Resumo
Aborda a discussão sobre a necessidade de comprovação da hipossuficiência financeira como requisito para obtenção de decisão favorável nas ações em que são postulados medicamentos, produtos e outras tecnologias em saúde.
Palavras-chave: Direito à saúde. Hipossuficiência financeira.
Uma questão importante é saber se a hipossuficiência financeira é necessária para que o autor obtenha decisão favorável nos processos em que se pretende recebimento de medicamentos, produtos ou tratamentos médicos.
Todas as decisões do Supremo Tribunal Federal – STF assinalam que é possível o fornecimento de medicamentos a pessoas hipossuficientes financeiramente.
Nesse sentido é a posição sufragada nas seguintes ementas:
“DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. SEPARAÇÃO DOS PODERES. VIOLAÇÃO. NÃO CONFIGURADA. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. PRECEDENTES. HIPOSSUFICIÊNCIA. SÚMULA 279/STF. 1. É firme o entendimento deste Tribunal de que o Poder Judiciário pode, sem que fique configurada violação ao princípio da separação dos poderes, determinar a implementação de políticas públicas nas questões relativas ao direito constitucional à saúde. 2. O acórdão recorrido também está alinhado à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, reafirmada no julgamento do RE 855.178-RG, rel. Min. Luiz Fux, no sentido de que constitui obrigação solidária dos entes federativos o dever de fornecimento gratuito de tratamentos e de medicamentos necessários à saúde de pessoas hipossuficientes. 3. A controvérsia relativa à hipossuficiência da parte ora agravada demandaria a reapreciação do conjunto fático-probatório dos autos, o que não é viável em sede de recurso extraordinário, nos termos da Súmula 279/STF. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.” [destacado] (STF, ARE 894.085 AgR/SP, rel Min. Roberto Barroso, j. 15.12.2015, Primeira Turma, DJe 16.02.2016)
“AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO À SAÚDE. SOLIDARIEDADE DOS ENTES FEDERATIVOS. TRATAMENTO NÃO PREVISTO PELO SUS. FORNECIMENTO PELO PODER PÚBLICO. PRECEDENTES. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que, apesar do caráter meramente programático atribuído ao art. 196 da Constituição Federal, o Estado não pode se eximir do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde dos cidadãos. O fornecimento gratuito de tratamentos e medicamentos necessários à saúde de pessoas hipossuficientes é obrigação solidária de todos os entes federativos, podendo ser pleiteado de qualquer deles, União, estados, Distrito Federal ou municípios (Tema 793). [...]” [destacado] (STF, RE 831.385 AgR/RS, rel. Min. Roberto Barroso, j. 17.03.2015, Primeira Turma, DJe 31.03.2015)
“AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. MEDICAMENTOS. FORNECIMENTO A PACIENTES CARENTES. OBRIGAÇÃO DO ESTADO. I – [...] III – Possibilidade de bloqueio de valores a fim de assegurar o fornecimento gratuito de medicamentos em favor de pessoas hipossuficientes. Precedentes. IV – Agravo regimental improvido.” [destacado] (STF, AI 553.712 AgR/RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 19.05.2009, Primeira Turma, DJe 04.06.2009)
“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS A PACIENTE HIPOSSUFICIENTE. OBRIGAÇÃO DO ESTADO. SÚMULA Nº 636 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1. Paciente carente de recursos indispensáveis à aquisição dos medicamentos de que necessita. Obrigação do Estado de fornecê-los. Precedentes. [...]” [destacado] (STF, AI 616.551 AgR/GO, rel Min. Eros Grau, j. 23.10.2007, Segunda Turma, DJe 29.11.2007)
“PACIENTE PORTADOR DE HEPATOPATIA CRÔNICA, CHILD C, DIABETES MELLITUS TIPO 2 E INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA NÃO DIALÍTICA. PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEIOS INDISPENSÁVEIS AO TRATAMENTO E À PRESERVAÇÃO DA SAÚDE DE PESSOAS CARENTES. DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196). PRECEDENTES (STF). RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DAS PESSOAS POLÍTICAS QUE INTEGRAM O ESTADO FEDERAL BRASILEIRO. CONSEQUENTE POSSIBILIDADE DE AJUIZAMENTO DA AÇÃO CONTRA UM, ALGUNS OU TODOS OS ENTES ESTATAIS. RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.” [destacado] (STF, ARE 812.424 AgR/PI, rel. Min. Celso de Mello, j. 05.08.2014, Segunda Turma, DJe 22.08.2014)
E as pessoas que não são carentes e que possuem condições econômicas para adquirir os medicamentos ou tratamentos podem postular judicialmente o seu fornecimento gratuito pelo Estado?
As decisões do STF não abordam esse ponto, porquanto há apenas menção genérica nas ementas, antes citadas, sobre a hipossuficiência. Inexiste, portanto, posição da Corte Suprema sobre o tema.
Assim, é possível afirmar que, na via administrativa, ou seja, perante o SUS, não se pode negar o atendimento ao cidadão alegando que não se trata de pessoa carente. É que os direitos sociais não podem, de plano, ser excluídos das pessoas a partir de critérios exclusivamente econômicos.
Na via judicial, contudo, a situação pode mudar. É que, no processo judicial, geralmente são postulados medicamentos, produtos ou tecnologias que não estão incorporados, ou seja, que não são fornecidos voluntariamente no Sistema Único de Saúde. Assim, abre-se espaço para exigir a hipossuficiência financeira como requisito para a procedência do pedido veiculado em processo judicial.
Nesse sentido já decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. LEGITIMIDADE PASSIVA DOS ENTES DA FEDERAÇÃO. ADEQUAÇÃO E NECESSIDADE. HIPOSSUFICIÊNCIA NÃO CONFIGURADA. HONORÁRIOS. 1) União, estados e municípios são responsáveis solidários pelo fornecimento de prestações relacionadas à saúde. 2) Faz jus ao fornecimento de medicamento o paciente que comprova a necessidade e a adequação de uso por meio da prova pericial. 3) A princípio, a hipossuficiência financeira do paciente não é requisito para a concessão ou não de prestação de saúde. Entretanto, o autor não pode ser considerado hipossuficiente para fins de prestação de medicamentos, em face do seu amplo patrimônio e ao baixo custo do medicamento requerido. 4) Afastada a condenação em litigância de má-fé e de restituição dos valores em face da revogação da liminar. 5) Honorários advocatícios mantidos no valor fixado.” [destacado] (TRF4, AC 5000730-32.2010.404.7208, Quarta Turma, relator Cândido Alfredo Silva Leal Júnior, juntado aos autos em 10.07.2015)
Do voto do relator é interessante transcrever o seguinte trecho:
“(...) pleiteando o autor medicação diversa daquela fornecida na rede pública, deve comprovar a efetiva necessidade do fármaco requerido, além da impossibilidade de uso e da inadequação da medicação disponibilizada pelo SUS. In casu, entretanto, tenho que também não restou cabalmente comprovada a indispensabilidade do tratamento prescrito por médico particular, tampouco que o autor já fez uso de todas as alternativas terapêuticas na rede pública. E, nessa circunstância, optando o autor por medicamento diverso, deve arcar com os custos, mormente se possui condições para tanto.”
Em outro caso, o entendimento também seguiu a mesma posição:
“ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO ONCOLÓGICO. LEGITIMIDADE DAS PARTES. SUBMISSÃO A TRATAMENTO EM CACON/UNACON. NECESSIDADE. HIPOSSUFICIÊNCIA. 1. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido da responsabilidade solidária da União, dos estados e dos municípios nas ações em que se postula o fornecimento público de medicamentos ou tratamento médico, sendo que a solidariedade não induz litisconsórcio passivo necessário, mas facultativo, cabendo à parte-autora a escolha daquele contra quem deseja litigar, sem obrigatoriedade de inclusão dos demais. 2. Os estabelecimentos credenciados na Rede de Atenção Oncológica não detêm legitimidade para figurar no polo passivo das ações em que é postulada a disponibilização de tratamento pelo poder público. 3. É necessária a submissão do paciente que pretende obter o fornecimento de medicamento oncológico a tratamento perante unidades de Cacon ou Unacon. Precedentes. 4. A princípio, a hipossuficiência financeira do paciente não é requisito para a concessão ou não de prestação de saúde. Entretanto, no caso específico, o autor não pode ser considerado hipossuficiente para fins de prestação de medicamentos, em face da discrepância entre seu patrimônio e o valor do fármaco postulado.” [destacado] (TRF4, AC 5002054-69.2015.404.7212, Terceira Turma, relator Marcus Holz, juntado aos autos em 27.07.2016)
Essas decisões trazem nova reflexão às ações em que são postulados medicamentos, tratamentos e outros produtos em saúde. Ou seja, considerando a inexorável escassez de recursos orçamentários do Estado (União, estados, Distrito Federal e municípios), a exigência da hipossuficiência se apresenta como elemento de preservação do princípio da isonomia, já que não caberia ao SUS, nessa perspectiva, fornecer na via judicial medicamento a pessoa com razoável poder aquisitivo em detrimento e em prejuízo das pessoas carentes (que muitas vezes não possuem sequer condições de acessar o Judiciário).
Trata-se de escolha trágica que permeia a judicialização dos direitos sociais em geral (saúde, educação, alimentação, entre outros).
A questão, entretanto, não é pacífica. Envolve a análise das teorias do custo dos direitos, da reserva do possível, da concretização dos direitos sociais e muitos outros aspectos da ciência jurídica que sofrem a mutações inerentes ao tempo (momento da história) e ao espaço (país).
Trata-se, portanto, de uma nova perspectiva surgida no âmbito da judicialização da saúde.
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