Análise das objeções às regras de fundamentação no novo Código de Processo Civil brasileiro

Autor: Paulo Mario Canabarro Trois Neto

Juiz Federal, Professor da Unioeste

publicado em 16.12.2016


Resumo


Neste artigo enfrento as principais objeções oponíveis aos parâmetros de fundamentação das decisões judiciais introduzidas pelo novo Código de Processo Civil brasileiro (art. 489, §§ 1º e 2º). Sustento que a eficácia das regras de fundamentação editadas exige a implementação de medidas de racionalização processual dependentes da colaboração de todos os operadores jurídicos. Defendo que a imposição de um teste de correção pelo qual a solução adotada poderá ser racionalmente criticada tende a servir de freio, ainda que parcial, ao decisionismo judicial.

Palavras-chave: CPC/2015. Fundamentação. Decisão judicial. Cooperação processual.

Abstract

In this article I analyze the main objections to the reasoning standards of judicial decisions settled ​​by the new Brazilian Civil Procedure Code (Article 489, §§ 1st and 2nd). I state that the effectiveness of the reasoning rules requires the implementation of procedural rationalization measures by all legal professionals. I also argue that the imposition of a correctness test by which the solution adopted can be rationally criticized tends to delay, even partially, judicial decisionism
.

Sumário: Introdução. 1 Estrutura do dever de fundamentação no novo CPC. 2 Resposta à tese da inaptidão. 3 Resposta à tese da intromissão. Conclusão. Referências.

Introdução

O dever de fundamentação é uma das engrenagens da sujeição institucional dos juízes ao direito, por funcionar como uma garantia, ainda que incompleta, de correção da prestação jurisdicional. Se a aplicação correta do direito depende da adequação do conteúdo das decisões no quadro do ordenamento jurídico vigente, não da mera nobreza de origem ou de propósitos dos julgadores, então os magistrados hão de prestar contas da qualidade do seu trabalho. Na ausência do dever de fundamentação judicial, a própria ideia de supremacia do direito ficaria significativamente esvaziada, já que só pode haver propriamente vinculação à norma jurídica se existirem mecanismos de controle racional da sua aplicação.

Diversos fatores tornam ainda mais estreita, nos dias de hoje, a relação entre fundamentação das decisões e legitimidade da prestação jurisdicional: as fontes do direito (leis, precedentes etc.) foram inflacionadas, e há uma tendência de que normas jurídicas sejam enunciadas em linguagem vaga e aberta; o conhecimento (jurídico inclusive) está disponível em nuvens de fácil e rápido acesso; o sistema político estimula a participação e o debate público, declarando-se inimigo do arbítrio e do autoritarismo; e a sociedade, muito mais heterogênea que no passado, abriga uma notável pluralidade de visões de mundo, o que se reflete no direito e em sua aplicação. Nesse contexto, as pessoas querem ser ouvidas, como indivíduos ou grupos, e estão dispostas a contestar interferências estatais nos assuntos de seu interesse. Como exigência do "Estado que se justifica", nos termos do célebre aforismo, qualquer solução judicial para os conflitos intersubjetivos requer apoio em boas razões.

Apesar disso, a justificação das decisões judiciais não ocupava, no Brasil dos últimos anos, o centro das preocupações de acadêmicos, operadores jurídicos e gestores judiciários, aparentemente muito mais interessados em propostas e medidas relativas à aceleração dos processos e à efetividade de seus resultados. Note-se que o Código de Ética da Magistratura Nacional, editado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 18.09.2008, reproduziu de modo quase idêntico os deveres de independência, imparcialidade, integridade, transparência, diligência, cortesia, conhecimento e capacitação e sigilo profissional que constavam no Código Modelo Ibero-americano de Ética Judicial, mas deixou de fora justamente o dever de fundamentação, previsto de modo destacado no referido documento internacional (ATIENZA; VIGO, 2008).

Sob tal quadro, chega a ser surpreendente que o novo Código de Processo Civil brasileiro (CPC), vigente desde 18.03.2016, tenha previsto exigências minuciosas para considerar uma decisão judicial minimamente fundamentada (art. 489, §§ 1º e 2º), aproveitando parte dos critérios previstos nos arts. 18 a 27 do Código Modelo Ibero-americano de Ética Judicial. Com o novo diploma normativo, um conjunto de regras discursivas cuja observância o órgão máximo de controle do Poder Judiciário até então nem sequer considerava dever ético, sob a ótica do juiz ideal ou excelente, passou a constituir dever jurídico, sob a ótica do juiz mínimo. A ousadia do passo dado não sugere que tais inovações serão imediatamente aceitas ou terão aplicabilidade facilitada, daí a importância de identificar e analisar os fatores de resistência à regulação da fundamentação judicial no novo Código e os possíveis percalços à sua efetivação.

O presente estudo tem por finalidade, portanto, investigar as principais críticas que a conformação do dever judicial de fundamentação das decisões judiciais no novo CPC tende a suscitar. Essas possíveis objeções estão agrupadas sob duas diferentes linhas argumentativas. Interessa aqui, sobretudo, tratar de modelos de argumentação contrários ao tratamento legislativo do tema da fundamentação judicial, e não da posição deste ou daquele autor. Essa opção metodológica não impede que, se e quando necessário, sejam enfrentados argumentos específicos apresentados por doutrinadores dedicados ao tema.

O capítulo 1 propõe-se a analisar a estrutura normativa do dever de fundamentação judicial que se extrai do art. 489, §§ 1º e 2º, do Código, verificar sua aplicabilidade às questões de fato e de direito, bem como apresentar objeções, possivelmente cogitáveis ou já levantadas, às inovações introduzidas. O capítulo 2 enfrenta a objeção da inaptidão das disposições do CPC para dar efetividade à norma constitucional que impõe a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais, sob a alegação de tratar-se de problema estrutural e cultural. Investiga-se a formação e a consolidação do entendimento jurisprudencial, até então existente, que limita a abrangência do dever de fundamentar e analisam-se as condições para que a normatividade ora introduzida ganhe efetividade na prática judicial. Por fim, o capítulo 3 enfrenta a objeção de que as novas disposições processuais constituem intromissão indevida do legislador no modo de realização dos atos judiciais decisórios. Investigam-se a relação entre fundamentação judicial e cooperação processual, o papel das partes para alcançar soluções jurídicas dotadas de alto grau de justificação, bem como a necessidade de observância de etapas de desenvolvimento argumentativo na fundamentação decisória.

1 Estrutura do dever de fundamentação no novo CPC

Dispõe o novo CPC, em seu art. 11, que "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade". Nisso não há novidade alguma sob o aspecto normativo, já que repete o comando constitucional do art. 93, IX, da Constituição. Nova é, contudo, a exigência de elementos próprios de um modelo analítico de fundamentação, conforme previsão do art. 489, §§ 1º e 2º, verbis:

“Art. 489. [...]

§ 1° Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

§ 2° No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão."

Da leitura das disposições transcritas, vê-se que os parágrafos do art. 489 do novo Código ocupam-se da justificação interna da decisão jurídica. O § 1º não diz o que é uma decisão fundamentada, mas dá exemplos de decisões que não podem ser tratadas como se o fossem. São casos em que a deficiência de fundamentação é tão grave que deve ser juridicamente equiparada à sua ausência. Por meio de uma formulação negativa, são fixados parâmetros mínimos de qualidade da fundamentação judicial (WAMBIER, 2015, p. 159). Já o § 2º prescreve diretamente deveres positivos, que devem ser acrescidos às proibições do parágrafo anterior sempre que a decisão tratar de uma colisão normativa. Em seu conjunto, as exigências veiculadas em ambos os parágrafos cumprem a função de atrelar a fundamentação judicial a um piso de racionalidade e contraditoriedade.

Os dois primeiros incisos do § 1º do art. 489 dizem respeito à exigência de o juiz fundamentar a utilização das premissas normativas de seu raciocínio. Não basta a mera menção a ato normativo, porque o que importa é a justificação da escolha da legislação aplicável e do seu significado normativo (inciso I). Também não basta a simples invocação de conceito jurídico indeterminado, devendo o juiz promover o "fechamento" semântico do conceito legalmente aberto (boa-fé, interesse público, função social etc.) e justificar sua utilização no caso (inciso II). O inciso III está relacionado à proibição de fundamentações vazias ou fictícias, que se manifestam como petições de princípio. O emprego de expressões como, por exemplo, "a prova é segura em favor do autor" ou "estão presentes os requisitos autorizadores da antecipação de tutela", sem desenvolvimento de passos prévios de justificação, viola o dever de fundamentação judicial. O inciso IV vincula a fundamentação judicial ao debate dos autos, proibindo o juiz de obliterar os argumentos cujo acolhimento pudesse modificar a decisão, o que implica otimização do contraditório. Os incisos V e VI, de sua vez, tratam da aplicação de precedentes ou súmulas. Impõe-se ao juiz o dever de identificar a respectiva ratio decidendi e os elementos que tornam o caso paradigmático suficientemente semelhante ou dessemelhante ao caso submetido a seu exame, conforme aplique ou não aplique a súmula ou o precedente. O § 2º, por fim, exige do juiz, caso haja normas em rota de colisão, a explicitação tanto dos critérios utilizados para a prevalência de uma em face de outra como dos materiais jurídicos relevantes para a justificação da solução adotada.

Haveria muito a dizer de cada uma das exigências acima mencionadas. Para os estritos fins deste trabalho, porém, interessa apenas mostrar que elas devem ser lidas sob a luz da conexão do dever judicial de fundamentar com o princípio da cooperação.(1) Embora o inciso IV do § 1º do art. 489 aparentemente apenas anteceda ou suceda topograficamente os demais deveres de fundamentação mencionados, é dele que se extrai o eixo sobre o qual deve se estruturar a fundamentação da decisão. Tal norma erige o próprio diálogo, obtido por meio da inter-relação comunicativa dos participantes, como parâmetro de adequação da justificação da decisão. Conforme a argumentação das partes seja desenvolvida no âmbito do processo, pode ser necessário o enfrentamento de vários níveis de fundamentação, de modo que não é possível determinar a priori o número de passos de desenvolvimento a serem exigidos do juiz para que se considere cumprido o seu dever de fundamentar.

Críticas a essa regulação da fundamentação judicial podem partir de linhas de  argumentação diversas. A primeira poderia sustentar que a nova normatização pouco ou nada pode fazer para dar efetividade prática ao dever de fundamentar. Se nem mesmo o status constitucional foi suficiente para conferir eficácia social à exigência de fundamentação, seria difícil supor que uma lei ordinária lograsse tal êxito. A deficiência de justificação das decisões seria um problema da cultura judiciária, muito mais preocupada em resolver os casos com celeridade do que em argumentar para convencer; ou seria decorrência da falta de condições estruturais para a viabilização do cumprimento ótimo do dever de fundamentar, dado o elevado número de processos, a carência de servidores e magistrados e a má divisão da carga de trabalho. Em qualquer das hipóteses, a aplicação deficitária da norma constitucional não se resolveria por meio da lei processual, e sim por medidas de gestão que propiciassem aos juízes condições de trabalho mais adequadas e fornecessem estímulos à otimização justificatória das decisões. Chamarei essa primeira classe de objeções de tese da inaptidão.

Outro feixe de objeções sustentaria a ideia de que não cabe à lei processual estabelecer a priori como o Poder Judiciário deve fundamentar. Impor ao juiz que siga passos ou roteiros para justificar suas decisões significaria invadir espaços próprios da atividade judicial e da crítica doutrinária. Sob o ponto de vista prático, seria cabível indagar, por exemplo, por que haveria de ser nulificada uma decisão que, embora fundamentada de modo deficiente, em desacordo com os parágrafos do art. 489, teria aplicado acertadamente o direito ao caso. Pode parecer irracional fazer retroceder o processo, impondo-se a prolação de uma nova decisão, para se adotar, ao final, idêntica solução do litígio, apenas acrescida de fundamentos melhores. Já sob o ponto de vista teórico, poderia ser questionada a conveniência ou mesmo a viabilidade de se conferir status legislativo a proposições da teoria da argumentação jurídica. Conceitos como os de colisão de normas e ponderação (§ 2º) são objeto de profundo dissenso e chegam a ter sua utilização peremptoriamente refutada por parcela da doutrina. Acadêmicos podem sugerir a observância de determinada estrutura da fundamentação, e talvez fosse salutar que a jurisprudência, na lapidação constante do direito, fixasse certos parâmetros justificatórios para certos tipos de caso, mas a lei não poderia tomar partido de disputas doutrinárias que ocorrem no âmbito da teoria da decisão e do discurso jurídico. Chamarei essa segunda classe de objeções de tese da intromissão.

O enfrentamento das teses da inaptidão e da intromissão forma o objeto dos capítulos seguintes.

2 Resposta à tese da inaptidão

A tese da inaptidão levanta dificuldades de operacionalização do dever de fundamentar que não podem ser subestimadas. Elas não têm o condão, entretanto, de ilidir a viabilidade e a conveniência de o tema ser tratado no novo CPC. A previsão da obrigatoriedade da fundamentação judicial no plano constitucional não significa que nada mais reste a estabelecer no plano legislativo quanto aos critérios para dá-lo como cumprido a cada caso. Os doutrinadores poderiam tê-los construído, com respaldo em uma teoria da argumentação jurídica, mas, se eles permaneceram silentes, ou não foram ouvidos, inegavelmente abre-se, ou mesmo impõe-se, um espaço para atuação do legislador. A vocação para orientar ou reorientar condutas humanas está no âmago da própria razão de ser da atividade legiferante. Embora não poucos juízes pareçam ter adotado uma postura reativa(2) diante do art. 489 e respectivos parágrafos do novo CPC, parece apressado tomar uma impressão inicial, manifestada em um ambiente corporativo, como um juízo definitivo sobre o tema. Pensar que o direito nada pode fazer para mudar a prática judicial seria render-se a um ceticismo normativo que, no limite, solaparia as próprias bases da democracia. Em vez disso, convém tentar compreender os fatores subjacentes a essa cultura até aqui refratária à regulamentação do dever de fundamentar e buscar, com serenidade, meios de superá-los.

Uma determinada práxis judiciária, qualquer que seja, não se forma no vácuo; ela é o resultado da intervenção de diversos fatores, dentre os quais os relativos à formação acadêmico-profissional dos membros do Poder Judiciário e os advindos das exigências da própria sociedade quanto à prestação jurisdicional. Em relação à formação dos juízes, deve ser apontada, inicialmente, a grande influência da visão instrumentalista do processo na pré-compreensão dos magistrados, seja nos bancos universitários, seja nas escolas oficiais de preparação e aperfeiçoamento. A doutrina da instrumentalidade (DINAMARCO, 2003), tal como amplamente aceita no último quartel do século XX e nos primeiros anos do século presente, colocava a figura do juiz no centro da relação processual. Mais do que instrumento do direito material, o processo era visto como instrumento de concretização de valores constitucionais por meio da jurisdição. Ao juiz competia exercer um papel ativo em prol da realização dos fins do processo, e isso podia autorizar que o julgador suprisse a atuação deficiente das partes. O instrumentalismo opunha-se ao juiz desinteressado, fechado em cubículos e preso a formalidades, mas a ênfase do reproche talvez tenha contribuído para o surgimento de juízes que pretendiam carregar nos ombros peso demais. Os defensores da visão instrumentalista, obviamente, nunca desconheceram ou menosprezaram o dever de fundamentar. Ocorre que, em um tal modelo, a justificação da decisão e, portanto, a responsabilidade pela sua correção eram quase que exclusivas do juiz.(3) A adequação da decisão era medida sobretudo pelos fundamentos constitucionais substantivos manejados pelo julgador, e não tanto pela participação e pela influência das partes no convencimento judicial. Daí a jurisprudência estabelecer entendimentos como os que seguem:

“[...] O órgão julgador não está obrigado a rebater pormenorizadamente todos os argumentos apresentados pela parte, bastando que motive o julgado com as razões que entendeu suficientes à formação do seu convencimento. [...] “(STF, SS 4.836 AgR-ED, relator(a): Min. Ricardo Lewandowski (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 07.10.2015, processo eletrônico, DJe-219, divulg. 03.11.2015, public. 04.11.2015)

“[...] Não está o magistrado obrigado a julgar a questão posta a seu exame de acordo com o pleiteado pelas partes, mas sim com o seu livre convencimento (art. 131 do CPC), utilizando-se dos fatos, das provas, da jurisprudência, dos aspectos pertinentes ao tema e da legislação que entender aplicável ao caso. [...] “(STF, AI 847.887 AgR, relator(a): Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 13.12.2011, acórdão eletrônico, DJe-034, divulg. 15.02.2012 public 16.02.2012)

“[...] 2. O julgador não está obrigado a refutar expressamente todas as teses aventadas pela defesa, desde que pela motivação apresentada seja possível aferir as razões pelas quais acolheu ou rejeitou as pretensões deduzidas. [...]
“(STJ, HC 318.957/SP, rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 03.11.2015, DJe 10.11.2015)

A cultura judiciária não é senão um aspecto da cultura da comunidade jurídica. A ideia de protagonismo da atuação judicial, ainda que à custa de uma acentuada assimetria dos sujeitos processuais, também se introjetou em professores, advogados e membros do Ministério Público formados sob a mesma pré-compreensão da instrumentalidade. A imagem do Juiz Hércules, que, na idealização do jusfilósofo Ronald Dworkin, poderia resolver casos difíceis mediante argumentação monológica,(4) adaptou-se perfeitamente a essa concepção de jurisdição, ocupando espaço de relevo no ensino jurídico brasileiro nos anos 90 e 2000. Dworkin rejeitava o ativismo judicial (1999, p. 451-452), mas, na transposição de sua doutrina para a realidade brasileira, essa ressalva se perdeu. De sua robusta doutrina parece ter permanecido apenas o ataque geral ao formalismo, a ideia de julgamento com argumentos morais e, claro, a vistosa representação do juiz dotado de superpoderes.

Uma grande expectativa sobre a atuação do Poder Judiciário migrou para a sociedade como um todo. Para isso contribuiu, sem dúvida, a baixa credibilidade dos poderes Legislativo e Executivo, aliada ao renovar de esperanças que a Constituição de 1988 instigou. Esperava-se que os magistrados fizessem "cumprir a Constituição que os políticos não cumpriam", e que isso ocorresse com celeridade e baixo custo para o cidadão. Juízes tinham que ser práticos, usar linguagem acessível e conferir efetividade à sua atuação. Então as preocupações com o acesso à justiça e a duração dos processos dominaram as avaliações da sociedade sobre o Poder Judiciário, visto como o grande responsável pela solução dos conflitos (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2011c, p. 25), apesar de sua elevada taxa de congestionamento e de outros indicadores desfavoráveis à eficiência na prestação jurisdicional.(5)

Nesse cenário, concebendo o juiz como um ser racional que reage a incentivos, tal qual qualquer outra pessoa, de que modo se esperaria que ele agisse em relação a um possível dilema entre usar seu tempo para julgar mais ou fundamentar melhor? Haveria de priorizar a qualidade justificatória, evitando decisões-surpresa, apresentando fundamentos minuciosos e enfrentando a cada vez todos os argumentos das partes, ou haveria de dar mais atenção à produtividade e à presteza de sua atuação, de modo a acelerar a tramitação processual e dirigir seus esforços à efetivação do chamado processo civil de resultados? Se pudesse conciliar a realização de ambos os objetivos, seria imperioso que o fizesse, mas, se estivesse em uma situação de sobrecarga de trabalho (o que não é infrequente), é mais provável que o juiz optasse pelo curso de ação que levasse ao resultado mais consentâneo com a expectativa daqueles que avaliam sua atuação. Em favor disso pesariam ao menos quatro fatores: i) vivencia-se um ambiente de estímulo à litigiosidade;(6) ii) as críticas e cobranças vêm muito mais do lado da duração dos processos que do da qualidade da fundamentação;(7) iii) a produtividade e a presteza formam os principais critérios ditos objetivos utilizados para avaliação de desempenho e ascensão na carreira da magistratura;(8) iv) fundamentações completas e vinculadas à argumentação das partes soem passar despercebidas pelos órgãos de revisão, já que estes tendem a estar preocupados com as suas próprias metas e, portanto, a também usar votos padronizados.(9)

Tudo isso poderia parecer falar a favor da tese da inaptidão das prescrições do novo CPC para a otimização do dever de fundamentação das decisões judiciais. Seria cabível cogitar que de nada adiantaria mudar a lei, se não forem propiciadas melhores condições de trabalho ao juiz, nem combatido o viés cultural pela celeridade. Contudo, embora o problema decorra de uma conjunção de fatores, a maioria deles não reduzíveis ao plano da normatividade, ao menos parte ou começo da solução haveria de passar por uma alteração legislativa.

Reconhece-se que mudanças culturais não ocorrem de uma hora para outra, mas elas podem começar a partir de um conjunto de alterações que formam um gatilho para a inovação. A própria edição do novo CPC e a ascendência do formalismo-valorativo, que concebe a decisão judicial como produto de uma comunidade de trabalho formada pelas partes e pelo juiz,(10) pressionam a transformação cultural dos operadores jurídicos. O entendimento jurisprudencial que dava por cumprido o dever de fundamentar nos moldes dos acórdãos antes citados consolidou-se sob um arcabouço jurídico e cultural que não estabelecia, necessariamente, passos de desenvolvimento argumentativo na tarefa de justificação. Não se pode dizer que todas as disposições do art. 489 do CPC haveriam de ser deduzidas, sem tirar nem pôr, diretamente da Constituição. Ainda que se considere que a norma veiculada no art. 93, IX, da Constituição tenha a estrutura de uma regra (mandamento definitivo), ela não pressupõe uma fórmula única e infalível para considerar suficientemente realizado o dever de fundamentação. Se mesmo com o novo CPC já se defende que "nem todas as decisões deverão ser fundamentadas de acordo com o art. 486 [rectius, 489] em sua integralidade" (WAMBIER, 2015, p. 166), então é cabível sustentar a viabilidade de algum dissenso sobre o conceito e, portanto, a existência de um espaço para atuação do legislador. O CPC revogado foi um código do seu tempo, e os operadores jurídicos que lhe deram aplicação o fizeram, acertos e erros, à luz da produção doutrinária da época e sob a dura realidade das condições fáticas existentes. Considerando os estímulos à litigiosidade, a cultura de esperar tudo do juiz, o uso massificado de "modelos" de peças processuais em todas as instâncias e por todos os operadores jurídicos (não só por magistrados), além da pressão do binômio produtividade-presteza, a conformação do dever constitucional de fundamentação pela jurisprudência, tal como consolidado, não pode ser tida como aberrante. Com o atual CPC, diversamente, existe uma regulação que, sob as bases da cooperação e da otimização da contraditoriedade, à luz do formalismo-valorativo, equipara à inexistência de fundamentação, com a respectiva sanção por nulidade, alguns tipos de deficiência justificatória. Então parece razoável esperar que tenha sido dado início a uma mudança na correlação de incentivos aos operadores jurídicos. Se a observância das regras de justificação interna ora instituídas constitui requisito para a validade da prestação jurisdicional, é previsível e provável que os juízes queiram evitar o retrabalho de julgar duas vezes os mesmos casos, e então haverão de apresentar fundamentos capazes de minimizar os riscos de nulificação das decisões.

A estatuição de parâmetros mínimos de adequação justificatória não é pouca coisa, sob o aspecto normativo, mas realmente ainda não diz nada sobre a questão da litigiosidade. O problema da sobrecarga de trabalho, se não enfrentado (em diversas frentes), de fato pode acarretar uma demora insuportável na prestação jurisdicional, ou esvaziar a eficácia das novas exigências para a fundamentação das decisões. Nenhuma das hipóteses é aceitável. Para afastar esses riscos, é preciso conferir efetividade às disposições do novo CPC relativas à racionalização do processamento e do julgamento das ações, como o estímulo à utilização das ações coletivas (art. 139, X) e à conciliação, a possibilidade de modificação de competência e julgamento conjunto de processos que possam gerar risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias caso decididos separadamente, mesmo sem conexão entre eles (art. 55, § 3º), a utilização adequada do incidente de demandas repetitivas (art. 976) e, sobretudo, a obrigação de os tribunais uniformizarem sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente (art. 926) e o dever de juízes e tribunais observarem a jurisprudência e aplicarem precedentes (art. 927).

Destacar essas inovações legais não significa sobrevalorizar o aspecto normativo, e sim reconhecer que estão dadas as bases jurídicas para o aperfeiçoamento institucional. Para lograr a efetividade desse instrumental, é indispensável promover mudanças ao modo de atuação dos operadores do direito. No âmbito do Poder Judiciário, há muito o que fazer em relação aos métodos de gestão judicial e aos processos de trabalho. Além de uma ampla revisão de metas e critérios de avaliação e estímulo de magistrados, parece urgente proceder a mudanças na forma de deliberação dos órgãos colegiados, sob pena de o adequado manejo dos precedentes, por exemplo, correr sério risco. Não faz sentido promover sessões públicas para leitura de votos que dificilmente serão mudados diante da argumentação de advogados ou outros julgadores. A compilação de uma série de monólogos não faz um diálogo, além de dificultar a identificação da ratio decidendi. Para que os precedentes cumpram sua função de descarga argumentativa, é preciso que os membros de órgãos colegiados busquem sempre uma fundamentação consensual, reservando-se para apresentar votos em separado apenas quando isso favorecer a clarificação dos fundamentos do precedente que se está a formar.

Não terá compreendido o novo Código, contudo, quem reclamar uma nova postura apenas de magistrados. Na prática advocatícia, tanto pública como privada, é preciso quebrar a persistente resistência à conciliação e ao uso de outros meios de resolução de conflitos, bem como promover a autorresponsabilidade dos participantes em relação à adequação argumentativa de suas manifestações processuais. Tampouco a doutrina pode ser exonerada de dar sua contribuição para a racionalidade procedimental e decisória, pois a ela cabe papel de destaque na sistematização e no aperfeiçoamento do direito. Boa parte das publicações jurídicas atuais é de uma superficialidade constrangedora, puramente retórica, que não ajuda na resolução de problemas, tampouco critica a prática vigente de modo construtivo e responsável. Será incoerente exigir correção argumentativa dos juízes se os próprios cientistas do direito se sentirem liberados de um discurso jurídico racional e consequente.

3 Resposta à tese da intromissão

A tese da intromissão sustenta que não é função da lei descer aos pormenores da fundamentação judicial. Para tanto, levanta objeções de ordem tanto prática como metodológica.

A objeção prática baseia-se nas dificuldades que a exigência de uma fundamentação pormenorizada acarretariam ao ato de decidir e à continuidade da marcha processual. Tome-se, a título de exemplo, a proibição de considerar fundamentada uma decisão que "se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou com a questão decidida" (art. 489, § 1º, I), para perguntar: i) Por que considerar inadequada uma decisão que, embora não justifique a razão de ter aplicado a norma A em vez da norma B (§ 1º, I), tenha solucionado corretamente o caso concreto? ii) Faria algum sentido anulá-la para, tempos depois, adotar-se a mesma solução, apenas acrescida da justificação de que, por exemplo, a norma A é especial em relação à norma B?

Apesar do caráter prático das indagações, as respostas exigem o enfrentamento de questões teóricas prévias. Em primeiro lugar, deve ser enfatizado que o novo CPC surge no ocaso da visão instrumentalista, que centralizava toda a bondade ou ruindade da solução do litígio na figura do juiz. Vivemos hoje uma nova etapa metodológica do processo, que se reflete em uma nova concepção dos papéis dos sujeitos processuais. Para o formalismo-valorativo que inspirou o novo Código, a solução jurídica resulta da comunidade de trabalho formada pelas partes e pelo juiz, de modo que o dever de fundamentar não pode ser corretamente compreendido senão em sua conexão com o princípio da cooperação. O verdadeiro cerne do dever de fundamentar, portanto, diz respeito à exigência de o juiz "enfrentar os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador", conforme dispõe o inciso IV do § 1º do art. 489, em conexão com os arts. 6º e 10 do Código. Todas as exigências enunciadas nos demais incisos estão subordinadas ao dever de vinculação ao debate. A interpretação coerente do novo CPC impõe que se estruture o dever de fundamentar pela cooperação e, portanto, impõe a necessidade de a argumentação judicial desenvolver-se a partir da argumentação das partes.

Firmadas essas bases, é imperioso exigir que tanto autor como réu fundamentem, em suas manifestações, a indicação da norma ou das normas cuja aplicação justificaria a adoção da providência requerida. A tarefa judicial de apresentar as razões de tal ou qual norma compor uma premissa do seu raciocínio estará vinculada aos fundamentos arguidos no curso do processo. Com isso, deve ser entendido que o Código não impôs uma sobrecarga epistêmica ao juiz, antes a atenuou, ao partilhá-la com as partes.(11) Se o autor não justifica a invocação de ato normativo que alega incidir no caso, não pode exigir que o juiz, de modo paternalista, o faça em seu favor. Na mesma trilha, se o réu não justifica por que é aplicável norma diversa da postulada pelo demandante, inevitavelmente estará contribuindo para a aceitabilidade da decisão que acolher a fundamentação jurídica sustentada pelo autor. É verdade que a exigência de parâmetros mínimos de qualidade argumentativa não está expressa nos arts. 319, 321 e 336 do novo CPC, que versam sobre a petição inicial e a contestação. Trata-se, contudo, de imposição inafastável do princípio cooperativo. A extensão do dever de fundamentação do juiz é medida pelo modo de cumprimento do ônus de fundamentar das partes. Assim como um dia foi abandonada a ideia de que o direito é criação exclusiva do legislador, hoje cai por terra a de que a aplicação judicial do direito é função exclusiva do juiz. O direito passou a ser visto como um processo de concreção ou determinação crescente do qual participam vários atores (VIGO, 2004, p. 274). É preciso, pois, resgatar Hércules da solidão, inserindo-o em um ambiente institucional de democracia e participação.

Com efeito, não se pode falar em decisão correta sem fundamentação adequada. A pergunta "i" repousa sob a falácia da correção ontológica: uma solução jurídica não é correta per se; ela será adequada se for adotada mediante a observância da cooperação. A aceitabilidade da decisão judicial depende da observância de exigências que decorrem do dever de tratar as partes, devidamente assistidas por seus advogados, como sujeitos dignos de serem ouvidos, não como meros objetos do processo. Isso também responde à pergunta "ii", mas aqui há algo a acrescentar. A decretação das nulidades mantém, no novo Código, a principiologia do prejuízo e da lealdade, de modo que a constatação da irregularidade não necessariamente precisa levar, em todos os casos, à decretação da sanção. De qualquer modo, convém repisar aqui o truísmo de que o juiz, assim como os demais operadores jurídicos, é um ser racional que reage a incentivos. Uma jurisprudência demasiadamente frouxa na aplicação da pena de nulidade pode subtrair parte da eficácia esperada da norma que impõe parâmetros à fundamentação judicial.(12)

Agora a objeção propriamente teórica, que articula a tese da intromissão mediante argumentos de metodologia jurídica. Lênio Streck, por exemplo, ataca com veemência o § 2º do art. 489, que dispõe sobre a estrutura da fundamentação em caso de colisão de normas (2015, p. 134-136). O autor sustenta que o novo CPC desloca apressadamente o âmbito da discussão de uma complexa e controversa tese doutrinária para o direito positivo, consagrando uma vulgata da ponderação de Robert Alexy e propiciando aos juízes um artifício para exercitar uma livre escolha. Streck rejeita a possibilidade de ponderação de regras, alerta para a ambiguidade e a falta de clareza do conceito de ponderação e diz que o dever de enunciação das "premissas fáticas que fundamentam a conclusão" faz com que a fundamentação perca seu caráter estruturante, servindo como mero "ornamento póstumo" à decisão.

A questão da nomenclatura não deve receber importância desmesurada. Em primeiro lugar, não parece adequado ontologizar conceitos doutrinários. Apesar de serem poucos os autores que admitem a existência de colisão de regras e, consequentemente, a possibilidade de que elas sejam objeto de ponderação,(13) não se pode afirmar de antemão que a estrutura de resolução de problemas proposta por essa corrente doutrinária seja necessariamente disfuncional. Em segundo lugar, e este é o argumento decisivo, não está correta a interpretação de que as expressões empregadas implicam uma tomada de posição do legislador sobre se regras são passíveis de colisão. O próprio Streck sustenta que norma é o gênero de que princípio e regra são espécies (2015, p. 135). A utilização da formulação mais ampla não torna errada a conclusão de que pode haver colisão de normas, se princípios também carregam consigo o selo do normativo. Não há maiores dificuldades de justificar, portanto, a interpretação restritiva, cabendo ao aplicador do direito tomar a expressão "normas" na acepção estrita de "regras jurídicas".

A opção do novo CPC foi, inversamente ao que defende Streck, fugir de polêmicas conceituais. Embora o jurista esteja correto em criticar o mau uso da ponderação no meio jurídico brasileiro, parece que sua defesa da ausência de constrangimentos institucionais para vincular o juiz à racionalidade argumentativa só agrava o problema. O novo CPC não impõe os passos da proporcionalidade alexiana,(14) apenas diz que "o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão". Na redação do dispositivo, ponderação é usada como sinônimo de decisão, e não como o iter justificatório, mas isso não o torna completamente inútil. É correto extrair de seu confuso texto, ao menos, a existência de um dever geral de identificação e consideração de razões e contrarrazões. É pouco, mas ainda é muito melhor que o vazio normativo sugerido por Streck.(15) A imposição de um modelo de fundamentação, no qual tenham que ser enfrentadas perguntas parciais sobre os elementos fáticos e normativos a serem considerados, constrange o intérprete a se afastar da tentação de responder "holisticamente" à pergunta-alvo principal, reduzindo o risco de que o diálogo entre a parte e o todo seja imperceptivelmente abreviado.

Sobre o argumento de perda do caráter estruturante da fundamentação, Streck ignora ou rejeita a diferença entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação. Suas frequentes citações de Gadamer parecem pôr na doutrina do filósofo uma repulsa cabal a qualquer filtro de racionalidade na interpretação jurídica. A interpretação não ocorre em um momento mágico, em que o sujeito adota a decisão ao mesmo tempo em que já sai pronta de sua cabeça uma "fundamentação autêntica" em todos os seus detalhes. Parece haver uma contradição ao defender e elogiar o § 1º, a ponto de dizer que "sem ele o novo CPC desaparece, ficando pior que revogado", e ao mesmo tempo condenar o § 2º, chamando-o de mero "despiste do decisionismo" (STRECK, 2015, p. 139 e 141). Se a virada hermenêutica significa tudo o que Streck diz, faltou ao autor justificar o que salva o inciso IV do § 1º, que obriga o juiz a "enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada [sic] pelo julgador", da sua indagação sobre "como é possível que eu atravesse o 'abismo gnosiológico do conhecimento' para, chegando do outro lado (conclusão), voltar-para-construir
-a-ponte-pela-qual-acabei-de-cruzar?" (STRECK, 2015, p. 136).

O círculo hermenêutico, bem compreendido, significa o vaivém do olhar também em relação à decisão cogitada e à aceitabilidade de sua adoção. A importância de submeter a fundamentação judicial a regras consiste justamente em estimular o aplicador do direito a fazer as razões retroagirem ao momento da adoção da decisão. Com isso se pode aproximar descoberta e justificação, sem negar a distinção entre os dois contextos. A consciência do dever de fixar e seguir critérios de ponderação favorece que o juiz, na expectativa de uma aceitação intersubjetiva de sua atividade, condicione a formulação da própria decisão, contribuindo para que ela seja adotada apenas com base em razõesaptas a serem tidas como corretas.(16) A imposição de passos de desenvolvimento da fundamentação, por vincular o julgador a um teste de correção, constitui, então, um freio ao decisionismo. Na ausência de regras de fundamentação, é muito mais provável (e a prática anterior à vigência do novo CPC o comprova) que os fundamentos sejam – aí sim – o mero "ornamento póstumo" para o decisionismo.

Conclusão

O novo CPC prescreve que a fundamentação judicial satisfaça a parâmetros mínimos de racionalidade e contraditoriedade. A exigência central, que decorre da conexão com o princípio da cooperação e informa a realização de todas as demais, é a necessidade de enfrentamento de todos os argumentos deduzidos no processo que possam interferir na decisão. Bem interpretadas, as alterações são bem-vindas.

Não deve ser acolhida a objeção de que as disposições do art. 489, §§ 1º e 2º, do novo CPC estão fadadas à ineficácia jurídica (tese da inaptidão). Embora se reconheça o forte entranhamento do deficit justificatório na cultura jurídica brasileira, essa realidade pode ser alterada à medida que se mudar, também, a concepção do papel dos sujeitos processuais e de uma prestação judicial adequada. Com o novo CPC, lido sob as lentes do formalismo-valorativo, a fundamentação jurídica toma parte em um novo modelo de jurisdição, cujo implemento não é apenas responsabilidade do juiz. Admite-se, contudo, que o êxito dessa empresa coletiva depende também da efetividade das disposições do Código que objetivam a diminuição da litigiosidade excessiva e a racionalização processual. Mediante uma nova postura dos operadores do direito, à luz de uma dogmática consistente, esse esforço pode dar bom resultado.

Também deve ser rejeitada a objeção de que o Poder Legislativo excedeu seu poder de conformação legislativa ao regulamentar o dever de fundamentar no novo CPC (tese da intromissão). Se se pretende que a decisão judicial seja produto da cooperação entre as partes e o juiz, no quadro do ordenamento jurídico, é preciso estabelecer critérios de correção jurídica que constranjam o juiz ao debate processual e ao direito vigente. A ideia fundamental é a de que o cumprimento das regras sobre a estrutura da fundamentação no novo Código, embora não garanta a certeza definitiva do resultado, fornece instrumentos para, ao menos, assegurar uma correção procedimental das soluções jurídicas, atrelando-as à razão jurídica e ao contraditório.

Referências

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Notas


1. Sobre o princípio da cooperação, que norteia a principiologia do novo CPC (arts. 6º e 10), conferir a doutrina de Daniel Mitidiero (2011).

2. Associações de magistrados emitiram nota sobre o projeto do novo CPC, defendendo o veto presidencial às disposições relativas ao dever de fundamentação judicial, sob o argumento de que elas "terão impactos severos, de forma negativa, na gestão do acervo de processos, na independência pessoal e funcional dos juízes e na própria produção de decisões judiciais em todas as esferas do país, com repercussão deletéria na razoável duração dos feitos" (DELGADO, 2015).

3. Citem-se, a propósito, os seguintes trechos da obra de Dinamarco (2003): "Imbuído dos valores dominantes, o juiz é intérprete qualificado e legitimado a buscar cada um deles, a descobrir-lhes o significado e a julgar os casos concretos na conformidade dos resultados dessa busca e interpretação [p. 48]. [...] A preponderância metodológica da jurisdição, ao contrário do que se passa com a preferência pela ação ou pelo processo, correspondente à preconizada visão publicista do sistema, como instrumento do Estado, que ele usa para o cumprimento de objetivos seus [p. 97]. [...] Enquanto se pensa no poder institucionalizado em algum 'polo de poder' (especificamente, no Estado), é inadequada a tentativa de conceituá-lo em torno da ideia de 'participação no processo decisório'. O Estado comanda o processo decisório e decide ele próprio, impondo depois a sua decisão. Não é correto, sob esse prisma, falar em 'participação' [p. 135]”.

4. Conferir Dworkin (2002, p. 165): "Podemos [...] examinar de que modo um juiz filósofo poderia desenvolver, nos casos apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios jurídicos requerem. [...] Para esse fim eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, a quem chamarei de Hércules".

5. Em estudo encomendado pelo Conselho Nacional de Justiça (2011b, passim), foi constatado o seguinte: "O segundo país entre os analisados a ter mais processos por juiz é o Brasil, que apresenta carga de trabalho de 4.616 processos por magistrado. Excluídos Dinamarca e Brasil, os demais países da tabela apresentam número inferior a 4.000 processos por juiz. A carga de trabalho média calculada foi de 1.926. O Brasil está quase três vezes acima dessa média. [...] O Brasil é o país que apresenta maior taxa de congestionamento, 70%, seguido de Bósnia e Herzegovina e Portugal, com 68 e 67%, respectivamente. Observa-se elevada diferença entre a taxa mais alta, de 70%, e a mais baixa, de 3%, referente à Federação Russa. Assim como a maior taxa de congestionamento, o Brasil também apresenta o maior número de advogados por magistrado, seguido por Itália e Malta, com 25 e 33 advogados, respectivamente, conforme apresentado na tabela 3. Como a elevada proporção de advogados em relação a magistrados pode indicar que existe elevada propensão ao litígio e relativa incapacidade de fazer frente a essa tendência, analisou-se o coeficiente de correlação entre a proporção de advogados por magistrados e a taxa de congestionamento. Obteve-se como resultado um valor de 61,8%. Isso significa que há relação alta e significativa entre essas duas variáveis. Ou seja, quanto maior o número de advogados por magistrado, maior tende a ser a taxa de congestionamento desses países".

6. É reveladora, a propósito, a seguinte conclusão (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇ, 2011a, p. 5 e 14-15): "O estudo propõe que, para além do cidadão, que crescentemente tem se tornado mais consciente dos seus direitos, existem no Brasil vários canais de incentivo à judicialização dos conflitos, tais como o próprio setor público, a advocacia e a mídia. [...] Os usuários do Judiciário são agentes racionais que têm variadas motivações para litigar: a ausência ou o baixo nível dos custos, incluindo aqui também o baixo risco; a busca de um ganho; a busca do Judiciário como meio, por exemplo, para postergar responsabilidades (uso instrumental); e a percepção de ter sido lesado moral, financeira ou fisicamente. Dentre todas essas motivações, sobressai-se em muito, na percepção dos diversos grupos de entrevistados, a conjugação de baixos custos com baixa exposição a riscos".

7. Em que pesem os esforços dos últimos anos na área da gestão judicial, confira-se a seguinte constatação do mais recente estudo do Conselho Nacional de Justiça (2015, p. 483): "Sob o olhar mais amplo da produtividade, é importante observar no tempo a variação dos principais indicadores do Poder Judiciário. Analisando o período de 2009 a 2014, é importante pontuar que houve aumento de 17,2% de casos novos. De outro lado, na porta de saída, houve 12,5% de incremento de processos baixados. Não obstante tenha havido aumento progressivo do Índice de Produtividade de Magistrados – IPM na série (+6,9%), a diferença do aumento de casos novos e dos baixados impactou a ampliação do acervo em 20%, pois o Índice de Atendimento à Demanda (IAD), considerando-se os resultados consolidados do Judiciário, continua insuficiente para combater a entrada de casos novos (98,7%)".

8. De acordo com a Resolução nº 106 do CNJ, de 06.04.2010 (DJ-e nº 61/2010, em 07.04.2010, p. 6-9), na aferição do merecimento para promoção a tribunais de 2º grau, mais da metade da "pontuação" (sic) dos magistrados provém da avaliação de sua produtividade e presteza, verbis: "Art. 11. Na avaliação do merecimento será utilizado o sistema de pontuação para cada um dos 5 (cinco) critérios elencados no art. 4º desta resolução, com a livre e fundamentada convicção do membro votante do tribunal, observada a seguinte pontuação máxima: I – desempenho – 20 pontos; II – produtividade – 30 pontos; III – presteza – 25 pontos; IV – aperfeiçoamento técnico – 10 pontos; V – adequação da conduta ao CEMN – 15 pontos."

9. Para diminuir as taxas de congestionamento, o estudo do Conselho Nacional de Justiça sobre morosidade da justiça cível (2011a, p. 15-16) chega a propor uma padronização ainda maior das decisões judiciais, sob a justificativa de que uma práxis decisória pouco padronizada "(i) aumenta muito o número de processos e (ii) dificulta muito o número de acordos".

10. Sobre o formalismo-valorativo, que fez superar a visão instrumentalista, conferir as obras de Mitidiero (2011) e Álvaro de Oliveira (2003). Outros doutrinadores, como Eduardo Cambi (2009) e Fredie Didier Júnior (2007), chamam essa nova etapa metodológica de neoprocessualismo.

11. "Para acolher o pedido do autor, o juiz não precisa analisar todos os fundamentos da demanda, mas necessariamente precisa analisar todos os fundamentos da defesa do réu; já para negar o pedido do autor, o magistrado não precisa analisar todos os fundamentos da defesa, mas precisa analisar todos os fundamentos da demanda" (DIDIER JR., 2015, p. 336).

12. O regime das nulidades está previsto nos arts. 276 a 283 do CPC. A aplicabilidade das hipóteses de convalidação de nulidades a decisões não fundamentadas exigiria aprofundamento não compatível com o objeto deste estudo.

13. Um deles é Humberto Ávila (2004, p. 50), que forneceu sugestões à redação do art. 472 do anteprojeto (atual art. 489), juntamente com Fredie Didier Júnior. Disponível em: http://www.frediedidier.com.br/ editorial/editorial-108. Acesso em: 22 mar. 2016.

14. De acordo com Robert Alexy, a ponderação ou proporcionalidade em sentido estrito há de ocorrer por meio de argumentos apoiados em três pares de fatores (2007, p. 131-153). As razões em favor da intervenção levam em conta o peso abstrato do princípio cuja realização a medida cogitada fomentaria, a intensidade do prejuízo a tal princípio, caso a medida não seja adotada, e o grau de probabilidade com que a medida contribuiria para realizar ou para evitar a não realização do princípio. As razões em favor da não intervenção levam em conta o peso abstrato do princípio a ser prejudicado pela adoção da medida, a intensidade desse prejuízo e o grau de suposição empírica com que se espera que ele ocorra.

15. Conforme Bustamante (2008, p. 106), "renunciar à pretensão de se estabelecer critérios racionais para a justificação jurídica nos casos difíceis, e em especial naqueles em que são necessárias valorações jurídicas, significa retornar ao positivismo metodológico de caráter não cognitivista que renuncia a qualquer tipo de normatividade para a ciência do direito e a dogmática jurídica".

16. Sobre esse processo, conferir: Trois Neto (2012, p. 26), Taruffo (2010, p. 268), Gascón Abellán (2004, p. 202), Gomes Filho (2001, p. 113) e Ibañez (2006, p. 107).




Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., dez. 2016. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS