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publicado em 29.04.2016
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Introdução Empresas de telefonia, a seu turno, representam outra fatia expressiva das demandas em curso perante a Justiça brasileira, notadamente em razão de comportamentos reiterados de desrespeito a direitos fundamentais dos consumidores de tais serviços. Diante de tal cenário, o direito não pode ficar inerte e deve oferecer mecanismos que imponham uma atuação ética e proba aos prestadores de serviço e negociantes que queiram realizar seus lucros em território nacional. Os cálculos que contabilizam como lucro os resultados decorrentes de más práticas comerciais não podem ser tolerados. No que tange ao serviço público, a prestação de serviços de acordo com os princípios da moralidade, da legalidade e do respeito aos direitos fundamentais do cidadão é inerente ao próprio regime jurídico de direito administrativo. No entanto, multiplicam-se os litígios nos quais se postula a adequada prestação de serviços públicos. Como resposta aos clamores sociais, a jurisprudência dos tribunais superiores – com respaldo em parcela da doutrina – tem reconhecido aos lesados o direito a indenizações com caráter punitivo, pedagógico, dissuasório etc. A função punitiva das indenizações, em especial no campo do dano moral, apoia-se em várias teorias, desde a aplicação em solo brasileiro dos denominados punitive damages do Direito anglo-saxão ao reconhecimento de uma parcela autônoma, destacada da indenização meramente compensatória. Em outros julgados se reconhece que o arbitramento da indenização pelo dano moral deve ter como critérios o grau de culpa do agente e a reiteração de comportamentos lesivos à ordem jurídica, com prejuízo a um grande número de pessoas. Contudo, tal espectro de concepções acerca do reconhecimento da função punitiva das indenizações por dano, especialmente o dano moral, traz consigo problemas de ordem processual. Ainda que superadas as questões de legitimidade processual para postular parcelas decorrentes da aplicação de sanções, outras questões processuais merecem maior reflexão, tais como o exercício do direito de defesa, a adequada fundamentação das decisões, o direito à produção probatória e o princípio do contraditório, em sua vertente que veda “surpresas” processuais. Sem a pretensão de aprofundamento do debate acerca da (in)compatibilidade da função punitiva das indenizações por dano – especialmente o dano moral – com o direito positivo brasileiro, o presente estudo buscará refletir sobre algumas dessas questões processuais que as teorias encampadas pela jurisprudência nessa matéria acabam por suscitar e propor medidas que harmonizem as “indenizações punitivas” com os princípios e as garantias de um processo justo. 1 As funções da reparação civil A fim de criar uma pauta de comportamentos conforme as expectativas sociais, o ordenamento jurídico pode atuar tanto visando à prevenção ou à repreensão pelo Direito Público (Direito Penal e Direito Administrativo sancionador) quanto à reparação dos danos causados pelo agente, na esfera civil (responsabilidade civil). Nesse norte, a responsabilidade na esfera civil, materializada no instituto da reparação civil, reveste-se, segundo certa corrente doutrinária, em três funções precípuas: “compensatória do dano à vítima; punitiva do ofensor; e de desmotivação social da conduta lesiva”.(3) A função compensatória da indenização decorrente do dever de indenizar é aceita sem qualquer controvérsia tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, já que decorre dos expressos termos do art. 944 do Código Civil, que positivou o princípio da reparação integral. Quanto às funções punitiva, pedagógica, dissuasória e de desestímulo, notadamente no que se refere às indenizações por dano moral, em que pese a existência de correntes doutrinárias conflitantes acerca do tema, vários são os pronunciamentos jurisprudenciais que atribuem às indenizações por dano moral um viés punitivo, com soluções e argumentações diversas. Há julgados que alicerçam seu entendimento acerca da função punitiva das indenizações na suposta incorporação ao direito pátrio do modelo norte-americano dos punitive damages.(4) Outros precedentes fundamentam-se na função punitiva, didática, pedagógica ou dissuasória como critério para a fixação do montante da indenização. Nesse sentido, o precedente cuja ementa se transcreve abaixo é ilustrativo: “Dano moral. Reparação. Critérios para a fixação do valor. Condenação anterior, em quantia menor. Na fixação do valor da condenação por dano moral, deve o julgador atender a certos critérios, tais como nível cultural do causador do dano, condição socioeconômica do ofensor e do ofendido e repercussões do fato na comunidade em que vive a vítima. Ademais, a reparação deve ter fim também pedagógico, de modo a desestimular a prática de outros ilícitos similares, sem que sirva, entretanto, a condenação de contributo a enriquecimentos injustificáveis. Verificada condenação anterior, de outro órgão de imprensa, em quantia bem inferior, por fatos análogos, é lícito ao STJ conhecer do recurso pela alínea c do permissivo constitucional e reduzir o valor arbitrado a título de reparação. Recurso conhecido e, por maioria, provido.”(5) Em outros precedentes, a função punitiva das indenizações por dano moral é alcançada e mesmo reforçada mediante a utilização da teoria do “dano social”.(6) O julgado abaixo transcrito é particularmente ilustrativo, quanto à assertiva: “EMENTA: RECURSO CÍVEL. AÇÃO DE REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS. ESPERA EM FILA DE BANCO. FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. DANO MORAL. DANO SOCIAL. REVERSÃO DE CONDENAÇÃO. VALOR. 1 – Verifica-se nos autos a existência do dano moral sofrido pelo recorrente, que permaneceu nas dependências de uma das agências do recorrido por mais de 65 (sessenta e cinco) minutos para que fosse atendido. 2 – Desse modo, verifica-se a infringência ao art. 2º da Lei nº 7.867/99, que determina o prazo de atendimento ao cliente em até 20 (vinte) minutos, em situações normais. 3 – Havendo falha na prestação de serviços, deve o recorrido responder nos exatos termos do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor. 4 – Estando presentes os requisitos previstos no artigo 186 do Código Civil, é escorreita a condenação por danos morais sofridos pelo autor, conforme imposto no decisum guerreado. 5 – O valor da condenação por danos morais deve ser majorado para R$ 2.000,00 (dois mil reais), para melhor atender aos parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade entre a ação ilícita praticada e o dano sofrido, revelando seu caráter compensativo, pedagógico e indenizatório, evitando-se o enriquecimento sem causa. 6 – Consubstanciam-se em dano social as práticas reiteradas que causam lesões aos consumidores e, consequentemente, à sociedade e que devem ser afastadas nos termos do artigo 404, parágrafo único, do Código Civil e dos artigos 81, 82 e 83 do Código de Defesa do Consumidor. 7 – A quantia fixada a título de condenação por dano social se mostra razoável e proporcional à gravidade do ilícito praticado, levando-se em conta a prática reiterada do banco recorrido em prejuízo dos consumidores. 8 – Quanto ao pedido do recorrente no sentido de se reverter a condenação por dano social em seu favor, não merece proceder, justamente em face do que foi discorrido acerca da finalidade de cada modalidade de indenização. 9 – Recurso conhecido e parcialmente provido. Sentença reformada, para fins de majorar o valor da condenação por danos morais para R$ 2.000,00 (dois mil reais), mantendo-se, no mais, a referida decisão.” (destaque nosso)(7) A multiplicidade de argumentos e fundamentos utilizados pelo Poder Judiciário brasileiro para respaldar a função punitiva da indenização por dano moral gera uma série de questionamentos. Do ponto de vista da dogmática da responsabilidade civil, estudos doutrinários(8) apontam inconsistências teóricas que podem fragilizar o instituto. Também do ponto de vista de sua eficácia social, questiona-se se a ausência de norma proibitiva de inclusão de tais rubricas em contratos de seguro e seu repasse no preço de serviços e produtos não teriam por consequência a neutralização de seu pretendido viés de desestímulo e dissuasão de comportamentos antijurídicos, especialmente no que tange aos danos causados por pessoas jurídicas de maior porte. Nesse contexto, a partir de breve inventário das diversas soluções encontradas pela jurisprudência brasileira para dar concretude à função punitiva das indenizações por dano, este estudo buscará contribuir para a discussão acerca das questões processuais que o tema suscita. 2 Os punitive damages na jurisprudência brasileira Diversos precedentes, notadamente oriundos da Justiça do Trabalho, ancoram-se no instituto dos punitive damages para fixar uma parcela adicional, de cunho punitivo, além daquelas já fixadas com a finalidade de ressarcir ou compensar o dano sofrido, nas ações em que se discute responsabilidade civil nas relações de trabalho. Sobre o tema, é particularmente elucidativo o Recurso Ordinário 0011216-57.2014.5.03.0163, julgado pela Primeira Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região em 19.10.2015, cuja ementa é a seguinte: “EMENTA: DUMPING SOCIAL TRABALHISTA – ESPIRAL DE DESRESPEITO AOS DIREITOS BÁSICOS DOS TRABALHADORES – CARACTERIZAÇÃO PARA ALÉM DE UMA PERSPECTIVA MERAMENTE ECONÔMICA – CONSEQUÊNCIAS – Segundo Patrícia Santos de Sousa Carmo, ‘A Organização Internacional do Trabalho e o Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos têm denunciado que os direitos sociais estão cada vez mais ameaçados pelas políticas econômicas e pelos estratagemas empresariais. Nesse sentido, é inconteste que o Direito do Trabalho, por influência dos impulsos sociais aos quais é exposto, tem sido crescentemente precarizado, de modo que se tem um dano social que aflige a própria matriz apologética trabalhista. A expressão dumping, termo da língua inglesa que deriva do verbo to dump, corresponde ao ato de se desfazer de algo e, posteriormente, depositá-lo em determinado local, como se fosse lixo. Há, ainda, quem defenda que o termo possa ter se originado do islandês arcaico humpo, cujo significado é atingir alguém. Os primeiros registros do dumping social, ainda que naquela época não fosse assim denominado, são de 1788, quando o banqueiro e ministro francês Jacques Necker mencionava a possibilidade de vantagens serem obtidas em relação a outros países, abolindo-se o descanso semanal dos trabalhadores’. A primeira desmistificação importante é que o dumping social, na verdade, liga-se ao aproveitamento de vantagens dos custos comparativos, e não de uma política de preços. Retrata, pois, uma vantagem comparativa derivada da superexploração de mão de obra. Dentro desse recorte epistemológico, interessa o prejuízo ao trabalhador, o prejuízo à dignidade da pessoa humana, o prejuízo ao valor social do trabalho, o prejuízo à ordem econômica, o prejuízo à ordem social e o prejuízo à matriz apologética trabalhista. Com efeito, no século XX, com o advento do constitucionalismo social e da teoria da Constituição dirigente, altera-se o papel da Constituição: se antes apenas retratava e garantia a ordem econômica (Constituição econômica), passa a ser aquela que promove e garante as transformações econômicas (Constituição normativa). Dessa maneira, é imperioso compatibilizar o plano normativo com o plano factual, a livre-iniciativa com o valor social do trabalho, sob pena de se estar em sede de uma Constituição semântica, cuja funcionalidade não aproveita aos destinatários dela, mas a quem detiver poder. Em se tratando de dumping social, a mera aplicação do Direito do Trabalho, recompondo a ordem jurídica individual, não compensa o dano causado à sociedade, uma vez que reside o benefício no não cumprimento espontâneo das normas trabalhistas. Dessa feita, as reclamações trabalhistas que contenham práticas reiteradas de agressões deliberadas e inescusáveis aos direitos trabalhistas, dado o grave dano de natureza social, merecem correção específica e eficaz. Apresentam-se no ordenamento jurídico dois institutos jurídicos, a saber, indenização suplementar por dumping social e punitive damages, que constituem modalidades de reparação desse dano social. No que respeita à indenização suplementar por dumping social, a defesa de sua aplicação reside em uma análise sistemática do ordenamento jurídico. Sobrelevando-se que as normas infraconstitucionais devem assumir uma função instrumento, tendo, ainda, em vista a realização superior da Constituição e a preponderância dos direitos fundamentais em relação às leis, somando-se ao fato de que o direito deve ser visto como um sistema aberto e plural, devem aquelas normas ser aplicadas de modo a buscar a concretização. Assim, em caso de dumping social, autoriza-se que o juiz profira condenação que vise a reparação específica, pertinente ao dano social perpetrado, ex officio, com vistas à proteção do patrimônio coletivo que foi aviltado, que é denominada indenização suplementar por dumping social, a qual favorecerá o Fundo de Amparo aos Trabalhadores (FAT) ou alguma instituição sem fins lucrativos." (destaque nosso) Especificamente no que tange a condenação a parcela adicional de indenização por “dumping social”, de caráter punitivo, colhe-se do voto do relator: “Propugna a reclamante pelo deferimento de indenização por ‘dumping’ social, visto que a reclamada desrespeitou deliberadamente direitos trabalhistas, provocando dano não apenas à sua pessoa, mas a toda a sociedade. Já o recurso à teoria dos punitive damages como argumento para fundamentar a exacerbação dos valores das indenizações, especialmente nos casos de dano moral, pode ser exemplificado por precedente do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Ministro Celso de Mello. Tratava-se, no caso, de ação motivada pela ocorrência de erro médico, decorrente do uso imperito do fórceps, por profissional de Hospital Público do Rio de Janeiro, o qual ocasionou “afundamento frontal do crânio, edema cerebral e área de contusão hemorrágica” em recém-nascido, por ocasião do parto. Citando a teoria dos punitive damages, o Ministro Celso de Mello, em decisão monocrática, rejeitou recurso no qual se questionava a função punitiva da indenização, aos seguintes argumentos: A fim de contribuir nas reflexões acerca da utilização jurisprudencial da teoria dos ‘punitive damages’ passa-se a um breve histórico do instituto no direito anglo-saxão e a um panorama acerca das discussões sobre o instituto em algumas cortes judiciais de países de tradição romano-germânica. 2.1 Origens históricas da doutrina dos punitive damages Judith Martins-Costa e Mariana Pargendler ensinam que, na Inglaterra do século XII, o Statute of Coucester, de 1278, já tornava obrigatória a reparação do dano. O cálculo da indenização era obtido a partir da multiplicação do dano sofrido por um determinado número. Tais “indenizações múltiplas” representam, segundo as autoras, o embrião daquilo que, séculos mais tarde, veio a ser conhecido como exemplary damages.(14) Na Inglaterra do século XVIII, os casos Wilkes v. Wood e Huckle v. Money foram os primeiros em que a expressão exemplary damages foi utilizada pelas cortes judiciais inglesas. Trata-se de ação em que o editor de um jornal (The North Briton) que publicava críticas a um secretário do Rei George II, Lord Halifax, pedia indenização em razão do cumprimento arbitrário de um mandado de busca em sua residência e de prisão domiciliar. Reconhecendo a arbitrariedade no cumprimento dos mandados, o julgador – Lord Camden’s – acatou o pedido formulado pelo advogado do editor e reconheceu seu direito a exemplary damages.(15) 2.2 Evolução histórica dos punitive damages no Direito norte-americano Muitos casos envolvendo empresas ferroviárias foram decididos pelas cortes judiciais norte-americanas em favor de mulheres, inválidos, crianças e outros indivíduos que sofreram opressão na mão de condutores, porteiros e outros empregados das empresas de transporte ferroviário, reconhecendo seu direito a exemplary damages.(16) Durante o século XIX, ganhou repercussão a polêmica entre o professor de direito da Harvard Law School Simon Greenleaf e o autor e advogado Theodore Sedgwick. Segundo o professor Greenleaf, os punitive damages não seriam compatíveis com o direito norte-americano por não possuírem uma base doutrinária, não integrarem a tradição anglo-americana e, ainda, não se encaixarem com perfeição nem nas categorias do direito público, nem nas categorias do direito privado. O Professor Greenleaf professava que a doutrina jurídica tivesse bases metodológicas semelhantes às ciências naturais e categorias bem definidas. Sustentava que as indenizações deveriam compensar, recompensar ou satisfazer o demandante na proporção exata do dano sofrido, nem mais, nem menos. Em contraposição, o advogado Sedgwick, em obra intitulada The Measure of Damages, argumentava que “opressão, brutalidade ou insulto na imposição de um dano é a causa que dá subsídio aos exemplary damages”,(17) e tais práticas deveriam ser repudiadas com severidade, de forma a servir como exemplo à comunidade. A polêmica Greenleaf-Sedgwick foi citada com frequência nos julgados da época, mas poucas decisões judiciais repudiaram a doutrina dos punitive damages. Enquanto alguns julgados demonstravam relutância em utilizá-la em casos de erros médicos, outros indicavam larga aceitação nos casos de vendas fraudulentas, nas relações entre clientes e bancos, em transações comerciais e apólices de seguro.(18) A jurisprudência norte-americana do século XX consolidou a doutrina dos punitive damages como forma de controlar práticas abusivas das grandes corporações, de modo a dissuadir, por meio de condenação ao pagamento de indenizações de alto valor, o frio cálculo de lucros, mediante estratégias empresariais tolerantes com procedimentos negligentes e descomprometidos com os direitos de personalidade de seus consumidores.(19) No julgamento de Pacific Mut. Life INs. C. v. Haslip, a Suprema Corte determinou quais fatores poderiam ser utilizados para determinar se a indenização guarda razoável relação com as finalidades de dissuasão ou retribuição. Tais fatores incluem: a) se há uma razoável relação entre a indenização punitiva e o dano resultante da conduta do réu e se o dano efetivamente ocorreu; b) o grau de reprovabilidade da conduta do réu, a duração da conduta, a consciência do réu acerca da lesividade da conduta, a existência de dissimulação e a existência e a frequência de condutas similares no passado; c) a lucratividade resultante da conduta danosa e sua disposição de remover tais lucros em caso de sucumbência; d) a posição financeira do réu; e) os custos da ação judicial; f) a imposição de sanções criminais ao réu, o que pode resultar em mitigação dos valores da indenização; g) a existência de outras ações civis contra o réu pela mesma conduta, o que também pode ser considerado para fins de mitigação.(20) Todavia, a quantidade de julgados proferidos em dissonância com os “Haslip standards” levou a Suprema Corte a aceitar analisar novo caso “com o propósito de esclarecer as características do padrão que irá identificar indenizações punitivas constitucionalmente excessivas”.(21) Tratava-se do case BMW of North America, Inc. v. Gore. Em tal caso, a Suprema Corte do Alabama condenou a empresa alemã a ressarcir ao médico Ian Gore, adquirente de um veículo que fora repintado antes de sua venda, sem o conhecimento do consumidor, a quantia de US$ 4.000,00 a título de danos compensatórios e a surpreendente quantia de US$ 2.000.000,00 a título de punitive damages. Nesse precedente, a Suprema Corte norte-americana declarou que a condenação ao pagamento de dois milhões de dólares a título de punitive damages revelava-se ofensiva à cláusula do due process of law em seu aspecto substancial, pelos “seguintes argumentos: o grau de repreensibilidade da conduta; a relação entre os danos compensatórios e os danos punitivos; e a diferença entre os valores dos danos punitivos e as penalidades civis ou criminais autorizadas ou impostas em casos semelhantes”, conforme ensina Maria Celina Bodin de Moraes.(22) Rustad e Koenig sustentam uma clara tendência da jurisprudência norte-americana de se utilizar dos punitive damages de forma preferencial nos casos de ações movidas contra grandes companhias, como instrumento de controle das práticas empresariais abusivas ou antiéticas, à disposição de indivíduos que, de outra maneira, não teriam condições de atrair o patrocínio de advogados e suportar os altos custos da litigância naquele país. Nesse contexto, o argumento de que o valor da indenização não pode representar “enriquecimento sem causa” para o autor da ação não é sequer cogitado, uma vez que a evolução histórica dos punitive damages demonstra que o instituto foi criado como meio de defender aqueles em situação de vulnerabilidade diante das múltiplas manifestações de poder exercido em desconformidade com o Direito, notadamente nos casos de responsabilidade extracontratual e lesão aos direitos de personalidade. É pertinente observar, ainda, que segundo dados estatísticos do Departamento de Justiça norte-americano, no ano de 2005, apenas 12% dos casos julgados relacionados a responsabilidade civil reconheceram o direito dos litigantes aos punitive damages.(24) Contudo, diante das críticas,(25) geradas principalmente pelos denominados frivolous lawsuits (demandas temerárias), encontram-se em estudo no Congresso norte-americano reformas legislativas com a finalidade de alterar o modelo normativo dos punitive damages. 2.3 Os punitive damages e sua visão fora dos Estados Unidos “No vigente ordenamento o direito ao ressarcimento do dano consequente à lesão de um direito subjetivo não é reconhecido com característica e finalidade punitiva, mas em relação ao prejuízo sofrido pelo titular do direito lesionado, nem o mesmo ordenamento consente com o enriquecimento se não suscita uma causa justificativa do desvio patrimonial de um sujeito a outro. Remanesce estranha ao sistema interno a ideia de punição e sanção da responsabilidade civil, e é indiferente para tal finalidade a valoração da conduta do autor do dano.(29) Na Alemanha, a contrariedade da teoria dos punitive damages com os postulados de seu direito interno que disciplinam a responsabilidade civil foi proclamada pela Suprema Corte Federal em leading case no ano de 1992.(30) Em 1985, a Corte Estadual de Stockton, na Califórnia, condenou Eckhard Schmitz ao pagamento do equivalente a US$ 750.000,00 incluindo US$ 400.000,00 a título de punitive damages, por abuso sexual de um garoto de 13 anos. Schmitz não pagou e voou para a Alemanha, enquanto apelava de uma sentença criminal que o condenou a 13 anos de prisão em razão de abusos cometidos contra outros adolescentes. A sentença norte-americana foi apresentada à Justiça alemã, a fim de lá obter sua execução. Nesse contexto, a Suprema Corte alemã, revendo a decisão da Corte de Dusseldorf, afirmou, expressamente, a incompatibilidade dos punitive damages com o ordenamento alemão. Os principais argumentos dessa decisão fundam-se na concepção de que o moderno Direito Civil alemão repudia indenizações que levem a um enriquecimento sem causa do demandante e a uma punição do demandado, diante da função exclusivamente compensatória das indenizações em sede de responsabilidade civil. A Corte afirmou, ainda, a clara distinção, no ordenamento jurídico alemão, entre a responsabilidade civil extracontratual e a persecução penal, caracterizada por seu especial sistema de garantias e salvaguardas processuais. O demandante privado, em tais casos, não está autorizado a agir como um “promotor público privado”, infringindo o monopólio do Estado no exercício do direito de punir, indissociável das salvaguardas correlatas. Desde então, a rejeição à adoção do modelo norte-americano dos punitive damages pelo direito alemão vem sendo alvo de estudos e críticas, notadamente por doutrinadores e advogados norte-americanos.(31) Na França, durante muitos anos a doutrina se posicionou, tal como na Itália, no sentido da incompatibilidade do caráter punitivo das indenizações no campo da responsabilidade civil com o ordenamento jurídico francês, estruturado sobre o pilar da teoria da reparação integral. Vale dizer, a responsabilidade civil limitar-se-ia a seu caráter de garantia, com a vocação exclusiva de reparar o dano sofrido, na exata medida do prejuízo suportado. A aplicação de sanções em razão de um suposto comportamento antijurídico encontrava-se reservada exclusivamente ao campo do direito penal e processual penal, com as garantias e os institutos que lhes são próprios. Todavia, em 1º de dezembro de 2010, a 1ª Câmara da Corte de Cassação francesa reconheceu a compatibilidade dos punitive damages com a ordem pública francesa. Tratava-se, na espécie, da concessão de exequatur a uma decisão da Justiça norte-americana, na qual uma empresa francesa de comércio de embarcações fora condenada, em ação judicial movida por um casal norte-americano, ao pagamento de 1,39 milhão de dólares a título de perdas e danos compensatórios e de 1,46 milhão de dólares a título de punitive damages. A Corte de Apelação de Poitiers, ao exercer o juízo de delibação, estimou que o montante das indenizações fixado pela Justiça norte-americana era desproporcional e constituía uma fonte de enriquecimento sem causa. Decidiu por reduzir seu montante. O casal recorreu à Corte de Cassação, onde o recurso foi desprovido. Em sua decisão, a 1ª Câmara da Corte de Cassação declarou que “se, em princípio, uma condenação de caráter punitivo não é, em si, contrária à ordem pública, de outra parte, o montante indicado é desproporcional ao prejuízo sofrido e aos inadimplementos das obrigações contratuais do devedor”.(32) Dessa forma, assentou a instância máxima do Poder Judiciário francês que a ideia de “dano punitivo” não é, em si, contrária à ordem pública daquele país, mas necessita de algum temperamento. Há aproximadamente 15 anos debate-se na França a reforma do Código Civil. Foram constituídas comissões compostas por professores universitários, magistrados, juristas e economistas a fim de elaborar proposições com o fim de aprimorar a legislação civil francesa, em conformidade com os debates doutrinários mais avançados e a legislação europeia mais recente, e vários relatórios foram apresentados ao Senado. No que tange à responsabilidade civil, um dos projetos de reforma(33) inclui disposição acerca do denominado dano lucrativo (faute lucrative). O dano lucrativo ocorre quando a prática do ato lesivo, apesar do pagamento da indenização – calculada com base no prejuízo suportado pela vítima –, atribui ao responsável uma margem de benefícios tal, que não haverá nenhuma razão para evitá-lo.(34) Nesse sentido, fiel ao princípio de que a reparação do dano não pode acarretar nem perda, nem lucro à vítima (artigo 49), o projeto faculta ao juiz, nos casos de faute lucrative intencionalmente praticada, em lugar de fixar reparação meramente compensatória com base nos prejuízos efetivamente suportados pela vítima, em decisão especialmente fundamentada, condenar o autor do dano em valor correspondente ao lucro obtido em decorrência de sua prática. Nesse caso, o valor que exceder às parcelas compensatórias não poderá ser objeto de contrato de seguro (artigo 54) e reverterá a um fundo de indenização de vítimas em igual situação. Na ausência desse fundo, o juiz poderá destinar o montante ao Estado.(35) Tais proposições visam conciliar a necessidade de uma sanção eficaz a comportamentos contrários ao direito, a fim de desestimulá-los, com a exclusão da possibilidade de um enriquecimento sem causa. Maria Celina Bodin de Moraes relata que nem mesmo no âmbito da Corte Europeia dos Direitos Humanos os danos punitivos têm sido executados: “Ao contrário, a Corte Europeia tem, sistematicamente, recusado a condenação ao pagamento desse tipo de sanção. Assim, por exemplo, ocorreu nos casos AKDICAR v. TURQUIA, de 1º de abril de 1998; SELÇUK e ASKER v. TURQUIA, de 24 de abril de 1998; e CABLE e outros v. REINO UNIDO, de 18 de fevereiro de 1999.”(36) Constata-se, assim, que, na maior parte dos países da Europa continental, a função punitiva das indenizações por dano não é admitida, sendo que, em vários países, chega-se até mesmo a rejeitar a execução de decisões do Poder Judiciário norte-americano que contenham condenações em punitive damages. 3 Questões processuais decorrentes do reconhecimento da função punitiva das indenizações 3.1 A inadequação da invocação dos punitive damages nos casos de responsabilidade objetiva e a ofensa ao princípio do contraditório No Brasil, os precedentes jurisprudenciais citados limitam-se a citar a teoria dos punitive damages como se a expressão fosse um sinônimo da função punitiva das indenizações, o que, em realidade, é equivocado, como se viu acima. Como bem assinalam Judith Martins-Costa e Mariana Pargendler, a invocação dos punitive damages é totalmente inadequadapara os casos de responsabilidade civil objetiva.(37) De fato, um dos critérios essenciais fixados pelos precedentes da Justiça norte-americana é que, diante do caráter excepcional dos danos punitivos (“punições exemplares”), a condenação ao pagamento de tal parcela somente tem justificativa nos casos de culpabilidade exacerbada. Ora, se no campo da responsabilidade objetiva não se adentra no exame do grau de culpabilidade do agente, não há como aferir se a conduta merece, ou não, ser punida exemplarmente. Nesse passo, surge uma primeira questão processual, que diz respeito ao exercício do contraditório e da ampla defesa. Nas ações judiciais em que o pedido tem por fundamento alguma das hipóteses de responsabilidade objetiva, é sabido que a discussão travada em juízo não incluirá o exame da culpabilidade do agente. A atividade probatória não se ocupará de tal questão, haja vista a desnecessidade de seu enfrentamento para o julgamento do mérito, em tais casos. Portanto, uma vez reconhecida judicialmente a responsabilidade civil objetiva, com a consequente procedência do pleito indenizatório, a utilização pelo julgador da teoria dos punitive damages como critério para a fixação do montante da indenização – além da inconsistência técnica da decisão, já demonstrada acima – resultará, ainda, em clara ofensa ao princípio do contraditório e da ampla defesa, uma vez que ao réu não foi dada a oportunidade de defender-se e fazer prova sequer quanto à (in)existência de dolo ou culpa, nem obviamente, quanto ao grau de culpabilidade com que praticada a conduta danosa. Não é demais relembrar que o artigo 9º do novo CPC determina que toda decisão desfavorável a uma das partes seja precedida, necessariamente, da oitiva do prejudicado quanto à questão. 3.2 A legitimidade processual ativa para ações individuais condenatórias e as indenizações punitivas Trata-se, em verdade, de regra lógica e de organização dos trabalhos judiciários, já que não haveria qualquer sentido em permitir-se que uma pessoa pudesse postular em juízo direitos que não lhe pertencem, salvo em situações excepcionais. A doutrina classifica as exceções à regra da legitimação ordinária em hipóteses de substituição processual, se relativas a direitos individuais, tal como no caso do art. 42 do CPC/73 (art. 109 do CPC/2015), e, se relativas a direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, em hipóteses de legitimação extraordinária. Outros autores entendem que, em verdade, substituição processual e legitimação extraordinária são conceitos sinônimos. Nelson Nery Junior, a seu turno, refere que a legitimação outorgada pelas leis do microssistema de direitos coletivos para a propositura de ações versando tais categorias de direitos consubstancia a categoria mais abrangente da “legitimação para a condução do processo”. Entretanto, fora dos casos de legitimação extraordinária ou de legitimação para a condução do processo, em princípio, é titular da ação apenas a própria pessoa que se diz titular do direito subjetivo material cuja tutela é postulada (legitimação ativa), podendo ser demandado apenas aquele que seja titular da obrigação correspondente (legitimidade passiva). A legitimidade, ao contrário da capacidade processual, nunca poderá ser aferida em abstrato, mas sempre em relação a um contexto. Capacidade é um conceito transitivo, o juiz verifica se existe ou não. Legitimidade deve ser verificada em relação a um negócio jurídico subjacente. Em outras palavras, a capacidade é um atributo ou qualidade imanente à pessoa, ao passo que a legitimidade conduz ao estabelecimento de uma relação. Assim entendida a legitimidade processual, cabe perquirir se o autor de ação individual na qual se postule direito à reparação, no campo da responsabilidade civil, teria legitimidade para, em nome próprio, postular a parcela relativa à indenização punitiva ou pedagógica, ou seja, os punitive damages. É justo e legítimo o anseio social por uma resposta mais efetiva aos comportamentos que contrariam a ordem jurídica, em especial, nos casos de condutas reiteradas. Todavia, o direito à vida em uma sociedade em que prevaleçam os critérios de justiça e observância das normas impostas é direito que a todos pertence, de forma difusa. O direito de sancionar o transgressor não é atribuído ao cidadão. O monopólio da aplicação das penas – sejam elas aplicadas no campo do direito penal, sejam no campo do direito administrativo sancionador – pertence ao Estado. O instituto da pena privada foi abolido dos sistemas jurídicos contemporâneos, o que indica seu grau de civilização. Dessa forma, repudia o senso de justiça que a titularidade das parcelas da indenização, impostas ao responsável no campo da responsabilidade civil, pelo reconhecimento de sua função punitiva, naquilo que excede a compensação, seja atribuída à vítima. Muito menos se concebe que à parte a que se atribui a qualidade de vítima seja reconhecida a legitimidade processual para postular em juízo a aplicação de punições decorrentes de comportamentos tidos como antissociais, sem autorização normativa para tanto (art. 6º do CPC/73 e art. 18 do CPC/2015). Nos casos em que a indenização é fixada em razão da reiteração de condutas lesivas à esfera jurídica de inúmeras pessoas em situações similares, tal como ocorre, por exemplo, nos contratos de serviços de telefonia, provedores de Internet, seguros saúde etc., em função de a indenização também possuir um viés preventivo, atuando como desestímulo à continuidade de um modo de agir reiterado e lesivo à ordem jurídica, não seria possível reconhecer que um determinado contratante, consumidor de serviços de telefonia, ou um determinado contratante de seguro saúde poderia, ele, sozinho, ser considerado parte legítima para a propositura de demanda visando desestimular a repetição de comportamentos antissociais. É certo que, naqueles casos em que determinadas pessoas jurídicas pautam sua estratégia empresarial em práticas abusivas e distanciadas dos standards ditados pela lisura e pela boa-fé, os demandantes individuais devem ter seu direito à indenização integral reconhecido, nos exatos termos do art. 944 do CC. Disso, entretanto, não decorre que tenham legitimidade para postular a punição da empresa por atos que não lhe dizem respeito, afetos a outras relações jurídicas contratuais ou extracontratuais. Na verdade, a reiteração de comportamentos danosos afeta toda a sociedade, que vê ameaçada a paz social e a regularidade das transações comerciais. A repetição das más práticas negociais afeta, em verdade, o direito difuso ao comportamento ético e conforme à boa-fé nas relações contratuais, o qual pertence à sociedade como um todo e não se restringe à titularidade de um único contratante determinado. Como visto, para que a indenização a título de punitive damages possa ter sua eficácia como fator de desestímulo, deve ser arbitrada em valor proporcional ao porte do contratante desleal, de forma a, pelo menos, neutralizar o lucro auferido por intermédio de tais práticas. Verifica-se, assim, que o equivocado reconhecimento da legitimidade dos demandantes individuais para postular, na qualidade de beneficiários, parcelas indenizatórias com caráter punitivo acaba por frustrar a própria finalidade do instituto, já que o recebimento de uma indenização não pode representar enriquecimento sem causa. Indenizações fixadas na casa dos R$ 10.000,00, por exemplo, tal como se verifica em inúmeros precedentes jurisprudenciais, nada representam frente ao porte de grandes conglomerados empresariais, instituições financeiras e congêneres. Assim, considerando-se que a indenização como fator de desestímulo a condutas nocivas deve ter um valor considerável, aceitar-se a legitimidade individual para a parcela adicional relativa aos punitive damages, além de contrariar manifestamente as normas processuais que disciplinam a legitimidade processual, pode conduzir a dois resultados: permitir que um determinado litigante seja contemplado com um valor similar a um prêmio de loteria, sem que sua situação seja materialmente distinta da dos demais lesados por aquele comportamento antijurídico do ofensor, ou limitar seu valor, por imposição do princípio da vedação do enriquecimento sem causa, e, assim, retirar toda a eficácia social do instituto. Como recorda Judith Martins-Costa, o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa remonta a São Tomás de Aquino, cujos ideais de justiça distributiva repudiam a transferência injustificada de patrimônio de uma pessoa a outra.(38) Tal concepção ética explica o postulado da reparação integral, segundo o qual a indenização deve compensar o prejuízo na exata medida do dano, não podendo representar nem perda patrimonial, nem fonte de enriquecimento para o ofendido. Ainda que se admita a compatibilidade do instituto dos punitive damages com o ordenamento jurídico pátrio, o que por si só se revela controverso, como já visto, há que se reconhecer que a imposição de indenizações punitivas fundadas na repetição de comportamentos danosos tem maior adequação ao campo da tutela coletiva, no qual todo o seu potencial pode ser alcançado, sem as limitações impostas pelo teto limitador das indenizações individuais. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça assentou a impossibilidade de autor individual ser titular de indenização punitiva a título de “dano social”, conforme se verifica do precedente abaixo: “RECLAMAÇÃO. JUIZADOS ESPECIAIS. DIREITO DO CONSUMIDOR. AGÊNCIA BANCÁRIA. ‘FILA’. TEMPO DE ESPERA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CONDENAÇÃO POR DANOS SOCIAIS EM SEDE DE RECURSO INOMINADO. JULGAMENTO ULTRA PETITA. RECLAMAÇÃO PROCEDENTE. Por fim, outro aspecto que merece destaque quanto à admissibilidade da função punitiva das indenizações diz respeito à possibilidade de se impor a sanção a pessoa diversa do ofensor, nos casos de responsabilidade por ato de terceiro, o que se revela de duvidosa eficácia social e lança questionamentos quanto à legitimidade passiva do responsável pelo dano praticado por outrem. 3.3 A ausência de critérios pré-determinados para a fixação do valor da indenização punitiva O reconhecimento da função punitiva das indenizações desvia o foco da pessoa da vítima e do dano sofrido e faz emergir discussões quanto à pessoa do ofensor e ao fato praticado, o que se amolda com muito maior propriedade às técnicas punitivas do Direito Penal, nas quais há critérios previamente delimitados pela lei para a fixação da pena, possibilitando a discussão de cada uma de suas vetoriais ao longo da instrução na ação penal correspondente e nas instâncias recursais ordinárias. Nas ações judiciais que versam sobre responsabilidade civil, em muitas situações o réu somente vai conhecer os critérios utilizados pelo juiz para a mensuração do quantum das indenizações punitivas no momento da sentença. Há casos em que a parcela autônoma, a título de punitive damages, foi fixada ex officio já em segundo grau de jurisdição, quando já superada a fase instrutória e qualquer possibilidade de discussão ou de produção de prova quanto aos critérios para seu arbitramento.(40) Tais soluções conflitam com o disposto nos artigos 9º e 10º do Código de Processo Civil de 2015, na medida em que a determinação da parcela a título de punitive damages deve ter critérios, sob pena de ser arbitrária, e tais critérios merecem ser previamente conhecidos pelos litigantes, dando-se concretude aos princípios da “não surpresa” e do contraditório substancial.(41) Nos casos em que o reconhecimento da função punitiva das indenizações se dá sem o destaque de uma “parcela punitiva”, mas é valorado como critério para a fixação de seu quantum, há, igualmente, embaraço ao direito de defesa, na medida em que “não há como saber o que é indenização e o que é multa, onde começa a reparação e onde termina a punição. O que, inclusive, dificulta a revisão do valor das indenizações pela instância superior”.(42) Conclusões Todavia, em que pesem (1) a ausência de disposição legal, (2) a existência de consistente corrente doutrinária contrária ao uso punitivo das indenizações no âmbito da responsabilidade civil e (3) a experiência dos países de tradição romano-germânica, a corrente jurisprudencial que reconhece a função punitiva das indenizações, no âmbito da responsabilidade civil, ainda vem sendo admitida por inúmeros órgãos do Poder Judiciário brasileiro. Diante disso, cabe adequá-la à melhor técnica processual, a fim de compatibilizar seu escopo com as garantias constitucionais decorrentes do modelo constitucional de processo. Assim, não se reconhece legitimidade ao demandante individual para postular parcela indenizatória com função punitiva se esta tiver por finalidade sancionar comportamentos contumazes que causem lesão a uma grande número de pessoas. Nesse caso, há que se recorrer às formas da tutela coletiva. Apesar de extremamente polêmica a compatibilidade do instituto dos punitive damages com o ordenamento jurídico brasileiro, este jamais poderá ser aplicado no âmbito da responsabilidade objetiva, já que a finalidade do instituto, mesmo no direito norte-americano, é punir, de forma exemplar, condutas altamente reprováveis socialmente, praticadas com dolo ou culpa exacerbada, o que sequer se cogita em tais casos. Cumpre ao juiz, nas ações em que se discuta responsabilidade civil, no momento em que fixar os pontos controvertidos da lide, esclarecer desde logo os critérios de que se utilizará para fixar a parcela punitiva, no caso de eventual procedência, a fim de que o contraditório possa ser exercido de forma plena e a decisão não viole o princípio da “não surpresa”. A fim de harmonizar a função punitiva das indenizações com as garantias constitucionais, bem como reforçar sua eficácia social, sugere-se a edição de lei estabelecendo: (1) a obrigatoriedade de que seu montante seja identificado e destacado das parcelas compensatórias a fim de possibilitar, inclusive, sua revisão em grau de recurso; (2) ainda que ao juiz ficasse reservado espaço para adequação ao caso concreto, o estabelecimento de alguns critérios para sua fixação, tais como o grau de culpabilidade do agente, a relevância social do bem jurídico ofendido, o modo de execução da conduta e atenuantes, tais como a prova de esforços no sentido de minimizar os danos impostos à vítima, a existência de punição pelo mesmo fato em sede criminal ou administrativa etc.; (3) a vedação de inclusão de tais parcelas em contratos de seguro e de seu repasse ao preço dos serviços e dos produtos; (4) a atribuição de legitimidade processual ao demandante individual para a postulação de indenizações punitivas, sem lhe atribuir a titularidade de tais valores; (5) a destinação dos valores das parcelas punitivas a um fundo com finalidade de reparar outras vítimas de condutas similares. Por fim, há que se registrar a existência de precedente do Superior Tribunal de Justiça no qual a 2ª Seção fixou, na sistemática dos recursos repetitivos, a seguinte tese: “é inadequado pretender conferir à reparação civil dos danos ambientais caráter punitivo imediato, pois a punição é função que incumbe ao direito penal e administrativo”.(43) Tal decisão abre caminho para que as sanções aos comportamentos antissociais sejam reforçadas nas sedes próprias, do direito penal e do direito administrativo sancionador, sem que a função da reparação civil seja demasiadamente ampliada, a ponto de descaracterizar-se. Referências bibliográficas Behr, Volker. Punitive damages in American and German Law: tendencies towards approximation of apparently irreconcilable concepts. 78. Chi.-Kent. L. Rev. 105 (2003). Disponível em: <http://scholarship .kentlaw.iit.edu/cklawreview/vol78/iss1/6>. Acesso em: 04 jan. 2016. Fiebig, Andre R. 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1. <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/ pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf>. Acesso em: 14 dez 2015. 2. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v.3. p. 53. 5. STJ, REsp 355.392/RJ, rel. Min. Nancy Andrigui, rel. p/ acórdão Min. Castro Filho, 3ª Turma, j. 26.03.2002, DJ 17.06.2002, p. 258, destaque nosso. No mesmo sentido: STJ, REsp 295.175/RJ, REsp 337.739/SP, REsp 1.136.676-RS e REsp 1.300.187/RS. 6. O dano social, enquanto categoria autônoma, decorre das lições de Antonio Junqueira de Azevedo, professor titular da Universidade de São Paulo, segundo o qual “os danos sociais (...) são lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição na qualidade de vida” (AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JUNIOR, Luiz Guilherme da Costa; GONÇALVES, Renato Afonso (coord.). O Código Civil e sua interdisciplinariedade.Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 376. 7. Segunda Turma Julgadora dos Juizados Especiais de Goiânia, Recurso 5076128.41. Disponível em: <http://www.justocantins.com.br/administracao/files/ 8. Vide, nesse sentido, MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). Revista do CEJ, Brasília, n. 28, p. 15-32, jan./mar. 2005; YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. A incompatibilidade do caráter punitivo da indenização do dano moral com o direito positivo brasileiro (à luz do art. 5º, XXXIX, da CF/1988 e do art. 944, caput, do CC/2002). Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 35, p. 77-94, jul. 2008; e o aprofundado estudo da Professora da Ufrgs MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, em especial p. 195-264. 11. The American University Law Review, v. 42, p. 1269-1333, 1993. Disponível em: <http://aulawreview.com/pdfs/42/42-4/rustad.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2015. 14. MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). Revista do CEJ, Brasília, n. 28, p. 15-32, jan./mar. 2005. p. 18. 19. Dentre os vários exemplos que podem ser citados: Grimshaw v. Ford Motor Co., também conhecido como o caso do “Ford Pinto”, no qual ficou comprovado que a Ford, mesmo ciente de que a localização do tanque de combustível daquele modelo poderia causar explosão e incêndio em caso de colisão, decidiu não alterar o design do veículo por entender que seria mais barato pagar por possíveis e eventuais condenações judiciais do que retirar o veículo de comercialização ou alterar toda uma linha de montagem. Outra série de casos é relacionada com as indústrias que utilizavam asbestos (amianto) como insumo. Cite-se, por exemplo, Hardy v. Johns-Manville, entre outros. 23. <http://blogs.u-paris10.fr/content/propos-de-la-notion- 24. <http://www.bjs.gov/index.cfm?ty=tp&tid=45111>. Acesso em: 03 jan.2016. 25. Confira-se, exemplificativamente, o conteúdo do site da American Tort Reform Association – ATRA, fundada em 1986, que defende limitações ao modelo norte-americano dos punitive damages: <http://www.atra.org/>. Acesso em: 03 jan. 2016. 26. <http://www.nytimes.com/2008/03/26/world/americas/ 27. Cass. 15 abril 2015, nº 7613, in <http://dirittocivilecontemporaneo.com/2015/07/ 28. Cass. 19 janeiro 2007, n. 1183, in <http://www.personaedanno.it/generalita-varie/ 29. Cass. 08 fevereiro 2012, nº 1781, in <http://virgo.unive.it/ecf-workflow/ 31. BEHR, Volker. Punitive damages in American and German Law: tendencies towards approximation of apparently irreconcilable concepts. 78. Chi.-Kent. L. Rev. 105 (2003). Disponível em: <http://scholarship .kentlaw.iit.edu/cklawreview/vol78/iss1/6>. Acesso em: 04 jan. 2016; FIEBIG, Andre R. The recognition and enforcement of punitive damage awards in Germany: recent developments. 22. Georgia Journal of International and Comparative Law. L. 635 (1992). Disponível em: <http://digitalcommons.law.uga.edu/gjicl/vol22/iss3/4>. Acesso em: 04 an. 2016. 32. <https://www.courdecassation.fr/jurisprudence_2/premiere_ 33. Texto integral disponível em <http://www.justice.gouv.fr/le-ministere-de-la-justice-10017/ 34. “Comme l’expliquait Diana Calciu, la mise en œuvre des dommages et intérêts punitifs en droit français permettrait de lutter contre les fautes lucratives. Ces dernières sont généralement définies comme ‘les fautesqui malgré les dommages et intérêts que le responsable est condamné à payer – et qui sont calqués sur le préjudice subi par la victime laissent à A propos de la notion de dommages et intérêts punitifs en droit français... leur auteur une marge bénéficiaire pour qu'il n'ait aucune raison de ne pas les commettre’ (B. Stark, H. Roland et L. Boyer, Obligations, 1. Responsabilité délictuelle, 5e éd., 1996, Litec, spéc. n°1335)”. APUD PONS, Albane. In <http://blogs.u-paris10.fr/content/ 39. Nesse sentido: MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p. 260; MELO DA SILVA, W. O dano moral e sua reparação, p. 573, TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil (LGL\2002\400) interpretado. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. v. 1. p. 863. 40. Confira-se o Recurso Ordinário 0011216-57.2014.5.03.0163, julgado pela Primeira Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região em 19.10.2015, ementa e trechos do voto condutor transcritos acima. 41. <http://www.conjur.com.br/2015-out-12/principios-
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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