Pretende-se, com o presente trabalho, analisar a natureza jurídica das sanções por improbidade administrativa previstas na Lei 8.429/1992 e a sua autonomia em face do Direito Administrativo à luz dos ensinamentos repassados no primeiro encontro do Currículo Permanente de Direito Administrativo promovido pela Emagis, tomando como base a palestra de Márcio Cammarosano.
É respaldada historicamente a afirmativa de que o sistema punitivo brasileiro, abrangendo todos os ramos (político, penal, civil e administrativo), sempre encontrou dificuldades em apurar a responsabilidade de agentes políticos, e/ou de particulares que agem em conluio com estes, e aplicar-lhes sanções. Até recentemente (2010, Ação Penal 396), o Supremo Tribunal Federal (STF), detentor, desde a primeira Constituição da República, de 1891, de competência penal privativa para apurar a responsabilidade penal de altas autoridades, sequer havia condenado penalmente um agente político, muito embora inúmeros processos lá tenham tramitado originariamente. Pode-se dizer que essa situação, de forma considerável, era fruto de uma legislação excessivamente protetora ao agente público (lembra-se a anterior redação do art. 53, § 1º, da CRFB de 1988, que condicionava o processo criminal contra deputados e senadores à prévia licença de suas respectivas casas),(1) que abrangia desde a ausência de normas para a punição até punições brandas. Em uma visão crítica, o agente público primeiramente respondia por sua conduta no âmbito administrativo, o que tornava a questão muitas vezes de trato interno, com todas as vicissitudes que um processo de acesso restrito pode ter, e em raras situações respondia sob o aspecto penal, externo, quando esta se tornava de conhecimento e passível de ser apurada em vista da tipicidade cerrada que orienta este ramo, na esfera penal eventualmente podendo vir a responder em concurso com particulares. Raramente se tinha notícia de responsabilização sob o aspecto civil de condutas que ofendiam princípios da administração.
Nesse contexto, de tentativa de evolução na apuração da responsabilidade daqueles que exercem a função pública, vem à tona o § 4º do art. 37 da CRFB de 1988.(2) Muito embora seja patente a ligação entre a probidade no exercício da função pública e o princípio da moralidade na administração pública, tanto que este permite estabelecer padrões éticos para o agente público, é de se defender que a inovação ora citada representa nova categoria sancionatória inaugurada pela Constituição e que nesta encontra seus fundamentos, diferentemente da posição doutrinária tradicional que trata a improbidade do agente público como aspecto passível de sanção no Direito Administrativo.
O fundamento primordial está no próprio conceito de república, estampado no art. 1º constitucional, principalmente o parágrafo único do artigo.(3) Na definição de república por Roque Antônio Carrazza, esta “é o tipo de governo, fundado na igualdade formal das pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com responsabilidade”.(4) Segundo o mesmo autor, em uma república, o “Estado, longe de ser o senhor dos cidadãos, é o protetor supremo de seus interesses materiais e morais”.(5) Em uma república, os exercentes de uma função pública não são os donos da coisa pública, mas os gestores, aos quais compete zelar pelos interesses da coletividade.(6) Da função de zelo, é possível atribuir aos exercentes de funções públicas em uma república a noção de responsabilidade pelas decisões que adotarem. Os agentes públicos são responsáveis pela gestão dos interesses da coletividade, ou seja, serão responsabilizados pelas condutas que adotarem que ofendam os interesses da coletividade. E aqui o ponto que interessa ao presente estudo: um dos interesses expressamente referidos pela CRFB de 1988 é o de probidade administrativa, estampado no § 4º do art. 37.
Reconhecer que a responsabilidade por atos de improbidade administrativa possui autonomia, oriunda do próprio texto constitucional, e que deve ser tratada como hipótese nova sancionatória em face das demais hipóteses (penal, civil e administrativa) permite estabelecer parâmetros próprios à sua regulamentação infraconstitucional (Lei 8.429/1992) que não obrigatoriamente dependam de conceitos criados nessas demais áreas sancionatórias, principalmente na esfera penal, parâmetros esses que podem ser desde interpretativos até procedimentais. A exemplo, os tipos infracionais dos arts. 9º, 10 e 11 da Lei 8.429/1992. Não é desconhecida a tentativa doutrinária, e mesmo jurisprudencial, de trazer os conceitos penais à interpretação de citados artigos, principalmente o da tipicidade fechada e o da proibição da analogia para criar punições. Assim o fosse, as condutas passíveis de apuração seriam apenas aquelas estritamente referidas pelos artigos da lei, as descrições por demais abertas seriam reputadas inconstitucionais, e uma miríade de atos infracionais novamente remanesceria sem punição. Não é, todavia, o que sói ocorrer, entendendo-se a responsabilidade por improbidade administrativa como hipótese autônoma de sanção e afastando-se os conceitos penais de sua interpretação, nem o que a legislação pretende criando condutas exemplificativas nos incisos dos artigos acima (uso do termo “notadamente”) e permitindo a abertura ao aplicador da norma com os tipos abertos dos respectivos caputs.
Cabe aqui, neste momento em que se afirma a autonomia constitucional da responsabilidade por atos de improbidade administrativa em face das demais hipóteses sancionatórias previstas, trazer à discussão a decisão do Supremo Tribunal Federal na Reclamação Constitucional 2.138, também conhecida como “caso Sardenberg” (Ronaldo Mota Sardenberg, ex-ministro de ciência e tecnologia). Nessa decisão, o STF estabeleceu que os agentes políticos, em especial os ministros de Estado, não respondem por atos de improbidade definidos na Lei 8.429/1992, mas tão somente pelos crimes de responsabilidade previstos na Lei 1.079/1950, estando sujeitos a regime especial, sendo processados e julgados pelo STF, sob pena de se ter uma “interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, I, c, da CRFB de 1988”.
O posicionamento adotado pela maioria (6 versus 5) dos ministros do STF, favoráveis à inaplicabilidade da Lei de Improbidade aos agentes políticos, contraria a vontade do legislador constituinte conforme exposto acima, expressada de forma clara no art. 37, § 4º, da CRFB de 1988, que, ao estabelecer as sanções aplicadas aos que cometem atos de improbidade, ressalva a possibilidade de ajuizamento da ação penal cabível (“sem prejuízo da ação penal cabível”). Os incisos III e IV do art. 15 da CRFB de 1988(7) também diferenciam a sanção prevista na Lei 8.429/1992 da condenação criminal. Por sua vez, a Lei 8.249/92, em seu artigo 12, estabeleceu que as cominações cabíveis ao praticante do ato de improbidade administrativa não impedem que a ele sejam imputadas as demais sanções previstas em lei, sejam elas penais, sejam civis ou administrativas. Dessarte, conforme alhures, reafirma-se que as sanções previstas para os atos de improbidade não têm natureza penal ou “quase penal”, são, ao contrário, autônomas, retiram seu fundamento de validade da própria Constituição, e por esse motivo não há falar em ato de improbidade administrativa absorvido por crime de responsabilidade. Apenas para argumentar, no caso de Ronaldo Mota Sardenberg, as condutas a ele imputadas estavam previstas de forma específica nos artigos 9º, IV e XII, 10, IX e XIII, e 11, I, da Lei 8.429/1992 (acusação de utilização em benefício particular de aviões da FAB e hotéis de trânsito desta) e não encontram previsão na Lei 1.079/1950, sendo impossível uma interpretação extensiva do art. 9º dessa última lei (que trata dos crimes contra a probidade na administração), uma vez que se trata de crime, portanto, a tipificação é cerrada.
Em socorro também da autonomia da responsabilidade por ato de improbidade administrativa, a Lei 8.429/1995 adotou uma terminologia ampla de “agente público” no art. 1º, sem qualquer exceção. A expressão “agentes públicos” engloba quatro categorias: agentes políticos, servidores públicos, militares e particulares em colaboração com o poder público, sendo os agentes políticos, na lição de Hely Lopes Meirelles, “os componentes do governo nos seus primeiros escalões, investidos em cargos, funções, mandatos ou comissões, por nomeação, eleição, designação ou delegação para o exercício das atribuições constitucionais”,(8) incluídos nesse conceito, portanto, os chefes do Poder Executivo nos âmbitos federal, estadual, distrital e municipal, os auxiliares diretos destes (ministros e secretários), os membros do Poder Legislativo, da magistratura, do Ministério Púbico, do Tribunal de Contas, representantes diplomáticos e autoridades que, embora não pertençam ao quadro do funcionalismo público estatutário, exerçam atribuições governamentais, judiciais ou quase judiciais de forma independente.
Ao se retirarem do princípio republicano os fundamentos de reconhecimento da autonomia à hipótese sancionatória por improbidade administrativa, permite-se também atribuir a todo e qualquer agente que exerça funções públicas e seja depositário dos interesses da coletividade não só obrigações de padrões éticos em sua conduta (art. 11 da Lei 8.429/1992), mas também a obrigação de ser capacitado a executar o encargo que assume, de atuar com zelo para com o patrimônio público. Esse, por certo, é um dos fundamentos que sustenta a atribuição de responsabilidade ao agente público mesmo quando culposamente, sem o elemento anímico doloso, tenha dado ensejo à ofensa ao patrimônio público, conforme se tipifica no art. 10 da Lei 8.429/1992. Assim é que a identificação da lesão ao patrimônio passa a ser objetiva na hipótese do art. 10, independentemente do estado anímico do agente, devendo-se perquirir apenas qual era o comportamento reclamado pelo ordenamento jurídico, uma vez que era obrigação do agente público adquirir a qualificação necessária e assim proceder no exercício da função pública.
É de se notar, contudo, que essa autonomia reconhecida à responsabilidade por ato de improbidade administrativa em face das demais hipóteses sancionatórias (penal, civil e administrativa) pode também significar conflitos com estas últimas, principalmente quando se trata de aplicar sanções. Não há dúvida de que algumas das sanções previstas para os atos de improbidade administrativa (art. 12 da Lei 8.429/1992) possuem igualmente previsão nos demais ramos sancionatórios:
- suspensão dos direitos políticos, decorrente não só da improbidade administrativa, mas também da sentença penal condenatória transitada em julgado (CRFB de 1988, art. 15, inc. III);
- obrigação de ressarcimento do dano, passível de ser determinada na sentença penal condenatória (CP, art. 91, inc. II c.c. CPP, art. 387, inc. IV), no processo administrativo (art. 46 da Lei 8.112/1991) e na pretensão por improbidade administrativa;
- perda da função pública, passível de ocorrer no processo administrativo (art. 127, inc. III, da Lei 8.112/1991), na ação penal (CP, art. 92, inc. I) e na pretensão por improbidade administrativa;
- perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, passível de ocorrer na pretensão por improbidade e na ação penal (CP, art. 92, inc. II, b e § 1º);
- proibição de contratar com o poder público, passível de ocorrer na pretensão por improbidade e no processo administrativo (Lei 8.666/1993, art. 87).
Essas coincidências sancionatórias, contudo, não enfraquecem a defesa da autonomia da responsabilidade por ato de improbidade administrativa, mas devem ser o mote a principiar uma normatividade de compatibilização entre os vários ramos sancionatórios, como há, por exemplo, entre o penal, o civil(9) e o administrativo.(10) Como consequência prática, o juiz, ao aplicar a sanção por ato de improbidade administrativa, no atual arcabouço normativo, não deve pautar sua decisão pela existência de possível responsabilização em outra esfera, até porque a própria Lei 8.429/1992 ressalva, no caput do art. 12, essa independência e, ao mesmo tempo, cria parâmetros próprios a orientar a dosimetria das sanções, com a aplicação “isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato”.
Notas:
1. “§ 1º – Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa.”
2. “§ 4º – Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e na gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”
3. “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
4. CARRAZA, Roque A. Curso de Direito Constitucional Tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 48 (gn).
6. Idem. Ibidem, p. 53-54.
7. “Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: (...)
III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; (...)
V – improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.”
8. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 76.
9. “Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando essas questões se acharem decididas no juízo criminal.”
10. “Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.”
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