Entre os diversos temas tratados no curso de Direito Administrativo do Currículo Permanente da Emagis, realizado no segundo semestre do ano de 2014, chamaram a atenção deste magistrado, em especial, as discussões sobre as possibilidades e os limites do controle judicial de regulamentações econômicas e políticas públicas em geral.
Certamente, o tema do controle judicial das políticas públicas é dos mais difíceis no âmbito do direito constitucional e administrativo, pois, se não há dúvida quanto à possibilidade de acesso ao Judiciário para tutela de qualquer lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º), também é certo que não é dado ao Judiciário substituir-se aos demais órgãos e poderes da República, sob pena de ofensa ao princípio da separação dos poderes.
De um modo geral, a maioria dos palestrantes asseverou que, no modelo brasileiro, não se pode negar a priori a possibilidade de conhecimento pelo Judiciário de questões afetas à regulação administrativa e às políticas públicas em geral, pois é ampla a possibilidade de cognição judicial sobre os pressupostos de legalidade e constitucionalidade da atividade administrativa. Em outras palavras, se ficar demonstrado que a conduta administrativa destoa de previsões legais ou constitucionais, deve o Judiciário atuar para corrigir a ilegalidade, sem que nisso incorra em qualquer ofensa às prerrogativas da administração pública.
As dificuldades de fato surgem, no entanto, quando a causa de pedir suscitada em juízo provoca o exame da razoabilidade e da proporcionalidade das escolhas feitas pelo órgão regulador. Não raro, a complexidade das questões objeto de regulação torna muitíssimo difícil para o julgador compreender todas as particularidades da celeuma administrativa, o que é indispensável para avaliar se e em que medida o administrador extrapolou as fronteiras da razoabilidade.
Discorrendo sobre o assunto, Floriano Azevedo Peixoto Neto exemplificou como a intervenção judicial, mesmo realizada com a melhor das boas vontades, pode gerar consequências ruins, justamente em razão da complexidade de causas e efeitos que normalmente permeia a gama de relações econômicas dentro dos setores regulados. Cogitava o palestrante das prováveis consequências de um órgão judiciário, nos limites territoriais de sua competência para uma ação civil pública, decretar a nulidade da cláusula de carência em contratos de plano de saúde. Ainda que o objetivo do controle judicial fosse bom – o alargamento da cobertura médica –, a consequência provável seria inversa, pois a corrida pelos planos de saúde fatalmente levaria à inviabilidade econômico-financeira dos fornecedores locais.
Outros exemplos igualmente interessantes podem ser garimpados na jurisprudência. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, ao assentar a possibilidade de suspensão do serviço de fornecimento de energia elétrica pelo inadimplemento do consumidor, argumentou que
"admitir o inadimplemento por um período indeterminado e sem a possibilidade de suspensão do serviço é consentir com o enriquecimento sem causa de uma das partes, fomentando a inadimplência generalizada, o que compromete o equilíbrio financeiro da relação e a própria continuidade do serviço, com reflexos inclusive no princípio da modicidade." (EDcl nos EDcl no REsp 1.192.168⁄RS, rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 04.08.2011, DJe 15.08.2011)
Em precedentes anteriores, já se havia negado a possibilidade de suspensão no fornecimento de energia elétrica em razão de inadimplemento porque se trataria de serviço essencial de natureza contínua (CDC, art. 22, parte final). Posteriormente, no entanto, compreendeu-se que a impossibilidade de suspensão do fornecimento atuaria como incentivo à inadimplência generalizada, o que fatalmente inviabilizaria tanto a modicidade das tarifas como a própria continuidade do serviço público.
Já no âmbito do STF, um bom exemplo a ser lembrado refere-se ao julgamento da ADI 1.946, na qual a Corte decidiu que o teto de pagamento de benefícios previdenciários disposto no art. 14 da EC nº 20/98 deveria ser interpretado conforme à Constituição, de modo a excluir do seu âmbito de incidência o salário da licença à gestante prevista no art. 7º, XVIII. Entendeu-se que obrigar os empregadores a arcar com o salário da gestante no período da licença funcionaria como um incentivo negativo à contratação de mulheres no mercado de trabalho. Como afirmou o relator, Ministro Sydney Sanches:
“Na verdade, se se entender que a Previdência Social, doravante, responderá por apenas R$ 1.200,00 por mês, durante a licença da gestante, e que o empregador responderá, sozinho, pelo restante, ficará sobremaneira facilitada e estimulada a opção deste pelo trabalhador masculino, ao invés da mulher trabalhadora. Estará, então, propiciada a discriminação que a Constituição buscou combater, quando proibiu a diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão, por motivo de sexo (art. 7o, XXX), proibição que, em substância, é um desdobramento do princípio da igualdade de direitos, previsto no inciso I do art. 5o da Constituição Federal. (...) Não é crível que o constituinte derivado, de 1988, tenha chegado a esse ponto, na chamada Reforma da Previdência Social, desatento a tais consequências.”
De comum nesses exemplos tem-se a consideração sobre os impactos sociais e econômicos sobre os setores regulados, o que é uma característica marcante do julgamento sobre políticas públicas e regulamentos econômicos. Os problemas que surgem de tal compreensão vão desde como apurar as prováveis consequências, o que demanda elementos empíricos, até, e principalmente, como integrar essas consequências ao discurso jurídico de forma que permita sua ponderação com as normas e os direitos aplicáveis. No Brasil, o tema adquiriu notoriedade especialmente depois da entrevista concedida em 2004 pelo então ministro do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim ao jornal Valor Econômico, quando respondeu:
“Quando só há uma interpretação possível, acabou a história. Mas quando há um leque de interpretações, por exemplo, cinco, todas elas são justificáveis e são logicamente possíveis. Aí, deve haver outro critério para decidir. E esse outro critério é exatamente a consequência. Qual é a consequência, no meio social, da decisão A, B ou C? Você tem de avaliar, nesses casos muito pulverizados, as consequências. Você pode ter uma consequência no caso concreto eventualmente injusta, mas que no geral seja positiva. E é isso que eu chamo de responsabilidade do Judiciário das consequências de suas decisões.”(1)
Já em pesquisa realizada pela revista eletrônica Consultor Jurídico e apresentada no Anuário da Justiça de 2010, indagados se, “ao julgar, o juiz deve levar em conta o impacto de sua decisão em termos sociais, econômicos e de governabilidade”, 46% (quarenta e seis por cento) dos membros do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores responderam positivamente.(2)
Sem descurar, ainda, da previsão do Código de Ética da Magistratura Nacional, aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça, que, em seu art. 25, inclui como um dos efeitos do mandamento de prudência judicial o dever de que, “especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências que pode provocar”.
Como dito pelo Professor Floriano Azevedo, não se trata de sustentar a impossibilidade de controle judicial de regulamentações econômicas e políticas públicas, mas sim de chamar a atenção para as consideráveis dificuldades que existem no exercício desse controle, decorrentes sobretudo da complexidade econômica das questões reguladas. Daí a necessidade de o órgão julgador, quando defrontado com esses conflitos, reunir o máximo de informações possíveis sobre o funcionamento do setor, cobrando a exibição de informações pelas partes e realizando audiências públicas, tudo para compreender a dinâmica de efeitos afeta à regulação. A necessidade de ampla colheita de elementos empíricos é inevitável. Ainda assim, segundo o professor, se a instrução probatória demonstrar que a escolha administrativa foi precedida de estudos consistentes, com a participação dos agentes envolvidos, e se optou fundamentadamente por determinada forma de regulação, deve o Judiciário prestar deferência à administração pública, que tem discricionariedade técnica para exercer a regulação nos limites da razoabilidade. Interessante que, mesmo prestando deferência, não deixa o Judiciário de exercer o controle que lhe cabe, pois é próprio desse controle tomar contas da consistência regulatória, isto é, das razões técnicas que justificam a regulação administrativa.
Nas palavras do Desembargador Fernando Quadros, também palestrante em um dos encontros, haveria de se atentar para a diferença entre controle e revisão judicial: enquanto o primeiro, próprio da experiência norte-americana, diria respeito ao escrutínio das razões do regulador, a segunda implicaria a própria atuação do juiz como regulador, alterando a norma administrativa para frente. Segundo o palestrante, o exercício da revisão é bastante mais arriscado que o controle e pode gerar armadilhas para o juiz, atraindo-lhe custos políticos e responsabilidades morais pelos desdobramentos futuros da regulação adotada. Como o risco de intervenção em uma decisão técnica é muito grande, é mais adequado ao Judiciário que apure a responsabilidade do órgão regulador, cobrando dele que, quando necessário, revise seus procedimentos de forma fundamentada e com base em estudos aprofundados. Um dos exemplos seria a construção de usinas hidrelétricas, situação em que é mais efetivo exigir dos órgãos reguladores a realização de estudos prévios completos do que simplesmente nomear um perito judicial para opinar sobre a questão.
Um problema especialmente difícil ocorre, porém, quando se trata de examinar um regulamento administrativo que é testado em múltiplos casos individuais, situação bastante comum no sistema judiciário brasileiro, que, ao admitir a confluência de tutelas individual e coletiva, torna frequente a pulverização de uma política pública em milhares de ações individuais. A pretensão de fornecimento de medicamentos pelo Estado é o exemplo típico. Embora cada cidadão postule individualmente, não se deve ignorar a natureza coletiva do direito em jogo, já que a adjudicação individualizada deveria espelhar um serviço público que possa ser prestado a todos que estejam ou venham estar na mesma situação. Isso, no entanto, raramente é examinado nos processos individuais, que são resolvidos sem que se veja a possibilidade, sequer hipotética, de extensão da prestação individual a todos que dela necessitem, o que seria decorrência da universalidade do sistema de saúde. O conceito econômico de "tragédia dos comuns", abordado na palestra do Professor Juarez Freitas, pode ser empregado para descrever essa situação, a saber, quando o acesso individual indiscriminado a um bem coletivo possa colocar em risco a sustentabilidade da prestação para todos que dela necessitem. Em hipóteses tais, é também para evitar a tragédia dos comuns que a política pública deve discriminar os casos e as formas de acesso à prestação, tornando o serviço público sustentável e acessível a todos, sem discriminações e usos oportunistas. Novamente a adequação da tutela jurisdicional nesses casos parece depender, entre outras coisas, de o órgão julgador se fazer munir de informações completas sobre a teia de relações e efeitos reflexos que está por trás dos conflitos regulados.
Notas:
1. JOBIM, Nelson. Entrevista ao Jornal Valor Econômico, 2004. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/biblioteca/PastasMinistros/NelsonJobim/
Entrevistas/2004_dez_13.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2013.
2. ANUÁRIO DA Justiça 2010. São Paulo: ConJur, 2010. p. 08-09.
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