Limites políticos para a atuação judicial em matérias políticas

Autor: Eduardo Appio

Juiz Federal

publicado em 29.04.2016



Introdução

Este artigo de conclusão de Curso de Currículo Permanente promovido pela Emagis tem como objetivo definir a extensão da atividade dos juízes do Supremo Tribunal Federal do Brasil nos casos de julgamento de questões essencialmente políticas, tais como o rito de processo de impeachment de presidente da República, sob o argumento de que deve existir equilíbrio e respeito entre os poderes da República.

As matérias que estão situadas no âmbito dos regimentos internos das Casas do Congresso Nacional são tradicionalmente definidas como “interna corporae”, ou seja, não estão sujeitas à revisão judicial, sob pena de ofensa do princípio constitucional que define a separação dos poderes no Brasil.

Iniciaremos por uma rápida exposição da doutrina e da jurisprudência norte-americanas sobre o tema, na medida em que os sistemas apresentam claras similitudes.

1 Political question doctrine

Um dos princípios fixados jurisprudencialmente é o do “political question doctrine”, firmado, fundamentalmente, após a solução do caso Baker v. Carr (1962). Esse requisito se revela especialmente interessante no sistema constitucional dos Estados Unidos, pois, geralmente, é por meio da doutrina das questões políticas que a Suprema Corte pratica a deferência em favor dos demais ramos do governo, a partir de um juízo de discricionariedade política. A doutrina também é chamada de doutrina da “não justiciabilidade”, na medida em que sua principal consequência é tornar o ato governamental imune à judicial review.(1)

Muito embora possamos considerar que, hoje, a doutrina das questões políticas se encontre em baixa na atual composição da Suprema Corte – porque marcada por um ativismo conservador(2) –, ainda assim seu estudo se mostra relevante, com o sentido de enfatizar a importância do capital político para a Suprema Corte.

No precedente Baker v. Carr (1962), a questão litigiosa consistia, basicamente, em definir se os eleitores do Estado do Tennessee tinham o direito de readequar o tamanho dos distritos eleitorais, os quais mantinham sua estrutura desde 1901, apesar das alterações que ocorreram desde então. Os eleitores pediram à Corte que procedesse diretamente à readequação dos distritos eleitorais de acordo com o censo mais recente, tendo a Corte local se negado a proceder a esse exame.

A questão jurídica colocada perante a Suprema Corte consistiu em indagar se a readequação dos distritos eleitorais poderia ser considerada uma questão política, de modo a impedir o exame da Corte federal local. A decisão adotada nesse caso pela Suprema Corte foi a de considerar que a pretensão dos eleitores do Estado do Tennessee não poderia ser afastada da Corte federal local.

O argumento do Justice Brennan foi o de que o simples fato de que a demanda envolvia um debate acerca de um direito político não convertia a causa, automaticamente, em uma questão política. O voto condutor apontou que nenhuma das características que denotavam uma “questão política” se encontrava presente, sendo que, muito embora a causa tivesse sido proposta com base na chamada “cláusula de garantia” (United States shall garantee to every State in this Union a Republican Form of Government), a demanda poderia ser examinada pela Corte federal inferior a partir da Emenda 14 (cláusula da igual proteção – equal protection clause), segundo a qual as pessoas que se encontrem sob as mesmas circunstâncias devem ter garantidos os mesmos direitos constitucionais. O Justice Frankfurter saiu vencido no debate, após ter sustentado que, em verdade, os autores da demanda pretendiam a aplicação da cláusula de garantia, à qual a Suprema Corte já havia negado aplicação em data anterior (caso Luther, em 1849) sob o argumento de que se tratava de uma questão política.

Segundo o voto vencedor do Justice Brennan nesse caso, são seis os elementos que caracterizam uma “questão política”, de molde a impedir o exame pela Corte federal: (1) a atribuição de dever ou poder a um ramo específico do governo pela Constituição; (2) a falta de standards judiciais aplicáveis ao caso; (3) a impossibilidade de a Corte decidir a questão sem uma política determinada em um caso claramente não reservado à discrição judicial; (4) a impossibilidade de a Corte adotar uma decisão sem que isso implique uma falta de respeito para com os demais ramos de governo; (5) uma não usual necessidade de aderência a uma decisão política já tomada; (6) a potencial controvérsia acerca dos diversos pronunciamentos possíveis por parte de diferentes departamentos de governo. Se nenhuma dessas condições estivesse presente, o caso não seria considerado como envolvendo uma “questão política” não sindicável.

A Suprema Corte acredita que algumas questões, muito embora apresentem indícios claros da ocorrência de ofensa à Constituição, devem ser resolvidas no espaço político (Congresso), e não por meio da revisão judicial (judicial review). Existem, segundo noticia Siqueira Castro, três correntes doutrinárias que disputam a primazia em explicar a natureza da political question doctrine, sendo que a primeira credita a configuração das questões políticas a um compromisso constitucional, a segunda define que os padrões normativos usualmente aplicados pelos juízes não podem ser utilizados em determinados casos e, finalmente, a terceira preconiza a pura e simples discrição judicial.(3) Muito embora a Suprema Corte rotineiramente decida questões de cunho nitidamente político – como no caso da segregação racial nas escolas públicas norte-americanas –, existe uma margem de discricionariedade política exercida pela Corte para os casos em que acredita que a decisão cabe aos demais poderes, como, por exemplo, questões envolvendo processo eleitoral(4) ou de política externa.

É interessante notar que, em um caso envolvendo o que supostamente poderia ser considerado um debate em torno de uma “questão política” (Powell v. McCormack – 1969), a Corte sustentou a possibilidade de revisão judicial. Nesse caso, o Deputado Clayton Powell havia sido recusado como membro na Câmara dos Deputados porque teria usado de forma indevida fundos da Casa do Congresso, bem como apresentado recibos falsos sobre despesas não existentes. Powell argumentou que tinha direito à sua cadeira na Casa, porque havia preenchido todos os requisitos constitucionais – como idade, por exemplo – para ocupar a vaga. Todavia, o representante da Câmara, Deputado McCormack, argumentou que se tratava de uma questão política afeta à Casa decidir se Powell poderia ocupar sua cadeira, isso porque “cada Casa do Congresso deve ser o juiz das qualificações de seus próprios membros”. A Suprema Corte rejeitou esse argumento, sob o fundamento de que os requisitos que competia à Casa apreciar eram exclusivamente os previstos expressamente na Constituição, tais como idade, direitos políticos e residência.

A própria existência da doutrina das questões políticas é controvertida, porquanto permite aos juízes se esquivar das importantes questões, limitando o papel das Cortes no jogo democrático. Nesses casos, a própria Corte estaria colocando em dúvida a capacidade de juízes não eleitos pela população para resolver temas politicamente delicados, na medida em que estaria em jogo, em última análise, a sua própria legitimidade. Em uma democracia consolidada, dificilmente se poderia imaginar a recusa de cumprimento de uma decisão da mais alta Corte do país. Todavia, uma estratégia constitucional de proteção da democracia pode passar pela alocação de algumas decisões de cunho nitidamente político para os demais ramos do governo.

Nesse sentido, poderíamos sustentar que, se as questões são políticas, deixemos que os políticos (eleitos pela população) as decidam, visto que eles detêm uma maior especialização em tais assuntos. Também nas questões relacionadas ao processo político de ratificação de emendas à Constituição, as Cortes federais deveriam evitar uma maior projeção, na medida em que estariam indiretamente atingidas pela solução do caso, já que uma emenda à Constituição é o único e exclusivo instrumento de revisão de uma decisão final da Suprema Corte. Contudo, o principal argumento em favor da doutrina das questões políticas segue sendo o princípio da separação dos poderes, especialmente nos casos em que a solução da controvérsia demanda uma atividade posterior do Executivo, com a finalidade de adequar sua conduta ao resultado do julgamento, em um contexto em que seria impossível ao Judiciário fiscalizar sua efetiva execução.

Em um outro sentido, poderíamos afirmar que a doutrina das questões políticas não é sustentável, já que o Judiciário não pode afastar de si o exame de uma questão que lhe é encaminhada por um cidadão. Se o Judiciário deve concretizar as normas constitucionais, como então explicar sua recusa em analisar algumas questões? Se uma questão é colocada no texto constitucional, essa opção decorre da necessidade de preservar sua integridade em face da vontade das maiorias (eleitas), motivo pelo qual transferir uma questão política ao Congresso ou mesmo ao Executivo significaria aniquilar essa especial proteção.

Ao abdicar da prerrogativa de julgamento, os juízes estariam dispondo de uma jurisdição na qual ela se mostra mais importante, pois coloca o Judiciário em confronto direto com os demais poderes. A deferência judicial em favor dos demais poderes, nesses casos, pode ser interpretada como uma fraqueza histórica da Corte em restaurar o equilíbrio constitucional, colocando – a longo prazo – a própria democracia em perigo.

2 Alguns precedentes envolvendo a doutrina das questões políticas

A revisão de atos internos do Congresso norte-americano tem sido considerada como uma questão política não justiciável pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Nesse sentido, em Field v. Clark (1892), a Suprema Corte rejeitou examinar o procedimento interno e burocrático de aprovação de uma lei federal no Congresso sob o argumento de que a intervenção judicial se mostrava desnecessária, já que o próprio Congresso poderia corrigir o erro com a edição de uma nova lei. O caso mais importante de aplicação da teoria das questões políticas é Powell v. McCormack (1969), no qual a Suprema Corte se negou a aplicar a teoria em um caso em que o Senado havia recusado a posse a um de seus membros eleitos sob o argumento de que este não reunia as condições necessárias para compor a Casa.

A Suprema Corte sustentou que os conflitos entre os poderes eram naturais, na medida em que a interpretação a ser dada pelo Judiciário em relação ao texto da Constituição iria diferir, substancialmente, da interpretação conferida pelo Senado, sendo que “o alegado conflito que esta decisão pode ocasionar não exime a Suprema Corte de sua responsabilidade constitucional”.

No caso Roudebush v. Hartke (1972), a Suprema Corte aceitou examinar o processo de escolha dos senadores, determinando uma recontagem de votos, mas recusou definir quais seriam os candidatos que, eleitos, deveriam assumir suas respectivas cadeiras no Senado. Em United States v. Munoz-Flores (1990), a Suprema Corte recusou aplicar a doutrina das questões políticas a um caso em que um condenado por crime federal alegava a inconstitucionalidade formal de uma lei que previa o pagamento de uma taxa ao final do processo penal, já que o processo legislativo que culminou com a aprovação dessa lei deveria ter sido iniciado no Congresso, e não no Senado.(5)

O processo de ratificação das emendas à Constituição dos estados também tem sido considerado uma questão política, como em uma decisão de 1798(6) na qual a Suprema Corte considerou que o presidente da República não possui poder de veto em relação às emendas à Constituição aprovadas pelo Congresso. Já em uma decisão bem posterior (1981), uma Corte federal inferior aceitou examinar a constitucionalidade de uma decisão do Estado de Idaho (State of Idaho v. Freeman) que inicialmente havia ratificado a cláusula dos direitos iguais (equal rights amendment), mas que posteriormente acabou optando por rescindir essa ratificação, tendo definido que, na condição de terceiro imparcial, o Judiciário assume a incumbência de ser o guardião da Constituição.

No tocante à política externa dos Estados Unidos, a Suprema Corte já decidiu que os problemas decorrentes de sua execução não são considerados justiciáveis. Em Gillian v. Morgan (1973), um grupo de estudantes universitários da Universidade de Kent processou o governo dos Estados Unidos por não treinar de modo correto os membros da Guarda Nacional de Ohio, os quais teriam alvejado quatro estudantes durante uma passeata contra a guerra do Vietnã ocorrida em maio de 1970. A Suprema Corte não aceitou examinar o caso, sob o argumento de que a revisão judicial implicaria reavaliação da política externa norte-americana no caso da guerra do Vietnã.

Em um outro interessante caso de aplicação da teoria das questões políticas (Nixon v. United States – 1993), a Suprema Corte recusou revisar o processo de impeachment de um juiz federal ocorrido no Senado norte-americano. O juiz do tribunal federal Walter Nixon havia sido condenado por perjúrio, mas se recusava a renunciar ao seu cargo e ao salário mesmo estando na prisão, tendo o Senado optado pelo impeachment.OjuizNixon argumentou que as evidências teriam de ser ouvidas por todos os senadores, e não somente por um comitê, o que traria nulidade ao processo de impeachment.

A Suprema Corte (Justice Renquist) se recusou a examinar o caso, sob o argumento de que o sistema de freios e contrapesos havia criado o instrumento do impeachment dos juízes como a única alternativa de remoção pelo Senado, motivo pelo qual a negativa de sua aplicação por uma Corte federal colocaria todo o sistema em perigo.

Por meio da aplicação e da observância desse princípio que faz parte da doutrina da justiciabilidade, a Suprema Corte acredita que possa racionalizar o uso de seus recursos materiais e humanos, garantindo-lhe credibilidade política que será usada somente quando necessário. Todavia, não menos importante é o risco de manipulação desses mesmos requisitos, quando então a Corte poderá dispensar o exame de uma demanda apresentando obstáculos de natureza estritamente formal.

Aqueles que consideram – como fez Marshall – que a Constituição norte-americana e seus criadores pretenderam viabilizar um sistema de judicial review por meio do qual a Suprema Corte garantisse a supremacia da Constituição frente às leis federais certamente estarão mais próximos do chamado ativismo judiciário. Contrariamente, aqueles para os quais o poder de revisar as leis deve ser exercido apenas raramente e quando absolutamente necessário para prevenir que a democracia derrube um princípio maior da nação(7) estarão mais próximos da corrente que considera não existir base histórica sólida em favor do judicial review.

Conclusões

As matérias ditas políticas não estão afetas à revisão judicial pelos membros do Supremo Tribunal, ainda que sob o argumento de defesa de direitos e garantias individuais previstos na Constituição, na medida em que o princípio constitucional da separação dos poderes assegura ampla dose de autonomia normativa interna na gestão de seus próprios interesses.

A consequência natural dessa premissa consiste em assegurar ao Poder Legislativo a autonomia para editar lei ou decreto legislativo que venha a suspender a decisão judicial sobre questão política interna da Casa, sem que esse ato possa ser considerado como de ruptura institucional.

Notas

1. NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D.  Constitutional Law. 2. ed. St. Paul: Thompson West, 2000. p. 124.

2. KECK, Thomas. The most activist Supreme Court in history: the road to modern judicial conservatism. Chicago: University of Chicago Press, 2004. p. 292.

3. CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 250. O autor, inclusive, recorda que a primeira notícia histórica sobre a doutrina provém da resposta que o Justice Jay deu a uma consulta formulada pelo então Presidente Washington, por meio de seu secretário de Estado, Jefferson. Na ocasião, o Presidente indagava dos membros da Suprema Corte se esta poderia responder a consultas em abstrato acerca da interpretação de leis e tratados, tendo o Justice Jay respondido que essa competência era exclusiva do chefe do Poder Executivo, não podendo o Judiciário interferir nessa tarefa, sob pena de ofensa à separação entre os poderes.

4. Sobre a revisão judicial do processo eleitoral, é importante citar o caso Luther v. Borden (1849). Nesse caso, a Suprema Corte recusou julgar ação proposta por Luther – um dos líderes de um movimento político local em Rhode Island que decidiu realizar eleições locais e criar uma Constituição estadual, haja vista que em 1840 Rhode Island era o único Estado-membro que não possuía uma Constituição estadual. Tendo Borden (xerife estadual) invadido a propriedade de Luther em busca de evidência acerca de sua participação nesse movimento político considerado ilegal, Borden o processou por invasão, mencionando que a busca do xerife era inconstitucional e não observava o regime republicano. A Corte, naquela ocasião, não aceitou analisar a demanda sob o argumento central de que a alegação da inexistência de um governo local agindo sob a forma republicana não era uma questão justiciável, sendo que essa corrente, de uma forma geral, vem sendo seguida até hoje.

5. CHEMERINSKY, Erwin. Contitutional Law: principles and policies. 2. ed. New York: Aspen, 2002. p. 141.

6. Hollingsworth v. Virginia.

7. NOWAK, John; ROTUNDA, Ronald. Op. cit., p. 13.



Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., abr. 2016. Disponível em:
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REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS