Introdução
A história do conhecimento humano, da cognição e da compreensão do mundo pelos seres vivos, o que Maturana e Varela (2001) chamaram de biologia da cognição, estabeleceu-se como apreensão da realidade sem a interferência do sujeito, é dizer, uma representação fiel da realidade independente do conhecedor. O mundo é pré-dado. A construção humana não constitui conhecimento, assim como as artes e os saberes humanos. Essa realidade persiste hígida nos dias atuais: o conhecimento é objetivo, e a subjetividade deve ser descartada. O cérebro humano recebe já prontas as informações e apenas as processa. É a essência do chamado representacionismo (a mente como espelho da natureza), que constitui o marco epistemológico da cultura moderna.
Maturana e Varela (2001, p. 9-10) partem da premissa de que vivemos no mundo e, por isso, fazemos parte dele; vivemos com os outros seres humanos e, portanto, compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que vivemos durante nossas vidas. Por outro lado, ele também nos constrói ao longo desta viagem comum. O mundo não é anterior à nossa experiência. Em suma: se a vida é um processo de conhecimento, os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude passiva, e sim pela interação. “Aprendem vivendo e vivem aprendendo.” As três premissas básicas da autopoiese em Maturana e Varela (2001, p. 32) são: “Tudo o que é dito, é dito por alguém”, “A reflexão é um fazer humano, realizado por alguém em particular num determinado lugar” e “Todo ato de conhecer faz surgir um mundo”.
Para a teoria dos sistemas, o que interessa é a observação da complexidade. O valor dessa observação não é percebido se o indivíduo continua preso à unidade de um sujeito do conhecimento. Na observação, tanto há uma pluralidade de sujeitos como também os sujeitos observam o mundo com olhares paralelos. Luhmann, em seu construtivismo operativo, estuda a teoria do conhecimento a partir da estrutura organizacional, superando a distinção ontológica ser/não ser.
A problemática atual do sistema judicial transita pelo dilema de que não pode se eximir de decidir, mas precisa decidir autopoiética e referencialmente, ou seja, conforme o seu código binário – direito e não direito –, sob pena de corromper o sistema e desaparecer como tal, sem se insular em relação ao ambiente.
O presente artigo discute as possíveis vantagens de uma abordagem sistêmica na formação de juízes como exigência temática do concurso, do curso de formação inicial e da capacitação permanente dos juízes. Pretende-se evidenciar que uma parcela importante dos problemas hoje enfrentados pela Justiça brasileira decorre das dificuldades de se ministrar um tratamento sistêmico aos temas interdisciplinares, por parte de novos e velhos juízes, à problemática complexa da Administração da Justiça e também da Teoria da Decisão Judicial.
O objetivo é disponibilizar aos juízes em etapa de formação (e por que não àqueles que já superaram esta fase), um plus epistemológico para dar conta da complexidade e da contigência das relações sociais no presente momento histórico sem desbordar da referência do direito.
A tal mister, enfocam-se, em breves linhas, os contornos principiológicos da teoria dos sistemas e, com mais vagar, do sistema judicial, tocando em um ponto central para o enfoque epistemológico interdisciplinar sistêmico: a formação da decisão judicial. Será adotada a matriz teórica sistêmica de N. Luhmann e a metodologia dedutiva-indutiva.
1 Breves considerações sobre a teoria dos sistemas sociais
Observado sistemicamente, o mundo corresponde a uma rede de interações em que as intervenções estão disseminadas por contextos desconhecidos. O alcance e as consequências de nossas intervenções são imprevisíveis, positivas em um nível e negativas em outro, e a capacidade de metabolização e absorção da intervenção difere em cada elemento das redes, de maneira que a contingência e a imprevisibilidade devem ser consideradas a cada intervenção.(1)
De acordo com a visão sistêmica, as propriedades essenciais de um organismo, ou sistema vivo, são propriedades do todo, que nenhuma das partes possui. Elas surgem das interações e das relações entre as partes. Essas propriedades são destruídas quando o sistema é dissecado, física ou teoricamente, em elementos isolados. Embora possamos discernir partes individuais em qualquer sistema, essas partes não são isoladas, e a natureza do todo é sempre diferente da mera soma de suas partes. Assim, "os sistemas não podem ser entendidos pela análise. As propriedades das partes não são propriedades intrínsecas, mas só podem ser entendidas dentro do contexto do todo mais amplo" (CAPRA, 1997, p. 31).
Antes da década de 40, os termos ''sistema" e "pensamento sistêmico" tinham sido utilizados por vários cientistas, mas foram as concepções de Bertalanffy (1974) de um sistema aberto e de uma teoria geral dos sistemas que estabeleceram o pensamento sistêmico como um movimento científico de primeira grandeza.
Coube a Parsons (1974 e 1984), teórico da matriz construtivista-funcionalista, teorizar a existência dos sistemas sociais. Depois de Parsons, seu brilhante aluno Niklas Luhmann transportou para o interior das ciências sociais categorias derivadas de diversas disciplinas científicas, como a biologia, a física, a psicologia, a economia, a teoria da comunicação, a cibernética, utilizando-as no estudo de fenômenos sociais.
Os conceitos de autopoiese, autorreferência, diferença sistema/entorno, operação, sentido e comunicação foram reescritos por Luhmann na sua proposta teórica sistêmico-funcionalista. E é no conceito de sistema desenvolvido pelos neurocientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela que Luhmann vai se inspirar para propor uma teoria dos sistemas sociais e uma teoria da sociedade contemporânea.
Maturana e Varela (2001) iniciam seu projeto de estruturação biológica cognitiva na presunção de romper com a tendência de vivermos em um mundo de certezas, de solidez perspectiva não contestada, em que nossas convicções provam que as coisas são somente como as vemos e não existe alternativa para aquilo que nos parece certo.
Essa é a nossa situação cotidiana, nossa condição cultural, nosso modo habitual de sermos humanos. Sua proposta representa um convite à suspensão do hábito de cair na tentação da certeza, que fomentou o pensamento moderno (a dicotomia conhecimento versus experiência). De fato, Prigogine (2004, p. 112), discorrendo sobre os paradigmas modernos, afirmava que
“o desenvolvimento científico desemboca em uma verdadeira eleição metafísica, trágica e abstrata: o homem tem que eleger entre a tentação, tranquilizadora, mas irracional, de buscar na natureza a garantia dos valores humanos, a manifestação de uma pertinência essencial, e a fidelidade a uma racionalidade que o deixa só em um mundo mudo e estúpido.” (tradução livre)
Para Maturana e Varela (2001), os organismos vivos, como os vegetais, os animais ou uma bactéria, são sistemas fechados, autorreferenciados e autopoiéticos. O fechamento operacional dos sistemas não representa que sejam isolados, incomunicáveis, insensíveis, imutáveis, mas sim que as suas partes ou os elementos interagem uns com os outros e somente entre si.
Em Luhmann, no que reescreve a teoria dos sistemas sociais abertos de Parsons, os sistemas sociais operam fechados sobre sua própria base operativa, diferenciando-se de todo o resto e, portanto, criando seu próprio limite de operação. O fechamento é a condição da abertura do sistema ao ambiente: o sistema só é capaz de estar atento e responder à causalidade externa por meio das operações que ele próprio desenvolveu.
A autopoiese, em Maturana e Varela (2001), é concebida como instrumento de investigação da realidade. A palavra autopoiese deriva do grego, auto-αυτο, "auto", e ποιησις, poiesis, "criação" ou "produção". Constitui, em verdade, uma espécie de neologismo empregado para designar a organização dos sistemas vivos. A condição para que haja autopoiese é a existência dos seres vivos sobre a produção contínua de si mesmos. O termo foi empregado na biologia, sendo, mais tarde, adotado por outras ciências, principalmente a sociologia e o direito. Hodiernamente, ele é utilizado em diversos campos, como a psicoterapia, a administração, a antropologia, a cultura organizacional e outros tantos.
Maturana e Varela (2001) definem o sistema a partir da diferença em relação ao ambiente ou entorno.(2) A diferenciação entre sistema e entorno representa que tudo aquilo que não diz respeito ao sistema observado é tido como entorno, até mesmo os diferentes tipos de sistemas que coexistem em uma mesma dimensão espaço-temporal.
Como um termostato que mede não a temperatura, mas a diferença de temperatura, um sistema tem como pressuposto e pressupõe a diferença em relação ao seu entorno. É justamente essa diferença que faz do sistema um objeto autorreferente e autopoiético. O entorno é pura complexidade e contingência. A visão sistêmica possibilita a observação, a descrição e a solução dos problemas com mais eficiência, reduzidos em sua complexidade, temporal, social e materialmente generalizando, estabilizando e simbolicamente imunizando as expectativas comportamentais.
A autopoiese é, nesse sentido, a propriedade que os sistemas autorreferidos apresentam de, a partir dos seus próprios elementos, produzir a si próprios como unidades diferenciadas. Para tal empreendimento, os sistemas precisam se autorreparar, autorreestruturar, autotransformar e autoadaptar sem perder suas identidades.
O conjunto de transformações que um sistema autopoiético pode sofrer é determinado pela sua organização (invariante) e pela sua estrutura (variante). Os sistemas não possuem nem entradas (input) nem saídas (output), é dizer, são estruturalmente determinados.
Organização e estrutura são as noções fundamentais para a teoria autopoiética dos sistemas de Maturana e Varela. Organização de uma unidade ou sistema tem a ver com as relações que ocorrem entre os seus componentes para que possam ser reconhecidos como membros de uma classe específica (tipo particular). Portanto, necessariamente, estarão presentes no sistema (unidade composta) para lhe definir a existência (2001, p. 50). As organizações, enquanto forma de acoplamento estrutural, no desempenho das suas funcionalidades institucionais, produzem observações, descrições e tomadas de decisão que interessam ao sistema social como um todo, mas que serão sentidas de forma diferente em cada um deles.
As estruturas são modelos de cultura normativa institucionalizada. A estrutura é representada pelo conjunto de relações efetivas entre os componentes presentes em uma máquina concreta dentro de um espaço dado. Simplificando, a estrutura corresponde à dinâmica de funcionamento efetivo do sistema. Por isso, a organização de um sistema pode se dar a partir de muitas estruturas diferentes, na medida em que o conjunto de relações e propriedades que a definem é um subconjunto daquelas (PARSONS, 1974).
Cada observador percebe a estrutura como pertencente a diversas classes de unidades compostas, pois poderá abstrair subconjuntos diferentes de relações e propriedades em diversas estruturas de efetivação. Para que a organização possa permanecer invariante, enquanto realizável por diferentes estruturas, existem limites (estabilidade) para as variáveis dessa estrutura, que, uma vez superados, produzem a mudança da organização (MATURANA; VARELA, 2001, p. 54). São estruturas dos sistemas sociais os papéis, as normas, as coletividades e os valores.
Todos os sistemas construídos pelo homem têm uma finalidade específica. Os conceitos de finalidade, objetivo e funcionamento são introduzidos pela necessidade de comunicação no domínio do observador. A finalidade não se apresenta como uma característica da sua organização, mas sim do domínio do seu funcionamento. Um carro, mantida a sua integridade física (ou seja, mantido o conjunto de relações entre os seus componentes, e, portanto, mantida a sua organização), não deixará de ser um carro se lhe for dada uma finalidade diferente (se, ao invés do transporte de objetos e pessoas, passe a servir para escorar uma parede, v.g.).
Maturana e Varela (2001, p. 54) exemplificam o conceito com o sistema de descarga do banheiro. A organização é invariável (controle da passagem de água), mas a estrutura é variável, na medida em que cada casa pode utilizar um modelo próprio, de plástico, madeira ou outro material.
Outras categorias fundamentais na proposta epistemológica cognitiva de Maturana e Varela, ao lado da organização e da estrutura dos sistemas, são comunicação, acoplamento estrutural, informação, cognição, observação, observador, ponto cego e sentido.
O observador é, segundo a definição de Maturana, tomada de empréstimo por Rocha e Duarte (2012b, p. 15),
“un ser humano, una persona; alguien que puede hacer distinciones y especificar lo que distingue como una entidad (un algo) diferente de sí mismo, y puede hacerlo con sus propias acciones y pensamientos recursivamente, siendo capaz siempre de operar con alguien externo (distinto) de las circunstancias en las que se encuentra él mismo.”
A observação, em Luhmann (1997, p. 92), "debe ser toda forma de operación que lleve a cabo una distinción para designar una (y no la otra) de sus partes". O objetivo imediato(3) da observação sistêmica é observar o que outros observam (ou o mesmo observador em outro momento), constituindo uma observação de segunda ordem (second order cybernetics), em que o observador deve lançar mão de todos os preceitos da teoria circular (constituição operativa dos sistemas, clausura operativa e autopoiese) para entender como é possível que uma operação possa se produzir a si mesma, ao produzir a observação.(4)
Esse é, aliás, o paradoxo de ser, ela mesma, uma operação de observação, melhor dizendo, a diferença entre operação e observação (re-entry into the form).(5) Para Luhmann (2009, p. 168), o que a observação de segunda ordem faz é uma tentativa de observar o que o observador não pode ver devido à sua localização. A observação de segunda ordem "deve fixar exatamente o ponto a partir do qual se observa como o outro observa o mundo". Daí ser inócua a ideia de que dois sistemas possam ter acesso comum a uma mesma realidade, pois a observação é construída a partir de bases operacionais (pontos de partida) diferentes (2009, p. 126). "A única restrição em relação à observação é a de que se deve operar com um ponto cego, com um ponto de invisibilidade, que garante a unidade da diferença, não importando qual seja a distinção, uma vez que a unidade da diferença não é observável" (LUHMANN, 2009, p. 160).
O ponto cego constitui a distinção fundamental própria de um sistema social autopoiético, “que não pode ver que não pode ver o que não pode ver”. O sistema simplesmente fracassa em observar a distinção fundamental subjacente à observação. O ponto cego é o preço que o sistema paga pela sua autopoiese, resultando que os sistemas sociais permanecem invariavelmente alheios ao contingente e limitados às suas próprias observações.
O observador não é o sujeito, e sim uma classe de sistemas muito especiais que Luhmann chamou de sistemas de sentido. O observador é um sistema de sentidos que se produz a si mesmo enquanto produz distinções, e os resultados dessas observações são significados organizados ao nível da percepção, da consciência e da comunicação.
Cada observação é dividida em dois: de um lado da observação fica o efetivamente observado e organizado em forma de significado e, de outro, fica o que não foi levado em conta, ou seja, todo o mais que não entrou no campo perceptivo. Uma vez que a percepção é sempre parcial, porque muita informação da realidade fica fora, é preciso sempre outra observação.
Rocha e Duarte (2012b, p. 15) descrevem a cognição como um acoplamento estrutural adequado aos sistemas vivos e ao seu aspecto ecológico. Para Maturana, viver é conhecer. Os sistemas vivos, determinados pela estrutura, quando interagem entre si, não permitem interações instrutivas, o que significa dizer que tudo o que acontece em seu interior ocorre como mudança estrutural. Dessa forma, deve o observador entender a cognição como "lo que hacemos o como operamos en esas coordinaciones de acciones y relaciones cuando generamos nuestras declaraciones cognitivas" (MATURANA).(6)
Ainda que os sistemas operem fechados em sua própria estrutura, existe a necessidade de se estabelecer relações (comunicações) condicionadas entre o sistema e o entorno e, por conseguinte, entre o sistema e os outros sistemas. O desafio consiste em justificar teoricamente um conceito que articule autorreferencialidade sistêmica com a comunicação entre sistemas. A essa relação entre sistemas determinados por sua própria estrutura convencionou-se chamar “acoplamento estrutural”.
Os sistemas, na medida em que são completamente autodeterminados, se desenvolvem em uma direção determinada, tolerada pelo entorno. A parte do acoplamento estrutural que é interna ao sistema chama-se irritação, e surge de uma confrontação endógena de eventos do sistema com possibilidades próprias, com estruturas estabilizadas, como expectativas.(7)
Os acoplamentos estruturais ocorrem corriqueiramente na sociedade moderna, levando os sistemas sociais a níveis maiores de complexidade e diferenciação. É o que se verifica, por exemplo, no caso da criação de impostos (acoplamento entre o direito, a política e a economia); no dos contratos (direito e economia); no das universidades (ciência e educação); no das qualificações técnicas e dos seus certificados (educação e economia). A Constituição é o supremo acoplamento estrutural entre o sistema do direito e o sistema político, conforme será visto adiante.
O acoplamento estrutural, no dizer luhmanniano (2009, p. 136), corresponde a "um pequeno espectro de seleção de efeitos possíveis sobre o sistema, levando, por um lado, a que no sistema se realize um ganho muito alto de complexidade e, por outro, a que as possibilidades de influenciar o sistema, a partir do meio, sejam drasticamente reduzidas”. Assim, a função dos acoplamentos estruturais "consiste em abastecer de uma permanente irritação o sistema; ou, então, do ponto de vista do sistema, trata-se de uma constante capacidade de ressonância: a ressonância do sistema se ativa incessantemente, mediante acoplamentos estruturais".
Em Luhmann, a sociedade é um sistema de comunicação,(8) de forma que o elemento central da sua teoria é a comunicação. Um sistema é definido pela fronteira entre ele mesmo e o ambiente, separando-o de um exterior infinitamente complexo. O interior do sistema é uma zona de redução de complexidade: a comunicação endógena do sistema seleciona apenas uma quantidade limitada de informações disponíveis no exterior.
Para Luhmann, o que exatamente se reproduz na autopoiese é a comunicação. O elemento básico de reprodução no sistema social é o processo de comunicação. Os sistemas sociais são entendidos como sistemas comunicativos. Somente a comunicação representa uma operação puramente social, na medida em que pressupõe o envolvimento de vários sistemas psíquicos, sem que se possa atribuí-la exclusivamente a um ou outro desses sistemas: “não pode haver comunicação individual”.
Assim, a comunicabilidade é o elemento operacional por excelência dos sistemas. A teoria dos sistemas sociais está baseada, como se disse, na ideia de comunicação justamente porque a capacidade de comunicação representa um traço comum de todos os sistemas parciais, a modo de lhes permitir a autopoiese e o acoplamento estrutural.
Se à comunicação é atribuído o papel de reprodução do sistema social, o sentido é a forma dos sistemas sociais, traçando uma linha fronteiriça entre sentido/não sentido, entre compreendido/não compreendido. O sentido produz o limite entre sistema e entorno, reduzindo a complexidade de ambos. O que faz sentido para o sistema social é parte de seus elementos, tudo o mais compõe o seu entorno.
O sentido, na teoria dos sistemas sociais, depende da comunicação (e da linguagem). A compreensão do fenômeno social, por meio dos laços de interdependência, pressupõe a comunicabilidade. As normas de direito são comunicações providas de sentido, e sua reprodução se dá apenas como comunicação, ou seja, como direito.
A informação é um conceito-chave para a teoria sistêmica. Representa um acontecimento que seleciona estados do sistema, atualizando estruturas pré-concebidas para limitar as possibilidades e reduzir as complexidades. A seleção constitui um acoplamento interno, e não um acontecimento que se desenvolve no meio, tendo como função excluir possibilidades e, com isso, reduzir a complexidade externa e aumentar a interna. A informação é sempre informação de um sistema.
Os sistemas são autopoiéticos porque reproduzem a si próprios, seus elementos e suas estruturas, e observam o mundo por meio do desenho próprio das suas distinções: sua observação encontra-se confinada dentro de uma distinção fundamental expressada pelo seu código binário.
Luhmann abstrai os seres humanos como base do sistema social, ou seja, os sistemas não podem mais ser concebidos como sistemas de ações humanas inter-relacionadas, mas sim de comunicações, ou, mais precisamente, como sistemas autorreferenciais e autoprodutivos que produzem constantemente comunicação a partir da comunicação. Em substituição ao indivíduo, a comunicação e a operacionalidade às estruturas do modelo parsoniano.
A proposta epistemológica de fugir da subjetividade não representa que ele esteja desinteressado pelo homem, pelo indivíduo ou pelo sujeito. Ao seu desiderato de relativizar a filosofia da consciência, retira o foco do sujeito, do indivíduo, vezo perigoso da modernidade, sem, no entanto, suprimir o sentido humano de sua teoria. O que antes era o fundamento seminal das explicações sociológicas e filosóficas agora se situa à parte na teoria, na medida em que o sujeito passa para o entorno dos sistemas sociais.(9) Esse deslocamento, em absoluto, representa a redução da importância do sujeito. Significa apenas que o sujeito não pode mais ser ponto de partida para a descrição da sociedade e a construção de uma teoria social responsiva e que atenda às complexidades da modernidade.(10)
O construtivismo, ao localizar os indivíduos (e, portanto, os sistemas psíquicos) fora da sociedade, não lhes retira a importância. Eles continuam essenciais ao ato da comunicação e do entendimento. O entorno é parte inseparável da unidade que se conforma como sistema e não menos importante do que ele.
Os sistemas se formam a partir de algum tipo de observação do entorno, observação essa que organiza os dados e lhes confere significado. Dessa característica do entorno também participa o ser humano, e isso o enriquece mais do que se estivesse dentro do sistema. Aceitar, portanto, que os seres humanos são parte do entorno – e não parte do sistema da sociedade – possibilita a ampliação da sua complexidade. E isso enseja que os indivíduos ganhem em liberdade e em possibilidades de aumentar a gama de seus próprios comportamentos, incluindo condutas imorais e irracionais.
A Teoria da Sociedade como Sistema de Luhmann representa uma proposta construtivista, funcionalista e generalista de teoria social. Sistemas representam uma quantidade de elementos em constante interação, que se diferenciam e se delimitam em relação ao seu entorno, operando dentro dos seus limites, é dizer, operacionalmente fechados, mas cognitivamente abertos, tendo como função precípua mediar a extrema complexidade do mundo e a limitada capacidade de processamento do indivíduo por meio da redução de complexidade. Atuam, assim, como sistemas autopoiéticos de comunicação, percebendo-se reciprocamente como sistemas de ação. Embora não tenham interfaces, produzem acoplamentos estruturais que são interações sistêmicas que permitem a comunicação com o entorno por meio de irritações e perturbações.
Luhmann concebe o sistema social composto por subsistemas diferenciados entre si, dotados de racionalidade própria e irredutíveis a um único valor. O critério da diferenciação será a especialização funcional, desempenhada por cada uma dessas unidades: a economia, o direito, a política, a ciência, a cultura, a comunicação, a religião etc. como subsistemas sociais da sociedade moderna.
O sistema social, em primeira mão, necessariamente, convive com a incerteza e a contingência, tendo que diminuí-las ou tratá-las como condição de possibilidade de seu funcionamento, pois a complexidade bloqueia a operacionalidade do seu agir. Portanto, cumpre-lhe, primeiro, ordenar a coexistência das estruturas diferenciadas, é dizer, reduzir a complexidade a níveis compatíveis de operacionalização. Essa é a tarefa principal dos subsistemas sociais parciais da sociedade moderna. Na limitação do presente artigo, remete-se o leitor à extensa obra de Luhmann e seus corifeus, centrando a análise no funcionamento do sistema jurídico.
2 O sistema jurídico e a decisão judicial vistos por Niklas Luhmann
Luhmann, em sua tarefa descritiva do Direito (Habermas intenta criticamente justificá-lo), chama a atenção para o fato de que sempre ocorrerá uma diferenciação funcional quando a sociedade estiver diante de um problema e precisar resolvê-lo. Cumpre ao Direito (na sua diferenciação funcional) o papel de comunicar expectativas de comportamento e fazer com que elas sejam reconhecidas.(11) O significado social do Direito é admitido quando há consequências sociais justamente em virtude de sua potencialidade estabilizadora das expectativas comportamentais.(12)
O Direito é, pois, uma estrutura de generalização congruente em três níveis: temporal, social e objetivo (prático).(13) As expectativas temporalmente estáveis são as expectativas normativas, que constituem verdadeiras regras. São expectativas de conduta estabilizadas contrafaticamente, que se mantêm para o futuro mesmo diante da ocorrência do fato desestabilizador (conduta desviada). A expectativa violada é mantida (não é abandonada) e a conduta desviada (discrepância) é atribuída ao autor enquanto algo irrelevante para sua vigência.
Assim, a dimensão temporal da função do Direito atende à seguinte sequência: expressar expectativas de comportamento, comunicar tais expectativas e fazer com que elas sejam reconhecidas. Essas tarefas são desenvolvidas no sistema por meio de operações que não têm início nem fim, atuando circularmente na construção da estrutura que irá manter a história de produção das operações e, ao mesmo tempo, realizar as operações no sentido de condensá-las na forma de estruturas que conectam, recursiva e tautologicamente, as operações umas às outras, preparando as subsequentes e assim atualizando o sistema no tempo.(14)
Se levarmos em conta a dimensão social, a generalização vai ocorrer com a institucionalização das expectativas. Institucionalizar é possibilitar que a expectativa saia do modelo simples de interação social entre duas posições e ganhe uma anuência suposta e simbólica geral capaz de constituí-la como pauta de comportamento comum válida para todos. A generalização social atribui à expectativa um consenso geral suposto, independentemente do fato de existir ou não a aprovação de cada indivíduo.
Na dimensão material (pragmática), a generalização tem a função de identificar as expectativas em um contexto fático. Na sociedade pós-moderna, a identificação de complexos práticos de sentido socorre-se dos papéis sociais e dos programas de decisões. O direito, a propósito, é definido como complexo de programas decisórios.
No sistema jurídico, a autoprodução e a reprodução são possíveis graças à comunicação, que se revela polissemicamente, é dizer, uma de suas faces representa o lugar da interação formado por símbolos normativos com funções persuasivas, enquanto a outra mostra que esse sistema de símbolos normativos age como elemento causal dos comportamentos sociais.
O sistema jurídico ou do Direito é um sistema parcial autônomo do sistema social, autorreferenciado porque tem a capacidade de produzir-se a si próprio pela autopoiese, como já dito. Mediante suas próprias operações, comunicativa e cognitivamente aberto, a partir da redução de complexidade encontradiça no entorno, comunicando-se com a periferia e acoplando-se com o meio (demais sistemas e seus entornos), o sistema do Direito se atualiza nas suas funções e diferenciações funcionais, estabilizando, institucionalizando e dando praticidade às expectativas sociais, sempre tendo como referencial normativo a Constituição da República, que constitui por excelência o acoplamento estrutural entre o sistema jurídico e o sistema político.(15)
Neves (2012, p. 95-106) mostrou que o acoplamento estrutural permite as comunicações entre os sistemas parciais recursivos pré-dispostos à adaptação de seus programas de autorregulação. No caso dos sistemas sociais, possibilita, em última análise, o encontro entre o autodirecionamento jurídico e o autodimensionamento social. Age como mecanismo de interpenetração permanente e concentrada entre os mencionados sistemas sociais, possibilitando a constante e recíproca troca de influências entre os sistemas parciais, filtrando-as. Ao mesmo tempo em que inclui, exclui, promovendo uma solução jurídica à autorreferência do sistema político e fornecendo resposta política à autorreferência do sistema jurídico.
Sabe-se que o Direito é um subsistema social porque ele tem a sua própria funcionalidade e responde ao seu próprio código binário de referência, e que a mais importante das suas funcionalidades é a “decisão”. A sua autopoiese dá-se a partir da distinção entre a sua unidade e a complexidade (seleção forçada) do seu entorno, ou seja, a existência de mais possibilidades do que se pode realizar.
O entorno, já se disse, é pura complexidade, desconhecimento, obscuridade, incerteza e desordem. Como o entorno é inçado de complexidades (no sentido das suas conjecturas), contingências e circunstâncias (que refletem perigo de desapontamentos e necessidade de assumir riscos), da sua total diferença e de comportamentos que infringem as normas, e como cada expectativa pode não ser correspondida, ao sistema é imperioso reproduzir a si mesmo apenas dentro da sua unidade, cortando o cordão umbilical que o une ao entorno, autonomizando-se.(16) No seu universo depurado, é dizer, reduzido em complexidade e com limites devidamente demarcados, o Direito tem condições de existir, operacionalizar suas funcionalidades e desempenhar seu papel estabilizador das expectativas sociais.
O Direito é visto pelo observador(17) enquanto Direito, ou seja, a partir de um código binário próprio (diferença entre direito e não direito), como já se disse. É, pois, autorreferente no modo de observar a realidade, porque elege um código de comunicação que funciona como um filtro decodificador que lhe permite relacionar-se consigo mesmo e diferenciar essas relações diante das de seu entorno, compartilhando uma linguagem comum.
A resposta a esse teorema está em que a contingência adquire relevância para o sistema jurídico apenas segundo a diferença do seu próprio código de referência, isto é, na medida em que possa ser classificada a partir da diferença entre direito e não direito.
No seu próprio código, diz Luhmann (1990, p. 161), dispõe o sistema de uma contingência reformulada que lhe possibilita selecionar seus próprios estados e desenvolver seus próprios programas (normas, princípios, doutrina, decisões de casos precedentes etc.), que regulamentam o que deve ser considerado direito ou não direito em cada caso específico.
Cumpre à doutrina, por excelência, a delimitação do código binário e dos subcódigos do direito, selecionando, na sociedade, os fatos que podem/devem ser considerados integrantes do sistema jurídico, em uma relação não normativa, mas, antes, cognitiva. Sua atuação é mais dinâmica do que a normativa e mais estável do que a judicial.
Com isso, sintetizando, pode-se afirmar que a autopoiese do sistema jurídico significa que ele reproduz os elementos de que é constituído em uma ordem hermético-recursiva por meio de sua própria dinâmica interna, mas na dependência da interação com o seu próprio conjunto e da comunicação que estabelece com o entorno. No Direito, para Luhmann (1994, p. 20), a "comunicação autopoiética transmite, tanto na vida cotidiana como na prática organizada da decisão, a qualidade normativa da comunicação para a comunicação e reproduz, com isso, a si mesma".
Assim, o pressuposto para a constituição de um sistema jurídico autopoiético é o caráter mutável e relativamente transitório do Direito. A positividade do Direito exige que ele seja variável (em contraposição à imutabilidade do direito natural). O Direito positivo é válido porque poderá ser mudado por uma decisão (é válido em razão de decisões que garantem sua validade), nisso também reside a sua legitimidade. Em outras palavras, é o próprio Direito que atesta e acredita na sua validade, que exsurge exatamente da possibilidade de sua negação (não há legitimidade externa para a teoria sistêmica).
O direito é positivo, ou seja, posto por uma decisão. Portanto, é variável e não determinado, podendo ser mudado por uma nova decisão. O direito moderno é direito contingente. Quando o direito diminui a complexidade do ambiente, ele o faz por meio de uma artificialidade e, consequentemente, gera a condição para sua própria variabilidade. Essa mutabilidade é exclusiva do direito positivo: somente um direito posto, fruto de escolhas, pode selecionar alternativas sem eliminar as possibilidades.
De uma maneira muito singela, pode-se afirmar que o Direito vigente produz frustrações, que são expectativas normatizadas não concretizadas, mas que, não obstante, se mantêm e, por isso mesmo, necessitam ser constantemente reprocessadas (ou estabilizadas, no dizer sistêmico). São as decisões judiciais que cuidam dessa reciclagem, desse caminho necessário para depois serem absorvidas e servirem de base à mudança do Direito.
É curial notar que o hermetismo recursivo do sistema jurídico impede que haja input e output normativo. O Direito, afirma Luhmann (1994, p. 20),
“não pode importar as normas jurídicas de um ambiente social (não existe nenhum 'Direito Natural'), tampouco pode dar normas a esse ambiente (as normas jurídicas não podem valer como Direito fora do Direito). A normatividade é o modo interno de trabalhar do Direito, e sua função social consiste, precisamente, em que cumpra a missão de disponibilidade e modificação do Direito para a sociedade.”
O sistema do Direito se organiza autopoieticamente, fechado no seu interior, mas aberto ao entorno, é dizer: fechado operacionalmente e aberto cognitivamente. Todavia, bem observa Teubner (1993, p. 87) que a clausura autopoiética do sistema jurídico não implica necessariamente uma espécie de autismo sistêmico do mundo jurídico, funcionando justamente como condição para a sua abertura aos eventos produzidos no respectivo meio envolvente.
A evolução do Direito como sistema autopoiético reside na interação entre a parte endógena (unidade desprovida da complexidade e das contingências do entorno) e o exógeno social, porque funciona como unidade autônoma que interage com o mundo circundante ou ambiente, o que se dá exclusivamente por meio da diferenciação entre estruturas cognitivas e normativas de expectativas.
Toda a orientação do Direito em relação ao seu ambiente dá-se pela cognição. A atitude cognitiva está disposta a aprender. Pressupõe um esquema de aprendizagem que predetermina com suficiente clareza o que entraria em jogo como expectativa substitutiva, ao não se cumprir uma expectativa. Esses processos de aprendizagem criam as necessárias condições para o Direito se adaptar ao seu ambiente.
Avançando um pouco, tem-se que o Direito torna-se autopoiético quando suas autodescrições permitem desenvolver e aplicar uma teoria de fontes jurídicas no contexto em que as normas possam ser geradas por meio de precedentes jurisprudenciais e outros processos de criação endógena. Em outro dizer, quando suas normas se originam de outras normas do próprio sistema e suas decisões ou se socorrem de outras decisões antecedentes, ou de normas do sistema, inclusos os contributos da ciência jurídica, que compõe o programa do sistema jurídico.(18)
A autorreprodução do Direito somente ocorre quando as normas jurídicas perpassam atos judiciais (decisões) e vice-versa, ou, ainda, quando as normas procedimentais e a doutrina se imbricam mutuamente. Isso não solapa, nem abala, a recursividade hermética (o fechamento operacional) do sistema jurídico, pressuposto da sua autopoiese, senão que a confirma e, antes, comprova que a operacionalidade nos sistemas autopoiéticos é comunicante.
De rigor, a diferença entre abertura cognitiva e clausura operativa encerra um interesse didático se enxergarmos a clausura como autorreferência e a abertura como heterorreferência da decisão jurídica. A decisão, ao conferir ao fato social (informações do ambiente) um valor conforme o Direito, precisou da abertura cognitiva (heterorreferência) do sistema, para isso socorrendo-se dos programas do sistema jurídico – regras, princípios, doutrina e jurisprudência –, quando providos de caráter normativo válido.
Para a recombinação contínua de reprodução fechada e orientação ambiental aberta de modelos normativos e cognitivos de expectativa, o sistema jurídico faz uso de duas formas de comunicação, a decisão e os argumentos, que permitem a interpenetração/acoplamento entre as estruturas dos sistemas.
A construção autopoiética da decisão judicial na Teoria dos Sistemas Sociais de Luhmann traduz algumas peculiaridades que, de rigor, não fogem dos standards metodológicos e dos conteúdos sistêmicos que se viu, valendo referir, por sua fundamentalidade, a noção de operação, como conceito-chave da teoria sistêmica.
As operações, sintetizando, atualizam constantemente as possibilidades de sentido disponibilizadas pela autopoiese do sistema, construindo novas estruturas circularmente e produzindo a diferença que constitui a realidade (diferença entre sistema e meio).
As decisões representam um tipo especial de operação do sistema. Do sistema porque, do ponto de vista do observador, não são os juízes que realizam essas operações. São elas operações sociais comunicativas referidas ao sistema do Direito a partir de condicionamentos estruturais em que se insere o sujeito prolator da decisão.
O sistema autopoiético do Direito, então, tem como elemento comunicativo próprio a essência mesma da sua funcionalidade, a decisão judicial, e é mediante a repetição dessa função básica de decidir que o sistema jurídico produz diferença e inicia sua própria autopoiese.
Portanto, na autopoiese do Direito, a jurisdição é fundamental, na medida em que ela agrega um dado indispensável, que se consubstancia no caráter coercitivo intrínseco à decisão judicial, a sua normatividade. Isso ocorre segundo o código do Direito, pela mediação do seu símbolo comunicativo, jurídico e não jurídico, que, em razão da ambivalência contraditória, pode ser aplicado a qualquer comportamento humano e a todas as situações relevantes nesse contexto.
Luhmann foi o teórico das diferenças. Isso fica claro quando assenta (1990, p. 154) que a posição dos tribunais no sistema jurídico é determinada preponderantemente pela diferença entre legislação e jurisdição, ou seja, a diferenciação de um sistema jurídico autoconstituinte encontra respaldo organizacional na diferenciação entre legislação e jurisdição, que se condensa na proibição da negação de justiça (regra do non liquet).
A separação de legislação e jurisdição é formulada paradoxalmente como não separação, como vinculação do juiz à lei, e isso possibilita a intervenção politicamente motivada na sociedade.(19) Tudo depende da manutenção da separação e da canalização diferencial de influências externas. "A desistência da separação representaria o colapso do sistema jurídico e também o colapso da separação de Política e Economia", disse Luhmann (1990, p. 155).
A partir da diferenciação entre legislação e jurisdição, podem-se incluir os fundamentos de vigência do Direito no próprio sistema jurídico na forma de uma lei constitucional, concebendo-se aos juízes a função de não só aplicar a lei, senão que também de interpretá-la, na medida em que precisam julgar todos os casos que lhes são apresentados (LUHMANN, 1990, p. 154-155).
Essa diferenciação, ao lado de outras decorrentes de subcódigos (como as entre direito e não direito e normas jurídico-positivas e código binário e programação, que se materializam ou concretizam na organização), é importante do ponto de vista da estrutura da sociedade (sistema social) porque garante a diferenciação funcional das organizações e a interação entre estas segundo a divisão dos seus papéis, do seu trabalho e de suas respectivas funções. Ela vale, pois, ao nível organizacional, como "pressuposto da especificação das tarefas", possibilitando que o sistema jurídico se diferencie do seu entorno (mundo circundante) e, como sistema operacionalmente fechado, reproduza suas próprias operações por meio da rede de operações próprias, dissolvendo assim "o paradoxo da unidade do que é distinguido" (LUHMANN, 1990, p. 151).
Os tribunais são os órgãos centrais do sistema jurídico no sentido de que têm a responsabilidade pela atualização das operações do sistema (todo o mais, inclusive a legislação, constitui periferia).
Não existe hierarquia entre o órgão central, Judiciário, e a periferia, assim como não há um sistema mais importante do que outro (cada um desempenha uma função específica). A diferença entre ambos não implica nenhuma distinção de ordem hierárquica para a continuação da autopoiese do Direito. Pelo contrário, a diferença, em Luhmann, é uma forma de dois lados que demarca a separação desses dois lados e que pode estruturar o sistema como unidade de diferença, pressuposto para que possa existir. Sem periferia, não há centro; sem centro, não há periferia. A distinção foi formulada com vistas a um constante crossing (SPENCER BROWN, 1972).
O legislador fixa as condições a partir das quais os tribunais podem entender, aceitar e praticar a decisão adjudicatória, afirmando sua existência. Assim, substitui-se a cadeia hierárquica por uma diferenciação entre centro e periferia. A organização da jurisdição seria um sistema parcial (subsistema) no qual o sistema do Direito tem seu centro.
A tomada de posição da magistratura significa que o juiz se subordina a restrições de comportamento que não são válidas para qualquer pessoa, ou seja, ele deve atender à produção de regras jurídicas voltando-se para os standards metodológicos e de conteúdo vigentes.
Para a periferia, não há a necessidade de decidir; nela são manejados interesses de qualquer caráter, sendo desnecessária a distinção entre interesses legais e interesses ilegais. Precisamente por isso, a periferia serve de zona de contato com outros sistemas de funções da sociedade – economia, família ou política –, contribuindo para a criação do consenso social. As requisições de consenso se delegam à periferia e ficam introduzidas na forma do contrato ou da lei que se aprovou mediante consenso. De igual maneira, a legislação, ao ceder à pressão política, infiltra-se, cada vez em maior escala, nos espaços antes não ocupados pelo direito em vários setores da vida social. É na periferia que as irritações se formalizam (ou não) juridicamente. Os tribunais, por sua vez, operam com base em um isolamento cognitivo muito mais drástico (“sólo un minúsculo percentaje de cuestiones jurídicas se presenta a los tribunales para que se decidan”), possuindo uma zona de atuação menor na medida em que só operam com base no código direito/não direito, observa Luhmann (2002, p. 230).
A coação legal à decisão se resume na proibição da recusa da prestação jurisdicional (a não decisão não é permitida!), consagrando o princípio universal da proteção legal. Mesmo diante de hard cases, os tribunais devem tomar uma decisão, não obstante sejam as regras para tanto duvidosas. Os tribunais devem decidir onde não podem decidir. E, se não podem, devem se esforçar por poder; se não se encontra o direito, deve ele ser inventado, diz Luhmann (1990).
A decisão representa o terceiro excluído da própria alternatividade da alternativa. É a diferença que constitui a alternativa, ou melhor, a unidade dessa diferença. Um paradoxo, na medida em que sempre pressupõe algo que não é passível de decisão, e não apenas que não está decidido. Do contrário, a decisão já estaria anteriormente tomada e seria o caso de apenas reconhecê-la e reproduzi-la.
O paradoxo reside na relação desse terceiro excluído com a alternativa que ele constrói para se manter excluído – para poder decidir –, à semelhança do observador que não pode ser ele mesmo a distinção com a qual distingue, mas dever ser, antes, o ponto cego da observação (LUHMANN, 2002, p. 220).
Luhmann recorre à parábola do décimo segundo camelo para explicar como a introdução de uma referência externa vai complementar a ausência da possibilidade de decisão (no caso, o camelo cedido pelo juiz). A metáfora é assim contada por Luhmann: um beduíno de muitas posses fixou em seu testamento a divisão dos seus bens – basicamente os camelos – entre os três filhos homens. Seguindo o costume, determinou que o mais velho deveria receber a metade dos animais, o segundo receberia um quarto e o terceiro um sexto. Quando da morte do beduíno, seu legado era de onze camelos. Como não havia como cumprir a regra na íntegra e não houve acerto entre as partes, a questão foi levada ao Cadi, o tribunal local. O juiz fez aos litigantes a seguinte oferta: colocaria à disposição dos irmãos um dos seus camelos, e determinou: “Se Alá assim o permitir, devolvam-no tão logo for possível”.
Agora com doze camelos, a divisão do testamento tornou-se fácil: o mais velho recebeu os seis; o segundo, os três; e o terceiro, os dois que lhe correspondiam – tudo segundo a determinação do pai. E os onze camelos da herança estavam distribuídos. Realizadas as operações, sobra um camelo. E então o juiz resgata o seu. Ou deixa-o. Esse é o problema.
Desde o problema suscitado, observa-se o paradoxo. Ou não se vê! De Giorgio (2007) explica que o direito é constituído de modo paradoxal, pelo qual o camelo é necessário e não é necessário. O camelo realiza uma operação simbólica. Ele constitui o fazer possível a operação. Nele, a operação e o resultado da operação se confundem.
“E desta maneira que a indizibilidade constitutiva do paradoxo constitutivo do direito encontra a possibilidade de decidir: o sistema se bifurca e, através desta bifurcação, cada operação do sistema desparadoxiza o direito. A produção do direito é simultaneamente produção de não-direito. O paradoxo é tratado como se fosse uma contradição: a contradição entre direito e não-direito.” (DE GIORGIO, 2007, p. 32)
Nessa operação do sistema, o camelo, que permitiu uma divisão legítima do legado paterno daqueles irmãos, é supérfluo e indispensável ao mesmo tempo. Seria impossível, sem ele, fracionar adequadamente os animais, mas, como o testamento não abrangia a totalidade dos bens, sua presença foi performativa para a solução do conflito, ao final da qual ele restou excedente. Luhmann refere no texto problemas interessantes, como: ele será devolvido, em atendimento à determinação do juiz? Ele pode ser devolvido? E se alguém contestar a decisão, como refazer o processo se o décimo segundo camelo não estiver mais à disposição?
No relato de Luhmann, a realidade do Direito produz-se porque se utiliza um camelo que não existe, ou, ainda, um camelo que está porque não está, e é precisamente esse paradoxo que torna possível a construção do sistema. Melhor dizendo: o camelo é o tornar possível a decisão.
Como não se pode antecipar, em um sistema jurídico, quais conflitos serão resolvidos, ele funciona como um sistema operativo fechado, isso porque somente precisa reproduzir suas próprias operações. Mas ele é, exatamente nessa base, um sistema aberto ao mundo circundante, na medida em que deve estar disposto a reagir a proposições (Anregungen) de qualquer espécie, conquanto elas assumam a forma jurídica.
Assim, diz Luhmann (1990, p. 161), a proibição da recusa da justiça garante a abertura por intermédio do "fechamento" (Geschloseinheit), que constitui o paradoxo da transformação da coerção em liberdade: se aos tribunais é vedado não decidir, se os programas do Direito não são exaurientes, é preciso que tenham liberdade para decidir, ainda que essa liberdade se revele em termos, decorrência dos condicionamentos e dos limites que o próprio sistema elege, como são o seu código binário (jurídico – não jurídico) e os seus programas (normas, princípios, doutrina e jurisprudência).
3 Alopoiese do sistema judicial: corrupção sistêmica e a re-entry do extrajurídico no jurídico
O sistema jurídico, foi dito, é autopoiético. É um sistema ao mesmo tempo aberto e fechado. Aberto às influências do meio externo, que passam pelo processo de seleção realizado pelo código direito/não direito, juridicizando os elementos do meio, os quais passam a integrar sua estrutura e servem de aparato para a manutenção da sua autorreferencialidade, e fechado no sentido de autorreferencialidade operativa, isto é, o direito se autorregula por meio da sua identidade (código binário).
Para a teoria dos sistemas, diante da implicação simultânea entre os diversos subsistemas, poderia haver uma espécie de “empréstimo operacional”, ou seja, tanto operações políticas quanto jurídicas, econômicas, religiosas e científicas poderiam ser emprestadas entre si para a tomada de decisões.
No sistema judicial, o ponto nodal da questão não seria como o juiz decide, mas como o sistema jurídico produziria as decisões na forma de operações de distinção, limitado ao âmbito do que já foi por ele distinguido, ou seja, dentro daquilo que seria distinguido pelo seu código binário e das interferências e dos empréstimos operacionais intersistêmicos (acoplamentos estruturais).
Na prática, cada vez mais, as decisões judiciais obedecem a critérios políticos, econômicos ou morais, não sendo decisões jurídicas puras. O sistema judicial decide juridicamente, e não moral, política ou economicamente. Não decide pelas lógicas de oposição ou situação (poder ou não poder), pagamento ou não pagamento (lucro ou prejuízo) ou moral ou amoral, lógica binária do sistema ético-religioso, por exemplo.
A clausura operacional do sistema judicial tem a ver com a necessidade de manter incólume a sua diferença funcional, enquanto sistema dotado de unidade e fechamento operacional. Somente assim é que se pode levar adiante a ideia de especialização e delimitação a partir da diferença em relação aos demais sistemas (ambiente).
É claro que a autopoiese, a autorreferência e o fechamento operacional não representam que o sistema judicial deva funcionar insulado. O autismo lhe seria tão grave e nocivo quanto é a corrupção (decisão com base no código binário emprestado de outro subsistema). Por isso, o sistema judicial pode e deve mesmo receber interferências de outros subsistemas sociais, como o político, o econômico e o moral. A questão é como fazê-lo sem perder sua integridade, ou seja, de forma coerente, tolerante e suportável.(20)
“Não se trata de superar esse impasse, mas sim de conviver construtivamente com ele, fortificando a capacidade de aprendizado (abertura cognitiva) dos sistemas político e jurídico não apenas em relação aos demais sistemas sociais, mas também em relação aos influxos de informação que emergem criativamente da esfera pública pluralista e promovem a reciclagem do respectivo sistema.” (NEVES, p. 234)
A abertura cognitiva por meio dos acoplamentos intersistêmicos deve se dar a partir de uma definição clara das fronteiras das esferas de juridicidade, a ser criticamente enfrentada sob dois aspectos: as competências constitucionalmente atribuídas aos órgãos jurisdicionais e os efeitos negativos da sobrecarga com questões estritamente políticas.
O tema é deveras complexo e demandaria mais espaço para uma análise minimamente adequada. Assim como a política e a economia colonizaram o direito, nota-se que o direito avança sobre áreas afetas a esses subsistemas sociais (estatização). A juridificação e a judiciarização das relações sociais são fenômenos correntes de duas faces, lados de uma mesma moeda: o direito se politiza e a política se juridifica.(21)
As limitações recíprocas (filtragem simétrica das influências recíprocas, no dizer de Neves) na reprodução operativa dos subsistemas funcionam como condição de possibilidade dos acoplamentos estruturais e devem ser hauridas da Constituição.(22)
Se os sistemas são, em princípio, alheios ao ambiente bruto, o grande desafio da teoria dos sistemas é justamente a conectividade entre os sistemas parciais e o entorno. Para o sistema do direito e o seu centro, a Justiça, o desafio é a sua aproximação com a semântica social, o que fica cada vez mais distante, diante da sua complexidade (o entorno é pura complexidade). O acoplamento entre o centro do sistema jurídico (Justiça) e o ambiente social do direito (entorno) pressupõe o estabelecimento de zonas de contato entre ambos, mecanismos ou estruturas que ensejem a interação e o ajustamento condicionado de seus discursos. Nem a Justiça pode corromper-se adotando um discurso que não é jurídico, segundo o seu código (direito/não direito ou lícito/ilícito), nem a sociedade pode ser olimpicamente olvidada.
Gunther Teubner, dando sequência aos estudos de Luhmann, volta sua atenção para como reintegrar o direito ao contexto social, buscando formas de concepção de uma nova roupagem que permita ao direito viger em uma sociedade global complexa, policontexturada, otimizando sua capacidade de estabilizar as expectativas normativas sociais. Em outras palavras, busca uma solução para o problema crucial da relação entre as semânticas da sociedade pós-moderna e da Justiça.
Para Teubner, o caminho está na reflexividade explicativa do processo de interação entre fatores externos (pressões sociais) e internos (formalismo jurídico) na configuração dos sistemas jurídicos contemporâneos. O conceito de direito reflexivo representa justamente as condições da comunicação sistema/ambiente que são pressupostos para a concreta interação entre o sistema social e os sistemas jurídico, político e econômico e destes entre si.
Teubner (2001) incorpora o desafio da aplicação da noção de direito autopoiético em contextos reais e concretos. Segundo ele, o processo jurídico de reflexão define a autolimitação do direito, mas sempre dentro do contexto de seus vínculos com a realidade social. Com isso, a resposta somente pode ser encontrada se observados os limites regulatórios do direito, sempre dentro do contexto de seus vínculos com a realidade social.
Seja qual for a teoria de justiça que se queira considerar para a solução dos conflitos individuais e sociais, a Justiça não consegue evitar as colisões com práticas sociais reais. É preciso atentar para o fato de que a sociedade policontexturada e policentrada tende a desenvolver racionalidades e normatividades próprias, que colocam sob suspeita a atuação da Justiça a partir de uma espécie de cegueira jurídica ou bloqueio do discurso do direito estatal, ainda seu instrumento e objeto de trabalho por excelência.
Uma das hipóteses de compensação do déficit de normatividade do direito, decorrente do conflito de regras de diferentes sistemas, diante da colisão dos mundos de sentido idiossincráticos de hoje em dia, malograda uma reconciliação por meio de uma racionalidade societal e de uma justiça socialmente abrangente, é a integração conectiva entre as semânticas sociais e da Justiça, possibilitando que as perturbações provocadas no sistema jurídico, em sendo processadas autorreferencialmente, é dizer, passando pelo crivo do código binário do direito, possam transformar as estruturas comunicativas da Justiça e permitir, por acoplamento estrutural, a conectividade almejada.
Luhmann mostrou que a justiça é a fórmula de contingência do sistema jurídico. Isso representa que a tematização da justiça ativa uma dinâmica social de irritação que torna drasticamente visível para todos a contingência do Direito: o Direito justo poderia/deveria ser de outro modo! A irritação da justiça começa com a emergência dos conflitos sociais, prossegue por meio da sua tradução na linguagem artificial do Direito, na práxis da aplicação do Direito, nas táticas advocatícias, nos conflitos de interpretação, na tomada de decisão judicial, na imposição do cumprimento da lei, na observância às regras, e termina com a não observância das normas e das decisões jurídicas, com o protesto dos homens e sua revolta contra a injustiça do Direito (TEUBNER, 2001).
Como a Justiça atua nessas práticas? A justiça não é aberta a qualquer ponderação. No Direito, ela é uma fórmula de contingência. A justiça jurídica é utilizada como a fórmula de orientação central, irrefutável, e não pode entrar em concorrência com qualquer princípio, jurídico ou extrajurídico. A fórmula de contingência do Direito – a justiça – aparece, consequentemente, como um necessário esquema da busca por fundamentos ou valores, que só podem adquirir validez jurídica na forma de programas. Mas a fórmula de contingência, diz Teubner (2001), implica muito mais do que mera consistência interna do decidir: contingência significa também ser-possível-de-outro-modo e, ao mesmo tempo, ser-dependente-de-alguma-outra-coisa.
O clamor por justiça – e esse é o núcleo da fórmula de contingência – requer que consequências sejam extraídas da dependência do Direito quanto à sua ecologia, a seus ambientes social, humano e natural. Com isso, entram em jogo, além da consistência formal, pontos de orientação materiais. Na definição “complexidade adequada do decidir consistente”, o aspecto decisivo é a adequação social em sua relação com a consistência interna. A intenção da Justiça deve ser não maximizar a consistência dogmática, mas apresentar respostas sensíveis às mais divergentes demandas vindas de fora e, assim, buscar a máxima consistência possível, sem perder a sua harmonia.
Como isso deve ocorrer, eis o problema crucial. Que mecanismos possibilitariam, sem corrupção do sistema de justiça, sua adequação em relação ao mundo exterior, adequação essa que não pode ser alcançada por meio de “um passeio do Direito pelo mundo exterior, mas somente dentro do Direito”?
A explicação, em Luhmann e Teubner, é a re-entry do extrajurídico no jurídico. Enquanto as operações jurídicas constroem, com o auxílio de sua sequencialização, uma fronteira entre Direito e não Direito (este no sentido de “extrajurídico”, não de “antijurídico”!), entre comunicação jurídica e outras formas de comunicação social, as auto-observações jurídicas utilizam essa mesma diferenciação “Direito/não Direito”, só que dentro do mundo simbólico do Direito. Sempre que a diferenciação “Direito/não Direito” entra novamente na sequência de operações jurídicas e que a argumentação jurídica é colocada em posição de ser capaz de diferenciar entre normas e fatos, entre atos jurídicos internos e atos sociais externos, entre conceitos jurídicos e interesses da sociedade, bem como entre construções internas da realidade de processos jurídicos e sociais, então é chegado o momento em que o discurso da Justiça debate uma decisão sobre essas diferenciações e lança a questão sobre se as decisões jurídicas fazem justiça àqueles aspectos do mundo exterior da mesma forma como eles foram internamente reconstruídos.
O resultado da re-entry é a criação de um “espaço imaginário” dentro do Direito, que compreende a si mesmo, porém, como realidade. A justiça só pode operar no Direito dentro desse espaço imaginário, que emerge por meio da re-entry da ecologia no Direito, por meio da construção jurídica interna de demandas externas da sociedade, dos homens e da natureza (TEUBNER, 2001).
Esse processo de abertura da Justiça ao ambiente social está triplamente condicionado: à redução da experiência infinita da justiça a uma decisão binariamente codificada, à sua fundamentação responsivo-consistente e à sua normatização condicional.
As diferenças de uma justiça jurídica específica para um “impulso cego” se tornam especialmente claras se se consideram as drásticas limitações às quais o sistema jurídico moderno, após o delírio de sua autotranscendência, compele sua própria fórmula de contingência. A justiça jurídica não pode identificar, no acesso à totalidade, a injustiça do Direito com aquela do mundo. Ela deve produzir a conexão estrutura/decisão dentro do espaço de possibilidades de decisões jurídicas altamente limitado pelo código jurídico/antijurídico e por seus programas, ainda que isso contrarie seu próprio convencimento, pois está compelida à decisão. Não é permitido que a busca se perca em sentimentos irracionais de injustiça ou em aspirações vagas à justiça. Ao invés, ela é constrangida pelas aporias especificamente estruturadas do processo jurídico a expor-se com toda a intensidade à experiência da irracionalidade, do senso de justiça, da alteridade, do sofrimento, da dor, do vazio e da plenitude da transcendência. Ela deve, então, transformar essa experiência em fundamentos racionais, argumentos técnico-jurídicos e dogmática jurídica conectável (TEUBNER, 2001).
Por fim, o espaço de atuação da justiça jurídica é restringido pelo fato de que ela não dispõe de todos os meios de poder e de influência deste mundo para, assim, poder criar uma sociedade justa. Ao contrário, ela dispõe apenas das operações e das estruturas do Direito, de atos jurídicos e normas jurídicas, que, em comparação, são ao mesmo tempo altamente especializados e pobres. Ela (a justiça jurídica) é confrontada com rigorosas limitações quanto a suas possibilidades de solução, que a diferenciam do ato arbitrário de um soberano poderoso, de um oráculo obscuro, da revelação mística. Ela deve reduzir, de uma forma absurdamente simplificadora, suas impressionantes experiências da alteridade – isto é, as experiências da infinitude interna do homem individual, as experiências da racionalidade própria e da normatividade própria dos diferentes discursos –, bem como as experiências da irracionalidade, à formulação de uma norma que carrega a pretensão de ser adequada ao conflito jurídico.
Diante do duplo imperativo “introduzir o caos na ordem”, nenhuma norma legal, nenhum ato do julgador, nenhum construto dogmático pode subsistir, tudo é submetido ao julgamento da justiça. O sistema jurídico deve inventar continuamente novas normas legais, atos de julgadores e conceitos jurídicos que estejam à altura da pretensão de serem mais justos do que os anteriores, percebidos como fórmulas profundamente injustas (TEUBNER, 2001).
Conclusões
O paradigma contemporâneo é sistêmico, enquanto o paradigma da modernidade era linear e mecanicista (cartesiano). Ao invés da relação de causa e efeito, tem-se a interação; ao invés da previsibilidade, tem-se a possibilidade; ao invés do observador isento, tem-se o observador que interfere; ao invés da competição, tem-se a colaboração; ao invés da autoria, tem-se a coautoria; ao invés da especialidade, tem-se a interdisciplinariedade. Em um mundo sistêmico, não se pode escapar da coautoria e da consequente corresponsabilidade para uma convivência social harmoniosa: todos são responsáveis pelo todo e, ao mesmo tempo, pelas partes que o compõem.
A principal função dos sistemas é a redução de complexidade, considerada a sua função de sempre minimizar possibilidades a partir da seleção daquilo que terá sentido para o sistema quando incorporado aos seus processos internos. Na medida em que atingem um elevado nível de complexidade, os sistemas produzem autonomias relativas, diferenciam-se, reduzindo essa complexidade. A diferenciação sistema-entorno implica redução de complexidade e impulsiona o sistema social para a sua autorreprodução. As diferenciações que ocorreram no interior da sociedade acabaram reproduzindo funções específicas que trazem consequências para a própria evolução da sociedade.
Do ponto de vista do sistema jurídico, a visão sistêmica representa um contributo importante para auxiliar na contextualização do conflito e da lide em uma cadeia de eventos dentro da complexidade do ambiente. Permite, ao mesmo tempo, um olhar holístico desse mesmo conflito e a consequente adequação do seu tratamento, ensejando, ademais, efeitos evolutivos positivos e transformadores nas relações sociais.
A grande dificuldade, sobre a qual se debruçaram Luhmann e Teubner, está em se ir, responsivamente e com argumentos racionais, ao encontro das elevadas exigências que o mundo externo impõe ao Direito, sem perder a autorreferencialidade, satisfazendo, ao mesmo tempo, às exigências internas relativas a uma decisão consistente do caso.
O sistema jurídico, na reprodução de suas operações (decisões), deve sempre priorizar os critérios generalizados de constitucionalidade e legalidade, concretizados jurisdicional e administrativamente (sentido já estruturado simbolicamente pela estrutura sistêmica), zelando pela sua clausura operacional, especialização, identidade e evolução autopoiética.
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TEUBNER, Gunther. “Altera Pars Audiatur”: o direito na colisão de discursos. In: ALVES, J. A. Lindegren et al. Direito e cidadania na pós-modernidade. Piracicaba-SP: Unimep, 2002.
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Notas
1. Sobre a sociedade em rede, entre outros, Capra (1997) e Castells (1999).
2. Os sistemas estão sempre, do ponto de vista de sua estrutura, acoplados e orientados em relação a um determinado entorno. “Se constituem e se mantêm mediante a criação e a conservação da diferença com o entorno e utilizam seus limites para regular tal diferença. Sem diferença com relação ao entorno não haveria autorreferência” (LUHMANN, 1998a, p. 40).
3. Mediatamente, a observação de segundo grau está baseada em uma nítida redução de complexidade do mundo das possíveis observações: só se observa a observação, e só com essa mediação se chega ao mundo, dado pela diferença entre igualdade e distinção das observações (de primeiro e segundo graus). Mas, como ocorre com frequência, a redução de complexidade é o meio para a construção de complexidade (LUHMANN, 1997, p. 94).
4. Luhmann (1997, p. 93) conecta os conceitos de observação e contingência: "Sólo las observaciones de segundo grado dan ocasión para referirse a la contingencia y eventualmente reflejarla de modo conceptual".
5. Expressão cunhada por Spencer-Brown (1972), que significa a reentrada da distinção naquilo que por ela mesma foi distinguido.
6. Cfe. Rocha e Duarte (2012b, p. 15), que, ademais, observam também, a partir de Maturana, a importância do construtivismo para a metalinguagem e a cognição da sociedade moderna, na medida em que permitem propor uma análise pragmática radical da comunicação e da linguagem.
7. Não existe nenhuma irritação no entorno do sistema, nem sequer a possibilidade de transferência de irritação ao sistema. Sempre se trata de uma construção do sistema: "El sistema tiene, entonces, la posibilidad de encontrar en sí mismo las causas de la irritación y aprender de ella, o bien imputar la irritación al entorno y así de tratarla como casual, o bien buscarle su origen en el entorno y quitarlo”, disse Luhmann (1993, p. 57). O ambiente pode afetar o sistema apenas a partir de irritações que são reelaboradas internamente. Reage aos estímulos não quando tudo pode influir no sistema, mas somente quando existem padrões altamente seletivos. É a partir da seleção (depuração seletiva) de acontecimentos ocorridos no meio que o sistema pode atuar (LUHMANN, 2009, p. 132).
8. Na teoria luhmanniana não é o homem que pode comunicar-se, apenas a comunicação pode comunicar-se, constituindo uma realidade emergente sui generis. Os sistemas de consciência também são sistemas operacionalmente fechados. Não podem ter contato uns com os outros. Não existe a comunicação de consciência a consciência, nem entre o indivíduo e a sociedade. A sociedade não é composta de seres humanos, mas de comunicações.
9. Assim, a teoria dos sistemas sociais de Luhmann recebe a crítica de Maturana, Morin e Capra, entre outros, no sentido de retirar o humano do “entorno” do social (onde Luhmann o dispôs) e colocá-lo com um papel central ao lado das estruturas. Luhmann disse que não é o homem que pode se comunicar, “somente a comunicação pode se comunicar”. Para esses autores, ao lado das estruturas formais e dos programas normativos, coloca-se também o cotidiano da vida e a informalidade, como condição de dar “vida ao sistema social”.
10. Ver, sobre o chamado escândalo da teoria, Luhmann (1998, p. 156-166), em especial, cap. III-10, La astucia del sujeto y la pregunta por el hombre. Melhor análise crítica em Izuzquiza (2008).
11. A função do sistema jurídico não reside na criação do Direito, mas na seleção e na dignificação simbólica de normas como direito vinculativo. “Ele envolve um filtro processual pelo qual todas as ideias jurídicas têm de passar para se tornarem socialmente vinculativas como direito” (LUHMANN, 1985, p. 8).
12. Em Luhmann, a função do Direito não é a de controlar condutas; se as condutas fossem controláveis, o Direito seria desnecessário. A conduta é sempre contingente, é o que ela é, mas poderia ser de outra maneira (contingência é liberdade de escolha e, ao mesmo tempo, obrigação de escolher). Uma sociedade fracionada e completamente descentralizada é avessa à sujeição passiva.
13. E as normas são estruturas simbólicas generalizadas congruentemente, representando dizer que não podem ser afetadas por fatos, mas apenas por comunicações.
14. Cfe. Simioni e Pereira (2009, p. 6504). Esses autores descrevem a tautologia e a circularidade de operações e estruturas, afirmando, com Luhmann, que essa tautologia expressa a profundidade e a insólita abstração do conceito de autopoiese e representa que “as operações produzem as estruturas que reproduzem as operações, sem um início absoluto, nem um fim necessário” (SIMIONI; PEREIRA, 2009, p. 6504).
15. A Constituição é o exemplo clássico de acoplamento estrutural, na medida em que promove a ligação entre o sistema jurídico e o político. Funciona, pois, como fator de exclusão e inclusão: inclui novos valores e exclui outros anteriormente impostos ao Direito. Constitui também um mecanismo de irritação do sistema, trazendo novas comunicações.
16. O conceito de autorreferência exclui qualquer continuidade sistema e entorno. Quer dizer: cada descrição que o sistema faz do entorno (portanto, toda heterorreferência e toda abertura) só é possível com a construção do sistema. A complexidade do mundo não pode de maneira alguma ver-se refletida no sistema ou reproduzida por ele, porque isso implicaria a falência do sistema, o fim de sua autopoiese.
17. Para a teoria da autopoiese sistêmica, o observador substitui o sujeito (do dualismo metafísico sujeito-objeto). O sujeito assujeitador (subiectum) dá lugar ao observador, e a observação fica dependente da posição do observador: não existe mais o observador absoluto, nem o objeto insuscetível de observação. Do observador é retirada toda a carga ontológica (absolutamente relevante para a filosofia clássica) e ele passa a ser considerado também fruto da observação que parte de alguma posição, preenchendo de construtivismo a operação de observação. Observar não é, para a teoria dos sistemas, acessar uma realidade situada no exterior, mas, sim, observar as distinções: o que acontece em comparação com o que não acontece. A observação, diz Luhmann, não é arbitrária, "dado que a teoria dos sistemas fechados autopoiéticos parte do pressuposto fundamental de que a operação dos sistemas, ao estar determinada estruturalmente (MATURANA), depende de sua estrutura e seu passado" (LUHMANN, 2009, p. 153).
18. Não existem lacunas no direito, quando muito situações (problemas) de decisões não regulamentadas pela lei, visto haver mecanismos eficazes de proteção no sistema jurídico à disposição dos tribunais.
19. Graças às relações de feedback existentes entre legislação e jurisdição (v.g., regulamentações globais em que a solução passa do legislador para a jurisprudência e vice-versa), ambos os órgãos do sistema jurídico interagem e cooperam, participando da atualização e do aperfeiçoamento do Direito.
20. Consultar, a propósito, Neves (2012, p. 215-258).
21. Sobre o fenômeno da juridificação, ver Neves (2012), Teubner (1988) e Habermas (2012).
22. Há uma forte tendência a desrespeitar o modelo procedimental previsto no texto da Constituição, de acordo com as conformações concretas de poder, as conjunturas econômicas específicas e os códigos relacionais. Isso está associado à persistência de privilégios e “exclusões” que obstaculizam a construção de uma esfera pública universalista como espaço de comunicação de cidadãos iguais (NEVES, 2012, p. 246).
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