Conciliação com o Poder Público: os papéis a serem desempenhados pelo Poder Judiciário e pelo Poder Executivo

Autor: Emmerson Gazda

Juiz Federal

publicado em 16.12.2016

Considerações iniciais

O presente artigo foi elaborado para servir de texto-base para uma reflexão com colegas magistrados federais da 4ª Região no dia 11.11.2016, em um dos módulos do Curso de Currículo Permanente sobre o novo Código de Processo Civil, promovido pela Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. A realidade do momento, na 2ª Vara Federal da Jaraguá do Sul-SC, na qual jurisdiciono, com competência de juizado especial cível, é no sentido de que não há possibilidade de acordos por conta do movimento “acordo zero” (que, como o próprio nome diz, implica não realização de acordos), levado a efeito pelos procuradores federais que aqui atuam. A razão do movimento é a falta de estrutura de apoio para as conciliações e a falta de segurança jurídica para os procuradores que celebram acordos.

Isso me leva, já de início, a algo inusitado. Concluir, logo na introdução, que não existe hoje real possibilidade de conciliação com o poder público (pelo menos na 2ª Vara Federal de Jaraguá do Sul-SC). E por aí poderia dar como cumprida minha missão, visto que prejudicada a análise de qualquer outro substrato jurídico relativo à questão. Mas, como minha convocação foi para uma abordagem de 40 minutos, vou insistir um pouco mais no assunto, que chama a atenção pela necessidade de definirmos melhor os papéis do Poder Judiciário e do Poder Executivo, quando o assunto é conciliação com o poder público.

1 Reflexão sobre os papéis do Poder Judiciário e do Poder Executivo na atividade de conciliação com o poder público

A situação relatada de início nos leva à necessidade de refletir um pouco sobre como estamos atuando, enquanto Judiciário, no que se refere à conciliação. A pergunta que faço para pensarmos é: “qual deve ser o papel do Judiciário na questão da conciliação com o poder público?”. Até o momento atual, o Judiciário vem assumindo o papel de principal responsável por conseguir ampliar os espaços de conciliação. Mas será que de fato essa responsabilidade é do Judiciário? Digo mais: será que o Judiciário tem em suas mãos a possibilidade concreta de fazer aumentar significativamente as conciliações quando de um lado está o poder público? Porque o que temos visto até hoje são experiências de sucesso aqui e ali, avanços e retrocessos, não sendo raro que conciliações aconteçam quase como um parto a fórceps.

Não é incomum, nesse contexto, o relato de colegas magistrados (e aqui me incluo) no sentido de que muitas vezes dá a impressão de que o poder público está fazendo um favor para o Judiciário quando celebra um acordo ou aceita participar de um mutirão de conciliação. Além disso, quando se consegue avançar na conciliação em alguma localidade, em geral é porque o procurador que ali atua, ou o grupo de procuradores que ali atuam, são simpáticos à ideia da conciliação.

O que me parece é que há um erro na premissa que coloca o Poder Judiciário como o principal agente na conciliação com o poder público. O Judiciário tem interesse em fomentar a conciliação em razão do caráter pacificador social desse tipo de resolução das controvérsias. Mas, se tivermos que julgar, não teremos qualquer problema quanto a isso. Pelo contrário, a vocação dos juízes é justamente julgar. Então nós não temos nenhum benefício maior em conciliar. Em geral, dá até mais trabalho que julgar. Mas buscar essa alternativa de solução do litígio é um imperativo legal para o Judiciário. Por isso o Judiciário incentiva a conciliação, motivado também, é claro, por ser algo relevante em termos de ideal de Justiça.

Nesse contexto, surge a seguinte pergunta: o que precisa acontecer para avançarmos na questão da conciliação com o poder público? Penso que o Executivo precisa assumir seu papel de protagonista, porque, como parte no processo, é quem de fato pode definir se a conciliação vai acontecer ou não. O juiz pode instigar, oportunizar, ponderar, insistir, identificar situações em que a conciliação é viável. Mas só quem pode decidir se vai haver ou não conciliação é o ente público que é parte da relação processual.

É importante ponderar, nesse ponto, que, na análise de relevância da conciliação como forma de solução de controvérsia, o Executivo não pode considerar como elemento principal a questão econômica. Quando eu falo em conciliação no setor privado, o aspecto econômico é a peça-chave para alguém decidir se faz ou não um acordo. A base é a análise de riscos. Mas, em termos de setor público, a análise de riscos tem uma importância secundária, diante da indisponibilidade do interesse público. Fica mais restrita à questão probatória e à apreciação da jurisprudência, uma vez que, se há uma tese jurídica controversa, o poder público não tem como deixar de recorrer para sustentar sua posição até que a tese seja pacificada. A não ser que reconheça a tese oposta como válida e mude sua posição de forma universal.

Então, quando se pensa em conciliação com o poder público, o que há de mais relevante é a percepção de que essa é uma forma de resolver o conflito por detrás do conflito, aumentando a qualidade do serviço e a confiança da população nas instituições. Por exemplo, se o INSS se equivocou na esfera administrativa, a conduta judicial de reconhecer o erro e fazer um acordo até por 100% do valor devido é algo que realiza o interesse público primário e o princípio da isonomia. A redução do percentual para 90% não é necessária aqui para justificar o acordo. O cidadão vai sair com seu direito realizado da audiência e com o sentimento de que as instituições funcionam. Esse o principal ganho para o Estado, que simplesmente age como manda a Constituição.

Nesse contexto, é importante que se observem alguns aspectos quanto à conciliação por parte do poder público:

  1. É um poder-dever do Executivo, e não uma discricionariedade. Para não fazer um acordo que se revela cabível, o Executivo deveria ter que justificar a negativa, e não ficar à mercê de cada procurador, conforme sua convicção pessoal, pois isso acaba violando a ideia de isonomia e impessoalidade. Já escrevi artigo sobre isso e indico a leitura para maiores detalhes (link para acesso:
    http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao010/
    emmerson_gazda.htm).

  2. Isso não quer dizer que a responsabilidade deve ficar toda nas mãos dos procuradores. Pelo contrário. Isso quer dizer que o Executivo tem a responsabilidade de fixar as diretrizes que viabilizem os acordos, bem como criar estruturas administrativas de apoio às atividades de conciliação, inclusive fomentando espaços de diálogo entre área administrativa e judicial. Com esse suporte, os procuradores poderão e deverão atuar com a conciliação como princípio de defesa.

  3. O grande ganho da conciliação para o poder público não é a fixação de um percentual inferior a 100% naquilo que teria de pagar sem conciliação, mas sim a diminuição da litigiosidade, com economia decorrente do enxugamento da estrutura de defesa judicial. Por isso, o foco do poder público, quando pensa em conciliação, não deve ser apenas judicial, mas especialmente administrativo, adotando medidas administrativas que evitem o ajuizamento de novas ações e a repetição dos processos judiciais com o mesmo tema em que se fez necessária atividade de conciliação.

  4. Essa percepção do foco na prevenção do litígio leva à necessidade de um trabalho constante na melhoria da qualidade do serviço administrativo, incluindo-se os precedentes judiciais nas normativas internas e cobrando-se o resultado de resolver as questões, não apenas de encerrar o procedimento.

  5. Isso tudo faz concluir que o poder público não pode pensar em conciliar apenas quando seja oportuno do ponto de vista econômico. Há uma obrigação constitucional e legal maior em vista dos princípios que regem a administração pública. Temos algumas experiências de sucesso, como a da Emgea, por exemplo, que permitem reflexão nesse ponto. A Emgea é uma empresa pública que compra créditos “podres” do sistema financeiro, em geral da Caixa Econômica. Por esses créditos paga cerca de 10% do valor devido. Depois, em ações judiciais, faz acordos em valores bem interessantes para o devedor. Mas não deixa a Emgea de ter seu lucro, porque o prejuízo já ficou com a CEF no momento anterior. Então há aqui um grande interesse econômico da Emgea em utilizar o sistema judicial para realizar sua atividade de cobrança. E não há nenhum mal nisso. Contudo, o que o Executivo precisa perceber é que não é só nessas situações, quando é economicamente interessante para o poder público, que os acordos devem existir. Há uma questão constitucional muito maior por trás disso que deve ser considerada.

É importante observar, nesse contexto, que o fato de o Judiciário não ser o protagonista quanto a essa questão da conciliação por parte do poder público não significa que não exerce função relevante e com grandes responsabilidades. Temos um papel importante nessa questão, e gostaria de destacar os seguintes pontos, além do que já disse inicialmente:

  1. Ao Judiciário cabe criar as oportunidades e os espaços para concretização da conciliação, o que implica pensar sempre na conciliação como a primeira possibilidade de solução do processo. Mas, se não for possível via conciliação, o Judiciário tem que estar também preparado para julgar. Sempre que não for possível conciliar, o Judiciário deve julgar. E esse julgamento deve ser com qualidade e com agilidade. Quanto mais rápida for a fixação de bons precedentes, mais espaço teremos para conciliação e mesmo para a prevenção do litígio. Então, é essencial que o Judiciário fixe precedentes com agilidade e especialmente com qualidade.

  2. Aliado à questão dos precedentes, é preciso também que o Judiciário mude um pouco a mentalidade. Hoje trabalhamos na ideia de meta, de quantidade. De fato, não tem como ser muito diferente, porque temos muitos processos. Mas precisamos olhar para frente, no médio e no longo prazo, com o objetivo de diminuir a quantidade e aumentar a qualidade. Esse é um papel essencial do Judiciário, tanto no incentivo à conciliação quanto na ação de julgar. Reduzindo a quantidade, teremos mais espaço para a criatividade, algo essencial quando se fala em conciliação.

2 Situações concretas em que é possível avançar em termos de conciliação com o poder público

A ideia deste tópico é dar um pouco de concretude ao que foi dito no item anterior. Evidentemente, não se pretende ser exauriente, nem indicar soluções prontas. Apenas apresentar alguns pontos em que se mostra possível avançarmos em termo de conciliação com o poder público, uma vez havendo o real envolvimento do Poder Executivo nessa empreitada.

2.1 Ações de saúde

Quando se fala em ações de saúde, uma alegação corriqueira é de que não é possível a conciliação em razão do princípio da isonomia (se der o medicamento para um, tem que dar para todos) e também com base na legalidade (ausência de previsão legal). Contudo, é preciso distinguir situações e pensar em cada uma delas para concluir-se que não há tanto óbice assim para celebrar acordos nesse tipo de ação. Basicamente divido as ações de saúde em 5 tipos:

  1. Autor requer medicamento/procedimento previsto no SUS e que não está sendo fornecido: nesse caso, há um espaço imenso para conciliação, visto que não há dúvidas quanto à obrigação. Pode ser discutível a questão do prazo, o que é algo ajustável justamente pelo acordo.

  2. Autor requer medicamento/procedimento não previsto no SUS, mas que, pela prova dos autos e pela medicina baseada em evidências, deveria estar previsto: dou como exemplo aqui a questão que tivemos no passado do fornecimento do coquetel de tratamento da Aids, que acabou incorporado ao SUS após decisões judiciais que analisaram a questão. Nesse caso, seria possível celebrar um acordo para aquele caso concreto e remeter toda a documentação para análise de inclusão administrativa com base na isonomia. É uma possibilidade a ser pensada.

  3. Autor está em situação especial em que o medicamento/procedimento previsto pelo SUS não é eficiente para ele (situação excepcional comprovada com laudo e medicina baseada em evidências): não me parece que exista óbice para celebrar um acordo nesses casos, que fogem da regra geral e por isso entram na isonomia quanto a tratar desigualmente os desiguais.

  4. Autor pede medicamento/procedimento não previsto no SUS, mas há alternativa eficiente para o caso dele pelo SUS: parece-me óbvio que aqui caberia acordo para o autor usar o que o SUS oferece.

  5. Autor pede medicamento/procedimento experimental ou sem registro na Anvisa: há eventualmente possibilidade de acordo se o SUS indicar alternativas dentro do SUS que possam também ser efetivas.

Então o que se vê é que o simples argumento de que, em nome da isonomia, não é possível fazer acordos nas ações de medicamentos não tem fundamento. Apenas revela que o Executivo não está assumindo o protagonismo que deve ser seu nessas questões e ainda joga politicamente em cima do Judiciário toda a responsabilidade sobre essa importante questão.

2.2 Ações previdenciárias

Aqui é essencial o seguinte: a) movimento do acordo zero deve ser repensado, diante do caráter de valorização das instituições e do serviço público que a conciliação traz em seu bojo, como já dito; b) INSS deve fomentar objetivamente e com estrutura de apoio a conciliação, não deixando todo o peso da responsabilidade de fazer um acordo sobre os ombros dos procuradores; c) INSS deve fazer gestão normativa para acompanhar a jurisprudência pacificada; c) INSS precisa identificar os casos em que já há normativa acompanhando a jurisprudência pacificada, mas nos quais as APS não seguem essa normativa; d) Executivo precisa mudar seu foco para buscar incansavelmente a prevenção do litígio, incentivando todos os seus agentes a atuar dessa forma.

2.3 Ações tributárias

Além de um esforço semelhante ao que foi indicado no item anterior, em relação às ações previdenciárias, para a atuação administrativa na área tributária, há um grande espaço para a Fazenda Nacional passar a fazer uma gestão mais efetiva de sua dívida. A partir disso, quem sabe, pode utilizar a conciliação como uma forma de diminuir o prejuízo, de forma semelhante ao que a CEF faz na área bancária, com a participação da Emgea. É algo que poderia trazer resultados interessantes.

2.4 Ações civis públicas

Cada ação civil pública é diferente. São inúmeras situações que podem surgir. O que me parece oportuno é deixar um pouco de lado, em um primeiro momento, as questões processuais e pensar no problema. Iniciar a análise da ACP com foco na solução do problema pode apontar boas oportunidades de conciliação. Lembro-me de um caso de uma ação civil pública do DNIT contra uma empresa de telefonia, para a retirada de cabo de fibra ótica, em razão da duplicação de uma rodovia na região de Jaraguá do Sul-SC. O colega que recebeu a ação, Juiz Adriano Vitalino, tinha em mãos uma proposta de despacho da assessoria postergando a análise da liminar para depois da contestação. Ao invés de proferir o despacho, resolveu marcar uma audiência de conciliação, em prazo de cerca de 30 dias. Na audiência, a empresa de telefonia disse que era realmente de sua responsabilidade tirar o cabo e pediu 60 dias para realizar o serviço. O DNIT concordou e o processo foi encerrado pela via da conciliação. Algo bem interessante, que mostra como a conciliação, como o primeiro pensamento de solução do litígio, pode trazer bons resultados. Agora, se a própria administração pública absorver essa ideia, talvez nem se precise de ação judicial. Quem sabe, se o DNIT tivesse feito um contato direto com a empresa de telefonia, a coisa se resolveria administrativamente mesmo.

2.5 Ações de responsabilidade civil

Nos casos em que o poder público estiver errado, deve assumir a responsabilidade, fazendo propostas de acordo.

Conclusão

O que fica evidenciado de tudo o que foi escrito é que existe uma série de possibilidades de ampliarmos a conciliação quando uma das partes é o poder público. Mas é preciso, para isso, que a Fazenda Pública assuma o protagonismo que lhe é exigido em tal matéria. O Judiciário tem uma série de responsabilidades quando o assunto é conciliação. Pode fazer o possível e o impossível para viabilizar a conciliação. Mas não pode conciliar no lugar da Fazenda Pública. Por isso, é preciso cobrar do Executivo que atue de forma efetiva para realizar o interesse primário subjacente aos objetivos da conciliação com a Fazenda Pública. Só a partir disso poderemos avançar de forma segura e sem retrocessos, inclusive abrindo espaço para a utilização, em alguns casos, da mediação.

 




Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dez. 2016. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS