Comentário acerca da Lei Anticorrupção e do acordo de leniência

Autora: Daniela Tocchetto Cavalheiro

Juíza Federal

publicado em 23.10.2015



Há um sentimento de urgência quanto à tomada de medidas concretas no que tange ao combate à corrupção. Os movimentos sociais que foram deflagrados em junho de 2013 aceleraram a sanção da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), cujo projeto, de 2010, ainda não havia sido enviado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional. A lei foi aprovada pela Câmara dos Deputados em 24.04.2013 e pelo Senado em 04.07.2013, tendo sido sancionada em agosto de 2013. Desde então, a legislação, embora inovadora e muito comemorada, aguardava regulamentação. Apenas com o retorno das manifestações populares, após o início do mandato legislativo de 2015, é que houve a edição do Decreto 8.420/2015 para tal fim.

A regulamentação vem dar efetividade às medidas previstas na lei, buscando possibilitar a tomada de medidas concretas no combate à corrupção, estabelecendo critérios mais claros e precisos para várias matérias reguladas, como o cálculo da multa aplicada às empresas, parâmetros para a avaliação de programas de compliance, regras para a celebração de acordo de leniência e disposições sobre o cadastro nacional de pessoas punidas.

A Lei Anticorrupção trata do aspecto civil-administrativo referente ao tema, não se confundindo com a Lei de Lavagem de Dinheiro, que aborda o aspecto penal das condutas tipificadas.

A Lei 12.846/2013 dispõe acerca da responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública. A novel legislação não exime a responsabilidade dos dirigentes e administradores (art. 3º, § 2º); no entanto, para perquirir sobre tais aspectos, contamos com outros dispositivos legais, tais como o Código Penal, a Lei do Servidor Público, a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei de Licitações, etc.

A novidade trazida pela novel legislação reside na efetiva responsabilização objetiva da pessoa jurídica, ou seja, ocorrido o fato descrito como corrupção, não há necessidade de perquirir se a empresa agiu com dolo (intenção) ou culpa (negligência, imperícia, imprudência) para alcançar o resultado, prevendo a lei diversas e pesadas sanções em razão de tal prática. Assim, verifica-se a mudança de perspectiva dada pelo legislador, visando dar maior combate aos fatos que venham a lesar o patrimônio público, substituindo o direito penal, que busca a persecução da pessoa física, pela área do direito administrativo sancionador, inspirado em lei norte-americana conhecida como Foreign Corrupt Practices Act, a qual surgiu em decorrência do famoso caso Watergate.

 O foco é efetivamente a responsabilização da pessoa jurídica que atue em desfavor da administração com envolvimento em casos de corrupção praticados em seu interesse ou benefício, inclusive havendo expressa previsão de que subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária.

A lei impõe duas espécies de responsabilização: a civil e a administrativa. Na esfera civil, a empresa infratora é obrigada a reparar o dano, visando à sua restituição integral, de caráter eminentemente indenizatório. Por outro lado, a responsabilidade administrativa decorre do poder de polícia estatal, que visa proteger a coletividade de práticas que possam afetá-la. Uma vez verificado o descumprimento das normas, é cabível a imposição de sanções. Detém natureza eminentemente punitiva.

Assim, a Lei Anticorrupção adentra a esfera administrativa, trazendo institutos inovadores como o acordo de leniência e a compliance. Na verdade, a responsabilidade da pessoa jurídica atua em uma área do direito que permeia o Direito Penal e o Direito Administrativo, conhecida, nas palavras do doutrinador alemão Winfried Hassemer, como Direito de Intervenção, já que excluídas as sanções tipicamente penais, com garantias menores que o Direito Penal tradicional.

Como dito, o poder público não precisa perquirir acerca da existência ou não de provas de que a empresa, pessoa jurídica, tenha se beneficiado do ato de corrupção, bastando a prova de que a corrupção existiu. Da mesma forma, pensou-se em evitar a tentativa de transferência de responsabilidade para um funcionário da empresa, reforçando a responsabilização objetiva da pessoa jurídica.

Há ainda necessidade de amadurecimento quanto à extensão da responsabilidade das pessoas jurídicas, uma vez que me parece bastante razoável possam as empresas envolvidas defender-se, em juízo, escusando-se da responsabilidade quando não agirem dolosamente ou mesmo quando agirem sem culpa alguma, ao menos no que se refere às sanções punitivas, remanescendo as indenizatórias.

A partir da novel legislação, as empresas estão submetidas à CGU (Controladoria-Geral da União), além de expostas a regras muito mais rígidas do que as estabelecidas pela Lei de Licitações.

Dentre as condutas caracterizadas como lesivas, estão as de prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada; financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática de atos ilícitos; utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos verdadeiros beneficiados com o ato lesivo.

No que tange à licitação, modalidade que usualmente favorece toda sorte de atos lesivos em detrimento da administração pública, estão previstos como condutas lesivas os atos de frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o certame; impedir ou perturbar a realização da licitação; afastar ou procurar afastar licitantes fraudulentamente; fraudulentamente obter qualquer tipo de vantagem ou manipular o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração; e até mesmo dificultar a atividade de investigação ou fiscalização.

As sanções previstas no artigo 6º da Lei Anticorrupção são, basicamente: multa no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, mas nunca inferior à vantagem auferida, quando possível sua estimação, além da publicação extraordinária da decisão condenatória, dando-se devida divulgação da condenação na mídia, por meios de comunicação de grande circulação, bem como no Cadastro Nacional de Empresas Punidas.

Tais sanções poderão ser aplicadas ainda no âmbito administrativo, sem prejuízo do campo judicial, via ação própria que poderá ser provocada por qualquer das pessoas jurídicas de direito público lesadas – União, estados, municípios e Distrito Federal –, além do Ministério Público, a qual poderá culminar com a perda de bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito obtidos com o ato, a suspensão ou interdição de atividades, a dissolução compulsória da pessoa jurídica e a proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos.

É evidente que, caso os atos lesivos envolvam infrações previstas pela Lei 8.666/93 (Lei de Licitações), a pessoa jurídica também estará sujeita a sanções administrativas que tenham como efeito restrição de participar de licitações ou de celebrar contratos com a administração pública.

Por meio do Decreto 8.420/2015, que veio regulamentar a Lei 12.846/2013, restou estabelecido que o cálculo da multa a ser aplicada em processo administrativo de responsabilização – PAR deverá atender ao seguinte escalonamento: entre um e dois e meio por cento, caso haja continuidade delitiva; um a dois e meio por cento, tendo havido tolerância ou ciência do corpo diretivo ou gerencial; um a quatro por cento, no caso de interrupção do fornecimento do serviço público; cinco por cento, no caso de reincidência dentro de cinco anos, contados da publicação do julgamento da infração anterior; um por cento em contratos acima de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais); dois por cento em contratos acima de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais); três por cento em contratos acima de R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais); quatro por cento em contratos acima de R$ 250.000.000,00 (duzentos e cinquenta milhões de reais); e cinco por cento em contratos acima de R$ 1.000.000.000,00 (um bilhão de reais).

O decreto estabelece ainda hipóteses de abrandamento das multas nos casos de não consumação da infração, caso haja colaboração da pessoa jurídica, independentemente do acordo de leniência, e caso haja comunicação espontânea pela pessoa jurídica antes da instauração do PAR.

Acordo de leniência

A Lei Anticorrupção estabelece que a autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática de atos lesivos, desde que a proposta ocorra antes da conclusão do relatório a ser elaborado no processo administrativo de responsabilização – PAR. Segundo o Decreto 8.420, o acordo se aplica tanto em relação aos atos lesivos previstos na Lei 12.846/13 quanto aos trazidos na Lei 8.666/93, além de outras normas de licitações e contratos, desde que as pessoas jurídicas colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo requisitos essenciais que resultem dessa colaboração a identificação dos demais envolvidos na infração administrativa e o fornecimento célere de informações e documentos que comprovem a infração sob apuração.

Além disso, a pessoa jurídica que pretenda efetuar acordo de leniência deverá ser a primeira a manifestar interesse em cooperar para a apuração do ato lesivo específico, cessar completamente seu envolvimento no ato lesivo a partir da data da propositura do acordo, admitir sua participação na infração administrativa, cooperar plena e permanentemente com as investigações, além de fornecer documentos e elementos que comprovem a infração.

Compete à CGU – Controladoria-Geral da União celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo Federal.

A proposta de acordo poderá ser feita de forma oral ou escrita, oportunidade em que a pessoa jurídica deverá declarar expressamente que foi orientada a respeito de seus direitos, garantias e deveres legais.

A proposta terá tramitação sigilosa, e o acesso ao seu conteúdo será restrito aos servidores especialmente designados pela CGU para participarem da negociação, devendo esta ser concluída em 180 dias.

O decreto estabelece explicitamente que a proposta de acordo de leniência que vier a ser rejeitada não importará em reconhecimento da prática de ato lesivo.

Caso o acordo não seja efetivado, os documentos apresentados durante a fase de negociação serão devolvidos, sem a retenção de cópias, exceto quando a administração já tiver conhecimento deles independentemente da apresentação da proposta de acordo.

Caso seja efetivamente firmado o acordo, ele conterá, entre outros dispositivos: o compromisso de cumprimento dos requisitos do artigo 30, II a V; a expressa disposição da perda dos benefícios pactuados, caso haja descumprimento; além de ter natureza de título executivo extrajudicial.

Como efeitos benéficos ao acordante, verifica-se a isenção da publicação extraordinária da decisão administrativa sancionadora, a isenção da proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicos e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, a redução do valor final da multa aplicável (art. 23) ou mesmo a isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas nos artigos 86 a 88 da Lei de Licitações.

Compliance

O instituto da compliance foi importado do direito ame­ricano e consiste em uma série de medidas que deverão ser implementadas pelas pessoas jurídicas para garantir a conformidade de suas condutas às exigências da administração.

O principal objetivo de tais medidas é o planejamento, pelas empresas, de atividades como a adoção de políticas internas que respeitem e valorizem um código de ética e conduta e gestão de risco, culminando com uma cultura da integridade no ambiente da empresa.

O artigo 7º, inciso VIII, da Lei Anticorrupção prevê que serão consideradas, no momento da aplicação das sanções, a “existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de condu­ta no âmbito da pessoa jurídica”.

Torna-se evidente, assim, que as próprias empresas serão as principais interessadas em prevenir, investigar e descobrir desvios de condutas e eventuais violações à lei perpetrados por seus funcionários e/ou dirigentes, especialmente considerando-se o estabelecimento da responsabilidade objetiva da pessoa jurídica. O programa deverá ser devidamente divulgado dentro das respectivas instituições empresa­riais.

Outro ponto de grande importância e bastante recomendável são as due diligences, que consistem basicamente na fiscalização, pela própria empresa, das empresas da corrente produtiva e das operações societárias e com terceiros (fornecedores, entre ou­tros), para evitar o risco de ser responsabilizada objetivamente por atos lesivos à administração pública praticados em seu benefício ou interes­se.

Em poucas palavras: para ser efetivo, um pro­grama de compliance exige o comprometimento da pessoa jurídica como um todo em todas as fa­ses e aspectos de sua implantação e manutenção.

Outro ponto de relevância está na realização de treinamentos de funcionários ou de terceiros que atuem em nome da empresa perante a admi­nistração pública. É necessário que todos na em­presa sejam bem informados sobre as mudanças estipuladas pela Lei Anticorrupção, e essa opor­tunidade de abordagem do tema deve ser aproveitada para que se relembrem e reavaliem polí­ticas e procedimentos internos.

Cadastro Nacional de Empresas Punidas

Outra novidade trazida pela legislação mencionada foi a criação do Cadastro Nacional de Empresas Punidas – CNEP, no qual deverão ser registradas, com a devida publicidade, todas as penalidades aplicadas com base na nova lei. O objetivo é facilitar a consulta sobre as pessoas jurídicas que pretendam de alguma maneira se relacionar com a administração pública. Todas as esferas de governo deverão alimentar o cadastro. O CNEP será de enorme utilidade se observarmos que, de acordo com a Lei de Licitações, a empresa apontada em tal cadastro deverá ser considerada inidônea, sendo que a Lei nº 8.666/1993 criminaliza a conduta do servidor que admite a licitação ou contrata empresa em tal condição.

Bibliografia

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais. Comentários à Lei 12.683/2012.São Paulo: RT, 2012.

SELISTRE PENHA, Eduardo Chamale. Punição às empresas é diferencial da Lei Anticorrupção. Disponível em: <www.conjur.com.br/2013-set-26/eduardo-pena>.



Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., out. 2015. Disponível em:
<>
Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS