jurídico pátrio.

Tendo em vista esse panorama, a geração de energia elétrica por meio do bem ambiental água tem sido objeto de discussão e polêmica nos últimos anos, haja vista que está escancarada a necessidade de se colocar em prática a imperativa observância dos seus usos múltiplos.  

Com efeito, trata-se a construção de usina hidrelétrica de empreendimento causador de significativo impacto ambiental, de modo que dependente de licenciamento ambiental, consoante se extrai da Constituição Federal:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(...)
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou para atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;” 

Estabelece a Resolução nº 01, de 23 de janeiro de 1986, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) a necessidade de que tais obras sejam precedidas de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e respectivo relatório (Rima):

Artigo 2º – Dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto ambiental – Rima, a serem submetidos à aprovação do órgão estadual competente, e do Ibama em caráter supletivo, o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, tais como:
(...)
VII – Obras hidráulicas para exploração de recursos hídricos, tais como: barragem para fins hidrelétricos, acima de 10MW, de saneamento ou de irrigação, abertura de canais para navegação, para drenagem e irrigação, para retificação de cursos d'água, para abertura de barras e embocaduras, para transposição de bacias, diques;
Xl – Usinas de geração de eletricidade, qualquer que seja a fonte de energia primária, acima de 10MW;

É preciso frisar, quanto a esse ponto, o princípio da precaução, que tem por mote não apenas evitar a degradação do meio ambiente propriamente dito, mas mais do que isso, sua significação compreende também a garantia da vida, da própria preservação da espécie humana e da melhor qualidade de vida para a coletividade. Consoante as palavras de Machado:

Em caso de certeza do dano ambiental, este deve ser prevenido, como preconiza o princípio da prevenção. Em caso de dúvida ou incerteza, também se deve agir prevenindo. Essa é a grande inovação do princípio da precaução. A dúvida científica, expressa com argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção.” (MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2001. p.55)

Como se vê, o princípio da precaução implica uma ação antecipatória à ocorrência do dano ambiental. Nesse sentido, 'precaução' consiste em substantivo do verbo precaver-se (do latim prae = antes e cavere = tomar cuidado), de modo que sugere cuidados antecipados, cautela, para que uma ação ou omissão não resulte em efeitos indesejáveis.

De modo a se conferir concretude às ações antecipatórias em questão é que se tem por imperativa a realização do EIA/Rima:

“Sua natureza jurídica é de pré-procedimento administrativo, vinculado ao licenciamento ambiental, de natureza constitucional, destinado a avaliar impactos e definir medidas mitigadoras e/ou compensatórias pela introdução de atividade significativamente degradante. (...) é feito antes da concessão da Licença Prévia, como uma condição à expedição desta, a partir de um Termo de Referência fornecido pelo órgão ambiental.” (CAPELLI, Silvia; MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Anelise Monteiro. Direito Ambiental. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008. 84)

Digno de nota, o registro acerca do dever de se contemplar a chamada "opção zero", consistente na análise dos efeitos produzidos pela não realização do empreendimento, a qual,

"diante da legislação brasileira contemplar o objetivo de assegurar condições de desenvolvimento econômico e social, a opção zero só deve ser adotada quando o projeto causar grandes impactos ambientais, sem possibilidade de mitigação aceitável, e quando os resultados econômico-sociais sejam desprezíveis." (op. cit., p. 85-86)

Assim, apresentado o EIA/Rima, de modo a se prevenirem danos evitáveis e já conhecidos, bem como buscar a compensação de danos inevitáveis, mostra-se imperativa a concretização do licenciamento ambiental, o qual constitui um dos principais instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, previsto no art. 10 da Lei nº 6.938/81:

“Art. 10. A construção, a instalação, a ampliação e o funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental.” (Redação dada pela Lei Complementar nº 140, de 2011)

Tem-se que "o papel do licenciamento ambiental é, primordialmente, definir os limites toleráveis de interferência sobre o meio ambiente" (ANTUNES, 2006, p. 129).

As etapas seguintes do licenciamento ambiental estão previstas no art. 8º da Resolução nº 237/1997 (Licença Prévia, Licença de Instalação e Licença de Operação).

No tocante à natureza jurídica do licenciamento, crê-se que se trata de ato administrativo discricionário sui generis, nem se tratando, portanto, de licença (ato administrativo vinculado e definitivo), nem de autorização (ato administrativo discricionário e precário).

Imposta tal necessidade, é mister destacar que

“O estudo de impacto deve apresentar o diagnóstico da área de influência do projeto, a fim de descrever a situação ambiental da área antes da implantação do empreendimento, levando em consideração: (a) aspectos ecológicos – meio físico (solo, subsolo, água, ar, clima etc); meio biológico e ecossistemas naturais (flora, fauna, áreas de clima etc.); e (b) aspectos socioeconômicos – uso e ocupação do solo; relação de dependência entre a sociedade local e os recursos ambientais; atividades econômicas na área (agrícolas, industriais e de serviços).” (MIRRA, 2006, p. 42)

A respeito da qualidade da água, especialmente relevante nos empreendimentos hidrelétricos, a Resolução nº 20, de 18 de junho de 1986, do Conama dispõe acerca dos parâmetros aceitáveis.

A Lei nº 9.074/1995, por sua vez, estipula a sujeição da exploração de obras federais de barragens ao regime de concessão:

“Art. 1o Sujeitam-se ao regime de concessão ou, quando couber, de permissão, nos termos da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, os seguintes serviços e obras públicas de competência da União:
(...)

V – exploração de obras ou serviços federais de barragens, contenções, eclusas ou outros dispositivos de transposição hidroviária de níveis, diques, irrigações, precedidas ou não da execução de obras públicas;       (Redação dada pela Lei nº 13.081, de 2015)

Feita esta introdução, discutem-se a seguir alguns assuntos de questionamento frequente em licenciamentos ambientais de usinas hidrelétricas.

2 Pontos passíveis de discussão judicial em licenciamentos ambientais de empreendimentos hidrelétricos

Constituem causa de pedir de muitas demandas judiciais a imposição de observância (ou o reconhecimento de insuficiência) de itens previstos nos procedimentos de licenciamento ambiental, mesmo porque não há dificuldade em vislumbrar a enorme gama de danos potenciais causados pela construção de um empreendimento hidrelétrico.

Inicialmente, faz-se necessário esclarecer que o aproveitamento hidrelétrico pode ocorrer por meio do próprio ‘fio d’água’, dependendo o potencial hidráulico apenas da vazão natural da água e da altura natural de queda, conforme define o item 5 da Portaria nº 673, de 17 de outubro de 1994, do então Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica – Dnaee:

“Entendem-se como projetos de exploração de recursos hídricos sem barramento aqueles cujo aproveitamento das águas é feito sem a colocação de qualquer obstáculo que interfira no fluxo natural do curso d’água.”

Se assim não for, o aproveitamento hidrelétrico se dará por meio da construção de um barramento que cria um obstáculo ao curso natural do rio. E, de acordo com o item 6 da Portaria nº 673, de 17 de outubro de 1994, do então Dnaee:

“Entende-se como projetos com barramento aqueles que trazem modificações no regime natural do curso d’água, através de qualquer tipo de barragem que interfira no fluxo natural das águas.”

Dessa sorte de empreendimentos de que se trata no presente trabalho, sendo estes os que geram a maior quantidade de impactos ambientais.
Segundo Célio Bermann,

“(...) Esta barragem, dependendo de suas dimensões, ‘cria’ um lago artificial decorrente do represamento das águas, lago este cujo nível determinado pelo volume de água represado vai provocar a inundação em caráter definitivo de territórios anteriormente ocupados.
Essa ocupação anterior – seja por elementos naturais (cobertura vegetal nativa e ‘habitats’ de uma variedade via de regra extremamente diversificada de espécies animais); seja pelo elemento antrópico, isto é, pela presença social do homem que se apropriou do sítio territorial para habitar, para cultivar, para se locomover ou para seu lazer, o que também determina uma forma de apropriação cultural deste território – acaba sendo substantivamente alterada, ou mesmo virtualmente extinta, por meio da implantação de novo sítio energético que a usina hidrelétrica vai conformar, des/reestruturando o território anterior.” (apud AZEVEDO, 2006, p. 276-277)

Mostra-se importante colacionar alguns conceitos normativos, ainda, pois relevantes e recorrentes na análise da matéria:

“RESOLUÇÃO Nº 357, DE 17 DE MARÇO DE 2005, do Conselho Nacional do Meio Ambiente:
Art. 2º (...)
IV – ambiente lêntico: ambiente que se refere a água parada, com movimento lento ou estagnado;
V – ambiente lótico: ambiente relativo a águas continentais moventes;
XXV – monitoramento: medição ou verificação de parâmetros de qualidade e quantidade de água, que pode ser contínua ou ser periódica, utilizada para acompanhamento da condição e do controle da qualidade do corpo de água;
XXXV – tributário (ou curso de água afluente): corpo de água que flui para um rio maior ou para um lago ou reservatório;
XXXVI – vazão de referência: vazão do corpo hídrico utilizada como base para o processo de gestão, tendo em vista o uso múltiplo das águas e a necessária articulção das instâncias do Sistema Nacional de Meio Ambiente – Sisnama e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – Singrh;”

2.1 Mecanismos de transposição da ictiofauna: canais laterais

Primeiramente, é preciso conceituar ictiofauna, que consiste em fauna de peixes de uma determinada região ou a totalidade das espécies de peixes de uma dada região. Pode-se falar também de um determinado meio (lago, rio, etc.) (ORTIZ e PAIM, 2006, p. 78).

Existem basicamente quatro mecanismos de transposição da ictiofauna: eclusas, elevadores, escadas (pela lateral e por baixo) e canal de transposição.

Entre os mecanismos de transposição, os canais de transposição seminaturais ou laterais podem ser considerados os ambientalmente mais amigáveis, tanto por sua menor seletividade, como pelo menor estresse que impõem na passagem de peixes. Entretanto, como qualquer outro mecanismo, os canais seminaturais somente se constituem em recursos válidos se os migradores transpostos puderem dispor de locais adequados para completar seu ciclo de vida a montante, ou seja, de onde vêm as águas do rio, rio acima (ORTIZ e PAIM, 2006, p. 78).

Mister se destaque a necessidade de constante e ininterrupto acompanhamento dos impactos ambientais gerados por empreendimentos dessa natureza, de modo que é de se notar que muito embora no “atual estado da técnica” – ou seja, nos moldes nos quais atualmente tais canais se constroem – possa não se vislumbrar como eficaz a construção de canal lateral em determinada usina hidrelétrica,(1) não se pode ignorar a possibilidade de que, com o passar do tempo, se incrementem as possibilidades de mitigação dos impactos ambientais e se vislumbre, no futuro, a viabilidade dessa modalidade de transposição (ou de outra, evidentemente). Isso ocorreu na Usina Itaipu Binacional, por exemplo, somente no ano de 2002, cerca de vinte anos após a sua entrada em operação (<https://www.itaipu.gov.br/meioambiente/canal-da-piracema>).

No concernente ao tema em discussão, demais disso, inegável a necessidade de se ponderar as nuances do princípio da precaução, para cuja compreensão requer-se análise transdisciplinar, uma vez que, segundo refere Bessa Antunes

“Diversas áreas do conhecimento humano estão diretamente envolvidas nas questões ambientais e, por consequência, na legislação ambiental. Em muitos casos, as situações que se apresentam são aquelas que estão na fronteira da investigação científica e, em vista disso, nem sempre a ciência pode oferecer ao Direito uma certeza quanto a determinadas medidas que devam ser tomadas para evitar esta ou aquela consequência danosa ao meio ambiente. Aquilo que hoje é visto como inócuo, amanhã poderá ser considerado extremamente perigoso e vice-versa. A dificuldade, óbvia, que é posta diante de todos é a de saber quais os limites entre o avanço do conhecimento e a irresponsabilidade pura e simples. Para tal, não existe outro recurso senão aquele que se materializa na experimentação e na pesquisa continuada, executada dentro dos protocolos reconhecidos internacionalmente como seguros e sérios.” (ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 32)

Nessa toada, outra observação que se reputa pertinente consiste naquilo que se pode denominar de dano reverso, ou seja, dano causado por mecanismo que originalmente é criado para observar o princípio da precaução, mas que, na realidade, finda por causar outra sorte de danos, embora se estivesse buscando evitá-los ("dano causado por mecanismo criado para prevenir dano"). A questão é por demais delicada, uma vez que, a pretexto de evitar danos ambientais, finda-se por causá-los.

De fato, é preciso enfrentar o tema sob a ótica da análise do prejuízo potencial. Afinal, o princípio da precaução não pode ser utilizado de modo a servir de supedâneo a condutas inconsequentes, que, sob o encalço de mitigar dano, acabe por potencializá-lo. É preciso ampliar o ângulo de visão e encarar a precaução de modo a se contemplar a possibilidade seja de construção, seja de não construção, de mecanismo de mitigação.

É possível, pois, que o próprio mecanismo mitigador cause impacto negativo, a tal ponto que acabe se sobrepondo aos propalados benefícios. Afinal, toda obra causa impacto. E o canal lateral representa nova obra – no mais das vezes, de quilômetros de extensão, diga-se.

Portanto, deve-se aplicar o princípio da precaução também para o efeito de não determinar a construção de mecanismo de transposição quando não existam indicativos técnicos de que ele trará benefícios ao meio ambiente, especialmente à ictiofauna. Anote-se que nesses casos, normalmente, a justificativa à não implantação se justifica pelo fato de o próprio mecanismo criar uma armadilha ecológica.

De outro lado, em caso de implantação, tais medidas precisam ser observadas e constantamente fiscalizadas, seja pela autarquia ambiental, seja pelo Ministério Público, seja por toda a sociedade civil, tendo em vista que, de acordo com o art. 225, caput, da Constituição Federal, "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

Mostra-se fundamental assentar, portanto, que, além do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a Carta Maior impõe o dever de que, também todos, o defendam e preservem. Há, portanto, um dever geral de cooperação.

Nesse sentido,

“Enquanto uns detêm o dever de preservar, outros detêm poder de fiscalizar essa obrigação, ou ainda, para que se possa ter o poder de usufruir de um meio ambiente saudável e equilibrado, tem-se o dever de ser sujeito ativo em sua preservação. Assim, no que concerne à proteção ambiental, a coletividade e o Estado possuem o poder e, sobretudo, o dever de preservar e, nele, o de proteger o meio ambiente.”(MEDEIROS, 2004, p. 102)

Por fim, apenas a título ilustrativo, a respeito de outro mecanismo de transposição, a escada de peixes, trata-se de mecanismo trazido à prática no Brasil com embasamento em estudos levados a efeito em países do hemisfério norte, realizados com peixes salmonídeos, os quais têm por característica o ciclo reprodutivo unilateral (somente ascendente), ou seja, sobem o curso do rio, se reproduzem e morrem.

Diferentemente se comportam as espécies de peixes grandes migradores habitantes de muitos rios brasileiros, tal como os componentes da Bacia do Rio Uruguai, no sul do Brasil, cujo peixe migrador de longa distância mais emblemático é o salminus brasiliensis (“dourado”), que efetua ciclo reprodutivo ascendente e descendente. Portanto, salta aos olhos a inaptidão de estudos realizados em bacias hidrográficas de países do hemisfério norte, dada a grande diferença de ciclo de vida e de reprodução existente entre o salmão e o dourado, por exemplo.

De fato, a “importação” pura e simples de mecanismos utilizados em outros países, conforme sói ocorrer no Brasil em relação a diversas áreas do conhecimento, pode ocasionar prejuízos ambientais. Exemplificativamente, na década de 1940, chegou a ser editada lei pelo Estado de São Paulo exigindo que todos os empreendimentos hidrelétricos daquela unidade da Federação construíssem escadas de peixes. Atualmente, contudo, tal mecanismo encerra polêmicas, consoante se extrai do seguinte julgado:

“PROCESSUAL CIVIL. AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. CONSTRUÇÃO DE ESCADA PARA TRANSPOSIÇÃO DE PEIXES, EM USINA HIDRELÉTRICA, A FIM DE ASSEGURAR A OCORRÊNCIA DA PIRACEMA. CARÁTER DE IRREVERSIBILIDADE DA MEDIDA PRETENDIDA. IMPOSSIBILIDADE DE RETORNO AO STATUS QUO ANTE. § 2º DO ART. 273 DO CPC. AUSÊNCIA DE PROVA INEQUÍVOCA DO DIREITO ALEGADO. CPC. ART. 273, CAPUT. PARECER FORMULADO PELO IBAMA/MG. POLÊMICAS EXISTENTES EM TORNO DA CRIAÇÃO DESSE TIPO DE MECANISMO EM BARRAGENS DE GRANDE PORTE. 1. O provimento antecipatório vindicado, consistente na determinação à Companhia Energética de Minas Gerais – Cemig que proceda à construção de escada para transposição de peixes na Usina Hidrelétrica de Emborcação, no Estado de Minas Gerais, visando a assegurar a ocorrência do fenômeno da piracema, possui caráter de irreversibilidade, na medida em que não poderá ser desfeita na hipótese do julgamento improcedente do pedido formulado na ação civil pública, restando inviabilizada a possibilidade de retorno ao status quo ante. Incidência, na espécie, do óbice previsto no § 2º do artigo 273 do CPC. 2. Ausente a prova inequívoca da verossimilhança do direito alegado (CPC, art. 273, caput), pois inexiste nos autos comprovação da eficiência da ‘escada para peixes’, a fim de garantir a realização da piracema, pois o parecer formulado pela Área de Pesca e Aquicultura do Ibama/MG, a pedido do Ministério Público Federal, aponta que a construção desse tipo de mecanismo encerra polêmicas, notadamente em se tratando de barragens de grande porte. 3. Agravo de instrumento improvido.”
(AG 00203686020034010000, Desembargadora Federal Selene Maria de Almeida, TRF1 – Quinta Turma, DJ Data: 25.10.2004, p. 58.)

Tecidas algumas impressões em relação aos mecanismos de transposição da ictiofauna, passa-se a traçar alguns comentários em relação à vazão a jusante do curso d’água objeto de barramento para fins de construção de usina hidrelétrica.

2.2 O volume da vazão remanescente de água a jusante do barramento até a casa de força – trecho de vazão reduzida

A fim de trazer alguns elementos de ordem prática, interessante pontuar, acerca do barramento, que
“(...) a estrutura é construída em geral na forma de um paredão, um muro, que tem a função de represar a água, fazendo subir permanentemente o nível d’água do rio naquele ponto. Se for uma barragem de uma usina hidrelétrica, e já existir uma queda natural, a barragem tem a função de criar na parte alta pontos de tomada d’água para alimentar, na parte baixa, as máquinas; se não existir a queda ou se for considerada pequena, a barragem tem também a função de criar uma queda artificial.” (ORTIZ e PAIM, 2006, p. 77)

Em relação à formação de reservatórios/barragens, um dos pontos de discussão de maior relevância do ponto de vista ambiental é a garantia de que a vazão – quantidade de água que passa em uma secção transversal ao leito por unidade de tempo (ORTIZ e PAIM, 2006, p. 78) – mínima a jusante – rio abaixo daquele ponto, a favor da correnteza (ORTIZ e PAIM, 2006, p. 78) – do barramento não poderá ser inferior a 80% da vazão mínima média mensal, caracterizada com base na série histórica de vazões naturais há pelo menos dez anos.

Trata-se de norma (Norma 2, alínea 31, § 4º) do então Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (Dnaee), hoje incorporado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), esta criada pela Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério das Minas e Energia, com a finalidade de regular e fiscalizar a produção, a transmissão e a comercialização de energia elétrica no país.

Resta candente a polêmica que este item gera nos licenciamentos ambientais, já que a vazão remanescente no trecho de vazão reduzida tem relação direta com a geração de energia elétrica e, consequentemente, com a viabilidade econômica do empreendimento. Ora, quanto mais água passar pelas turbinas, mais energia elétrica é produzida.

Portanto, em se aumentando a vazão de água que passa pelo vertedouro de uma usina hidrelétrica, como esta tem relação direta com a produção de energia, certamente novas fontes precisariam ser criadas para suprir a demanda existente no país – e são praticamente diárias as notícias sobre o alto consumo e o limite de capacidade de produção de energia no Brasil –, sendo frequentes os registros de "apagões" ou desligamentos de energia em face do alto consumo, a exemplo do ocorrido recentemente, tendo atingido diversos Estados da Federação.(2) Eventuais novas fontes – construção de novas hidrelétricas, termelétricas, entre outros -, de outro lado, certamente causariam novos impactos ambientais.

Saliente-se que, em demandas ambientais, analisam-se conjuntamente características geomorfológicas, hidrológicas, hidráulicas e biológicas do rio para a fixação da vazão remanescente.

Não obstante isso, revela-se intuitivo que não se faz possível a manutenção dos usos múltiplos da água de modo idêntico aos mantidos anteriormente à implantação de uma usina hidrelétrica. O que se faz imprescindível analisar, de outro giro, é se há manutenção dos usos múltiplos da água em condições aceitáveis, embora não em condições idênticas às anteriores à implantação do empreendimento. Com efeito, o que deve ocorrer é a demonstração de que o empreendimento observou os parâmetros impostos pelas normas ambientais, notadamente a Resolução nº 357, de 17 de março de 2005, do Conama.

Note-se que a vazão de vertimento de água estabelecida no licenciamento ambiental de uma Usina Hidrelétrica tem o condão de buscar o equilíbrio entre as demandas de produção de energia elétrica, as exigências do ecossistema na manutenção da sua biodiversidade, além das necessidades de consumo da população da bacia hidrográfica. Diante disso, salta aos olhos a delicadeza do tema, a merecer um trabalho muito detalhado e cuidadoso dos órgãos ambientais.

2.3 Retirada da vegetação na área objeto de inundação para a formação do reservatório

A Lei nº 3.824/1960 torna obrigatória a destoca e consequente limpeza das bacias hidráulicas dos açudes, das represas ou dos lagos artificiais nos seguintes termos:

“Art 1º – É obrigatória a destoca e consequente limpeza das bacias hidráulicas, dos açudes, das represas ou dos lagos artificiais, construídos pela União, pelos Estados, pelos Municípios ou por empresas particulares que gozem de concessões ou de quaisquer favores concedidos pelo Poder Público.
Parágrafo Único – Os proprietários rurais estarão igualmente obrigados a proceder a estas operações quando os seus açudes, represas ou lagos forem construídos com auxílio financeiro ou em regime de cooperação com o Poder Público.
Art 2º – Serão reservadas áreas com a vegetação que, a critério dos técnicos, for considerada necessária à proteção da ictiofauna e das reservas indispensáveis à garantia da piscicultura.”

Acerca da limpeza da bacia de acumulação, o Plano Diretor de Meio Ambiente do Setor Elétrico 1991/1993, do Ministério da Infraestrutura, refere que:
“(...) Entretanto, a lei considera que o desmatamento pode não ocorrer, a critério dos técnicos, em áreas cuja vegetação for considerada necessária à proteção da ictiofauna e cujas reservas vegetais sejam indispensáveis à garantia da piscicultura. Evidencia-se a precariedade com que a lei trata a questão, tanto pela argumentação técnica que ela aponta para a permanência da vegetação, quanto pelo critério indefinido e abrangente a ser adotado para a tomada de decisão.” (<http://www.eletrobras.com/elb/services/
DocumentManagement/FileDownload.
EZTSvc.asp?DocumentID=%7B7573A055-A8EB-41A5-A5B7-782746357BBD%
7D&ServiceInstUID=%7B00CD137D-4238-4B20-BE7A-4BD452B2665E%7D
>)

Embora a legislação não tenha mencionado expressamente, a obrigação de retirada da vegetação decorre do fato de que a existência de matéria orgânica em reservatórios, com sua eventual decomposição, provoca alteração das condições físico-químicas das águas represadas, com redução dos níveis de oxigênio dissolvido e elevação das quantidades de fósforo e nitrogênio, por exemplo, o que se revela prejudicial às formas de vida animal e humana. A manutenção de troncos de água submersos – os chamados “paliteiros” – também poderá trazer prejuízos à navegação realizada sobre a área do reservatório.

De outro vértice, há a necessidade de serem mantidas áreas de refúgio para a ictiofauna, uma vez que a remoção total da vegetação arbórea e arbustiva da área alagada também causa impactos sobre a ictiofauna do reservatório, de modo que a ausência de vegetação pode causar desabrigo, aumento da predação e escassez de alimentos.

Diante disso, fundamental se coloque em prática um eficiente plano de monitoramento de qualidade da água, a fim de que esta se mantenha no mesmo nível ou em nível superior comparativamente ao momento anterior ao enchimento do reservatório.(3)

De qualquer modo, não se revela demasiado salientar que todo ato administrativo ambiental está sujeito à possibilidade de revisão se, posteriormente à sua prática, houver interesse público que a justifique. Isso se deve ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. É esse o mote do art. 19 da Resolução n° 237/1997, que, em total harmonia com a Lei Maior, prevê:

“Art. 19 – O órgão ambiental competente, mediante decisão motivada, poderá modificar os condicionantes e as medidas de controle eadequação,suspender ou cancelar uma licença expedida, quando ocorrer:
I – Violação ou inadequação de quaisquer condicionantes ou normas legais.
II – Omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a expedição da licença.
III – superveniência de graves riscos ambientais e de saúde.”

Capelli, Marchesan e Steigleder exemplificam:

“Seria a hipótese de um determinado empreendimento ter sido licenciado conforme a melhor tecnologia disponível e, posteriormente, se descobre que os padrões de emissão adotados, em abstrato, no licenciamento, são insuficientes para conter a degradação ambiental. É evidente que o Poder Público deve intervir para corrigir essas distorções.” (CAPELLI, Silvia; MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Anelise Monteiro. Direito Ambiental. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008. p. 72)

Conclusão

Com a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO92), cunhou-se uma expressão que logo se disseminou e, no momento, possui grande alcance – “Gestão Ambiental” –, e, “no esteio do processo de Gestão Ambiental, surgiu e firmou-se o “Planejamento Ambiental”, ferramenta indispensável ao desenvolvimento das atividades de gestão do meio ambiente e, por conseguinte, de formulação e implementação de políticas ambientais” (MILARÉ, 2014, p. 663).

Consoante destacado ao longo desta exposição, constata-se a grande relevância dos procedimentos de licenciamento ambiental de empreendimentos hidrelétricos e a imperatividade de que sejam realizados com muita seriedade, rigor e planejamento ambiental.

A Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) não inclui explicitamente dentre suas ferramentas o planejamento ambiental, no entanto, este pode ser considerado um instrumento imprescindível de gestão pública do ambiente (MILARÉ, 2014, p. 666), pois não se pode olvidar que as políticas ambientais requerem mecanismos eficientes de gestão.

Um dos mecanismos mais disseminados é a Avaliação de Impacto Ambiental (AIA), na qual se inserem, por exemplo, o EIA e o Rima. Uma das modalidades de AIA de grande relevância é a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), também não prevista explicitamente em lei, porém, de evidente interesse à eficiente condução das políticas ambientais.

A AAE
“destina-se especialmente à elaboração de políticas públicas e governamentais, por ocasião dos estudos prévios para a formulação de tais políticas. Seu objetivo é levantar e indicar problemas ambientais nos projetos de infraestrutura econômica (transporte, energia e outros) e de infraestrutura social (educação, saúde e outros), com o intuito de eliminá-los ou minimizá-los já no nascedouro. Por isso, a AAE evitará dissabores ambientais e prevenirá a tomada de decisões equivocadas que, além de graves inconvenientes técnicos, poderiam resultar em malversação do erário público.” (MILARÉ, 2014, p. 668)

Nessa linha de raciocínio de avaliação estratégica é que se faz o alerta para a premente necessidade de que os procedimentos de licenciamento ambiental sejam concretizados levando-se em consideração os EIA/Rima e as licenças de todas as hidrelétricas existentes na bacia hidrográfica correspondente. Exemplo claro disso emerge da análise realizada quanto aos meios/modos de vida da ictiofauna, sendo possível concluir que há espécies de peixes migradores que dependem de muitos quilômetros para que consigam completar o seu ciclo reprodutivo, extrapolando-se os limites territoriais de um específico empreendimento.

Uma das possibilidades a serem aventadas é a viabilização de um consórcio de todas as usinas hidrelétricas próximas, já construídas ou em fase de planejamento ou construção (no caso da Bacia Hidrográfica do Rio Uruguai, por exemplo, Foz do Chapecó, Itá, Machadinho, Itapiranga, Monjolinho, entre outras) para, aí sim, se verificar a possibilidade de um sistema de transposição da ictiofauna eficiente e muito mais abrangente.

Daí que se invoca, ainda, a imprescindibilidade de análise de todo e qualquer tema de direito ambiental levando-se em consideração conhecimento multi e transdisciplinar. Com efeito, sem uma mínima compreensão global dos hábitos, especialmente alimentares e reprodutivos, das espécies componentes dos ecossistemas objeto de discussão, não se mostra possível apresentar uma resposta satisfatória, seja administrativa ou seja judicial, à mitigação e/ou compensação dos impactos ambientais.

Nessa mesma linha, de relevo salientar que a Lei nº 9.433/97 – um dos instrumentos normativos mais relevantes ao direito ambiental pátrio – estabeleceu como um dos fundamentos da Política Nacional dos Recursos Hídricos a bacia hidrográfica, ou seja, a bacia hidrográfica deve ser a referência para a aplicação dos seus dispositivos. Veja-se:

“Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos: (...) V – a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; (...)”

De fato,

“Já faz muito tempo que os estudiosos de diversas áreas do saber, da Hidrologia à Geografia e da Geologia ao Direito Internacional Público, preconizavam o recurso à noção de bacia hidrográfica, como unidade de referência absoluta, em relação às águas, a seu tratamento, à sua gestão e ao seu aproveitamento. A unidade ecológica da bacia hidrográfica, também chamada de bacia de drenagem, impõe-se a todos quantos devam lidar com a organização do espaço, às vezes chamada de aménagement do territoire (organização do território), em homenagem às pioneiras experiências francesas.” (CAUBET, 2005, p. 149)

Caso as bacias sejam de extensão tão grande que prejudique a gestão, CAUBET sugere a subdivisão em unidades menores, consideradas a partir de desmembramentos dos diversos afluentes de um rio principal, melhorando as perspectivas de uma gestão mais democrática.

MILARÉ também alerta para a administração do recurso água por bacias hidrográficas como forma de remover as causas – e não somente os efeitos – das distorções quantitativas e qualitativas no uso dos recursos hídricos (MILARÉ, 2014, p. 528).

Nesse norte, propõe-se apenas a correta aplicação da Lei nº 9.433/1997, mediante a realização de todos os EIA/Rima e correspondentes licenciamentos ambientais relativos a empreendimentos hidrelétricos levando-se em consideração toda a bacia hidrográfica. A Bacia Hidrográfica do Rio do Uruguai constitui exemplo de que tal providência seria deveras salutar.

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Notas

1. É o que se concluiu em caso concreto, ao se proferir sentença no processo nº 5000930-57.2010.4.04.7202, em trâmite na 1ª Vara Federal de Chapecó/SC, em fase recursal (autor: Ministério Público Federal; réus: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis - Ibama e Foz do Chapecó Energia S.A.).

2. Marcadamente no dia 20.01.2015, a exemplo de notícias como esta: <http://www.valor.com.br/brasil/3869346/
minutos-antes-de-apagao-ons-registrou-recordes-de-carga-em-sistemas
>.

3. Concluiu-se, em caso concreto, ao se proferir sentença no processo nº 5000930-57.2010.4.04.7202, em trâmite na 1ª Vara Federal de Chapecó/SC, em fase recursal (autor: Ministério Público Federal; réus: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis – Ibama e Foz do Chapecó Energia S.A.), no sentido da suficiência da supressão de 40% da vegetação de grande porte e de 60% da vegetação de pequeno porte da área a ser inundada.



Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
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REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS