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publicado em 23.10.2015
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A conferência teve como tema central “O Direito Administrativo nos Estados Unidos” e proporcionou interessante abordagem comparativa da disciplina, relacionando-a com o modelo brasileiro. Sabe-se que o exame de institutos do direito comparado deve ser feito com especial atenção, evitando-se a importação pura e simples de conceitos e soluções que não necessariamente se coadunam com o ordenamento jurídico pátrio, por razões de ordem cultural, social e econômica. Ainda assim, é salutar o exercício acadêmico, pois proporciona a oxigenação dos conceitos e a consequente abertura crítica, tendo em vista as experiências de outras culturas jurídicas. De um modo geral, a significação e a consequência dos institutos jurídicos dependerá do contexto em que forem empregados, com influência das particularidades de cada ordenamento jurídico. Da incursão realizada pelo palestrante, foi possível a compreensão inicial de que a própria expressão “Direito Administrativo” possui acepção diferente nos países legatários da cultura jurídica da common law em relação aos países de tradição romano-germânica (civil law). Nesse sentido, pode-se dizer que, no direito norte-americano, o termo “Direito Administrativo” é mais comumente relacionado à ideia de contencioso administrativo, notadamente sob o aspecto das regulamentações e dos processos administrativos. Também é razoável afirmar que a cultura norte-americana identifica no Direito Administrativo o estudo das normas que dispõem sobre a estrutura e o funcionamento das agências governamentais (executive agencies ou administrative agencies) e sobre os agentes públicos (officials). Por outro lado, no Brasil, a expressão remete às questões da administração pública em geral, com grande abertura temática. É corrente em doutrina a afirmação de que as culturas jurídicas da common law e da civil law possuem como marcante traço distintivo o fato de que o Direito romano-germânico reconhece uma nítida separação entre o Direito Público e o Direito Privado, admitindo-se que o poder público seja destinatário de um conjunto de regras jurídicas próprias, distintas daquelas aplicadas aos cidadãos no contexto de suas relações privadas. Já no modelo jurídico anglo-saxão, essa diferença resta mitigada, aplicando-se, em princípio, aos órgãos e agentes públicos o mesmo ordenamento jurídico que norteia as relações particulares, embora não se esteja a tratar de uma concepção rígida, pois haverá espaços para o tratamento diferenciado do poder público. De um modo geral, aos olhos de um jurista com formação romano-germânica, o Direito Público norte-americano parece apresentar uma perspectiva reducionista. Por outro lado, é possível identificar no Direito norte-americano uma clara distinção entre o Direito Constitucional e o Direito Administrativo, cabendo ao primeiro um papel apenas estruturante do modelo jurisdicional, com o estabelecimento dos limites de atuação entre os poderes constituídos. Exemplo disso é a própria redação do artigo III da Constituição norte-americana, que resume em poucas linhas, ao longo de três seções, a feição do Poder Judiciário. Já o Direito Administrativo sequer chega a ser tratado de modo expresso pela Constituição norte-americana, que não faz qualquer referência à “Administração Pública”, diferentemente do que ocorre no Brasil, onde tal noção encontra-se disseminada por todo o texto constitucional, além de ser objeto de tratamento específico em capítulo próprio dentro da temática da organização do Estado. A principal diretriz constitucional norte-americana em Direito Administrativo consiste no estabelecimento do devido processo legal e da igualdade perante a lei, noções que se aplicam a todos os procedimentos governamentais. Assim, o Direito Administrativo norte-americano encontra-se quase integralmente firmado no plano da legislação ordinária e regulamentar, ocupando-se do detalhamento da estrutura administrativa estatal, com especial atenção às executive agencies, expressão que é utilizada para representar tanto os cabinet departments (equivalentes aos ministérios brasileiros) quanto as agências administrativas independentes (independent regulatory agencies), a depender do contexto. Acerca das independent regulatory agencies, impõe-se não confundi-las com as agências executivas brasileiras, que consistem em autarquias ou fundações que celebram contratos de gestão para executar funções específicas, conforme disposto no artigo 37, § 8º, da Constituição Federal de 1988. Mais razoável seria uma aproximação com as agências reguladoras, nome que o Direito brasileiro confere a determinadas autarquias que atuam no fomento e na regulação de determinados setores estratégicos da estrutura social e econômica. Outra diferença marcante entre o Direito brasileiro e o norte-americano destacada pelo conferencista consiste no fato de que a Constituição dos Estados Unidos confere autoridade ao Congresso para criar as leis que entender adequadas para o cumprimento das funções administrativas (artigo I, seção 8), podendo este optar por delegar para agências administrativas, dentro de certos limites, parcela significativa dessa atribuição, mediante o estabelecimento de regras e recomendações para que as próprias agências moldem os seus estatutos. E o Congresso, no exercício dessa delegação, adota postura historicamente concessiva, notadamente se analisado pela ótica de um observador de formação romano-germânica. Dessa forma, segundo o modelo norte-americano, as agências públicas têm poderes para estabelecer e impor regras, bem como para resolver disputas. Estão presentes nas agências as funções de regulamentação, imposição e decisão, em uma espécie de concentração das três funções essenciais do Estado. Coexistem, portanto, as funções legislativas (rule-making) e decisórias ou adjudicatórias (adjudication), que se unem em complemento àquela que seria a função típica do Poder Executivo e de seus órgãos ou entidades: a função administrativo-executiva. Aliás, diversamente do que se poderia imaginar, a experiência jurídica parece sinalizar que a característica central da administração pública norte-americana consiste no seu processo legislativo administrativo, noção que, no Brasil, estaria mais próxima do poder normativo ou do poder regulamentar, considerado um processo normativo secundário, concebido sob limites rígidos, a exemplo do que se observa no artigo 84, VI, da Constituição Federal de 1988. No Direito norte-americano, existe ampla discricionariedade na elaboração das normas pelas agências administrativas. Por outro lado, desde a edição, em 1946, do Administrative Procedure Act – APA (lei de procedimentos administrativos que, de modo distante, remete à essência da Lei 9.784/99 brasileira), existe no Direito norte-americano um standard legislativo em matéria de Direito Administrativo, um amplo estatuto, aplicado virtualmente a todas as agências, modelo esse que orienta não apenas a execução de procedimentos administrativos, mas também o próprio exercício da delegação legislativa outorgada pelo Congresso. Portanto, havendo um procedimento delineado na lei geral (APA), a atividade administrativa de normatização acaba por ser estimulada, como também são estimulados os mecanismos de democratização e legitimação da norma administrativa, mediante a abertura de espaços no processo legislativo para a manifestação de organismos e entidades que detenham expertise no assunto regulamentado. Sobre o específico tema da legitimação da atividade regulatória norte-americana, verifica-se no Administrative Procedure Act que as agências devem observar um modelo de notificação pública antecedente à proposta de regulamentação, permitindo a qualquer interessado a participação no processo normativo, mediante fornecimento de dados, apresentação de relatórios e mesmo sustentações orais, em clara busca da multiplicação de opiniões. Segundo o palestrante, não se pode confundir tais mecanismos com audiências formais, sendo mais razoável compará-los com o sistema de consultas públicas existente no Brasil.(1) A agência deverá responder às críticas apresentadas, mas terá autoridade para tomar a decisão final sobre a edição do ato. Na expressão do conferencista, “busca-se a democratização governamental”. Trata-se de modelo elogiado, pois permite um maior grau de especialização do processo normativo, em contraposição aos textos normativos generalistas e produzidos sem o necessário conhecimento do assunto, que acabam gerando dificuldades de execução e consequente necessidade de nova regulamentação. Na doutrina de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy,(2) “a agência governamental deteria o know-how que o legislador geral não tem, por suposta falta de especialização e de conhecimento do problema”. Como já observado, as agências norte-americanas possuem autoridade para criar regulamentos, em um minucioso processo infralegal (determinações, recomendações e diretrizes próprias ao rule-making). E tais regulamentos terão efeitos vinculantes sobre toda a sociedade e todos os cidadãos, recebendo das cortes judiciais considerável deferência quanto à interpretação realizada pelas agências. Quanto aos processos administrativos, o Administrative Procedure Act estabelece como regra o modelo adversarial, havendo uma instância em que um juiz administrativo (administrative law judge) conduz a questão, promovendo o contraditório e observando os princípios da publicidade, da livre defesa, da decisão baseada nas evidências dos autos e da tomada de decisão por escrito. Pode também ocorrer a designação de audiência com esse juiz, mas não há obrigatoriedade de sua realização, e as partes podem renunciar ao direito de serem ouvidas. Os juízes administrativos administram os julgamentos, ouvem testemunhas e emitem decisões recomendando aos chefes das agências determinadas posturas, mas não fazem parte do Poder Judiciário, pois estão ligados ao Poder Executivo. Nada obstante, segundo ensina o eminente conferencista, os administrative law judges possuem independência em relação às agências que julgam, sendo vedado qualquer tipo de interferências no seu julgamento. O recrutamento desses julgadores ocorre mediante avaliação de um cadastro de elegíveis, algo que se assemelha a um concurso. Selecionados, tais agentes possuem salário condizente com a função judicante, recebem proteção à sua independência e somente podem ser demitidos por motivo justo, após o devido processo administrativo, assegurado o contraditório. A decisão dos administrative law judges encontra-se sujeita à revisão pela própria agência, que poderá receber novas provas, analisá-las e acabar reafirmando, rejeitando ou revertendo a conclusão apontada. Mas o colegiado da agência, para distanciar-se da recomendação do juiz, deverá expor o seu convencimento por escrito, apresentando as razões e o direito aplicável ao caso, decisão essa que prevalecerá com as sanções que entender cabíveis. A decisão da agência, incluindo suas interpretações acerca de leis e diretrizes aplicadas, converte-se em precedente a ser observado, tornando-se fundamental para a boa atuação em determinada área o conhecimento específico das decisões anteriores da respectiva agência administrativa. Como já referido, as agências norte-americanas têm poder para criar regulamentos, além de possuírem autoridade decisória. Em ambos os casos, a influência da cultura jurídica anglo-saxã mostra-se determinante: de um lado, os regulamentos administrativos operam efeitos vinculantes sobre toda a sociedade, recebendo das cortes judiciais considerável deferência quanto à interpretação realizada pelas agências; de outro, as decisões adotadas pelas agências diante da resolução de casos concretos estabelecem precedentes administrativos, que tendem a ser observados nos julgamentos futuros sobre a mesma matéria. Tais referências remetem à necessidade de uma breve análise do mecanismo de controle judicial dos atos (executivos e legislativos) das agências administrativas. No que diz respeito à atuação das agências administrativas, segundo precedente firmado pela Suprema Corte, a possibilidade de revisão judicial é a regra, e a impossibilidade é a exceção, que deve ser demonstrada. Segundo o conferencista, a maior parte das leis prevê especificamente a impossibilidade de revisão judicial, o que não significa o impedimento de acesso ao Poder Judiciário, mas apenas a sinalização de que deve haver o esgotamento prévio de todas as instâncias administrativas antes do recurso à Justiça. Exemplificativamente, a decisão do administrative law judge não pode ser levada ao Judiciário antes do apelo à última instância da agência administrativa. O mecanismo da judicial review tem característica eminentemente recursal, e a corte judicial não poderá receber provas que não tenham sido apresentadas na esfera administrativa, devendo considerar apenas aquelas que instruíram o processo na origem. Caso seja necessária nova prova, o processo será remetido de volta à agência, para que produza as provas e, então, renove a decisão. O tema da independência das agências administrativas já passou por diversas fases ao longo da história, tendo início ainda no século XIX, quando se pregava a noção de agências reguladoras independentes. Exemplo desse momento histórico é a criação da ICC – Interstate Commerce Comission (1887), com função de regular o setor ferroviário, e da FTC – Federal Trade Comission (1914), para atuar na regulação das práticas concorrenciais. Em um segundo momento, marcado pela grande depressão (década de 1930), houve o fortalecimento do poder estatal de intervenção na economia, seguido de um apelo de redução na autoridade de julgamento independente das agências, em prol do maior controle judicial e da centralização das políticas econômicas de Estado. Em razão da edição do Administrative Procedure Act, o ano de 1946 também determinou uma nova fase das agências administrativas, com expresso reconhecimento da possibilidade do estabelecimento de normas (rule-making) e da realização de julgamentos (adjudication), marcada por forte controle procedimental e pela possibilidade de controle judicial dos atos (normativos e executivos) praticados pelas agências. Atualmente, encontra-se pacificada na jurisprudência norte-americana a possibilidade de controle judicial das agências administrativas, embora com forte respeito aos precedentes e considerável respeito à sua independência. Em suma, pode-se concluir que as agências administrativas norte-americanas, se comparadas com os institutos similares do Direito brasileiro, apresentam maior grau de independência e maior espectro de alcance na sociedade. Todavia, cabe observar que, ao longo do século XX, o tema passou por importantes modificações, com certa mitigação do rigor teórico que concebia as agências administrativas como esferas inalcançáveis pelos poderes de Estado. Atualmente, as agências regulam praticamente todos os aspectos da vida norte-americana, sendo consideradas, na expressão do conferencista, um verdadeiro “quarto poder”. Alguns exemplos de agências norte-americanas criadas no século XX são a SEC – Securities and Exchange Comission (Comissão de Valores Mobiliários e Câmbio); a FCC – Federal Communications Comission (Comissão Federal de Comunicações); o NLRB – National Labor Relations Board (Conselho Nacional de Relações Trabalhistas); a SSA – Social Security Administration (Administração da Seguridade Social); a EPA – Environmental Protection Agency (Agência de Proteção ao Meio Ambiente); a National Highway Traffic Safety Comission (Comissão Nacional de Segurança no Tráfego Rodoviário); a Consumer Product Safety Comission (Comissão de Segurança e Proteção ao Consumidor); a Mine Safety and Health Administration (Administração da Segurança e Saúde das Minas); e a Nuclear Regulatory Comission (Comissão de Regulação Nuclear). Segundo concluiu o conferencista, há uma divisão de opiniões quanto ao papel das agências. Muitas pessoas entendem que a regulação é necessária para conter os abusos da iniciativa privada. Outros dizem que as agências seguem um caminho perigoso, contrário ao espírito da Constituição, sob o argumento de que a delegação de poderes para as agências pelo Congresso (poderes normativo e decisório) violaria o postulado da separação de poderes. Ao mesmo tempo, afirma-se que o Poder Executivo tem interferido nas decisões das agências independentes, o que igualmente seria uma violação. O debate sobre o papel do Direito Administrativo norte-americano permanece atual, e as críticas baseadas na experiência histórica mostram-se fundamentais para o desenvolvimento das instituições. Notas
1. Sobre o tema, interessante comparativo pode ser estabelecido com a análise do art. 22 da Lei 9.985/00, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Reza o dispositivo: “Art. 22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público. [...] § 2º A criação de uma unidade de conservação deve ser precedida de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a unidade, conforme se dispuser em regulamento”. Como se vê, também aqui o Poder Executivo, por si ou por meio de suas “agências” (Ibama, ICM-Bio etc.), recebe importante delegação, delimitada em regulamento, com expressa exigência da observância de procedimentos legitimadores (estudos e consultas).
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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