A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a aplicação da lei no tempo e a possibilidade de exclusão do fator previdenciário prevista na Lei nº 13.183/2015

Autor: Fernando Zandoná

Juiz Federal

publicado em 13.09.2016

 

Sumário: Primeiras considerações. 1 Da aplicação da lei no tempo. 2 Do limite imposto ao legislador pelo art. 195, § 5º, da CF. 3 Do princípio da isonomia. Considerações finais. Bibliografia.

Primeiras considerações

O presente trabalho tem como objetivo analisar, a partir de alguns precedentes do STF sobre aplicação da lei no tempo, a incidência ou não do art. 29-C da Lei nº 8.213/91,(1) com a redação dada pelo art. 2º da Lei nº 13.183, de 04 de novembro de 2015, aos benefícios concedidos anteriormente à sua vigência.

O dispositivo acima faculta ao segurado que preencher os requisitos para a aposentadoria por tempo de contribuição optar pela não incidência do fator previdenciário no cálculo de sua aposentadoria, quando o total resultante da soma de sua idade e de seu tempo de contribuição, incluídas as frações, na data de requerimento da aposentadoria, for igual ou superior a 95 pontos, se homem, observado o tempo mínimo de contribuição de 35 anos; ou igual ou superior a 85 pontos, se mulher, observado o tempo mínimo de contribuição de 30 anos.

Cuida-se de alteração que, inevitavelmente, acarretará mais uma enxurrada de ações revisionais no âmbito da Justiça Federal com a finalidade de, quando mais vantajoso ao segurado, afastar incidência do fator previdenciário na apuração da renda mensal inicial dos benefícios já concedidos, sobretudo em razão de algumas interpretações dadas aos princípios e às  normas constitucionais que regem a matéria.

É importante registrar que, com a conclusão do julgamento do RE 661.256 (repercussão geral – o placar está 2 x 2 e o julgamento foi suspenso pelo pedido de vista da Ministra Rosa Weber) sobre a denominada “desaposentação”, o tema em análise – na hipótese de vitória dos segurados – ficará parcialmente prejudicado, pois, em princípio, todos aqueles que foram aposentados antes da Lei nº 13.183/15 e continuaram contribuindo ao RGPS após a concessão de sua aposentadoria por tempo de contribuição/serviço poderão requerer um novo benefício sem a incidência do fator previdenciário.

Enfim, tal questão, como tantas outras de mesma natureza, certamente será objeto de muita controvérsia e somente restará pacificada com o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral, razão pela qual passo a tecer algumas considerações sobre a aplicação da lei previdenciária no tempo, o princípio da isonomia e os limites impostos ao legislador, tudo à luz da interpretação dada pelo STF à Constituição Federal quando foi chamado a decidir questões análogas.

1 Da aplicação da lei no tempo

As leis, em nosso ordenamento jurídico, se destinam a regrar fatos que lhes são posteriores. Entretanto, é possível a aplicação da lei nova a fatos pretéritos, desde que: (a) exista expressa previsão normativa; (b) não sejam violados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI, CF);(2) e (c) a lei não determine a incidência de norma tributária em relação aos fatos geradores ocorridos antes de sua vigência (art. 150, III, alínea a, CF). Vale referir que a Constituição Federal também impede a eficácia retroativa de lei penal, salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL).     

Em sede de Direito Previdenciário, entretanto, não há que se falar em retroação para beneficiar o segurado, como regra geral, pois somente na seara penal é que a lei – independentemente de previsão expressa – retroage para beneficiar o réu, conforme previsão constitucional.

Nesse sentido é a lição do Professor Wladimir Novaes Martinez, que, ao comentar sobre a retroação benéfica em Direito Previdenciário, esclarece que, “excepcionalmente, a norma retroage, arrostando o princípio da validade da lei ao tempo dos fatos. Tal conclusão não pode defluir de raciocínios indiretos, carecendo o comando de dispor expressa e claramente sobre o tema”.(3)

De igual modo é a lição de Hélio do Valle Pereira, para quem,

“em nosso direito, as leis destinam-se a regrar fatos que lhes são posteriores. A aplicação da lei nova ao fato pretérito, a bem da verdade, é viável, mas exige expressa previsão normativa. E só é possível, sob pena de inconstitucionalidade, se não vulnerar o art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, que resguarda o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”(4)

Com efeito, o legislador ordinário nada dispôs acerca da aplicação retroativa da Lei nº 13.183/15. Esse silêncio de forma alguma pode ser entendido como intenção do legislador em revisar as aposentadorias concedidas antes de 05 de novembro de 2015. Aliás, se essa fosse a intenção do legislador, teria ele, certamente, adotado a técnica utilizada no art. 144 da Lei nº 8.213/91, mas não o fez.

Deve ficar bem claro que a aplicação do fator previdenciário é um dos critérios utilizados na apuração da renda mensal inicial – RMI e, portanto, integra o ato administrativo de concessão do benefício.

Nesse contexto, entendo que não tem qualquer amparo constitucional/legal a eventual tese de que a exclusão do fator previdenciário deve ser aplicada aos benefícios concedidos anteriormente à vigência da Lei nº 13.183/15, e que tal questão não se trata de aplicação retroativa, mas sim de incidência imediata de nova norma para regular situação jurídica a qual, embora tenha se aperfeiçoado no passado, irradia efeitos jurídicos para o futuro.

Ora, o raciocínio acima, sem dúvida alguma, permitiria, v.g., que o legislador ordinário editasse legislação estendendo a aplicação do fator previdenciário para todos os benefícios, alterando substancialmente a renda mensal de benefícios concedidos antes de sua vigência, sob o argumento de que não se trataria de aplicação retroativa, e sim imediata! Mais, se essa lei fosse omissa quanto à sua retroatividade, o INSS, ex officio, poderia “revisar para menos” todos os benefícios, pois apenas estaria aplicando imediatamente a lei nova que alterou a forma de cálculo da renda mensal inicial.

Vê-se, portanto, que aplicar a Lei nº 13.183/15 às aposentadorias por tempo de contribuição concedidas antes de sua vigência é sim conferir a ela eficácia retroativa sem qualquer previsão legal. Com efeito, quando o Poder Judiciário adota interpretação desta natureza, está, em verdade, assumindo o papel de legislador positivo, prática vedada em nosso ordenamento jurídico.(5)

Essa questão, aliás, foi enfrentada brilhantemente no RE 108.410/RS, pelo Ministro Rafael Mayer, cujo voto merece ser transcrito:

“Somente lei nova, em disposição expressa, pode dispor retroativamente para estender benefícios aos que se inativaram antes de sua vigência, e assim mesmo porque estará elegendo suportes fácticos para a sua incidência imediata, o que é próprio de sua fatura.
Sem que assim o faça, a retroação do efeito da norma para alcançar situações que se constituíram no passado, em tempo anterior ao de sua vigência, afeta iniludivelmente o princípio da irretroatividade das leis consagrado no art. 153, § 3º, da Constituição, um dos suportes da ordem jurídica a conferir segurança e certeza às relações jurídicas.
Humanamente nobre é a inspiração dos doutos julgadores em fazer justiça, mas a tanto não vai a discricionaridade do juízo, escravo que é dos preceitos constitucionais ou legais que deva aplicar e reverente ao magno princípio da separação dos poderes.
Atenta que é a tais imperativos, e a que é defeso ao juiz substituir-se ao legislador, a pretexto da isonomia, esta Corte sempre tem prestigiado a sua antiga Súmula 339, cujo entendimento é aplicável ao caso.”(6)

Na mesma linha decidiu a Corte Excelsa no tema atinente à conversão da aposentadoria por tempo de serviço concedida com base na Lei nº 6.887/80 em aposentadoria especial com base no art. 35 do Decreto nº 89.321/84, consoante se extrai da ementa que segue:

“DIREITO CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO. CONVERSÃO EM APOSENTADORIA ESPECIAL. LEI Nº 6.887/80. DECRETO Nº 89.312/84, ART. 35. INAPLICABILIDADE DA LEI NOVA ÀS SITUAÇÕES PRETÉRITAS. 1. Viola o art. 5º, XXXVI, da C.F. acórdão que aplica à aposentadoria previdenciária comum, deferida segundo a legislação da época, a lei posterior que criou a aposentadoria especial e não previu sua retroatividade (Lei nº 6.887/80, Decreto nº 89.312/84, art. 35).” (RE nº 153.663-2, rel. Ministro Sydney Sanches, DJ 09.04.99)

Por oportuno, transcrevo parte do voto proferido no RE nº 153.663-2:

“Rege a aposentadoria, mesmo a previdenciária, a lei vigente por ocasião de sua concessão; a aplicação da lei nova a situações pretéritas depende de ordenamento expresso desta. Por ocasião da aposentadoria, vigia lei que somente fazia computar determinado período para a aposentadoria por tempo de serviço. A lei nova, que determinou computar-se o período para a aposentadoria especial, aplica-se somente às aposentadorias futuras, e não aos casos pretéritos, constituídos sob a vigência da lei anterior e que a lei nova não mandou rever.” (destaquei)

No mesmo sentido, temos os seguintes precedentes do STF: RR. EE. nos 110.075; 113.465; 117.800; 104.697; 135.692; 135.703; 160.843; e 116.647.

Mais recentemente, o Plenário do STF, ao julgar o RE 415.454/SC, sobre a revisão da renda mensal das pensões por morte concedidas anteriormente à vigência da Lei nº 9.032/95, decidiu pela irretroatividade da nova lei. Tal questão, aliás, é muito semelhante ao tema ora em análise e, provavelmente, o STF manterá o mesmo posicionamento quando for chamado a decidir sobre a incidência da Lei nº 13.183/15 aos benefícios concedidos antes da sua vigência. Segue a ementa do julgado:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. (...) BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO: PENSÃO POR MORTE (LEI Nº 9.032, DE 28 DE ABRIL DE 1995). 1. No caso concreto, a recorrida é pensionista do INSS desde 04.10.1994, recebendo por meio do benefício nº 055.419.615-8 aproximadamente o valor de R$ 948,68. Acórdão recorrido que determinou a revisão do benefício de pensão por morte, com efeitos financeiros correspondentes à integralidade do salário de benefícios da previdência geral, a partir da vigência da Lei nº 9.032/1995. 2. Concessão do referido benefício ocorrida em momento anterior à edição da Lei nº 9.032/1995. No caso concreto, ao momento da concessão, incidia a Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. 3. (...) 4. (...). 5. (...) 6. (...). 7. Evolução do tratamento legislativo do benefício da pensão por morte desde a promulgação da CF/1988: arts. 201 e 202 na redação original da Constituição, edição da Lei nº 8.213/1991 (art. 75), alteração da redação do art. 75 pela Lei nº 9.032/1995, alteração redacional realizada pela Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998. 8. Levantamento da jurisprudência do STF quanto à aplicação da lei previdenciária no tempo. Consagração da aplicação do princípio tempus regit actum quanto ao momento de referência para a concessão de benefícios nas relações previdenciárias. Precedentes citados: RE nº 258.570/RS, 1ª Turma, unânime, rel. Min. Moreira Alves, DJ 19.04.2002; RE (AgR) nº 269.407/RS, 2ª Turma, unânime, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 02.08.2002; RE (AgR) nº 310.159/RS, 2ª Turma, unânime, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 06.08.2004; e MS nº 24.958/DF, Pleno, unânime, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 01.04.2005. 9. Na espécie, ao reconhecer a configuração de direito adquirido, o acórdão recorrido violou frontalmente a Constituição, fazendo má aplicação dessa garantia (CF, art. 5º, XXXVI), conforme consolidado por esta Corte em diversos julgados: RE nº 226.855/RS, Plenário, maioria, rel. Min. Moreira Alves, DJ 13.10.2000; RE nº 206.048/RS, Plenário, maioria, rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ acórdão Min. Nelson Jobim, DJ 19.10.2001; RE nº 298.695/SP, Plenário, maioria, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 24.10.2003; AI (AgR) nº 450.268/MG, 1ª Turma, unânime, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 27.05.2005; RE (AgR) nº 287.261/MG, 2ª Turma, unânime, rel. Min. Ellen Gracie, DJ 26.08.2005; e RE nº 141.190/SP, Plenário, unânime, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 26.05.2006. 10. De igual modo, ao estender a aplicação dos novos critérios de cálculo a todos os beneficiários sob o regime das leis anteriores, o acórdão recorrido negligenciou a imposição constitucional de que lei que majora benefício previdenciário deve, necessariamente e de modo expresso, indicar a fonte de custeio total (CF, art. 195, § 5º). Precedente citado: RE nº 92.312/SP, 2ª Turma, unânime, rel. Min. Moreira Alves, julgado em 11.04.1980. 11. Na espécie, o benefício da pensão por morte configura-se como direito previdenciário de perfil institucional cuja garantia corresponde à manutenção do valor real do benefício, conforme os critérios definidos em lei (CF, art. 201, § 4º). 12. Ausência de violação ao princípio da isonomia (CF, art. 5º, caput) porque, na espécie, a exigência constitucional de prévia estipulação da fonte de custeio total consiste em exigência operacional do sistema previdenciário que, dada a realidade atuarial disponível, não pode ser simplesmente ignorada. 13. O cumprimento das políticas públicas previdenciárias, exatamente por estar calcado no princípio da solidariedade (CF, art. 3º, I), deve ter como fundamento o fato de que não é possível dissociar as bases contributivas de arrecadação da prévia indicação legislativa da dotação orçamentária exigida (CF, art. 195, § 5º). Precedente citado: julgamento conjunto das ADIs nos 3.105/DF e 3.128/DF, rel. Min. Ellen Gracie, red. p/ o acórdão Min. Cezar Peluso, Plenário, maioria, DJ 18.02.2005. 14. Considerada a atuação da autarquia recorrente, aplica-se também o princípio da preservação do equilíbrio financeiro e atuarial (CF, art. 201, caput), o qual se demonstra em consonância com os princípios norteadores da administração pública (CF, art. 37). 15. Salvo disposição legislativa expressa e que atenda à prévia indicação da fonte de custeio total, o benefício previdenciário deve ser calculado na forma prevista na legislação vigente à data da sua concessão. A Lei nº 9.032/1995 somente pode ser aplicada às concessões ocorridas a partir de sua entrada em vigor. 16. No caso em apreço, aplica-se o teor do art 75 da Lei 8.213/1991 em sua redação ao momento da concessão do benefício à recorrida. 17. Recurso conhecido e provido para reformar o acórdão recorrido.”

Assim, é possível concluir que, para aplicação retroativa da legislação previdenciária – quando implica a revisão do ato administrativo de concessão –, devem ser observados, conjuntamente, os seguintes aspectos: (a) deve haver autorização legislativa expressa (ex.: art. 144 da Lei nº 8.213/91); (b) a retroação não pode vir em prejuízo do segurado, pois, se assim fosse, estar-se-ia violando o art. 5º, XXXVI (direito adquirido e ato jurídico perfeito); e (c) quando a retroação acarretar a criação, a majoração e a extensão de benefícios ou serviços, deve ser preservado o equilíbrio financeiro e atuarial (art. 201, caput, CF) e criada a correspondente fonte de custeio total (art. 195, § 5º, CF).

2 Do limite imposto ao legislador pelo art. 195, § 5º, da Carta Magna

Não há qualquer dúvida de que a aplicação retroativa do art. 29-C da Lei nº 8.213/91, com a redação dada pela Lei nº 13.183/15, implicaria, necessariamente, uma enorme saída de recursos financeiros dos cofres da Previdência Social.

Contudo, estabelece a Constituição Federal expressamente que “nenhum benefício ou serviço da seguridade social pode ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte total de custeio” (art. 195, § 5º).

A imposição constitucional da precedência de custeio restringe a atividade legislativa na medida em que uma lei nova só pode criar, majorar ou estender benefício ou serviço da seguridade social se existir a correspondente fonte total de custeio.

Dessa forma, é lícito concluir que, mesmo que o legislador quisesse conferir efeito retroativo à Lei nº 13.183/15, e não quis, tal disposição seria manifestamente inconstitucional, porquanto não foi estabelecida, previamente, em qualquer diploma legal, a correspondente fonte total de custeio para cobrir as despesas com a exclusão do fator previdenciário – quando mais vantajoso – do cálculo da RMI dos benefícios de aposentadoria por tempo de contribuição concedidos antes de 05 de novembro de 2015.

Ora, se nem o legislador poderia conferir efeito retroativo à norma, sob pena de inconstitucionalidade, muito menos o Poder Judiciário pode fazê-lo mediante uma interpretação totalmente em descompasso com o texto constitucional.

Em suma: a eventual interpretação de que o art. 29-C da Lei nº 8.213/91 (redação dada pela Lei nº 13.183/15) permite a revisão da RMI dos benefícios de aposentadoria por tempo de contribuição concedidos antes de sua vigência – quando mais vantajoso ao segurado – vai de encontro com o disposto no art. 195, § 5º, da Constituição Federal.

3 Do princípio da isonomia

Certamente o principal argumento a ser utilizado em favor da tese da retroatividade do disposto no art. 29-C aos benefícios concedidos antes de sua vigência será a preservação do princípio da isonomia (art. 5º, caput, da CF), pois, em princípio, segurados com o mesmo tempo de contribuição e a mesma idade devem ser tratados igualmente.

A meu ver, não é possível invocar o princípio da isonomia para garantir a exclusão da aplicação do fator previdenciário aos benefícios cujos atos de concessão se deram na vigência de legislações distintas.

Com efeito, o Ministro Gilmar Mendes, no voto proferido no RE nº 416.827-8/SC, que trata de questão análoga à ora em análise, concluiu que:

“(...) não é possível cogitar de violação ao princípio da isonomia por duas razões.
Em primeiro lugar, trata-se de exigência operacional do sistema previdenciário que, dada a realidade atuarial disponível, não pode ser simplesmente ignorada, mesmo quando expressamente determinada pelo legislador ordinário.
Assim, na situação presente, em que a ausência de disposição em sentido contrário é manifesta, não é possível invocar a pretensão de aplicação de novo critério de cálculo do benefício da pensão por morte. Isso ocorre porque as regras constitucionais de estipulação de dotação orçamentária expressa e específica vinculam o legislador ordinário.
Veja-se, ademais, que, se as circunstâncias normativas fossem diametralmente opostas (isto é, se a legislação inovadora estabelecesse restrição, ou até mesmo diminuição da base de cálculo ou do percentual de definição do valor desse benefício), não haveria qualquer plausibilidade jurídica em aplicar retroativamente as novas disposições aos benefícios já concedidos.
Em segundo lugar, ao estabelecer novos critérios diferenciados para o cálculo dos benefícios concedidos a partir da vigência da Lei nº 9.032/1995, a alternativa hermenêutica que se coloca é a da imposição das leis gerais de regulamentação do setor previdenciário.
Assim, em princípio, não há falar em privilégios ou concessão diferenciada de benefícios previdenciários porque, a rigor, todos e cada um dos beneficiários são titulares da garantia de ‘reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme os critérios definidos em lei’ (CF, art. 201, § 4º).
Nesse contexto, o cumprimento das políticas públicas previdenciárias, exatamente por estar calcado no princípio da solidariedade (CF, art. 3º, I), deve ter como fundamento o fato de que não é possível dissociar as bases contributivas de arrecadação da necessária dotação orçamentária exigida, de modo prévio, pela Constituição (CF, art. 195, § 5º).
Trata-se do princípio da preservação do equilíbrio financeiro e atuarial (CF, art. 201, caput), que, inclusive, demonstra-se em consonância com os princípios norteadores da administração pública (CF, art. 37) e, no que interessa a este caso, da própria atuação da autarquia ora recorrente.”

Desse modo, pelas razões acima delineadas, além de outras tantas mais, não é possível invocar o princípio da isonomia para garantir que todos os aposentados por tempo de contribuição cujos atos de concessão ocorreram na vigência das mais variadas legislações tenham idêntico tratamento na forma de apuração da renda mensal inicial. Aliás, no momento da criação do fator previdenciário, ninguém defendeu sua aplicação aos segurados que já estavam aposentados ou já tinham preenchidos todos os requisitos para concessão do benefício na vigência da legislação anterior.

Considerações finais

Por todo o exposto, tenho que sobre a aplicação do art. 29-C da Lei nº 8.213/91, com redação dada pela Lei nº 13.183, de 04 de novembro de 2015, é possível concluir:

(a) para que seja possível a aplicação retroativa de legislação previdenciária – quando implica a revisão de ato administrativo de concessão –, devem ser observados, conjuntamente, os seguintes aspectos: (I) deve haver autorização legislativa expressa; (II) a retroação não pode vir em prejuízo do segurado; e (III) quando a retroação implicar a criação, a majoração e a extensão de benefícios ou serviços, deve ser preservado o equilíbrio financeiro e atuarial e criada a correspondente fonte de custeio total;

(b) como no corpo da Lei nº 13.183/15, a qual faculta ao segurado a exclusão da aplicação do fator previdenciário na apuração da RMI do benefício de aposentadoria por tempo de contribuição, inexistem normas a respeito dos itens I e III acima, a única conclusão possível é de que ela só tem incidência sobre os benefícios concedidos após 04 de novembro de 2015, ou seja, após ter entrado em vigor;

(c) aplicar o art. 29-C, com a redação dada pela Lei n° 13.183/15, às aposentadorias por tempo de contribuição concedidas antes de sua vigência é conferir a lei nova efeito retroativo, a despeito da ausência de previsão legal ou constitucional neste sentido;

(d) caso o Poder Judiciário adote interpretação que exclua a aplicação do fator previdenciário da apuração da RMI de todos os benefícios de aposentadoria por tempo de contribuição, independentemente da data de concessão do benefício, estará, em verdade, assumindo a posição de legislador positivo, prática vedada em nosso ordenamento jurídico, porquanto, no âmbito de nosso sistema constitucional, tal efeito (retroação), exceto nas hipóteses previstas na Carta Magna, só pode ser legitimamente definido pelo Poder Legislativo, e, ainda assim, devem ser respeitados os aspectos mencionados no item “a” (II e III) da presente conclusão, sob pena de a norma ser declarada inconstitucional; e

(e) em face dos precedentes históricos do Supremo Tribunal Federal em matéria similar, tudo leva a crer que será reafirmado o entendimento de que, em casos como o presente, não há como conferir efeito retroativo ao art. 29-C.

Bibliografia (trabalhos citados no texto)

MARTINEZ, Wladimir Novaes. Curso de Direito Previdenciário. 3. ed. São Paulo: LTr, 2005. Tomo I.

______. Direito adquirido na Previdência Social. 2. ed. São Paulo: LTr, 2003.

IBRAHIM, Fábio Zambitte. Expectativa de direito e direito adquirido na Previdência Soicial. Revista de Previdência Social, São Paulo, v. 296, p. 444-453, 2005.

PEREIRA, Hélio do Valle. Prescrição e decadência no Direito Previdenciário. Revista de Previdência Social, São Paulo, v. 226, p. 751, 2000.

Notas

1. “Art. 29-C. O segurado que preencher o requisito para a aposentadoria por tempo de contribuição poderá optar pela não incidência do fator previdenciário no cálculo de sua aposentadoria, quando o total resultante da soma de sua idade e de seu tempo de contribuição, incluídas as frações, na data de requerimento da aposentadoria, for:
I – igual ou superior a noventa e cinco pontos, se homem, observando o tempo mínimo de contribuição de trinta e cinco anos; ou
II – igual ou superior a oitenta e cinco pontos, se mulher, observado o tempo mínimo de contribuição de trinta anos.
§ 1º Para os fins do disposto no caput, serão somadas as frações em meses completos de tempo de contribuição e idade.
§ 2º As somas de idade e de tempo de contribuição previstas no caput serão majoradas em um ponto em:
I – 31 de dezembro de 2018;
II – 31 de dezembro de 2020;
III – 31 de dezembro de 2022;
IV – 31 de dezembro de 2024; e
V – 31 de dezembro de 2026.
§ 3º Para efeito de aplicação do disposto no caput e no § 2º, o tempo mínimo de contribuição do professor e da professora que comprovarem exclusivamente tempo de efetivo exercício de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio será de, respectivamente, trinta e vinte e cinco anos, e serão acrescidos cinco pontos à soma da idade com o tempo de contribuição.
§ 4º Ao segurado que alcançar o requisito necessário ao exercício da opção de que trata o caput e deixar de requerer aposentadoria será assegurado o direito à opção com a aplicação da pontuação exigida na data do cumprimento do requisito nos termos deste artigo.
§ 5º (VETADO).” (Vigência)

2. Nesse sentido é o texto de Fábio Zambitte Ibrahin na RPS – 296/444: “(...) é admissível a eficácia retro-operante, havendo, porém, no direito brasileiro, limitação dessa retroação no que diz respeito ao direito adquirido, ao lado do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, os quais têm guarida constitucional (art. 5º, XXXVI, CRFB/88), configurando-se em cláusula pétrea, a priori imodificável até por emenda (art. 40, § 4º, IV, CRFB/88)”.

3. In Curso de Direito Previdenciário. 3. ed. São Paulo: LTr, 2005. Tomo I. p. 114.

4. In Revista de Previdência Social, n. 226, p. 751.

5. “(...) O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI FORMAL TRADUZ LIMITAÇÃO AO EXERCÍCIO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL DO ESTADO – A reserva de lei constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, visto que a sua incidência reforça o princípio que, fundado na autoridade da Constituição, impõe à administração e à jurisdição a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. – Não cabe ao Poder Judiciário, em tema regido pelo postulado constitucional da reserva de lei, atuar na anômala condição de legislador positivo (RTJ 126/48 – RTJ 143/57 – RTJ 146/461-462 – RTJ 153/765 – RTJ 161/739-740 – RTJ 175/1137, v.g.), para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Judiciário – que não dispõe de função legislativa – passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador positivo), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes. (...)” (STF – RE-AgR 322348 – SC – 2ª T. – rel. Min. Celso de Mello – DJU 06.12.2002 – p. 74)

6. Súmula 339 – “Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia”.



Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., set. 2016. Disponível em:
<>
Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS