Demandas coletivas: uma alternativa à massificação de ações

Autor: Rodrigo Machado Coutinho

Juiz Federal

publicado em 13.09.2016



O Currículo Permanente de Planejamento e Gestão no Poder Judiciário – Módulo VI, organizado pela Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região – Emagis, que teve a coordenação científica do Excelentíssimo Desembargador Federal Joel Ilan Paciornik, tratou de temas, até outrora, um tanto áridos para o Poder Judiciário, como, por exemplo, gestão de pessoas, de conhecimento e de processos judiciais, controle de produtividade e de qualidade, ações coletivas como alternativa à morosidade da justiça, entre outros.

Portanto, não é fácil a tarefa de escolher um desses instigantes temas para colocar neste breve comentário, mas, tendo em conta a proximidade com a jurisdição, trago como eixo deste trabalho a palestra do Dr. Rodolfo de Camargo Mancuso, que teve o título “Ações coletivas como instrumento de combate à proliferação de demandas replicadas e à morosidade da Justiça”.

Nesse passo, examinarei a legitimação ativa e o acesso ao Poder Judiciário nas ações coletivas, com foco na Lei da Ação Civil Pública.

De início, temos que o acesso ao Poder Judiciário tem previsão no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito–, bem como, mais adiante, também é garantia constitucional a razoável duração do processo judicial – “LXXVIII. A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)” –, razão pela qual qualquer regra que venha a limitar o acesso à jurisdição de forma individual ou coletiva deve ser vista com reserva.

A resolução coletiva de conflitos não tinha lugar ou tradição no nosso ordenamento jurídico até a edição da Lei nº 7.347, de 1985, que é a Lei da Ação Civil Pública.

Também o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/1990, trouxe uma ampliação na legitimação ativa, bem como a permissão da tutela coletiva nos direitos individuais homogêneos. Nessa linha, diz Ada Pellegrini Grinover:

“A legitimação para agir foi ampliada não somente para ensejar o acesso às demandas essencialmente coletivas (art. 81, parágrafo único, nos I e II), como também para permitir a tutela coletiva dos interesses ou direitos individuais ligados entre si pelo vínculo da homogeneidade.
A ampliação foi ao ponto de permitir que as entidades e os órgãos da administração pública direta e indireta, mesmo sem personalidade jurídica, possam ter acesso à justiça desde que especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código (art. 82, nº III). As associações passaram a ter legitimação ad causam pela só autorização estatutária decorrente da enunciação de seus fins institucionais (art. 82, nº IV).” (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. p. 709)

A questão da legitimação ativa nas ações coletivas ainda encontra dissonância na doutrina e na jurisprudência, ainda que passado um quarto de século desde a edição da LACP, sobretudo quando se tem um legitimado ativo diverso do Ministério Público, como, por exemplo, a Defensoria Pública da União.

Quando se está diante de direitos individuais e homogêneos, parece haver certa dificuldade de se aceitar essa concorrência nesta legitimação ativa.

Todavia, quanto aos direitos difusos e coletivos, o doutrinador Hugo Mazzili admite essa possibilidade:

“Em suma, nosso entendimento é o de que a Defensoria Pública pode propor ações civis públicas ou coletivas, em defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos de pessoas que se encontrem na condição de necessitados, ou seja, na de pessoas que tenham insuficiência de recursos para custear a defesa individual, mesmo que, com isso, em matéria de interesses difusos (que compreendem grupos indetermináveis de lesados), possam ser indiretamente beneficiadas terceiras pessoas que não se encontrem na condição de deficiência econômica, até porque não haveria como separar os integrantes do grupo atingido.” (A defesa dos interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 305)

Quanto aos interesses individuais homogêneos, em atenção aos princípios acima enunciados, tenho que a aplicação do polo ativo das demandas coletivas deve ser o menos restritivo possível, podendo, inclusive, a Defensoria Pública atuar em casos como tais, porquanto:

A um, a tutela coletiva, “além de eliminar o custo das inúmeras ações individuais e de tornar mais racional o trabalho do Poder Judiciário, supera os problemas de ordem cultural e psicológica que impedem o acesso à justiça e neutraliza vantagens dos litigantes habituais e dos litigantes mais fortes” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Procedimentos especiais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 298).

O objetivo da ação civil pública, portanto, é “condensar” a tutela de direitos individuais decorrentes de lesões, ou ao menos risco de lesões, decorrentes da sociedade de massas (reportamo-nos, novamente, à lição de Marinoni e Arenhart, ob. cit., p. 293 e ss.).

Nesse passo, quando a Lei nº 11.448/07 dá à Defensoria Pública legitimidade ativa para ajuizar ação civil pública, há um claro sinal de que o legislador ordinário pretendeu ampliar as possibilidades de tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Assim, é evidente a necessidade de a Defensoria Pública ocupar o espaço que lhe foi conferido pelo legislador.

A dois, a Defensoria Pública tem função institucional de defesa dos necessitados, todavia, não há limitação na sua atuação a esses indivíduos. Essa defesa dos necessitados é a sua função típica, mas não se pode descurar que há, igualmente, uma função atípica, que se constitui no cuidado do necessitado jurídico, quando exerce, por exemplo, a função de curador.

É de se buscar, agora, se a legitimação da Defensoria Pública contraria a legitimação de outro órgão, no caso, o Ministério Público, e nesse ponto tenho que não há a dita incongruência, pois o art. 129 da Carta Constitucional inclui entre as atribuições do Ministério Público o ajuizamento da ação civil pública (inciso III), todavia, não se trata de atribuição exclusiva. A questão fica evidenciada se cotejada com o disposto no inciso I do referido artigo, que atribui ao Ministério Público privativamente a promoção da ação penal pública.

Nesse ponto, ainda, é de se relevar que o Excelso Pretório já teve a oportunidade de se manifestar, recentemente, sobre essa legitimação da Defensoria Pública, assegurando-a no julgamento da ADI 3.943/DF, tendo por relatora a Ministra Cármen Lúcia, verbis:

“34. O objetivo da Defensoria Pública é a eficiência da prestação de serviços e o efetivo acesso à Justiça por todos os necessitados, para garantia dos direitos fundamentais previstos no art. 5º, incs. XXXV, LXXIV e LXXVIII, da Constituição da República.
A constatação de serem normalmente mais graves as lesões coletivas, aliada à circunstância de tender o tempo gasto em processos coletivos a ser menor, evidencia que a opção por ações coletivas racionaliza o trabalho pelo Poder Judiciário e aumenta a possibilidade de assegurar soluções uniformes e igualitárias para os diferentes titulares dos mesmos direitos, garantindo-se não apenas a eficiência da prestação jurisdicional, mas também a duração razoável do processo e a justiça das decisões, que se igualam em seu conteúdo, sem contradições jurisprudenciais não incomuns em demandas individuais.
(...)
38. Não se está a afirmar a desnecessidade de observar a Defensoria Pública o preceito do art. 5º, inc. LXXIV, da Constituição, reiterado no art. 134 (antes e depois da Emenda Constitucional nº 80/2014). No exercício de sua atribuição constitucional, deve-se sempre averiguar a compatibilidade dos interesses e dos direitos que a instituição protege com os possíveis beneficiários de quaisquer das ações ajuizadas, mesmo em ação civil pública.
À luz dos princípios orientadores da interpretação dos direitos fundamentais, acentuados nas manifestações do Congresso Nacional, da Advocacia-Geral da União e da Presidência da República, a presunção de que, no rol dos afetados pelos resultados da ação coletiva, constem pessoas necessitadas é suficiente a justificar a legitimidade da Defensoria Pública, para não ‘esvaziar, totalmente, as finalidades que originaram a Defensoria Pública como função essencial à Justiça’ (fl. 550, manifestação da Advocacia-Geral da União).
(...)
46. Da leitura do art. 129 da Constituição da República não é possível extrair deter o Ministério Público a exclusividade para o ajuizamento da ação civil pública.
Contrariamente, o § 1º daquele dispositivo constitucional contém autorização expressa para que, nos termos da Constituição da República e da legislação vigente, terceiros possam ajuizar as ações cíveis previstas no artigo, devendo-se destacar, seguindo Humberto Theodoro Júnior, que ‘na ordem jurídica não há preferência alguma entre os diversos legitimados’ (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: procedimentos especiais. 41. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. III. p. 483).
(...)
O custo social decorrente da negativa de atendimento de determinada coletividade ao argumento de hipoteticamente estar-se também a proteger direitos e interesses de cidadãos abastados é infinitamente maior que todos os custos financeiros inerentes à pronta atuação da Defensoria Pública nas situações concretas que autorizam o manejo da ação civil pública, conforme previsto no ordenamento jurídico.”

Como se pode notar, o Excelso Pretório, na manifestação acima, de forma unânime (ainda não transitada em julgado), deu claro sinal de que as questiúnculas ou brigas de classes não podem interferir na legitimação ativa para as ações coletivas, devendo-se buscar a interpretação mais ampla possível.

E, para isso, a i. Min. Cármen Lúcia afasta, com grande brilhantismo, a questão da atuação restrita da Defensoria Pública, ao dizer que

“O custo social decorrente da negativa de atendimento de determinada coletividade ao argumento de hipoteticamente estar-se também a proteger direitos e interesses de cidadãos abastados é infinitamente maior que todos os custos financeiros inerentes à pronta atuação da Defensoria Pública nas situações concretas que autorizam o manejo da ação civil pública, conforme previsto no ordenamento jurídico.”

Aliás, em oito anos de jurisdição plena na Vara do Sistema Financeiro da Habitação em Porto Alegre/RS, não houve o ingresso de uma única ação coletiva movida pelo Ministério Público Federal. As que ingressaram foram promovidas por entidades de mutuários e pela Defensoria Pública da União.

Ao trazermos essa r. decisão do Excelso Pretório para o dia a dia da jurisdição, teremos um incremento na produtividade e no tratamento isonômico de questões repetidas ou semelhantes, inclusive com pequenas diferenças no mundo dos fatos entre elas.

Como exemplo, podemos evidenciar os problemas construtivos em empreendimentos do Programa Minha Casa, Minha Vida, nos quais há uma gama de problemas em imóveis de um mesmo empreendimento. Nesses casos, admiti, em mais de uma oportunidade, o ingresso de ações civis públicas interpostas pela Defensoria Pública da União que visavam sanar esses vícios construtivos.

Durante o trâmite processual dessas ações, era possível a busca conjunta na solução dos problemas dos mutuários desses empreendimentos, ainda que houvesse danos distintos nas suas habitações.

Um primeiro passo, nessas situações, era a realização de uma inspeção judicial com a presença de todos os envolvidos: magistrado, MPF, DPU, CEF, construtora, perito, órgãos públicos (energia elétrica, água e saneamento) e representantes dos mutuários. Isso aproximava as pessoas para a busca por uma solução consensual, o que ocorreu em diversas oportunidades.

Mesmo na hipótese de não se chegar a um acordo judicial, o pronunciamento em sentença já estampava, de forma genérica, os reparos a serem realizados, se fosse o caso. Com isso, é possível resolver, em um único processo, conflitos que poderiam estar em mais de 50 ou 100 ações, muitas vezes com argumentos, pedidos e procuradores diversos, o que sempre causa um grande tumulto.

Por fim, verificamos que a questão da legitimação ativa nas ações coletivas, em especial na LACP, deve soltar-se das amarras que lhe vêm sendo impostas por alguns julgados e até mesmo por doutrinadores de respeito, para ser conferida a interpretação mais ampla possível quanto aos seus legitimados ativos, sobretudo com a participação de entidades, em especial, a Defensoria Pública, para que se possa ter um tratamento rápido e uniforme para situações semelhantes.



Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., set. 2016. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS