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publicado em 23.10.2015
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Introdução A sucumbência é conhecida na doutrina processual nacional como um pressuposto recursal subjetivo, de relativa clareza na contextualização dos pleitos deduzidos pela parte que não foram acolhidos pelo julgador quando da sentença. Renato Flávio Marcão apresenta conceito sintético, relacionado a interesse, coligando-o ao artigo 577 do CPP, para conceituar sucumbência: "Se da decisão não decorrer prejuízo que legitime o desconformismo do acusado, para ele não se verifica sucumbência, e bem por isso em relação a ele não se identificará legítimo interesse jurídico para interpor recurso".(1) Todavia, ao compulsarmos algumas hipóteses, temos que as partes expõem com deficiência os seus objetivos dentro do processo penal quando de seus pedidos, e isso apresenta reflexos na avaliação da sucumbência e do interesse recursal. I Uma releitura da avaliação da sucumbência no processo penal Na situação em vértice, temos que, dentre os pedidos da denúncia, verificamos que se requer que a ação penal seja julgada procedente, com a condenação do acusado nas sanções dos tipos penais em que se lastreou a narração que imputa uma infração penal ao agente, e, em contraponto, a resposta à acusação pugna pela improcedência dos termos da denúncia e pode seguir com a apresentação de alguma tese defensiva que afaste o delito (artigo 396-A, CPP). O cerne da questão surge na possibilidade de procedência parcial dos pedidos da acusação e da defesa. O Ministério Público ou o querelante pugna pela procedência dos termos da denúncia/queixa em suas alegações finais em forma de memoriais, sendo que, na hipótese, pode ocorrer um lapso quanto a apontar expressamente questões de dosimetria da pena, ou seja, ausência de análise dos elementos formadores do processo trifásico de aplicação da pena, apontamento do regime de cumprimento da reprimenda, possibilidade de substituição por pena restritiva de direitos, suspensão condicional da pena, dentre outros. A alusão a elementos de dosimetria da pena é recomendada em diversos manuais de atuação funcional do Ministério Público,(2) o que se encaixa dentro do perfil de instituição democrática que vela pelo equilíbrio necessário nas funções de titularidade da ação penal (artigo 129, I, CRFB) e pela boa aplicação da lei penal (artigo 257, II, CPP). No que cuida do querelante, temos que os deveres acima indicados são aplicáveis na ação penal privada porque a acusação há de ser exercida dentro das balizas rígidas do princípio da legalidade. A questão reside na aferição da sucumbência no caso concreto, uma vez que a denúncia ou queixa requer a condenação do acusado nos termos dos tipos penais das respectivas infrações penais que compõem a imputação. Na ação penal privada, em uma breve digressão, temos que o Ministério Público somente teria interesse para recorrer com a finalidade de questionar eventuais nulidades no curso do processo,(3) além de recorrer a favor do querelado para conhecer situações favoráveis a ele, inclusive visando à absolvição,(4) sendo que de longa data ruiu-se a ideia de que o objetivo no processo penal é somente a função de acusar. A relevância da exata identificação disso é que "A ideia de interesse é conexa à de sucumbência, pressuposto fundamental de todo e qualquer recurso. Não se admite recurso da parte que não tiver interesse na reforma ou modificação da decisão (CPP, art. 577, parágrafo único)",(5) até mesmo porque, como lembra Aury Lopes Júnior, "O poder de impugnar não é genérico ou incontrolável, senão o reconhecimento de um poder relacionado a um efetivo interesse no controle da decisão judicial".(6) Logo, como aferir a sucumbência nas situações em que há o manejo de recurso de apelação (artigo 593, CPP) para questionar a dosimetria da pena, uma vez que, na inicial acusatória/resposta à acusação, não consta pedido de dosimetria, por ser impossível, nessa fase processual, a avaliação das circunstâncias judiciais e outras que influem na aplicação da pena, bem como inexiste referência a ela em sede de alegações finais ou memoriais? Apimenta-se a questão com a consideração da consagração do sistema acusatório no processo penal brasileiro, no qual há a separação estanque entre as funções de acusar, defender e julgar, criando uma blindagem ao juiz para que este não se imiscua nas funções típicas de parte processual que vinculam o julgador ao salientado pelo Ministério Público. Assim, há na lei dispositivos que levantam polêmica sobre sua constitucionalidade no sistema acusatório quando contrastados com essa regra de ouro do processo penal, por exemplo, as atuações ex officio do julgador, como a decretação da prisão preventiva, a colheita de provas, a possibilidade de condenação em havendo pedido de absolvição,(7) ainda que de modo subsidiário, dentre outros que revelam polêmica, dos quais nos absteremos de tratar para não ficarmos demasiadamente extensos. A atual sistemática processual penal (artigo 403, caput e § 3º, CPP) e o anteprojeto de Código de Processo Penal (artigo 267, caput, CPP)(8) silenciam quanto à imposição de um dever legal de apresentação, nas alegações finais em forma de memoriais, de elementos referentes à dosimetria da pena, e não há uma recomendação funcional interna no âmbito dos Ministérios Públicos e/ou da Defensoria Pública. Na doutrina, há quem dispense a necessidade de apresentação de dosimetria da pena para fins de apresentação de recurso pelo Ministério Público, porque ele, "(...) em quaisquer instâncias, ainda que no exercício de atividade postulatória, atua sempre na condição de custos legis, no sentido de não se vincular aprioristicamente à pretensão deduzida em juízo. Atua ele, então, imparcialmente".(9) A fusão das funções é o que ainda mais legitimaria o Ministério Público a apontar elementos sobre a dosimetria da pena, uma vez que o juiz entenderia qual é sua ideia exata de boa aplicação da lei penal no caso em vértice para fins de sentença, o que inclusive daria margem ao conhecimento efetivo da extensão do recurso, auxiliando na necessária segurança jurídica. A fiscalização da aplicação da lei penal reforça o dever do Ministério Público de se manifestar especificamente sobre a dosimetria, o que justificaria o interesse recursal e aquilo que gerou a sucumbência do órgão e reforçaria a falta de sucumbência quando não apresentados elementos de dosimetria da pena. Há de se exigir de acusação e defesa o mesmo dever de fundamentação que se exige do juiz (artigo 93, IX, CRFB), destrinchado com a novel ótica do artigo 489 do NCPC, claro que respeitadas as funções de cada qual no processo penal. O ideal, de lege ferenda, é a previsão expressa desse marco na legislação penal adjetiva, sob pena de arcar-se com as consequências processuais da inércia dentro do artigo 267 do anteprojeto do CPP. Dessa forma, o juiz, ao se deparar com um recurso de apelação questionando elementos da dosimetria da pena, pode simplesmente receber o recurso e devolver ao tribunal o conhecimento da matéria de fato e de direito, o qual resolverá a questão com respeito ao princípio da proibição da reformatio in pejus indireta em recurso exclusivo da defesa, ou, no apelo acusatório, ficará limitado aos aspectos cingidos na irresignação recursal. Pela outra mão, o julgador pode observar que não houve, em alegações finais em forma de memoriais, o pedido de sugestão de dosimetria da pena, fixação de regime, substituição por pena alternativa ou suspensão condicional da pena e simplesmente rejeitar o recurso de apelação. A evidência desse posicionamento revela-se quando nos deparamos com pedidos genéricos de procedência dos termos da denúncia, condenando-se o acusado, ou irresignação defensiva sem alusão a questões de pena. Ou seja, se houver um pedido generalista de procedência da denúncia e o juiz acolher seus termos para julgá-la integralmente, condenando o acusado, caso o MP não faça nenhum pedido atinente à dosimetria da pena, não há que se falar em sucumbência da acusação, que posteriormente investe contra a sentença via recurso. A mesma sorte segue a alegação final ou o memorial de defesa sem qualquer sorte de alusão à aplicação da pena, no qual é postulado o decote de qualificadora, mas sem qualquer tipo de indicativo de pedido de dimensionamento da pena e/ou seu regime. Com referência à defesa, todavia, há um certo abrandamento dessa regra em função de matérias cognoscíveis de ofício, por exemplo, as nulidades absolutas (artigo 563 do CPP) e as causas extintivas da punibilidade do réu (artigo 61 do CPP), entre outras, além da indisponibilidade do direito à defesa existente pela própria natureza dos bens jurídicos afetados no processo penal. Conclusão A ausência de recebimento de recurso é uma medida adequada na hipótese de silêncio das partes quanto à dosimetria da pena, uma vez que não se vislumbra o elemento em que a acusação ou a defesa sucumbiu. Não pode a apelação surpreender com argumentação referente à sucumbência por uma aplicação da pena inadequada quando não se oferece o parâmetro ideal ou próximo do correto, segundo o talante do Ministério Público/querelante ou da defesa. Referências bibliográficas BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto de lei para o novo Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/upload/antrcpp.pdf>. Acesso em: 04 maio 2015. DEMERCIAN, Pedro Henrique. Regime jurídico do Ministério Público no processo penal. São Paulo: Verbatim, 2009. LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. v. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. MANZANO, Luiz Fernando de Moraes. Curso de Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. MARCÃO, Renato Flávio. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2014. MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Manual de atuação funcional dos promotores de justiça do Estado de São Paulo. São Paulo: APMP, 2011. MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. Manual de atuação funcional do MPPR. Disponível em: <http://www.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=555>. Acesso em: 27 mar. 2015. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 8. ed. São Paulo: RT, 2011. PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012. 2. Por todos, confiramos o manual de atuação funcional do MPPR, que diz, no item 12: “Debates em audiência e alegações finais. Por ocasião dos debates em audiência e das alegações finais: a) relatar resumidamente o processo; b) requerer a conversão do julgamento em diligência quando imprescindível; c) arguir as nulidades absolutas eventualmente ocorridas; d) analisar a prova colhida e os fundamentos de fato e de direito nos quais fundar sua convicção; e) manifestar-se, ao postular a condenação, sobre a dosimetria da pena, com abordagem expressa das circunstâncias judiciais, atenuantes e agravantes, e demais causas genéricas e especiais de aumento ou de diminuição da pena, propondo a sanção que se afigurar mais justa, atentando para a existência de reincidência – não basta, nas alegações, apontar a ocorrência da reincidência, é preciso comprová-la com a respectiva certidão. Requerer o regime de cumprimento inicial, suspensão condicional ou substituição por pena alternativa; f) cuidar, nas manifestações orais, para que seja realizado o seu fiel registro no termo” (Manual de atuação funcional do MPPR. Disponível em: <http://www.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=555>. Acesso em: 27 mar. 2015 – g.n.). Conferir também o artigo 70, IV, do mesmo documento, mas do MPSP (Manual de atuação funcional dos promotores de justiça do Estado de São Paulo. São Paulo: APMP, 2011. p. 53). 3. Pedro Henrique Demercian, contrariamente, sustenta que "(...) o órgão do Ministério Público poderá também recorrer da sentença condenatória, com o intuito de aumentar a pena privativa de liberdade. Não poderá, contudo, interpor recurso contra sentença absolutória, se o querelante não o fez, em face do princípio da disponibilidade da ação penal privada" (DEMERCIAN, Pedro Henrique. Regime jurídico do Ministério Público no processo penal. São Paulo: Verbatim, 2009. p. 205). No mesmo sentido: MANZANO, Luiz Fernando de Moraes. Curso de Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 714. Ao nosso sentir, com razão, Guilherme de Souza Nucci sustenta: "Note-se, entretanto, que, no caso de ação privada, havendo absolvição e não tendo recorrido o querelante, não cabe recurso do Ministério Público para buscar a condenação, da qual abriu mão o maior interessado. Seria subverter o princípio da oportunidade, que rege a ação penal privada. Pode recorrer, como custos legis, tendo havido condenação, havendo ou não recurso do querelante para contrariar a pena aplicada, por exemplo" (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 8. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 858). 4. Em matéria de ação penal pública, a doutrina é pacificada quanto à possibilidade de o MP recorrer a favor do acusado, bem como em matéria jurisprudencial. 7. “APELAÇÃO – PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO APRESENTADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO EM ALEGAÇÕES FINAIS – VINCULAÇÃO DO JULGADOR – SISTEMA ACUSATÓRIO – ABSOLVIÇÃO DECRETADA – CORRÉ – AUSÊNCIA DE PROVAS – ABSOLVIÇÃO – NECESSIDADE. 1) Se o juiz condena mesmo diante do pedido de absolvição elaborado pelo Ministério Público em alegações finais, está, seguramente, atuando sem necessária provocação, portanto, confundindo-se com a figura do acusador, e, ainda, decidindo sem o cumprimento do contraditório. 2) É mister absolver a corré quando os elementos probatórios apresentados não conferem a segurança necessária para a manutenção da sentença condenatória” (TJMG. Apelação Criminal nº 1.0024.13.351477-8/001 – Comarca de Belo Horizonte – 1º apelante: J.P.G. – 2º apelante: K.P.S. – Apelado(a)(s): Ministério Público do Estado de Minas Gerais). Em idêntico sentido, na doutrina, temos Aury Lopes Júnior: "O Ministério Público é o titular da pretensão acusatória, e, sem o seu pleno exercício, não se abre a possibilidade de o Estado exercer o poder de punir, visto que se trata de um poder condicionado. O poder punitivo estatal está condicionado à invocação feita pelo MP por meio do exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém. Como consequência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo. (...) Portanto, viola o sistema acusatório constitucional a absurda regra prevista no art. 385 do CPP, que prevê a possibilidade de o juiz condenar ainda que o Ministério Público peça a absolvição. Também representa uma clara violação do princípio da necessidade do processo penal, fazendo com que a punição não esteja legitimada pela prévia e integral acusação, ou, melhor ainda, pelo pleno exercício da pretensão acusatória" (LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. v. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 343). 8. O anteprojeto do Código de Processo Penal encontra-se disponível na Internet em: <http://www.ibccrim.org.br/upload/antrcpp.pdf>. Acesso em: 04 maio 2015. 9. O professor assinala ainda: "Por acaso, quando o parquet requer a absolvição do acusado, estaria o juiz subordinado a esse entendimento? A se entender o Ministério Público como parte processual, no sentido que lhe empresta a teoria clássica do processo, a consequência deveria ser a extinção do processo. No entanto, o objeto da ação penal não é disponível! Nem ao Ministério Público, titular, mas não dono da ação penal, nem ao magistrado. Assim, a ausência de manifestação acerca da dosimetria da pena não demonstra ausência de interesse na correta observância da lei por parte do parquet. Dá-me o fato que te darei o direito, enfim! Não aderimos, então, à aludida tese. O Ministerio Público tem ampla margem recursal, sobretudo em razão de sua posição de imparcialidade no processo, no âmbito de sua atribuição constitucional de zelar pela observância da ordem jurídica” (PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 877-878).
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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