O ato inaugural do processo administrativo disciplinar

Autor: José Antonio Pinheiro Machado

Advogado

publicado em 29.02.2016



O ato inaugural do processo administrativo disciplinar tem valor emblemático: se bem nascido, cumpre inexcedível serviço à “causa pública” no sentido do desafio proposto por Hannah Arendt de “recuperar para a esfera pública a dignidade que sobressai na antiguidade clássica”; se mal nascido, o ato inaugural está fadado à iniquidade, se antes a Justiça não flagrar sua nulidade.  

Desde os tempos mais remotos, o ato inaugural de qualquer evento, tem o caráter cerimonial e solene. O verbo inaugurar (do latim inaugurare) significa “apresentar pela primeira vez ao público, principalmente por meio de solenidade; pôr em funcionamento pela primeira vez; dar princípio a; usar pela primeira vez” (in Dicionário Porto Editora, Lisboa, 1999). A origem latina de “inaugurar” (inaugurare) remete à atuação dos “áugures”, que adivinhavam, mediante a observação do voo e do canto, do movimento das aves. Na Roma antiga, quando se devia abrir um novo templo, convidavam-se os “áugures” para que vaticinassem se o momento era propício. Daí o sentido que emprestamos à palavra: inaugurar é dar princípio a alguma coisa com formalismo e solenidade. Na origem, a ideia da inauguração não era necessariamente de “adivinhar” o futuro, e sim de fomentar e robustecer boas expectativas para que o humor e a vontade dos deuses não estivessem contra as atividades no edifício que se estava inaugurando. Do humor dos deuses poderiam resultar “bons augúrios” ou um indesejável “mau agouro”.

No caso do pocesso administrativo disciplinar, como ocorre em qualquer processo com a possibilidade de punição, o ato inaugural é crucial. Pode ser a garantia dos bons augúrios de um desenrolar límpido e justo; mas, se tiver uma gota de veneno — vale dizer: uma gota de ilegalidade —, o mau agouro irreparável estará lançado, sem remédio. Um pingo de veneno é suficiente para transformar o copo da água mais límpida, todo ele, em um veneno mortal.

Sobre a incontornável necessidade de um procedimento judicial e/ou extrajudicial ter luminosa clareza, cristalina limpidez e rigorosa garantia do direito de defesa, desde o primeiro momento, saltam dois nomes emblemáticos: Kafka, com uma história imaginada que parece realidade, e Dreyfus, com uma história real que parece imaginada. Ambos estão para sempre na História Mundial da Injustiça com páginas clássicas que nos ensinam os perigos, em qualquer processo, de que, de mau começo, seja ele contaminado pela incúria, pela malícia ou simplesmente pela desídia.
 
Kafka, nas páginas de uma de suas obras primas, O processo, criou uma fábula terrível, que se tornou severa advertência sobre as desastrosas consequências da ação arbitrária e sobre a veemente exigência de legalidade cristalina em um inquérito — desde o primeiro ato. Na obra imortal de Kafka, o personagem K. é um funcionário exemplar, que trabalha em um banco importante e tem um cargo de grande responsabilidade. Sempre cumpriu suas funções com muita dedicação e competência, o que lhe permitiu promoções e reconhecimento no trabalho. Entretanto, na manhã em que completava 30 anos de idade, Josef K. foi preso em seu próprio quarto por dois guardas, que tomaram o café que devia ter sido dele e, depois, insinuaram que ele tentava suborná-los. Então, começa o pesadelo de Josef K., detido sem ter feito mal algum. Inicialmente, perplexo, chegou a atribuir a situação a uma brincadeira de seus colegas de banco, pois não podia acreditar no que estava acontecendo. Josef K. acreditava que todo o mal-entendido seria desfeito e, ao ser convocado para um interrogatório, viu a oportunidade de esclarecer a situação. Lamentável engano. Deparou-se com um inspetor rude e agressivo que o ameaçava e fazia chantagens. K., inutilmente, exigiu esclarecimentos, mas nem o inspetor, nem os guardas sabiam explicar o motivo de sua detenção. A narrativa de Kafka continua sem que se saiba quem teria provocado aquele primeiro ato, aquela primeira acusação falsa que resultaria em toda a torrente de arbitrariedades...

Quem teria denunciado Josef K. às autoridades? Qual seria o motivo de sua prisão? Josef K. não se conforma com a situação e luta para descobrir do que está sendo acusado, quem o acusa e o fundamento da acusação. Em desespero, contrata um advogado, na busca de uma saída, e também para obter informações. Mas em seguida dispensa o defensor, que se mostrou desinteressado e desatento. Faz uma tentativa de entrar em contato com o Judiciário, mas resulta outra decepção: deparou-se com muitos processos, e o dele era apenas mais um, destinado a esperar muito tempo por uma solução incerta. Toda aquela situação e o desenrolar do processo parecem partes de um pesadelo: os acusadores e as testemunhas têm atitudes ambíguas e absurdas; até crianças foram chamadas a prestar depoimentos. No final, Josef K. desiste: sem ânimo para continuar lutando em um processo incompreensível, em que não vê saída possível, torna-se completamente apático. Indiferente ao que possa acontecer, diante da inutilidade de qualquer reação, desiste de lutar. O final é terrível: aceita que dois homens o matem: “(…) as mãos de um deles seguram a garganta de K., enquanto o outro lhe enterra uma faca profundamente no coração e depois a revolve ali duas vezes”.

Quando se fala em assegurar o pleno e irrestrito direito de defesa, essa triste fábula de Kafka deve ser meditada.  
        
Também merece ser lembrado o capitão Alfred Dreyfus, que enfrentou, na vida real, um dos processos judiciais mais célebres da História. O “Caso Dreyfus”, ocorrido no final do século 19 e início do século 20, é lamentável comprovação de que a terrível história de Kafka nada tem de imaginação delirante. Assim como ocorreu na ficção de Kafka, também no famoso caso real do Capitão Alfred Dreyfus verifica-se como um erro inicial tem o imenso poder de poluir totalmente a verdade de um processo judicial. Tudo começou quando uma espiã disfarçada, na embaixada alemã em Paris,  descobriu uma carta suspeita no cesto do lixo. A espiã entregou o documento aos serviços secretos franceses, que logo concluíram que existia, entre os oficiais franceses, um traidor que fazia espionagem para os alemães. Alfred Dreyfus era o único oficial judeu entre os que poderiam ter escrito a carta. Por esse motivo (nunca admitido), foi considerado o principal suspeito e levado a julgamento.

No julgamento, as diferenças da letra de Dreyfus em relação ao texto da  carta suspeita foram ignoradas. E a carta a ele atribuída foi usada como instrumento de acusação. Em um julgamento parcializado, Alfred Dreyfus foi condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na costa da Guiana Francesa. Em janeiro de 1895, foi realizada a cerimônia pública de degradação militar, os galões de sua patente, arrancados, e a espada, quebrada ao meio. Inutilmente, Dreyfus clamava sua inocência. Logo depois foi embarcado para a prisão, na Ilha do Diabo, onde sofreria por longos anos, acometido por malária, disenteria e muitas outras enfermidades físicas; todas, no entanto, infinitamente menores do que a dor moral da injustiça e do abandono. O caso parecia encerrado.

Mas ninguém, àquela altura dos acontecimentos, poderia sonhar com a tormenta que desabaria sobre a França.
 
O Caso Dreyfus dividiu a sociedade francesa entre os que exigiam um julgamento justo e os que não admitiam que se contestasse — em defesa de um judeu — a palavra de membros da cúpula do exército francês. Protestos começaram a surgir em outros países e se espalharam em uma grande campanha mundial, contra o desrespeito às regras de procedimento jurídico. A Justiça estava sendo desmoralizada em um lugar inesperado ― logo onde: no país da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Em 1898, as evidências da inocência de Dreyfus, fortalecidas pela pressão da opinião pública internacional possibilitaram um segundo julgamento. Para surpresa geral, foi confirmada a sentença anterior, o que provocou a indignação do grande Émile Zola: o escritor expôs o escândalo ao público no jornal L'Aurore em uma famosa carta aberta ao presidente da República intitulada J'accuse! (Eu acuso!), em 13 de janeiro de 1898, com uma reprimenda endereçada à França: "Como poderias querer a verdade e a justiça, quando enxovalham a tal ponto todas as tuas virtudes lendárias?". Na luta a favor do acusado, além de Zola, destacou-se a figura grandiosa do primeiro-ministro Clemenceau. Em 1902, com a pressão da opinião pública, novo pedido de revisão foi formulado, e, em 1906, a Corte de Cassação reconheceu, definitivamente, a inocência de Dreyfus, sem enviá-lo a novo julgamento. Dreyfus foi reintegrado ao exército com todas as honras, e ainda lutou em defesa da França na guerra de 1914. No dia 12 de julho de 2006, um século transcorrido daqueles tumultuados embates, a França inteira — com a unanimidade de todas as suas parcialidades — celebrou os 100 anos da reabilitação do Capitão Alfred Dreyfus.

Nesses exemplos iluminantes da literatura e da história real, verifica-se que a injustiça e a ilegalidade têm sementes vigorosas: a partir de uma ilegalidade inicial constrem-se iniquidades gigantescas.

O moderno Direito Administrativo bebe a água cristalina dessas fontes.

Doutrina e jurisprudência inclinam-se cada vez mais no sentido de exigir que o ato inaugural do processo administrativo disciplinar seja fundado nesse sólido alicerce: por um lado, a solenidade formal e o rigor à letra da Lei; e, no conteúdo, a busca da legitimidade e da legalidade. Em um e outro caso, a quimera de fazer Justiça — isto é, o melhor possível que a fragilidade humana consiga para atingir a metáfora antiga de agradar o humor e a vontade dos deuses.

Em termos práticos, a primeira questão a ser enfrentada é a imensa confusão brasileira sobre “processo administrativo”, “procedimento administrativo”, “inquérito administrativo”...

Romeu Felipe Bacellar Filho lembra que a doutrina brasileira do Direito Administrativo e do Direito Constitucional trata da competência para legislar sobre processo administrativo disciplinar como naturalmente inserida no Direito Administrativo Disciplinar material. Mas adverte, com razão, que se tornou verdadeira marca brasileira a existência de incontáveis processos e procedimentos administrativos disciplinares, tantos quantos são os regimes jurídicos somados às leis e aos decretos aplicáveis a determinadas categorias: tudo isto multiplicado pelo número de entes da Federação (Processo Administrativo Disciplinar, 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 42).

Com o advento da Constituição de 1988, a norma constitucional é expressa, afirmando categoricamente a existência do processo administrativo como consequência do art. 5º, inc. LV. Essa constatação ganha maior relevo pela circunstância de, em inúmeros trechos, a Constituição referir-se a "processo" quando da averiguação de ilícitos administrativos cometidos por agentes públicos. Bacellar Filho retira uma conclusão inevitável: se o processo administrativo (e, por derivação, o processo administrativo disciplinar) é "processo", há que ter todas as consequências já assentadas do processo judicial...

Em 1948, mais de meio século antes deste milênio, Bartolome A. Fiorini já advertia essa inegável circunstância de que processo administrativo disciplinar é processo, com todas as consequências e circunstâncias do processo judicial:

 "O direito administrativo moderno impôs a necessária legalidade na gestão da administração, para afiançar os valores jurídicos imanentes a todo o sistema normativo: ordem, segurança, paz, solidariedade, bem-estar, justiça. A legalidade não é uma graça de autolimitação da atividade administrativa, mas sim a razão fundamental do Estado de Direito.

Sem segurança, ordem, paz coletiva, bem-estar nem justiça, não existiria direito, quaisquer que fossem as finalidades das leis administrativas. As normas que estabelecem limites relativos à gestão dos interesses públicos compreendem os elementos objetivos que o administrador não deve desconhecer e que o controle dos atos administrativos pode investigar em caso de contradição ou contestação." (La discrecionalidad en la administración pública. Buenos Aires: Alfa, 1948).

O artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal é água límpida: o princípio da ampla defesa é aplicável a qualquer tipo de processo que envolva situação de litígio ou poder sancionatório do Estado sobre seus servidores; e o princípio do contraditório, inerente ao direito de defesa, decorrente da bilateralidade do processo, oportuniza às partes o direito de resposta.
        
A lição de Hely Lopes Meirelles é insofismável:

“A defesa é garantia constitucional de todos os acusados, em processo judicial ou administrativo, e compreende a ciência da acusação, a vista dos autos na repartição, a oportunidade para oferecimento de contestação e provas, a inquirição e reperguntas de testemunhas e a observância do devido processo legal (due process of law). É um princípio universal nos Estados de Direito, que não admite postergação nem restrições na sua aplicação.” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. Mandamentos)

Cintra, Grinover e Dinamarco vão mais longe, opinando que o texto constitucional autoriza o entendimento de que o contraditório e a ampla defesa são também garantias “até mesmo no processo administrativo não punitivo, em que não há acusados, mas litigantes (titulares de conflitos)” (CINTRA, Antônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2004).

O contraditório não admite exceções mesmo nos casos de urgência; e o acusado ou demandando poderá exercer seu direito de defesa plenamente e  sempre  antes da decisão definitiva.

De acordo com Cintra, Grinover e Dinamarco (op. cit.), em virtude de sua natureza constitucional, o contraditório deve ser observado não apenas formalmente, mas, sobretudo, pelo aspecto substancial, sendo de se considerar inconstitucionais as normas que não o respeitem. O contraditório contribui para que a instrução do processo se aproxime da verdade dos fatos e para que estes sejam precisos, ensejando uma decisão justa e correta.

Manifesta é a circunstância de que os princípios da ampla defesa e do contraditório estão profundamente interligados. O art. 143 da Lei 8.112/90, que trata do regime jurídico dos servidores federais, dispõe textualmente que

“a autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa.”
                 
A moderna doutrina e também a jurisprudência se inclinam no sentido de que ampla defesa exige o chamamento do acusado ou investigado ao feito, desde seu início, inclusive para que possa acompanhar e fiscalizar sua instrução — grifei (STJ, MS 6.798-DF, rel. Min. Felix Fischer; STJ, MS 6330-DF, rel. Min. Edson Vidigal).

Esse “chamamento do acusado ou investigado ao feito, desde seu início”, exige, objetivamente, na prática, a clara indicação ao acusado ou investigado das acusações, suspeitas ou imputações que são atribuídas a ele.

No julgamento do Agravo de Instrumento nº 5004778-51.2015.404.0000/RS pela 4ª Turma do TRF-4, o relator, Desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, guiando a unanimidade, sublinhou em seu voto que

“(...) impõe-se a indicação, na portaria de instauração do processo disciplinar, das infrações a serem averiguadas.

Não se trata de mera formalidade, mas de pressuposto essencial para a concretização da garantia da plena defesa do acusado, insculpida na Constituição (art. 153, § 15, da CF de 1969; art. 5º, LV, da CF de 1988). Impende, pois, que a portaria descreva o ato ou atos a apurar, indicando-se as infrações a serem punidas.”

Nessa matéria, o dispositivo constitucional chave é o art. 5º, LIV, que afirma a garantia do devido processo legal, reiterado pelo LV. Essa reiteração é significativa: no próprio texto constitucional fica evidente a proibição às expressivas irregularidades e ilegalidades que seguidamente esmagam indiciados. Como lembram Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, em seu admirável Processo Administrativo (3. ed. Malheiros, 2012. p. 157 e seguintes), dos incisos LIV e LV derivam todos os outros direitos e garantias destinados a assegurar a plenitude da defesa, com vistas à realização da Justiça.

Entretanto, Ferraz e Dallari admitem que são ainda recentes e fragmentadas, na prática e no pensamento jurídico brasileiros, a atribuição do devido valor e a extração de todas as consequências derivadas desse princípio constitucional — “como em relação aos demais também”, advertem com severidade. E lembram um fato lamentável:

“Existe até um preconceito no sentido de que a invocação exclusiva do princípio [enunciado nos incisos LIV e LV] corresponde ao reconhecimento da inexistência do direito postulado (!).”

O ponto de exclamação, de exasperação e quase desalento, é dos ilustres doutrinadores e corresponde a uma realidade recorrente. Sabem bem o quanto essa exasperação é verdadeira os advogados que atuam em processos, inquéritos, sindicâncias, procedimentos etc., em que representantes da administração ― às vezes de forma estabanada, outras vezes com malícia ― tentam tratar os rigores necessários à ampla defesa como se fossem “minúcias”. E, o que é pior: o questionamento da necessidade de ampla defesa é percebido como artifício para encobrir questões de mérito.  
        
Entretanto, no moderno direito administrativo, cresce o entendimento de que o rigor em relação ao princípio da ampla defesa deve ser extremo, considerado como incontornável cautela para a correta e verdadeira apuração dos fatos e da verdade processual. Exemplo disso são as conclusões do importante estudo Devido processo legal na administração pública, autoria de Vera S. Bueno, Gerfran C. Moreira, Rafael M. Mello e Vladimir R. França, incluído na Coleção Oswaldo Aranha Bandeira de Mello de Direito Administrativo, coordenada pela Dra. Lucia Valle Figueiredo (Max Limonad), que se aplicam à maravilha ao presente debate:

“(...) ilícito administrativo e ilícito penal distinguem-se pelos respectivos regimes jurídicos. (...) A despeito das diferenças entre os respectivos regimes jurídicos, ilícito administrativo e ilícito penal, bem como sanção administrativa e sanção penal, são manifestações do mesmo ius puniendi estatal, razão pela qual há proximidade entre em um e outro regime, podendo-se falar num regime jurídico do poder punitivo do Estado.”(Obra citada p. 155)

O que, muitas vezes, certos agentes públicos consideram “minúcias” são, para o indiciado, um tormento: na atualidade, existe a plena consciência de que o indiciamento e a submissão a inquérito são fatos gravíssimos, que impactam diretamente a estabilidade emocional, a vida e o destino de um servidor público. Não se trata de pretender “boa vontade” das autoridades, mas sim  imparcialidade. Ter a segurança de que será julgado com justiça ― a segurança que nem Dreyfus, nem o personagem de Kafka tiveram ― é um bálsamo. Isso porque a instauração de um inquérito administrativo — por mais justificado, por mais indispensável — trata-se do desigual enfrentamento de um particular diante do poderio da administração pública. No sentido desse entendimento, lembram com acerto Vera S. Bueno e os outros autores do estudo acima referido:

“Sendo assim, salta aos olhos que deve o Estado observar os mesmos princípios em uma hipótese e em outra. Não é razoável que o Estado, ao aplicar uma sanção penal, seja obrigado a respeitar uma série de garantias individuais, que foram conquistadas ao longo dos últimos dois séculos, e fique liberado de observá-las no momento de aplicar sanções administrativas que são muito mais graves do que sanções penais.”  (op. cit., p. 155)

Ao advertir que sanções administrativas podem ser tão graves ou até mais graves que  sanções penais, Vera S. Bueno e os autores acima citados lembram, de forma muito oportuna para o presente debate, o exemplo sugestivo da Lei nº 9.605/98, que disciplina as sanções penais e as sanções administrativas relacionadas ao meio ambiente. Ali está estabelecido que as multas podem ser de dois tipos: penal ou administrativa. A multa-sanção penal será calculada pelos critérios do Código Penal, podendo ser aumentada três vezes, “tendo em vista o valor da vantagem econômica auferida” (art. 18). Aplicando-se os critérios do Código Penal (arts. 49 e 60), tem-se que o valor máximo da multa aplicada por crimes contra o meio ambiente será de R$ 2.203.200,00. Já a multa-sanção administrativa, prevista na mesma Lei nº 9605/98, pode chegar à astronômica cifra de R$ 50.000.000,00 (art. 75). Ou seja: multa por ilícito ambiental capitulado como crime, pouco mais de R$ 2 milhões; sanção administrativa por ilícito ambiental, R$ 50 milhões. Nesse caso, portanto, a sanção administrativa é incomparavelmente mais onerosa do que a sanção penal.

A realidade funcional, muitas vezes, pela prevalência de atos arbitrários ou pela omissão ou fragilidade da defesa, colide de forma direta com a clara sinalização do constituinte, que tornou explícitas no inciso LV as garantias do acusado — de qualquer acusado: ampla defesa (“em processo judicial ou administrativo,  aos acusados em geral”) e mais o contraditório e os meios e recursos inerentes. Ficou assim estabelecida, como incontornável cláusula pétrea, a defesa ampla e reverente ao contraditório, assegurando-se ao acusado, em processo judicial ou administrativo, o direito de saber exatamente do que está sendo acusado, para que possa se defender. Entre os 78 incisos do artigo 5º, direitos e garantias individuais e coletivos, em cinco dimensões: vida, liberdade, igualdade, segurança, propriedade. Nos dias que correm, quem é acusado em um inquérito administrativo, com a espada da demissão, sente-se com toda a razão ameaçado nessas cinco dimensões.

Na inóspita realidade do dia a dia brasileiro, são reiterados nos tribunais os casos de direitos elementares  negados a indiciados submetidos a inquéritos sem saber exatamente do que se defender, pois esse compromisso mínimo de uma autoridade diante de um acusado — dizer claramente do que o servidor é acusado — lhe é negado.

Por certo que é sempre problemático discutir perante o Poder Judiciário questões de fato, relativas às opções burocráticas e administrativas, como ensinou o Ministro Victor Nunes Leal:
“A noção de interesse coletivo é tão vaga e imprecisa que nenhuma garantia teriam os particulares com a substituição do critério administrativo pelo judiciário. Sempre, portanto, que a discussão girar em torno de uma questão de conveniência pública ou de oportunidade — questão por sua natureza controvertida —, a administração se move com plena liberdade, imune da intromissão do judiciário.” (LEAL, Victor Nunes. Problemas de Direito Público. Rio de Janeiro: 1960. p. 292)

Entretanto, Mestre Nunes Leal adverte sobre as situações “em que fica patenteada a ausência de conveniência pública, pela manifesta preponderância do favoritismo, da perseguição, ou do puro proveito pessoal do agente” .
    
Nesses casos, a prova

“ressalta, ostensivamente, do conjunto das circunstâncias e até de evidências documentais. Em situações dessa natureza, pode o judiciário proclamar que a autoridade exorbitou, abusando do seu poder discricionário, agiu, portanto, arbitrariamente.” (op. cit. p. 292).
       
É exatamente o que ocorre quando se pretende discutir a ilegalidade do inquérito, o uso indevido do poder discricionário da administração. Seabra Fagundes, quando desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, pronunciou voto pioneiro (Ap. Cível 1.422), hoje um verdadeiro clássico, de viva atualidade, em que afirma:

“Se a administração, no uso de seu poder discricionário, não atende ao fim legal, a que está obrigada, entende-se que abusou do seu poder.” 

Victor Nunes Leal, ao citar esse ensinamento, com a modéstia dos grandes, enaltece a tese, acrescentando que a insistência pioneira nessa ideia central confere ao voto do então desembargador Seabra Fagundes o sentido inovador de que se revestiu nos idos de 1960 (e que mantém vigorosa atualidade até hoje), e não hesita em fazer uma límpida autocrítica pessoal:

“(...) esta questão tem sido descurada pela nossa jurisprudência, e o próprio autor deste comentário, ao tratar em outra oportunidade dos atos discricionários, deixou de fazer a respeito as ressalvas que se impunham.”  

A partir da pioneira advertência de Seabra Fagundes, atender ao fim legal desde o primeiro momento, na fase inaugural da instauração do Processo Administrativo Disciplinar, aparece como dever indeclinável da autoridade processante, por força do princípio da oficialidade, providenciar a produção das provas e zelar pela regularidade do processo. Muito embora possa a administração desempenhar o papel de acusador, o julgador administrativo tem o dever de cuidar para que o desdobramento do inquérito, desde o primeiro minuto e até o julgamento, ocorra da forma mais imparcial possível, examinando com cuidado e isenção todas as alegações apresentadas e as provas produzidas.

Ferraz e Dallari lembram Allan Randolph Brewer-Carías, que, em seu Principios del Procedimento Administrativo (Madrid: Civitas, 1990. p. 173), ressalta que, no processo administrativo, o direito de defesa não é um imperativo apenas de justiça, mas, sim, também de eficiência e de eficácia, na medida em que assegura melhor conhecimento dos fatos, contribui para o aprimoramento da administração e dá garantias de uma decisão mais justa. Por isso, por mais essa motivação, como decorrência do princípio do devido processo legal, devem ser proporcionados ao acusado todos os meios usuais de defesa.

Na opinião de Ferraz e Dallari, poucos estudiosos terão se aprofundado tão exaustivamente — e por certo de forma tão brilhante — quanto o Ministro Celso de Mello sobre o tema da efetiva dimensão da garantia constitucional do devido processo legal. Ganha destaque, entre outras várias decisões, liminar concedida por Celso de Mello no MS/MC 26.358-DF:

“A jurisprudência do STF tem reafirmado a essencialidade do princípio que consagra o due process of law, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo poder público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos.”(DJU 02.03.2007)

Mais adiante, no corpo de seu erudito pronunciamento, o Min. Celso de Mello configura o due process of law como um feixe de garantias:

“O exame da garantia constitucional do due process of law permite nela identificar, em seu conteúdo material, alguns elementos essenciais à sua própria configuração, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo; (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um  julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis ex post facto; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da  gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a autoincriminação); e (l) direito à prova.”

No âmbito administrativo, a autoridade responsável pela apuração de ilícitos e malfeitos tem poder instrutório e poder julgador que se aproximam, por analogia, a funções do Poder Judiciário. Isso, por certo, não exclui o Judiciário de decidir de acordo com a ordem legal, ou seja, realizar o controle da legalidade. E esse controle é bastante amplo. 

A propósito, o Supremo Tribunal Federal tem um precedente precioso, em voto do inesquecível Ministro Rodrigues Alckmin no Recurso Extraordinário nº 82.355 — PR (Revista Trimestral de Jurisprudência – v. 81, p. 160-164), acolhido à unanimidade na egrégia Primeira Turma do STF:

“Na  verdade, o mérito do ato administrativo diz com elementos discricionários do ato (por oposição a atos vinculados), referentes à conveniência e à oportunidade. Daí, apesar das restrições de José Cretella Júnior (O mérito do ato administrativo. R.D.A. /79/23), a procedência da afirmativa de que o ato vinculado é ato submetido a critérios de legalidade e neles não há mérito excluído da apreciação do Judiciário. Para não me alongar demasiadamente, invoco o douto comentário de Victor Nunes Leal, na R.D.A. III/81:

‘A legalidade do ato administrativo compreende não só a competência para prática do ato e as suas formalidades extrínsecas como também os seus requisitos substanciais, os seus motivos, os seus pressupostos de direito e de fato (desde que tais elementos estejam definidos em lei, como vinculadores do ato administrativo). Tanto é ilegal o ato que emane de autoridade incompetente ou que não revista a forma determinada em lei como o que se baseie em um dado fato que, por lei, daria lugar a um ato diverso do que foi praticado. A inconformidade do ato com os fatos que a lei declara pressupostos dele constitui ilegalidade, do mesmo modo que o constitui a forma inadequada que o ato porventura apresente.’

É de Seabra Fagundes o seguinte ensinamento, que já tivemos oportunidade de citar em outro trabalho e que foi ministrado precisamente sobre o tema que ora nos ocupa:

‘(...) uma vez conhecido o ato administrativo de exoneração e sobre ele provocado o pronunciamento dos tribunais, entram estes no exame do inquérito, fundamento do ato, tanto para constatar se se fez como manda a lei, como para aferir a conformidade do ato com o que se apurou no processo. A primeira questão é manifestamente de legalidade; a segunda, entretanto, poderá parecer de mérito. Mas não o é: o Judiciário se limita a verificar se o processo administrativo apurou um dos motivos dados pela lei como capazes de justificar a exoneração de funcionário.

Não indaga se o motivo é razoável, ou não, mas se a lei o especifica. Não inquire se o ato foi vantajoso aos interesses do serviço público, mas se o processo que lhe serviu de esteio apurou causa legal capaz de autorizar a demissão.’

Votando vencido em um dos casos dessa espécie, julgado em 1938, o Ministro Laudo de Camargo deixou bem claro que a apuração dos motivos faz parte do exame da legalidade:

‘A lei, quando exige a feitura prévia de um processo administrativo para autorizar a demissão, por certo exigiu igualmente que as provas dele resultantes fossem contra o funcionário... Na apreciação, o que se deve ter em vista é a legalidade ou não do ato incriminado. Terá ele que ser examinado pela forma com que se apresentar e pelos motivos que o determinarem.

Francisco Campos, em conhecido parecer, citando Jèze e Ranelletti,  ensina que é imprescindível à validade (quer dizer, legalidade) do ato administrativo a adequação do motivo real ocorrido com o motivo que a lei exige para a prática do ato.

Não tem, como se vê, fundamento sólido a afirmação de que, do exame de legalidade, está excluída a apreciação de fatos e provas.’

A conclusão de Cretella Júnior é a mesma:

‘Ao Poder Judiciário é facultado o exame do mérito do processo administrativo, investigando se houve o fato, fiscalizando as provas por meio de reexame, indo aos motivos, observando se houve aplicação falsa, viciosa ou errônea da lei ou do regulamento. Tudo isso é exame da legalidade, porque o mérito do ato administrativo continua a ser campo privativo da administração, impenetrável ao Judiciário’. (R.D.A. 79-37)

Ou, como disse, em voto, o eminente Min. Orozimbo Nonato:

‘O poder administrativo não exerce função judicante e não pode, pois, ainda que baseado em provas formalmente perfeitas, decretar, em última análise, em ultima ratio, que teve razão o Estado ou o funcionário. Essa competência seria atribuída ao Judiciário.
Uma vez que pode o funcionário, demitido por inquérito administrativo, trazer o caso ao Poder Judiciário – este ponto é pacifico e tranquilo, não oferece qualquer contestação – e se o Poder Judiciário pode e deve, para julgar, pesar as provas, rastreá-las e sopesá-las, terá que verificar se a motivação do ato administrativo é justa ou injusta.’ R.D.A. III/81)”

E o fecho do magnífico voto do Ministro Rodrigues Alckmin, acolhido à unanimidade, é ainda mais encorajador ao imperativo de justiça:

“Eu diria, apenas, que, no caso, verificar se houve, ou não, o fato que constitui pressuposto da punição não é verificar se esta foi justa ou injusta: é verificar se foi, ou não, legal, porque a lei exige a existência do fato para a aplicação de sanção.

Tenho, assim, como de absoluta legitimidade o exame, pelo Poder Judiciário, da prova dos fatos imputados ao funcionário, com a conclusão de que a punição disciplinar, em face dessa prova, é legal, ou não. O exame da legalidade não se confunde com a apreciação das meras formalidades do processo administrativo. E, no ato demissório, não há mérito excluído de apreciação judicial."

O que o Poder Judiciário pode — e deve! — é fiscalizar, no processo administrativo disciplinar, o respeito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa; isto é, os valores universais vigentes nas nações civilizadas. A propósito, Rafael Bielsa, com o rigor e a elegância costumeiros, sintetiza o exercício do poder disciplinar da administração, em que a conditio sine qua non  deve ser

“(...) um processo ornado pelo respeito às garantias e aos princípios jurídicos aplicáveis e que se justifica em razão do interesse do funcionário e da própria administração pública.” (BIELSA, Rafael. Derecho administrativo. 6. ed. Buenos Aires: La Ley, 1964. Tomos I a IV)
        
Marcelo Caetano arrola, entre os procedimentos implícitos ao direito do acusado, conhecer a formulação clara e precisa de artigos de acusação e a notificação deles ao processado. Na opinião do grande mestre português,

“(...) a exposição clara do comportamento transgressor atribuído ao acusado e do respectivo enquadramento legal, quando da abertura do processo administrativo disciplinar, é requisito fundamental do exercício do direito de defesa, porque, a partir do conhecimento inicial dos pontos de acusação, será possível ao servidor processado despender esforços, na fase instrutória, para carrear aos autos as provas que julgue pertinentes a refutar os fundamentos acusatórios.” (CAETANO, Marcelo. Manual de Direito Administrativo. 10. ed. Coimbra: Almedina. v. I e II)
        
Marcel Waline lembra regra vigente no regime disciplinar francês, que sintetiza valores que podem ser considerado universais:

“(...) não se pode impor a um funcionário qualquer punição disciplinar sem lhe comunicar previamente os motivos autorizadores, de modo a permitir ao acusado condições de discutir com utilidade a pretensão punitiva, de apresentar sua defesa, de contestar a exatidão dos fatos que lhe são increpados, a fim de evitar que o servidor seja condenado sem sequer saber o porquê disso.” (WALINE, M. Droit administratif, 8. ed. Paris: Sirey)

A propósito de Waline, é oportuna a lembrança de um voto do ilustre Desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, do TRF-4, que, com o brilho costumeiro, sintetizou o anseio de um postulante, lembrando

“(...) a lição do Prof. Marcel Waline, em que S. Exa. na Revue de Droit Administratif, de 1964, invoca a experiência dele, Prof. Waline, que é um dos maiores administrativistas franceses, atuando como advogado. Ele foi advogado de várias pessoas que foram acusadas depois que a França foi libertada na 2ª Guerra, e houve vários processos em relação aos funcionários do Governo de Vichy, da época da ocupação, lideradas pelo Mal. Petain. Naquela oportunidade, ele apontava os vícios justamente nesses processos administrativos que às vezes eram instaurados por peças meramente lacônicas. (...) impõe-se a indicação, na portaria de instauração do processo disciplinar, das infrações a serem averiguadas. Não se trata de mera formalidade, mas de pressuposto essencial para a concretização da garantia da ampla defesa do acusado, insculpida na Constituição. Impende, pois, que a portaria descreva o ato ou atos a reparar, indicando-se as infrações a serem punidas.

Nesse sentido, há um voto do nosso eminente Min. Sepúlveda Pertence, em que o Pretório Excelso deliberou que é nulo o processo administrativo disciplinar que omitir a substância de fato das acusações na portaria de sua instauração. Esse processo é o Recurso Extraordinário nº 120.570, da Bahia, relator Min. Sepúlveda Pertence, publicado na Revista Trimestral de Jurisprudência 138/658.”
Maurice Hauriou alude à consagração da garantia formal da comunication du dossier  no Direito francês, por força do disposto na centenária Lei de 22 de abril de 1905, no sentido de que

“(...) todos os funcionários civis e militares, empregados e trabalhadores das administrações públicas, têm direito à comunicação pessoal e confidencial de todas as notas, folhas e outros documentos formadores de um dossiê: seja antes de qualquer medida disciplinar, exoneração de ofício ou de retardamento na ordem de antiguidade, observando-se um certo prazo entre a notificação e a medida decisória, suficiente para que o interessado possa apresentar seus meios de defesa, além de que, nos casos em que não exista a documentação escrita mediante dossiê, devem ser expostos os motivos precisos da decisão tomada.” (HAURIOU, Maurice. Précis de Droit Administratif. Paris)

André de Laubadère vai mais longe, lembrando que, no direito francês,

“(...) vigora tendência à jurisdicionalização da responsabilidade disciplinar, manifestada pela existência de um conjunto de regras procedimentais obrigatórias, estabelecidas no interesse dos funcionários, constitutivas de garantias para eles e que formam um conjunto de limitações aos poderes do chefe hierárquico(...).” (LAUBADÈRE, André. Traité élémentaire de Droit Administratif. Paris: Librairie Générale de Droit e de Jurisprudence, 1953)

                
A Constituição Federal, em seu art. 5º, ao afirmar os direitos e garantias fundamentais, “é até redundante no que diz respeito ao direito de defesa” — notam Ferraz e Dallari. “Algumas de suas prescrições não são específicas do processo administrativo, mas a ele se aplicam, como é o caso do acesso ao Poder Judiciário se, no processo administrativo sancionatório ocorrer alguma lesão (ou ameaça de lesão) de direito”.
  
Talvez por essa razão o constituinte tenha tido o cuidado de tornar mais explícitas as garantias do acusado, e, por isso, de novo, reiteradamente, nos incisos LIV e LV, garantiu o devido processo legal, a ampla defesa e mais: o contraditório e os meios e recursos inerentes à ampla defesa. Desde o início de qualquer processo — seja judicial, seja administrativo —, fica certo que a defesa deve ser ampla e reverente ao contraditório, assegurando-se ao acusado, às partes, aos interessados, enfim, os meios necessários à produção da prova e da defesa — aí incluída a faculdade de recorrer da decisão proferida.

Não basta lançar na portaria inaugural de um processo administrativo disciplinar a imputação ou a suspeita de que o indiciado deve responder por “irregularidades”. A propósito de “irregularidades” e/ou acusações de “procedimento irregular”, lançadas assim, sem maiores explicações, em um processo administrativo disciplinar, cabe a lembrança de Cretella Jr.:

“Artigos que falem em ‘procedimento irregular’ podem ser considerados infringidos quase diariamente, a todo instante. (...) O primeiro Estatuto dos Funcionários aludia ao ‘procedimento irregular’ do agente e, assim, todos podiam ser demitidos no período ditatorial! (...) Portaria que instaura processo administrativo capitulando de forma genérica a falta cometida é ato formalmente nulo, defeituoso quanto à legalidade extrínseca, porque não permite que o agente público se defenda. Mesmo comparecendo ao inquérito acompanhado de advogado, o agente público não sabe ainda sobre o que será inquirido: ‘Sou acusado de procedimento irregular, de haver praticado ato indigno, imoral. Qual ato? Qual o procedimento? Quando?’” (CRETELLA JR., José. Direito Administrativo perante os tribunais. Forense Universitária, 1994. p. 173-74)

Quando a autoridade administrativa decide a instauração de um processo administrativo disciplinar, vale lembrar Hely Lopes Meirelles, com sua incontestável autoridade:

“Essencial é que a peça inicial descreva os fatos com suficiente especificidade de modo a delimitar o objeto da controvérsia e a permitir a plenitude da defesa. Processo com instauração imprecisa quanto à qualificação do fato e à sua ocorrência, no tempo e no espaço, é nulo.” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 6. ed. 1978. p. 643)

Esse momento inicial do processo administrativo disciplinar é fundamental para dar legitimidade e legalidade ao desdobramento e às conclusões do inquérito. Assim não ocorrendo, isto é, como diria o Mestre Cretella Júnior, quando um ato de autoridade com características de “sentença” ou “decisão final” vem a ser adotado sem as formalidades de lei, sem o devido processo legal, a decisão é nula: é uma decisão que, para usar as palavras do Mestre,  “não tem eficácia, entra nulamente no mundo jurídico” (CRETELLA JR., J. Comentários à Constituição de 1988. Forense. vol. I. p. 527).

Vale lembrar um importante precedente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em decisão na qual concedeu liminar de antecipação de tutela no Agravo de Instrumento nº 5004778-51.2015.404.0000/RS, da lavra do já referido Desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, que, em situação por tudo e em tudo pertinente ao presente debate, sintetizou a exigência intransponível da lei e da ordem constitucional:

“(...) impõe-se a indicação, na portaria de instauração do processo disciplinar, das infrações a serem averiguadas.

Não se trata de mera formalidade, mas de pressuposto essencial para a concretização da garantia da plena defesa do acusado, insculpida na Constituição (art. 153, § 15, da CF de 1969; art. 5º, LV, da CF de 1988). Impende, pois, que a portaria descreva o ato ou atos a apurar, indicando-se as infrações a serem punidas.”

Nessa impecável decisão judicial, é lembrada a oportuna lição do já citado Romeu Felipe Bacellar Filho:

“A portaria de instauração do processo administrativo disciplinar, ou ato equivalente, deve indicar os elementos necessários à identificação do funcionário acusado (ou litigante), a figura infracional caracterizada pelo comportamento descrito e a sanção, em tese cabível, em face da infração. Em suma, não basta a referência genérica a irregularidades, nem a simples indicação de dispositivo legal supostamente violado, porque ninguém pode defender-se de capitulação jurídica. Deve estar indicado um comportamento singular do servidor, identificável no tempo, no espaço e na forma de concretização.
A tipificação da infração disciplinar deve ser realizada no momento da instauração do processo disciplinar, embora possa ser revista, como adiante será analisado, no momento da indiciação do servidor. É preciso repisar que o princípio do contraditório incide na fase de instauração do processo disciplinar, e não somente na fase posterior – o impropriamente chamado 'inquérito administrativo'.
O Supremo Tribunal Federal deixou implícito tal ponto de vista quando considerou a existência da figura do acusado já na fase instrutória do 'processo disciplinar'. Se a instauração não correspondesse a uma acusação, não seria possível ter um acusado na instrução, fase imediatamente posterior àquela. Como ressaltou o ministro Moreira Alves, 'a ampla defesa que o artigo 153 da referida lei assegura ao acusado, com a observância do princípio do contraditório, não abarca apenas o indiciado, mas também o acusado em sentido estrito, que é a qualificação que se dá, na fase instrutória do inquérito, ao ainda não indiciado’.”(Processo administrativo disciplinar, 3. ed. Saraiva, 2012. p. 257-8)

Em relação ao processo administrativo disciplinar, as disposições da Constituição Federal de 1988 são incompatíveis com “um processo administrativo qualquer”, que se reduza a uma formalidade banal, em que  possa vicejar um simulacro de defesa. Ao contrário, o texto constitucional sugere um processo administrativo disciplinar com contraditório e ampla defesa, incluindo os meios e recursos a ela inerentes. Logo, sem o contraditório e sem a ampla defesa não há processo administrativo disciplinar válido, pois essas garantias integram o seu conceito.

É notório que, no processo disciplinar administrativo, a autoridade tem rigor comparável à repressão de infrações criminais; mas raramente esse rigor tem a indispensável contrapartida da garantia dos princípios da ampla defesa, nas comissões de inquérito. Por isso, são crescentes as resistências dos perseguidos, com acúmulo de ações judiciais questionando o viés autoritário de entes da administração pública na aplicação de leis, regulamentos e práticas disciplinares. Esse viés autoritário viceja na contramão do Estado democrático de Direito: com certeza, o papel das comissões de inquérito deveria ser, em primeiro lugar, garantir certeza jurídica em suas decisões. Entretanto, a realidade dos fatos, em todos os níveis da administração pública, o fato concreto, é que a maioria dos dispositivos e dos regulamentos, ao cuidarem da fundamentação da decisão disciplinar, não busca a tão esperada justiça, mas sim hipóteses ensejadoras de responsabilização, não especificando as excludentes de antijuridicidade nem os casos de absolvição por insuficiência de provas, inexistência do fato ou negativa de autoria. Essa lamentável deformação deriva da preocupação central de administradores, que, não poucas vezes, parece voltada para as hipóteses de responsabilização; a possibilidade de o acusado ser inocente geralmente é vista como uma excepcionalidade.

Outra voz exemplar, Celso Antônio Bandeira de Mello, adverte que o processo administrativo atende a um duplo objetivo: “resguardar os administrados e concorrer para uma atuação administrativa mais clarividente”.

Em defesa desse entendimento, quanto ao primeiro objetivo do processo administrativo, o ilustre doutrinador aponta, em sua cátedra, o ensejo ao administrado “de que sua voz seja ouvida antes da decisão que irá afetá-lo. Vale dizer: considerando-se o processo administrativo como sendo a ordenação de atos tendentes a solucionar uma controvérsia, o momento a ser considerado como o marco inicial do processo administrativo deveria coincidir com o momento em que surge a possibilidade de o acusado contrapor-se à acusação. É de rigor, em qualquer caso de irregularidade ou suspeita de irregularidade na administração pública, reportar, ainda que minimamente, os fatos, ensejando aos suspeitos ou implicados todos os direitos e meios de acompanhar o processo, de contestar provas e de produzir suas próprias provas a seu favor.

Não basta o genérico amplo do tipo registrado em inquérito administrativo em uma importante cidade do interior do Rio Grande do Sul:

“Vimos, com este, NOTIFICAR e dar conhecimento de que V. S. se encontra envolvido nos fatos de que trata o processo acima referido, os quais dizem respeito a possíveis irregularidades ocorridas neste órgão.”

Trata-se de “mandado de notificação” vago, genérico, confuso, indeterminado, impreciso... E não contém sequer uma ideia longínqua daquilo de que o possível implicado deve se defender. No caso, é inevitável a perplexidade: envolvido em fatos de que trata o processo acima referido. Em qual ou em quais das centenas de páginas do processo acima referido estaria a falta a ser punida? Quais são os “fatos”? Supostamente, os fatos “dizem respeito a possíveis irregularidades”.  Que tipo de “irregularidade”?
                                                        
Ou seja: as possíveis irregularidades” não são descritas, e nem sequer sugeridas sumariamente. Os supostos “fatos” não são identificados, nem sequer descritos. O suposto “envolvimento” do “envolvido” também não é revelado, nem sequer insinuado... Como alguém pode se defender de algo assim?

A certeza jurídica nos processos disciplinares, nesses casos, é de difícil alcance, porque, na maioria das vezes, os PADs não são instaurados para apurar uma transgressão disciplinar, mas sim para punir aquele que se toma por culpado, antes mesmo da redação da portaria inaugural. Mudam os personagens, mas a distorção é histórica e se reitera com assustadora semelhança.

A nulidade inicial de um processo administrativo disciplinar é irremediável e contamina de forma definitiva todos os atos subsequentes — porque os acusados, nesses casos indesejáveis, desde o início não sabem exatamente do que se defender.
         
Mandados de notificação”, muitas vezes, são insólitos porque impedem de forma absoluta a defesa do servidor “envolvido”, turvando de forma irreversível a legitimidade e a legalidade de todo o resto. Nesses casos, não se trata de uma notificação, mas sim de uma armadilha.

O inquérito e a acusação formulada contra um indiciado não podem ter a origem espúria de uma notificação inicial absolutamente nula e sem nenhuma validade jurídica, na qual o acusado é submetido a inquérito administrativo em que é obrigado a enfrentar acusações vagas e sem consistência real. 

Não são poucos os estudiosos que advertem as autoridades públicas para evitar “atos dissociados do direito, ainda mais quando se verifica que eles são produzidos na esfera sancionatória do Estado” (MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O contrato administrativo. 2. ed. América Jurídica e O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92. América Jurídica).

Ao ser concretizado o jus puniendi do Estado, o mínimo que se exige é que a acusação seja perfeitamente descrita, por meio da exposição detalhada do fato a ser investigado, com todas as suas circunstâncias e a classificação do tipo legalmente previsto no ordenamento jurídico que foi infringido.

Se, na instância criminal, o artigo 41 do Código de Processo Penal exige que a denúncia ou a queixa sigam a fórmula legal, também no processo administrativo disciplinar deverá haver a observância do mesmo modelo legal, pois a acusação não pode ser ato de prepotência ou arbitrariedade da administração pública.
        
No Direito Administrativo disciplinar, exige-se que a acusação seja certa, objetiva, circunstanciada, e o fato imputado ao servidor público, subsumido em um tipo legalmente previsto, decorrendo tais exigências dos princípios da legalidade e da segurança jurídica. O formalismo e o rigorismo do processo penal são um paradigma sugestivo: o processo administrativo disciplinar não pode ser uma incógnita para o servidor público acusado. Insiste-se que a portaria inaugural, assim como o termo de indiciamento, devem corresponder a uma denúncia penal, em que a descrição dos fatos, os fundamentos e a demonstração das provas, de forma explícita, retiram a inépcia da acusação. Ou seja, o fato apurado é esclarecido exatamente nessa fase, em que o Direito Administrativo brasileiro saiu do inquisitório para o acusatório, passando o investigado a ter direitos impostergáveis e indelegáveis, sendo que um deles é tão fundamental quanto os demais: consiste em saber do que é acusado e como demonstrará sua inocência, pois a presunção de inocência milita a seu favor e só uma acusação séria e concreta é que terá legitimidade de provar o contrário.

O tipo penal, adverte Miguel Reale Júnior, é aquele cuja estrutura não poderá ser uma construção arbitrária e livre, porquanto decorre do real, submetido a uma valoração. Por sua vez, o tipo disciplinar também segue o mesmo princípio da segurança jurídica, em que tanto a portaria inaugural como também o mandado de citação/intimação devem conter uma exposição narrativa, circunstanciada e demonstrativa da infração disciplinar que será investigada, com o tipo legalmente classificado, ou seja, com a sua qualificação jurídico-administrativa.

Narrativa, porque deve descrever o fato a ser investigado com todas as circunstâncias conhecidas, para que oportunize a defesa saber do que o servidor está sendo acusado e qual foi o ato funcional que foi praticado ou omitido, em tese, em desconformidade com as obrigações assumidas pelo exercício do cargo; demonstrativa, pois tal qual o direito penal, deve a peça acusatória descrever o fato, fundamentada em prova direta da prática de infração disciplinar do servidor, explicitando os motivos da investigação.

Para encerrar, uma lição permanente.

Em matéria de direito de defesa — absoluto, amplo, geral e irrestrito —, válido em qualquer tipo de inquirição, restou inesquecível a lição de um mestre que todos reverenciamos: o saudoso Ministro Carlos Thompson Flores, que, em plena ditadura militar, não vacilou, como presidente do STF, em, mais de uma vez, ficar ao lado dos perseguidos.

O Ministro Carlos Thompson Flores — cabe aqui um brevíssimo parêntese para destacar essa figura grandiosa da cena jurídica brasileira — foi juiz em diversas comarcas do interior do Rio Grande do Sul, desembargador no TJRS, presidente do TJRS, ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do STF, em plena ditadura militar. Tão grande era sua autoridade moral que, mais de uma vez, o poder armado se curvou diante de decisões suas, como ocorreu, por exemplo, quando esse valente brasileiro concedeu liminar em habeas corpus em favor do então líder estudantil Vladimir Palmeira, inimigo jurado do governo militar.

Assim, como encerramento destes comentários sobre o direito de defesa no processo administrativo, parece pertinente lembrar o saudoso voto do Ministro Carlos Thompson Flores que se tornou aula magistral acerca do direito de defesa no processo administrativo, com palavras lapidares:

“9.2 É lamentável que a Egrégia Corte tenha procedido contra a lei, realizando o ato impugnado, deslembrada de assegurar o direito de defesa à concorrente, máxime nas circunstâncias em que o fez. Dito direito é inato à criatura humana.
O próprio Deus, o mais sábio e justo dos juízes, assim o entendeu, apesar do seu poder total, desde o princípio do mundo. Externou-o ao ser cometido o primeiro homicídio ocorrido sobre a Terra, quando Caim, levado pela inveja, matou seu irmão Abel.
São palavras do Senhor, segundo a Bíblia Sagrada, Genesis, cap. 4, nº 9:
'E o Senhor disse a Caim: onde está teu irmão Abel? Ao que Caim respondeu. Eu não sei. Acaso sou eu guarda do meu irmão?'
E consta do mesmo livro e capítulo, nº 10:
'Disse-lhe o Senhor: Que é o que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama desde a terra até mim.'
E, só então, o Senhor o puniu. Não se animou, o maior Juiz, a aplicar-lhe a sanção, como o fez, sem ouvi-lo para que se defendesse.
E assim seguiu-se na marcha das gerações.
Entre nós, o direito de defesa jamais foi ignorado e deixou de ser reconhecido. Desde o regime republicano, conforme a Constituição de 1891, resultou expresso, art. 72, § 16. Integrou ele as demais Constituições que àquela se seguiram: 1934, 1937, 1946, 1967 e Emenda nº 1/69, art. 153, § 15, em pleno vigor.

9.3 Por certo os fatos mais comuns ocorrem nos procedimentos criminais. Mas sempre se reconheceu a necessidade de observar-se o direito de defesa nos processos administrativos, quando do seu exame se imputa falta grave ao servidor. No presente procedimento, a toda evidência, ele é de aplicar-se, uma vez que se trata de processo semelhante ao qual incidem normas decorrentes do Direito Administrativo.

9.4 Cabe assinalar que, mesmo no regime revolucionário instaurado no país em 1964, os atos institucionais, embora sobranceiros à própria Constituição, reconheceram o direito de defesa, deixando-o expresso. Assim ocorreu com o primeiro deles, AI nº 1/64, art. 7º, § 4º, com a regulamentação que lhe atribuiu o Decreto nº 53.897, de 27.04.1964, art. 5º (in R.F., v. 206/434), ao impor graves sanções.
No S.T.F., concorri com meu voto para anular diversas sanções impostas com base no citado art. 7º, § 4º. E o fundamento central das nulidades dos procedimentos referidos assentou na falta de audiência dos imputados, como o impunha a citada legislação. Destaco de tais julgamentos os primeiros deles, publicados na R.T.J., v. 47/211; v. 50/67; e v. 53, p. 120 e 379.

Inegavelmente, o princípio em comentário, direito de defesa, aplica-se ao procedimento do concurso quando, é certo, ocorre acusação sobre o concorrente já admitido em definitivo, depois de procedido o seu respectivo exame, discricionariamente, pelo Tribunal. Certo, ele não vem expresso, apesar dos detalhes introduzidos na regulamentação do concurso, seja no edital, seja em leis outras a ele referentes.

Dito direito, que o Padre Vieira acentuava em seus 'Sermões' ser 'sagrado', está implícito na sua disciplinação, uma vez que a Constituição sobre ele incide, projetando-se com toda a força e intensidade.” (In Revista de Direito Administrativo, v. 225, p. 420-5)

 



Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., fev. 2016. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS