O mandado de segurança coletivo e as contradições existentes na Lei n° 12.016/2009

Autor: Leonardo Cacau Santos La Bradbury

Juiz Federal Substituto

publicado em 30.06.2016

 

1 Conceito, origem e finalidade

O mandado de segurança é um direito constitucional do cidadão, previsto no art. 5º, LXIX, da CF/88, tendo a natureza jurídica de ação constitucional, cujo objetivo é sanar o vício causado por ato ilegal ou inconstitucional de autoridade pública ou a ela equiparada. Tal remédio heróico foi instituído em nosso ordenamento pela Carta Magna de 16 de julho de 1934, em seu art.113,(1) que assim dispunha:

“Dar-se-á mandado de segurança para a defesa de direito certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade.

O mandado de segurança visa, assim, à proteção de direito líquido e certo, que não corresponda à liberdade de locomoção nem ao direito de informação, amparáveis, respectivamente, por habeas corpus e habeas data.

Sobre o direito líquido e certo, Hely Lopes(2) assim o define:

“Direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração. Por outras palavras, o direito invocável, para ser amparável por mandado de segurança, há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos os requisitos e condições de sua aplicação ao impetrante: se a sua existência for duvidosa; se a sua extensão ainda não estiver delimitada; se o seu exercício depender de situações e fatos ainda não determinados, não rende ensejo à segurança, embora possa ser defendido por outros meios judiciais.

Porém, a expressão "direito líquido e certo" não é a mais apropriada, pois leva a crer que o direito é indiscutível, pois já estaria delimitado, o que não ocorre, pois o que é líquido e certo não é o direito, mas sim os fatos que ensejam a ação. Corroborando tal questão, a própria Súmula nº 625 do STF(3) aduz ser possível a discussão de questão de direito no bojo do mandado de segurança. Assim, são os fatos que devem ser comprovados de plano a fim de que seja concedida a segurança, isto é, deve ser suficiente a produção de prova documental, acompanhando a inicial, para a concessão da segurança.

Se houver necessidade de instrução probatória para a comprovação dos fatos, estes não são líquidos nem certos, devendo ser alvo de ação ordinária, e não de mandado de segurança, cuja inicial será indeferida, nos termos da Lei 12.016/2009.

Feita essa breve introdução a respeito de aspectos gerais processuais do rito do mandado de segurança, passaremos, no próximo tópico, a analisar a questão central do presente trabalho, que versa sobre as contradições existentes na Lei n° 12.016/2009 a respeito do mandado de segurança coletivo.

2 Mandado de segurança coletivo e as contradições existentes na Lei n° 12.016/2009

A grande inovação da Lei 12.016/2009 foi a regulamentação do mandado de segurança coletivo, previsto na CF/88, em seu art. 5º, LXX.

Assim, tendo em vista que se trata de um instrumento para a defesa da tutela coletiva, as normas do mandado de segurança coletivo devem se adequar ao chamado "microssistema processual coletivo", tendo como núcleo o Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública. Tal microssistema tem a função de, enquanto não houver a publicação do Código de Processo  Civil Coletivo, aplicar suas normas subsidiariamente aos instrumentos de proteção coletiva (ação popular, ação de improbidade, mandado de segurança coletivo), na busca pela sua efetivação.

Ocorre que a Lei 12.016/2009, em alguns aspectos, que consideramos primordiais, não está em sintonia com o microssistema processual coletivo acima referido. Primeiro, o art. 21, parágrafo único, da referida lei prevê a possibilidade de impetração de mandado de segurança coletivo para defender interesse coletivo e individual homogêneo, porém não se refere ao direito difuso.

Esse silêncio do legislador tem suscitado dúvidas na doutrina processual, a ponto de alguns entenderem que não cabe mandado de segurança coletivo em face de interesse difuso, em razão da ausência de previsão legal. Porém, não podemos concordar com esse entendimento. Como ressaltamos, as disposições previstas no microssistema processual coletivo devem ser aplicadas subsidiariamente a todos os instrumentos de proteção da tutela coletiva, caso se constate alguma lacuna ou obscuridade.

Dessa forma, aplicando-se subsidiariamente o art. 81 do CDC, verifica-se a possibilidade de mandado de segurança coletivo para a defesa de direito difuso, entendidos os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.

Registre-se que, conforme doutrina de Barbosa Moreira, os direitos individuais homogêneos são considerados acidentalmente coletivos, pois, apesar de serem individuais, são defendidos judicialmente por meio dos mesmos instrumentos previstos para a proteção dos direitos essencialmente coletivos (difusos e coletivos).

Assim, tendo em vista que o direito difuso é interesse essencialmente coletivo, não há razão lógica para excluir a possibilidade de sua proteção por meio da utilização de um instrumento jurídico, qual seja, o mandado de segurança coletivo, cuja finalidade é justamente a proteção dos interesses transindividuais. Exemplificando, não há como impedir que uma associação de moradores ingresse com um mandado de segurança coletivo contra a prefeitura que está depositando lixo em uma área residencial, buscando, assim, a defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito difuso essencialmente coletivo.

Concluímos, assim, que, não obstante o cochilo do legislador, de forma intencional ou não, o mandado de segurança coletivo é adequado, para a defesa de direitos difusos, mediante a aplicação subsidiária do microssistema processual coletivo, notadamente o previsto no art. 81 do CDC.

Registre-se que esse entendimento está em consonância com o princípio da tutela adequada e o da inafastabilidade da tutela jurisdicional. Ademais, o próprio STF já se manifestou sobre o tema, nos seguintes termos:

"(...) expresso meu entendimento no sentido de que o mandado de segurança coletivo protege tanto os interesses coletivos e difusos, quanto os direitos subjetivos." (RE 181.438-1/SP, STF, Tribunal Pleno, Min. Carlos Velloso)(4)

"À agremiação partidária não pode ser vedado o uso do mandado de segurança coletivo em hipóteses concretas em que estejam em risco, por exemplo, o patrimônio histórico, cultural ou ambiental de determinada comunidade. Assim, se o partido político entender que determinado direito difuso se encontra ameaçado ou lesado por qualquer ato da administração, poderá fazer uso do mandado de segurança coletivo, que não se restringirá apenas aos assuntos relativos a direitos políticos nem a seus integrantes." (Min. Ellen Gracie, no STF,Pleno, RE nº 196.184, j. em 27.10.2004, RE 196.184, transcrições, Bol. Inf. do STF n. 372)(5)

Dessa forma, entendemos que, apesar do silêncio do legislador, não se pode sobre a matéria retroceder, sob pena de ferir o princípio da vedação ao retrocesso, pois o mandado de segurança é um direito fundamental da coletividade, devendo proteger os direitos difusos.

Outra questão, que também nos parece contraditória, é que o art. 22, § 1º, da Lei 12.016/2009 prevê a possibilidade de o jurisdicionado que ingressou com um mandado de segurança individual se beneficiar da decisão prevista no mandado de segurança coletivo, porém desde que, no prazo de 30 dias contados da ciência comprovada da impetração do mandado de segurança coletivo, desista do seu mandado de segurança individual.

Ocorre que essa disposição conflita frontalmente com o microssistema processual coletivo, notadamente o art. 104 do CDC, que prevê a possibilidade de se aproveitar da ação coletiva, desde que requeira a suspensão da sua ação individual no prazo de 30 dias contados da ciência da existência da ação coletiva.

Note-se que a ação coletiva não pode impedir o jurisdicionado de ingressar com sua demanda individual. Porém, por outro lado, está mais em consonância com os princípios da duração razoável do processo e da efetividade que a questão seja resolvida em somente uma macrolide coletiva, em vez de em milhares individuais. Por essa razão é que o próprio STJ, no REsp 1.110.549-RS, decidiu a possibilidade de que essa suspensão das ações individuais seja declarada de ofício pelo próprio magistrado de 1º grau, nos seguintes termos:

“RECURSO REPETITIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO COLETIVA. MACROLIDE. CORREÇÃO DE SALDOS DE CADERNETAS DE POUPANÇA. SUSTAÇÃO DE ANDAMENTO DE AÇÕES INDIVIDUAIS. POSSIBILIDADE.

1.– Ajuizada ação coletiva atinente a macrolide geradora de processos multitudinários, suspendem-se as ações individuais, no aguardo do julgamento da ação coletiva.
2.– Entendimento que não nega vigência aos aos arts. 51, IV e § 1º, 103 e 104 do Código de Defesa do Consumidor; 122 e 166 do Código Civil; e 2º e 6º do Código de Processo Civil, com os quais se harmoniza, atualizando-lhes a interpretação extraída da potencialidade desses dispositivos legais ante a diretriz legal resultante do disposto no art. 543-C do Código de Processo Civil, com a redação dada pela Lei dos Recursos Repetitivos (Lei nº 11.672, de 08.05.2008).
3.– Recurso especial improvido.” (REsp 1110549/RS, rel. Ministro Sidnei Beneti, Segunda Seção, julgado em 28.10.2009, DJe 14.12.2009)(6)

Entendemos que tal conduta processual é constitucional, pois se estão resguardando os direitos em jogo, uma vez que se assegura o amplo acesso ao Judiciário, já que tal suspensão de ofício apenas traria benefícios ao autor, pois, se a decisão na ação coletiva for-lhe desfavorável, ele dará continuidade à sua ação individual (bem como, se a ação coletiva for favorável, a sua ação individual será convertida em liquidação de sentença coletiva, conforme consta no inteiro teor do REsp acima transcrito, assim como no REsp 1.189.679-RS).

Ademais, tal suspensão de ofício pelo magistrado privilegia também o princípio da efetividade processual e o da razoável duração do processo, pois permite que o Judiciário, em uma só decisão, julgue definitivamente milhares de questões individuais, combatendo a tão reclamada morosidade da justiça e atendendo ao interesse público.

Assim, nos termos dos conceitos trazidos pela doutrina das class actions, de origem norte-americana, com a impetração da ação coletiva surgem para o jurisdicionado duas possibilidades: o direito de ingressar na tutela coletiva, (right to opt in), isto é, o de se submeter aos efeitos da decisão da demanda coletiva, bastando para tanto que requeira a suspensão da sua ação individual após a ciência da interposição da ação coletiva, ou o direito de excluir-se da tutela coletiva (right toopt out), isto é, o direito de não se submeter aos efeitos da demanda coletiva, bastando que continue a dar andamento à sua ação individual, mesmo após a ciência da existência da ação coletiva. Verifica-se, assim, que, uma vez tendo ciência da existência do processo coletivo, o jurisdicionado deve exercer uma das duas possibilidades.
Sobre o exercício do direito de excluir-se da tutela coletiva, Fredie Didier,(7) citando Antonio Gidi, assim nos ensina:

“O exercício do right toopt out não implica renúncia da situação jurídica individual: o indivíduo não ‘abre mão’ do seu direito à indenização, por exemplo; ele não quer, isso sim, que esse direito seja tutelado no âmbito coletivo, pois prefere, pelas mais variadas razões, a tutela jurisdicional individual. Ao excluir-se, o indivíduo ‘não será prejudicado pela sentença desfavorável’ e ‘também não poderá ser, naturalmente, beneficiado pela coisa julgada da sentença favorável’.” (GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos. São Paulo: RT, 2007. p. 300)

Ressalte-se, contudo, que, conforme registrado, a tendência do STJ é mitigar o direito do autor de excluir-se da tutela coletiva (right toopt out), pois, mesmo que continue a desenvolver a sua demanda individual, após a ciência da ação coletiva, o juiz, de ofício, pode suspendê-la, em prol da efetividade do processo e do interesse público, não necessitando de requerimento do autor.

Assim, o direito de se submeter aos efeitos da ação coletiva (right to opt in), que antes representava um direito potestativo do autor, dependente de uma conduta processual ativa por meio de requerimento de suspensão de sua ação individual, pode ser realizado pelo próprio magistrado de ofício. Não obstante, apesar dessa evolução jurisprudencial do STJ, que consideramos benéfica e constitucional, verifica-se que a exigência, para se beneficiar dos efeitos da tutela coletiva, é a suspensão da ação individual (quer feita por requerimento do autor, quer feita de ofício pelo magistrado), e não a sua desistência, pois, em determinadas situações, caso venha a perder a ação coletiva, pode ainda continuar com sua lide individual.

Verifica-se, assim, que a Lei 12.016/2009, ao exigir que o autor de mandado de segurança individual desista de sua ação para poder se beneficiar de mandado de segurança coletivo, viola o microssistema processual coletivo, previsto no art. 104 do CDC.

No caso, a situação se agrava, pois, caso venha a perder o mandado de segurança coletivo, via de regra não poderá mais ingressar com mandado de segurança individual, pois, como desistiu anteriormente, não poderá ingressar com novo mandado de segurança, visto que, muito provavelmente, já se terá consumado o prazo decadencial de 120 dias a contar do ato abusivo para a impetração do remédio heroico, nos termos do art. 23 da Lei 12.016/2009, salvo nos casos de ato omissivo, em que não se aplica tal dispositivo.

Assim, a tutela coletiva, que não deve impedir a possibilidade de se buscar o direito por meio das ações individuais, acabara retirando o direito legítimo do autor de utilizar o mandado de segurança individual, somente restando-lhe as ações ordinárias, de procedimento mais demorado, caso o mandado de segurança coletivo seja julgado improcedente.

Dessa forma, realizando uma interpretação conforme a Constituição do art.22, §1º, da Lei 12.016/2009, entendemos que o sentido mais consentâneo com o microssistema processual coletivo é a possibilidade de o autor de mandado de segurança iIndividual se submeter aos efeitos do mandado de segurança coletivo (right toopt in), desde que, para tanto, requeira a suspensão do mandado de segurança individual, sem a necessidade de requerer a sua desistência. Ademais, nos termos do entendimento do STJ já exposto, o magistrado também pode, de ofício, determinar a suspensão dos mandados de segurança individuais.

Notas

1. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm>

2. Meireles, Hely Lopes. Mandado de segurança e ações constitucionais. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

3. A súmula n° 625 do STF dispõe que a “controvérsia sobre matéria de direito não impede concessão de mandado de segurança”.

4. Disponível em: <www.stf.jus.br>.

5. Disponível em: <www.stf.jus.br>.

6. Disponível em: <www.stj.jus.br>.

7. DIDIER, Fredie. Editorial 73. Disponível em:
<http://www.frediedidier.com.br/main/noticias/detalhe.jsp?CId=344>. Acesso em 06/04/2011.



Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., mai. 2016. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS