Responsabilidade civil do Estado por erro judiciário

Autor: Daniel Luis Spegiorin

Juiz Federal Substituto

publicado em 23.10.2015



No que se refere à responsabilidade do Estado, o tema passou por vários estágios, desde a completa irresponsabilidade, depois com a adoção da teoria da culpa da administração (com a observância do conhecido binômio falta do serviço – culpa da administração), até chegarmos à teoria do risco administrativo, estando descartada, desse modo, a teoria do risco integral, porquanto o Estado não deve responder por todo e qualquer ato ou acontecimento.

Desde 1988, a responsabilidade civil do Estado está assentada no § 6º do art. 37 da Constituição da República:

“§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

Esse dispositivo constitucional consagra a responsabilidade extracontratual objetiva do Estado e das pessoas jurídicas de direito privado que prestam serviços públicos. A responsabilidade objetiva consiste na obrigação de indenizar em virtude de uma conduta, que pode ser ilícita e até lícita, causadora de uma lesão juridicamente relevante. Sua caracterização depende, apenas, da existência de relação causal entre a conduta e o dano experimentado pela vítima. Vale dizer, haverá a obrigação de indenizar independentemente da demonstração de culpa (lato sensu) da administração. Nosso ordenamento, portanto, acolheu a teoria do risco administrativo.

Quanto a essa teoria, cabe trazer à baila a lição de Hely Lopes Meirelles:

“A teoria do risco administrativo faz surgir a obrigação de indenizar o dano do ato lesivo e injusto causado à vítima pela administração. Não se exige qualquer falta do serviço público, nem culpa de seus agentes. Basta a lesão, sem o concurso do lesado. Na culpa administrativa, exige-se a falta do serviço; na teoria do risco administrativo, exige-se, apenas, o fato do serviço. Naquela, a culpa é presumida da falta administrativa; nesta, é inferida do fato lesivo da administração.
Aqui não se cogita da culpa da administração ou de seus agentes, bastando que a vítima demonstre o fato danoso e injusto ocasionado por ação ou omissão do poder público. Tal teoria, como o nome está a indicar, baseia-se no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidade de acarretar dano a certos membros da comunidade, impondo-lhes um ônus não suportado pelos demais. Para compensar essa desigualdade individual, criada pela própria administração, todos os outros componentes da coletividade devem concorrer para a reparação do dano, por meio do erário, representado pela Fazenda Pública.
[...]
Advirta-se, contudo, que a teoria do risco administrativo, embora dispense a prova da culpa da administração, permite que o poder público demonstre a culpa da vítima para excluir ou atenuar a indenização. [...] O risco administrativo não significa que a administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular; significa, apenas e tão somente, que a vítima fica dispensada da prova da culpa da administração, mas esta poderá demonstrar a culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, caso em que a Fazenda Pública se eximirá integral ou parcialmente da indenização.” (Direito administrativo brasileiro. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 557-558)

Com efeito, as balizas gerais da responsabilidade civil estão delineadas no Código Civil. O art. 927 do Código Civil dispõe: "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo". Em complemento a essa norma, o art. 186 do referido código estabelece que "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

A responsabilidade civil extracontratual, à luz do último dispositivo legal citado, segundo a doutrina de Sergio Cavalieri Filho (Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 41), assenta-se sobre três pressupostos: a) conduta culposa do agente, que emerge da expressão "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência"; b) nexo causal, que vem expresso no verbo "causar"; e c) dano, revelado nas expressões "violar direito ou causar dano a outrem". Dessarte, quando alguém, por meio de conduta dolosa ou culposa, viola direito de outra pessoa e causa-lhe dano, configurado está o ato ilícito, do qual, segundo o estabelecido no precitado art. 927 do CC, decorre o inexorável dever de indenizar.

Uma diferenciação, todavia, deve ser feita no que tange à responsabilidade decorrente de uma atuação do Estado por uma ação comissiva e à responsabilidade surgida em função de uma omissão por um evento alheio ao Estado, mas causador de dano que o poder público deveria evitar (quando falta o serviço, quando o serviço não funcionou ou funcionou tardiamente e, ainda, se funcionou de modo incapaz de obstar a lesão).

Na hipótese de dano havido em virtude de uma ação estatal, a responsabilidade é objetiva, baseada na teoria do risco administrativo. Se o dano, todavia, decorre da omissão estatal, a responsabilidade é, em verdade, subjetiva, baseada na culpa (ou no dolo) da administração, consistente na demonstração da faute du service, consoante o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello:

“É mister acentuar que a responsabilidade por 'falta de serviço', falha do serviço ou culpa do serviço (faute du service, seja qual for a tradução que se lhe dê) não é, de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, ao contrário do que entre nós e alhures, às vezes, tem-se inadvertidamente suposto. É responsabilidade subjetiva porque baseada na culpa (ou dolo), como sempre advertiu o Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello.
Com efeito, para sua deflagração não basta a mera objetividade de um dano relacionado com o serviço estatal. Cumpre que exista algo mais, ou seja, culpa (ou dolo), elemento tipificador da responsabilidade subjetiva.
É muito provável que a causa desse equívoco, isto é, da suposição de que a responsabilidade pela faute du service seja responsabilidade objetiva, deva-se a uma defeituosa tradução da palavra faute. Seu significado corrente em francês é o de culpa. Todavia, no Brasil, como de resto em alguns outros países, foi inadequadamente traduzida como 'falta' (ausência), o que traz ao espírito a ideia de algo objetivo.
Outro fator que há de ter concorrido para robustecer esse engano é a circunstância de que, em inúmeros casos de responsabilidade por faute du service, necessariamente haverá de ser admitida uma 'presunção de culpa', sob pena de inoperância dessa modalidade de responsabilização, ante a extrema dificuldade (às vezes inoponível) de demonstrar-se que o serviço operou abaixo dos padrões devidos, isto é, com negligência, imperícia ou imprudência, vale dizer, culposamente.
Em face da presunção de culpa, a vítima do dano fica desobrigada de comprová-la. Tal presunção, entretanto, não elide o caráter subjetivo dessa responsabilidade, pois, se o poder público demonstrar que se comportou com diligência, perícia e prudência – antítese da culpa –, estará isento da obrigação de indenizar, o que jamais ocorreria se fora objetiva a responsabilidade.” (Curso de Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 663-664)

Enquanto a responsabilidade do Estado pelos atos da administração – aqui, leia-se Poder Executivo – mostra-se sedimentada, com a aplicação da teoria do risco administrativo, o tema da responsabilidade estatal por danos decorrentes de atos judiciais mostra-se complexo, comportando várias opiniões, que vão desde a total irresponsabilidade até a responsabilidade pela aplicação da teoria do risco administrativo.

A tese de irresponsabilidade do Estado pelos atos praticados pelos juízes – classificados como agentes políticos – tem seu suporte na independência da magistratura, não sendo, portanto, os juízes responsáveis pelos danos que suas decisões errôneas possam causar ao jurisdicionado. Porém, seus adeptos admitem a possibilidade de ressarcimento quando se tratar de sentença ilegal, nos casos de revisão e de rescisão da sentença.

Argumentos contra essa tese firmaram-se no sentido de que o Poder Judiciário possui a mesma independência dos demais poderes da União (Legislativo e Executivo), devendo, assim, submeter-se aos mesmos critérios no que tange à responsabilidade pelos atos praticados por seus agentes. Outrossim, é importante frisar a inexistência de qualquer incompatibilidade entre a responsabilidade estatal e a independência dos magistrados.

Com o advento da Constituição da República de 1988 (em que restou prevista, no § 6° do artigo 37, a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público e das de direito privado pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros), surgiu a tese de que a responsabilidade estatal por decisões dos juízes seria objetiva, em total obediência à teoria do risco administrativo. Porém, o mencionado dispositivo constitucional não é o único a dispor sobre a temática. O inciso LXXV do art. 5º trata especificamente da responsabilidade do Estado por erro judiciário. Veja-se:

“LXXV – o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença;”

No caso, havendo duas normas na Constituição da República dispondo sobre o assunto, e a fim de integrá-las, há que se realizar interpretação capaz de compatibilizar ambas as normas.

Nesse intuito, inicialmente, faz-se necessário distinguir a atividade jurisdicional e a atividade judiciária. A primeira refere-se àqueles atos realizados exclusivamente pelos juízes, no exercício de sua função de julgar, tais como decisões, sentenças, liminares, acórdãos, entre outros. São os atos judiciais típicos. Na segunda, enquadram-se as demais atividades necessárias para o bom desenvolvimento da atividade jurisdicional, mas que não têm a obrigatoriedade de serem praticadas pelos magistrados, sendo realizadas por servidores. Como exemplo, cite-se a expedição de mandados, ofícios e cartas precatórias, realizada no cumprimento das determinações exaradas pelo juiz. Ademais, o próprio magistrado pratica diariamente atos na administração de seu cartório.

Feita essa distinção entre atividades jurisdicionais e judiciárias, há de se determinar a responsabilidade incidente sobre cada uma delas.

Sobre a questão, Sergio Cavalieri Filho leciona que, ao se tratar de responsabilidade do Estado frente a ato judicial típico (jurisdicional), aplica-se a norma constante no artigo 5°, LXXV, da CF/88, vale dizer, somente será responsável quando se tratar de erro judiciário, devidamente comprovado. Já com relação ao ato judiciário, por tratar-se de atividade administrativa, deve ser aplicado o artigo 37, § 6º, da CF/88, quer dizer, com a aplicação da teoria do risco administrativo. Veja-se:

“No exercício da atividade tipicamente jurisdicional podem ocorrer os chamados erros judiciais, tanto in iudicando como in procedendo. Ao sentenciar ou decidir, o juiz, por não ter bola de cristal nem o dom da adivinhação, está sujeito aos erros de julgamento e de raciocínio, de fato ou de direito. Importa dizer que a possibilidade de erros é normal e até inevitável na atividade jurisdicional.
Ora, sendo impossível exercer a jurisdição sem eventuais erros, responsabilizar o Estado por eles, quando involuntários, inviabilizaria a própria justiça, acabando por tornar irrealizável a função jurisdicional. Seria, em última instância, exigir do Estado a prestação de uma justiça infalível, qualidade essa que só a justiça divina tem.
É justamente para evitar ou corrigir erros que a lei prevê os recursos, por vezes até em número excessivo. A parte agravada ou prejudicada por uma sentença injusta ou equivocada pede a sua revisão, podendo chegar, nesse mister, até a Suprema Corte. Mas, uma vez esgotados os recursos, a coisa julgada se constitui em fator inibitório da responsabilidade do Estado, que tudo fez, dentro das possibilidades humanas, para prestar uma justiça justa e correta.
Daí o entendimento predominante, a nosso juízo mais correto, no sentido de só poder o Estado ser responsabilizado pelos danos causados por atos judiciais típicos nas hipóteses previstas no art. 5°, LXXV, da Constituição Federal. Contempla-se, ali, o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença. Por erro judiciário deve ser entendido o ato jurisdicional equivocado e gravoso a alguém, tanto na órbita penal como na civil; ato emanado da atuação do juiz (decisão judicial) no exercício da função jurisdicional. Falando a Constituição em condenado por erro judiciário, sustentou o saudoso professor Cotrim Neto, em uma cláusula garante de direitos e deveres individuais e coletivos, qual o art. 5° do Diploma de 1988, tem aplicação em todos os campos em que o indivíduo possa ser condenado: no juízo criminal como no cível, no trabalhista ou no militar e até no eleitoral – enfim, onde quer que o Estado, mesmo por meio do Ministério Público, tenha sido provocador da condenação (Revista de Direito do TJRJ, 12/61, 1992).
Nem sempre será tarefa fácil identificar o erro, porque, para configurá-lo, não basta a mera injustiça da decisão, tampouco a divergência na interpretação da lei ou na apreciação da prova. Será preciso uma decisão contrária à lei ou à realidade fática, baseada em fatos falsos, irreais, inexistentes, e não em simples erro de perspectiva; falsa percepção ou interpretação dos fatos, como, por exemplo, condenação de pessoa errada, aplicação de dispositivo legal impertinente, ou o indevido exercício da jurisdição, motivada por dolo, fraude ou má-fé.
Temos, assim, no art. 5°, LXXV, da Constituição, uma norma que cuida especificamente da responsabilidade do Estado por atos judiciais, enquanto a norma do art. 37, § 6°, de natureza geral, aplica-se a toda a atividade administrativa. Dessarte, se a função jurisdicional, como querem alguns, não se distingue ontologicamente da atividade administrativa do Estado, não haveria razão para o tratamento diferenciado estabelecido na própria Constituição quanto à responsabilidade do Estado pelos atos judiciais típicos. Mas, na realidade, diferenças existem, que não cabe serem aqui destacadas porque conhecidas desde os bancos escolares, tanto assim que os juízes gozam de garantias constitucionais para poderem exercer com independência a função de julgar.
Quanto à coisa julgada, que não constitui obstáculo para os defensores da ampla responsabilidade do Estado por atos judiciais, antes de acolhermos posições tão avançadas, é preciso ter em mente que a intangibilidade da coisa julgada não é mero dogma, mas sim princípio constitucional. Como reputar errada uma sentença transitada em julgado se ela é a lei do caso concreto, a vontade do Estado para determinada relação jurídica? Como provar que a decisão está errada sem o processo de rescisão? Como poderá a sentença remanescer entre as partes e ser considerada errada em face do Estado? A razão, nesse ponto, está com o insigne Arruda Alvim:
'Vale dizer, se há coisa julgada, enquanto esta estiver de pé, isso se constitui em elemento inibitório da responsabilidade civil do Estado; se passar o prazo dentro do qual poderia ter sido proposta ação rescisória e isso não ocorrer, não mais se poderá – em processo civil – falar em responsabilidade do Estado, salvo, eventualmente, se o Poder Judiciário, por meio do juiz, atentar conscientemente contra a coisa julgada anterior, causando danos. Por outras palavras, estando de pé o ato jurisdicional e não havendo meios para que ele seja derrubado, tal se constitui em fator inibitório da responsabilidade civil do Estado.' (Código de Processo Civil comentado, v. V/308)
Não estamos advogando a tese de que será sempre necessária a ação rescisória ou a revisão criminal para que possa ter lugar a indenização por erro judicial. A exigência da desconstituição do julgado como pré-condição, obviamente, só se refere à decisão de mérito. Casos poderão ocorrer em que o erro judicial fique desde logo evidenciado, tornando possível a imediata ação de indenização, como, por exemplo, o excesso de tempo de prisão por omissão, esquecimento ou equívoco; a prisão da pessoa errada por homonímia; atos praticados com abuso de autoridade – prisão sem formalidades legais, não relaxamento de prisão ilegal etc. O que não nos parece aceitável é a amplitude que vem se procurando dar ao conceito de erro judicial, ao ponto de considerá-lo sinônimo de falta de prova. O benefício da dúvida, que no Direito Penal leva à absolvição do réu (in dubio pro reo), não tem o condão de servir de fundamento para a reparação civil. Falta de prova não é sinônimo de erro judicial, nem mesmo lato sensu". (Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 292-294)

Como registrado pelo renomado autor fluminense, por erro judiciário deve ser entendido o ato jurisdicional equivocado e gravoso a alguém, tanto na órbita penal como na civil; ato emanado da atuação do juiz (decisão judicial) no exercício da função jurisdicional. Ocorre que nem sempre será tarefa fácil identificar o erro, porque, para configurá-lo, não basta a mera injustiça da decisão, tampouco a divergência na interpretação da lei ou na apreciação da prova. Será necessária uma decisão contrária à lei ou à realidade fática, baseada em fatos falsos, irreais, inexistentes, e não em simples erro de perspectiva; falsa percepção ou interpretação dos fatos, como a condenação de pessoa errada, a aplicação de dispositivo legal impertinente ou o indevido exercício da jurisdição, motivada por dolo, fraude ou má-fé.
 
Portanto, apenas em situações excepcionais um equívoco praticado na atividade jurisdicional pode ser considerado um "erro judiciário". Como exemplo, uma prisão preventiva decretada no início da persecução penal não pode ser considerada um erro judiciário apenas porque, ao final do processo, o acusado foi absolvido e a prisão, revogada, mormente quando havia algum indício da prática do crime investigado pelo acusado.

As atividades jurisdicionais danosas que acarretam responsabilidade do Estado abrangem não apenas o ato jurisdicional típico, a sentença de mérito, compreendendo também os atos processuais praticados antes ou depois da sentença, no processo de conhecimento, no cautelar ou no de execução, por ocasião do exercício de jurisdição contenciosa ou voluntária.

O tratamento normativo da responsabilidade do Estado nesse âmbito traz peculiaridades em relação ao princípio geral da responsabilidade objetiva, que se satisfaz com a existência de dano, uma vez demonstrado o nexo de causalidade entre ele e a ação estatal. A particularidade justifica-se na medida em que a atuação judicial contenciosa implica a produção de necessário desconforto e, mesmo, de certa dose de prejuízo para qualquer pessoa compelida a experimentar, na condição de autora ou ré, mas não apenas nessas posições, o processo judicial. O Estado de Direito tem seu preço, e esse é um preço que deve ser suportado por todos. O desconforto e o constrangimento normais não reclamam indenização. A indenização decorre de dano causado por ato judicial que resida em condição intolerável para qualquer cidadão. Essa é a razão pela qual a previsão do art. 37, § 6º, reclama leitura adequada, que transite nos limites estabelecidos pelas hipóteses normativas e pelos elementos que caracterizam a responsabilidade por ato jurisdicional.

As hipóteses normativas previstas são o erro judiciário (art. 5º, LXXV, da CF; art. 630 do CPP) e a denegação de justiça (art. 133, CPC). Seus limites e suas interpretações ainda são disputados na doutrina brasileira. Discute-se, por exemplo, se a previsão do art. 37, § 6º, que demarca o caráter objetivo da responsabilidade estatal, teria revogado a disciplina da responsabilização direta dos magistrados prevista na legislação ordinária e, também, até que ponto a qualificação de “erro judiciário” poderia abarcar situações não expressas na legislação, como as decisões cautelares de prisão preventiva e as liminares cíveis em ações possessórias.

Na doutrina, há disputa acerca do alcance das previsões normativas sobre responsabilidade derivada de ato jurisdicional. O desacordo aparece, sobretudo, diante da possibilidade de, transcendidas as hipóteses expressamente previstas pela lei, manifestação de outros casos autorizadores de responsabilização.

O ato jurisdicional danoso pode ser penal ou cível. Em relação ao erro penal, previsto no art. 5º, LXXV, da CF e no art. 630 do CPP, a clareza da previsão normativa e a relevância da proteção do bem jurídico por ela tutelado tornam incontroverso o posicionamento doutrinário. Não é por outro motivo que a revisão pode ser aforada a qualquer tempo. Os valores atingidos por uma condenação injusta ou uma prisão indevida dizem respeito à própria pessoa, afetando-a em sua liberdade, integridade e honra, na vida profissional e familiar.

A hipótese está associada aos atos decisórios viciados dos quais derivem condenações injustas e também às falhas do serviço judiciário contaminantes do trabalho jurisdicional, podendo implicar, entre outras consequências, cumprimento de pena além do tempo devido.

No erro cível, os valores atingidos, em grande parte das situações, ostentam natureza patrimonial, sendo a prestação jurisdicional, em geral, provocada pelas partes. O erro judiciário civil, reconhecido pela sentença rescisória, poderá, portanto, em função das circunstâncias do caso, acarretar a responsabilidade do poder público, podendo ainda determinar (em caso de dolo ou culpa) a ação regressiva contra o magistrado causador do dano. Cumprindo ao Estado indenizar o dano derivado de erro judiciário penal, deve ele também compor os prejuízos ocasionados no desempenho de atividade não penal. Embora, aqui, a coisa julgada material possa dificultar a sua admissão, ela só impediria a composição de dano provocado por decisão transitada em julgado, sendo aceita nas demais hipóteses. Vale dizer, é indiscutível que as decisões de mérito ensejam, uma vez rescindidas, responsabilidade do Estado caso eivadas de vícios qualificados causadores de danos aos jurisdicionados.

Também é incontroversa a responsabilidade resultante de falha ou falta no serviço judiciário implicante de dano. Na hipótese, desloca-se o fundamento da responsabilidade do agente para o serviço: o mau funcionamento da justiça do qual decorra dano ao particular, independentemente do agir do magistrado, enseja ação indenizatória. É a faute du service, circunstância que, dela decorrendo dano, autoriza a responsabilidade, embora inexistente, a propósito, expressa previsão normativa. Nesse ponto, a doutrina e a jurisprudência sobre a matéria no âmbito administrativo, com as cautelas devidas, podem ser transportadas para o serviço público de natureza jurisdicional.

Sobre o tema, com um entendimento restritivo, o Supremo Tribunal Federal vem decidindo pela irresponsabilidade do Estado frente a atos jurisdicionais, salvo nas hipóteses previstas em lei, não se aplicando, portanto, a teoria do risco administrativo:

“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRISÃO ILEGAL. DEPOSITÁRIO INFIEL. MANDADO DE PRISÃO QUE RECAIU SOBRE PESSOA DIVERSA. ERRO DO PODER JUDICIÁRIO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. 1. Indenização por danos morais. Necessidade de reexame de fatos e provas: Súmula nº 279 do Supremo Tribunal Federal. 2. Este Supremo Tribunal assentou que a teoria da responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos judiciais, salvo nos casos de erro judiciário e de prisão além do tempo fixado na sentença (inc. LXXV do art. 5º da Constituição da República) e nas hipóteses expressamente previstas em lei. 3. Agravo regimental ao qual se nega provimento.” (AI 599501 AgR, Relator(a): Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, julgado em 19.11.2013, acórdão eletrônico, DJe-232, divulg. 25.11.2013, public. 26.11.2013)

“EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. PRISÃO EM FLAGRANTE. ANÁLISE DA OCORRÊNCIA DE EVENTUAL AFRONTA AOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS INVOCADOS NO APELO EXTREMO DEPENDE DA REELABORAÇÃO DA MOLDURA FÁTICA CONSTANTE DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 279/STF. INOVAÇÃO RECURSAL: IMPOSSIBILIDADE. ACÓRDÃO RECORRIDO PUBLICADO EM 13.07.2011. A análise da ocorrência de eventual afronta aos preceitos constitucionais invocados no apelo extremo demandaria a reelaboração da moldura fática delineada na origem, inviável em sede recursal extraordinária, em face do óbice da Súmula 279/STF. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal está firmada no sentido de que, salvo nos casos de erro judiciário e de prisão além do tempo fixado na sentença, consignados no inciso LXXV do art. 5º da Constituição Federal, assim como nas hipóteses expressamente previstas em lei, a regra é de que a responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos judiciais. Precedentes. A alegada violação do art. 5º, XXXV, LIV, LV, da Constituição Federal não foi arguida nas razões do recurso extraordinário, sendo vedado ao agravante inovar no agravo regimental. As razões do agravo regimental não são aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão agravada, mormente no que se refere à ausência de ofensa direta e literal a preceito da Constituição da República. Agravo regimental conhecido e não provido.” (ARE 756753 AgR, Relator(a): Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 10.09.2013, processo eletrônico, DJe-187, divulg. 23.09.2013, public. 24.09.2013)

“Agravo regimental no agravo de instrumento. Responsabilidade civil do Estado. Prisão cautelar determinada no curso de regular processo criminal. Posterior absolvição do réu pelo júri popular. Dever de indenizar. Reexame de fatos e provas. Impossibilidade. Ato judicial regular. Indenização. Descabimento. Precedentes. 1. O Tribunal de Justiça concluiu, com base nos fatos e nas provas dos autos, que não restaram demonstrados, na origem, os pressupostos necessários à configuração da responsabilidade extracontratual do Estado, haja vista que o processo criminal e a prisão aos quais foi submetido o ora agravante foram regulares e se justificaram pelas circunstâncias fáticas do caso concreto, não caracterizando erro judiciário a posterior absolvição do réu pelo júri popular. 2. É inadmissível, em recurso extraordinário, o reexame dos fatos e das provas dos autos. Incidência da Súmula nº 279/STF. 3. A jurisprudência da Corte firmou-se no sentido de que, salvo nas hipóteses de erro judiciário e de prisão além do tempo fixado na sentença, previstas no art. 5º, inciso LXXV, da Constituição Federal, bem como nos casos previstos em lei, a regra é a de que o art. 37, § 6º, da Constituição não se aplica aos atos judiciais quando emanados de forma regular e para o fiel cumprimento do ordenamento jurídico. 4. Agravo regimental não provido.” (AI 803831 AgR, Relator(a): Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 19.03.2013, processo eletrônico, DJe-091, divulg. 15.05.2013, public. 16.05.2013)

Sendo assim, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não incide a teoria da responsabilidade objetiva do Estado em casos envolvendo atos judiciais (aqueles praticados exclusivamente pelo juiz no desempenho da função jurisdicional), somente podendo o Estado ser responsabilizado nos casos previstos em lei (por exemplo, por "erro judiciário"), quando devidamente comprovada a existência de dolo/fraude na conduta do magistrado.

Não obstante essa posição do Supremo Tribunal Federal, à luz do disposto no art. 5º, inciso LXXV, e no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, o regime constitucional brasileiro admite a responsabilização civil do Estado por erro praticado pelo Poder Judiciário quando restar caracterizado o "erro judiciário", não apenas nas hipóteses previstas em lei.

Porém, não se deve considerar "erro judiciário" toda e qualquer decisão judicial que provocou algum prejuízo jurídico concreto na vida privada e social de uma pessoa, como a prisão cautelar ou o desapossamento liminar de um bem, e que posteriormente, ao final do processo, cível ou criminal, ou depois de julgada a revisão criminal ou a ação rescisória cível, for revogada ou anulada, restabelecendo as coisas ao estado anterior.

Somente pode ser considerado "erro judiciário", pressuposto para a responsabilização do Estado por ato ilegal emanado do Poder Judiciário e gerador do direito do autor/vítima à indenização civil, o ato judicial eivado de vício grave, ocasionado por uma decisão flagrantemente contrária à lei, à jurisprudência consolidada ou à realidade fática satisfatoriamente comprovada no processo. O mero equívoco na interpretação da lei e das provas dos autos, presente em decisão judicial devidamente fundamentada, ainda que em cognição sumária, como são proferidas as decisões cautelares, não pode caracterizar o "erro judiciário" e gerar o dever do Estado de indenizar.

Ainda pode caracterizar o "erro judiciário" o exercício indevido e temerário da jurisdição, como quando há a adoção de procedimento processual não previsto em lei, bem como a prática de atos judiciais mediante dolo, fraude ou má-fé.

Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., out. 2015. Disponível em:
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REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS