Introdução: um parecer em conflito com a ordem jurídica
A problemática da coisa julgada contrária a decisões supervenientes do Supremo Tribunal Federal tem produzido muito debate na doutrina nacional. No entanto, a controvérsia ganha relevo especial quando diz respeito à matéria tributária, pois determina a existência ou a inexistência de relações jurídicas entre o Fisco e os contribuintes que têm o potencial de se projetar para o futuro.
O vínculo tributário é, por natureza, uma relação que se repete por exercícios de forma indefinida. Não havendo modificação normativa, o que se espera é a incidência contínua da norma a cada novo fato imputável. Por tal razão, as decisões judiciais passadas em julgado, que dispõem sobre essa determinada relação Fisco-contribuinte, têm a pretensão de regular situações futuras, autorizando ou impedindo a incidência de determinada lei tributária sobre fatos geradores posteriores.
Em outras palavras, decidido que determinada lei impositiva de obrigação tributária é inconstitucional, a certeza decorrente da coisa julgada impede a cobrança do tributo, ainda que se fundamente em fato gerador posterior. Contudo, os problemas surgem justamente nesse “efeito futuro”, nessa capacidade da coisa julgada tributária de determinar a sorte de fatos jurídicos supervenientes.
Dada a natureza do sistema judicial, baseado na independência de seus membros e em um intrincado esquema de recursos, é normal o surgimento de “coisas julgadas” conflitantes entre si. Determinado contribuinte pode obter a exoneração de dada obrigação, enquanto outros ficam a ela vinculados.
E se houver posterior uniformização da questão por decisão do Supremo Tribunal Federal? Surgem, assim, as questões relativas à administração uniforme da tributação, à igualdade tributária, à isonomia. Naturalmente se passa a questionar a “legalidade”, a “juridicidade” ou mesmo a “moralidade” de uma situação desigual entre contribuintes, todos atuando segundo decisões judiciais legítimas.
Nesse contexto, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, na busca de um norte interpretativo ou uma solução às inúmeras interpretações possíveis, produziu o Parecer PGFN/CRJ nº 492/2011. Em suma, o trabalho defende a possibilidade de exigência tributária futura, ainda que contra contribuinte resguardado por decisão revestida pela coisa julgada, baseado em superveniente precedente vinculante do Supremo Tribunal Federal, como o produzido em ações direitas, de juízo abstrato. Assim como permite a cessação da cobrança, caso decidida a inconstitucionalidade da norma, mesmo em favor de contribuinte que tenha sido derrotado nos tribunais.
Ainda que seja salutar a iniciativa de dar uma resposta ao problema de uma forma prática, as premissas adotadas no polêmico documento demandam um contraponto, sendo esta a proposta deste trabalho. O questionamento do tema em uma metodologia de crítica ao citado documento normativo se mostra relevante, na medida em que a interpretação fazendária lá posta acaba por pautar toda a conduta da administração fiscal.
Em linhas gerais, a argumentação construída pela Fazenda Nacional apresenta duas inconsistências, que serão abordadas especificamente, que são: a pressuposição, sem base jurídica, de que precedentes do STF são dotados de um “elemento novo”, capaz de alterar a ordem jurídica de forma a suprimir os efeitos das coisas julgadas anteriores; a subversão do princípio da legalidade estrita em matéria tributária, na medida em que assume como possível o surgimento de novas relações jurídico-tributárias, de forma geral e abstrata, com base em decisão judicial.
Ao final, como a mera crítica não é produtiva na seara jurídica, caberão algumas observações sobre as soluções que o sistema jurídico já coloca à disposição para a equalização de situações de desigualdade tributária. Demonstrar saídas possíveis, mas mais condizentes com a estrutura republicana de divisão de poderes.
1 A falácia do “elemento novo” e a suposta hierarquia da coisa julgada
Iniciando a crítica a que se propõe este trabalho, cabe questionar a ideia, que dá fundamento ao polêmico parecer, de que determinados precedentes do Supremo Tribunal Federal são dotados de um “elemento novo” capaz de alterar radicalmente a ordem jurídica.
De início, deve-se reconhecer que não cabe questionar as afirmações do documento quando defende o caráter objetivo de certos precedentes. De fato, os argumentos apresentados no parecer sobre a natureza singular de determinadas decisões da Suprema Corte são inegáveis. Os pronunciamentos do Plenário sobre a constitucionalidade de normas em sede, por exemplo, de ações diretas ou sob a sistemática dos recursos repetitivos buscam uniformizar o sistema, sendo, certamente, dotados de objetividade.
A análise da compatibilidade constitucional é feita com abstração do caso ou casos concretos, buscando, em última instância, pôr fim à insegurança interpretativa e apaziguar os conflitos passados e futuros. Por tal razão é tão discutida e consagrada na doutrina a ideia de abstração ou objetividade de tais pronunciamentos, pois ocupam papel de destaque na estabilização ou na transformação do ordenamento jurídico.
Sob esse ponto de vista, não há críticas a serem formuladas ao trabalho em questão. Realmente, a natureza excepcional de tais decisões é digna de nota e atenção pelos efeitos que lhes são peculiares. Contudo, a divergência reside justamente na pretensão do documento de atribuir a esses julgados consequências inconciliáveis com a ordem constitucional.
Melhor contextualizando, o parecer, a contar de seu parágrafo 52 e seguintes, passa a afirmar que a superveniência de decisão “objetiva” sobre a constitucionalidade de dada norma tem o efeito de inovar a ordem jurídica, mudando as circunstâncias sobre as quais se fundaram decisões judiciais anteriores. Na forma literal:
“52. Uma vez fixado que os precedentes da Suprema Corte elencados no tópico anterior deste parecer (mais especificamente no parágrafo 51), por serem objetivos e definitivos, possuem força para alterar o sistema jurídico vigente, já se pode concluir que o advento de qualquer um deles representa circunstância jurídica nova, capaz de fazer cessar a eficácia vinculante de anterior decisão tributária transitada em julgado que lhe seja contrária.”
O cerne da argumentação do “elemento novo”, que, em suma, dá sustentação a todas as consequentes conclusões do parecer, constitui-se de uma premissa tomada como fundamental: que a superveniente decisão da Corte Constitucional, em caráter definitivo, reconhecendo a constitucionalidade de uma lei tributária (ou mesmo sua inconstitucionalidade), tem o efeito de alterar o suporte jurídico das decisões anteriores transitadas em julgado.
Novamente, nos termos do parecer:
“54. Entretanto, caso o STF venha, posteriormente, reconhecer, em caráter definitivo, a plena constitucionalidade da lei tida por inconstitucional pela sentença transitada em julgado, o suporte jurídico sob o qual o juízo de certeza nela contido se formou imediatamente se altera: deixa de ser integrado por uma lei até então tida como incapaz de incidir, e passa a ser integrado por uma lei já considerada, definitivamente, como apta à incidência.”
A argumentação, em outras palavras, está calcada na ideia de que a decisão do Supremo Tribunal é “direito novo”, tem o efeito de alterar a situação jurídica como se lei nova fosse. São esses os termos expressos no parágrafo 57: “a jurisprudência do STF configura ‘direito novo’”.
Extraída sua premissa argumentativa, a crítica passa, necessariamente, por uma discussão de conceitos. A expressão “direito”, que é acrescida do adjetivo “novo”, salvo melhor juízo, não se mostra muito adequada para a estruturação de um discurso coerente, por estar sendo empregada de forma vaga e aberta.
Certamente, não há quem afirme que uma decisão objetiva da Corte Suprema, passada em julgado, não seja “direito novo”. De fato o é, pois introduz no ordenamento algum elemento normativo (eficácia vinculante e efeitos erga omnes) que antes não existia, passando a produzir novos efeitos. Por exemplo, a declaração de inconstitucionalidade de dada norma em ação direta, que obriga os poderes públicos a cessar sua aplicação, é efeito normativo inegável e, portanto, pode ser genericamente nominado de “direito novo”.
No entanto, o conceito é por demais flexível e de fácil ajustamento. Assim como uma decisão do STF é direito novo, uma lei do Parlamento também o é, uma instrução normativa, uma portaria, todos trazem carga normativa nova. Contudo, englobados dessa forma, parecem coisas de mesma natureza e, assim sendo, acabam por ser tratadas da mesma forma.
Os riscos da confusão substantiva podem ser demonstrados pela mesma lógica utilizada. Segundo o documento, a nova decisão do STF, produzida nas hipóteses elencadas como “objetiva”, é direito novo e, portanto, inova no ordenamento de forma a mudar as circunstâncias jurídicas que embasaram a coisa julgada anterior. Verificado esse novo estado de coisas, facilmente pode-se clamar pela aplicação da cláusula rebus sic stantibus, inerente à coisa julgada quando decide sobre relações de trato sucessivo, permitindo a cessação de seus efeitos.
No entanto, se de direito novo se está a tratar, assim também se pode argumentar: nova instrução normativa editada pelo Fisco que determina a cobrança de certa exação, estando esta baseada em lei considerada inconstitucional por sentença passada em julgado, não deixa de ser direito novo. Surge na ordem jurídica de forma legítima, pois editada com base em lei (ainda não excluída do sistema) e por autoridade competente, não se podendo negar sua força normativa, ou seja, sua natureza de direito novo. Nessa mesma situação, seguindo o mesmo raciocínio, devem cessar os efeitos da coisa julgada anterior, pois o novo regramento administrativo alterou o suporte jurídico em que proferida a decisão.
Quer dizer, estabelecer uma linha argumentativa com base no conceito aberto de “direito novo” pode produzir conclusões falaciosas. Não há dúvidas de que uma mera instrução administrativa jamais poderá fazer cessar a ordem judicial dotada de certeza, que tenha declarado inexistente dada relação jurídico-tributária.
Todavia, não se pode negar que o parecer ora criticado, no seu parágrafo 22, procurou deixar um pouco mais claro o que entende por “elemento novo” da decisão do STF, que a tornaria especial. Afirma que dito elemento consiste no “juízo de certeza acerca da constitucionalidade, ou não, de uma determinada lei, ou acerca da correta interpretação de uma dada norma constitucional”. Continua afirmando que “esse juízo de certeza termina por se prender ou se incorporar à própria lei analisada (...)”.
Ou seja, a singularidade da decisão da Corte Suprema estaria no juízo de certeza da questão constitucional por ela produzido, quando passada em julgado. Contudo, a certeza sobre determinada questão jurídica não é atributo da decisão, do fato de ter sido ela proferida pela mais alta Corte, mas uma qualidade que pode ser agregada a seus efeitos pela coisa julgada.
Como bem define o Professor Marinoni: “daí se pode concluir que, em verdade, a coisa julgada não é um efeito da sentença, mas uma qualidade que pode agregar-se a esses efeitos”.(1) Quer dizer, a atribuição de imutabilidade da declaração de direito feita na decisão judicial decorre do fato de não estar ela sujeita a recurso (passada em julgado), seja proferida por juiz de primeira instância, seja proferida por todos os ministros do Supremo Tribunal em colegiado.
Pretender enxergar, no pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, quando decide em definitivo sobre a constitucionalidade de certa lei tributária, uma certeza jurídica superior demandaria, necessariamente, a defesa de uma hierarquia entre coisas julgadas. Ou seja, seria necessário afirmar que a coisa julgada do STF é superior à produzida no primeiro grau, tendo efeitos diversos ou “superefeitos”, fazendo cessar as demais.
Contudo, como já afirmado, a coisa julgada é um atributo da decisão da qual não cabe mais recurso, não havendo mais de um tipo de coisa julgada. Seja o acórdão do STF, seja a mais singela das sentenças, uma vez passados em julgado, produzem os efeitos da coisa julgada, dando estabilidade e certeza ao decidido.
É certo que as decisões da Suprema Corte em ações diretas têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e da administração pública, por imposição da lei, por sua natureza abstrata, mas não significa que produzam efeitos sobre outra coisa julgada. Trata-se de uma hipótese legal de produção de efeitos que escapa à regra geral do antigo artigo 472, primeira parte, do Código de Processo Civil (entre partes), em seus termos repetida no artigo 506 do novo Código, mas não é exclusiva do STF. Existem outras hipóteses de vinculação de terceiros que não são parte da relação processual, como exemplo as sentenças em ação civil pública.
Exemplificando, imaginemos a existência de sentença judicial, passada em julgado, em determinada ação que postulava a anulação da compra e venda de certo imóvel por ausência de outorga uxória da mulher, autora da ação. Dita decisão teria julgado improcedente o pedido por ter sido provado nos autos que a autora não era casada com o vendedor do bem, decidindo, incidentalmente, o estado de solteira da autora. Posteriormente, a autora ingressa com ação contra seu suposto esposo, incluindo os filhos no polo passivo, e obtém sentença, em uma causa de estado de pessoas, que a declara casada. Pergunta-se: considerando que a segunda coisa julgada decide de forma definitiva sobre o estado civil da autora, suspendem-se os efeitos da anterior? A autora passa a ser casada frente ao comprador do imóvel e pode exigir a anulação do negócio, anulando a propriedade?
A resposta negativa é a mais coerente com a ordem jurídica. Quer dizer, ainda que tenha incluído no universo jurídico “direito novo” (o estado de casada da autora), essa nova coisa julgada não anula o direito de propriedade reconhecido em outra decisão passada em julgado à qual a autora está sujeita (por ter sido parte). Esta última, apesar de contar com efeitos diferenciados, não vale mais que a outra, ao ponto de lhe tirar os efeitos.
Diferente seria a resposta caso a autora ingressasse com nova ação questionando a propriedade, buscando um rejulgamento, vedado por força da coisa julgada anterior, mas que, por descuido do réu ou má interpretação do juiz, fosse julgada procedente e passasse em julgado. Enquanto esta última não fosse rescindida,(2) valeria sobre a anterior, pois decide sobre a mesma matéria daquela e, por força do artigo 508 do novo Código de Processo Civil, “transitada em julgado a decisão de mérito, considerar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e as defesas (...)”.
Quer dizer, não existe hierarquia entre a coisa julgada mais genérica – no exemplo, a que decidiu o estado de pessoa casada – e uma coisa julgada mais específica – que decidiu sobre a validade do negócio jurídico. O que existe é a criação de um juízo de certeza sobre o decidido, como no segundo exemplo: a primeira coisa julgada fez certo que a propriedade permaneceria com o comprador, a segunda, ainda que sujeita à rescisória, fez certo que a propriedade retornaria à mulher casada e seu esposo.
Assim como nova lei revoga a anterior naquilo que por ela for disposto, nova coisa julgada faz cessar as demais naquilo por ela decidido, conforme o artigo 503 do Código de Processo Civil: “a decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida”.
Retornando à questão objeto deste trabalho, quando a Corte Constitucional decide definitivamente que a lei X é constitucional e, portanto, pode haver a cobrança do tributo Y, de força abstrata e com efeito para todos, a coisa julgada que reveste o decidido dá certeza apenas disto: de que a lei X é constitucional. Contudo, se houver outra coisa julgada, decorrente de mera sentença, afirmando que determinada empresa não precisa pagar o tributo Y, está certo no mundo jurídico apenas isto: que a empresa não precisa pagar o tributo (inexistência de relação jurídico-tributária). Ambas as coisas julgadas decidem sobre questões diferentes, uma fazendo um julgamento abstrato da norma e outra negando uma relação jurídico-tributária.
Para demonstrar a lógica desse raciocínio, tome-se como exemplo a existência de decisão do STF, em ação direta, declarando a constitucionalidade de uma exação. No entanto, após o precedente vinculante, sobrevém acórdão de tribunal local declarando a inconstitucionalidade em favor de determinada pessoa, não havendo, por descuido do ente público, recurso, reclamação ou rescisória no prazo legal. Negar-se-ão efeitos a esta coisa julgada? Apesar de produzida pelo processo previsto em lei e proferida por autoridade competente, não terá ela valor algum? A resposta é certamente negativa, pois esta coisa julgada faz certa a inexistência da obrigação para aquela pessoa.
Logo, assim como não há hierarquia entre juízos, apenas esferas de competência (sentencial, revisora, etc.), não há hierarquia entre coisas julgadas. A coisa julgada apenas faz certo aquilo que foi decidido, nos limites do que foi decidido. Ou seja, afirmar em juízo abstrato que determinada norma é constitucional não significa dizer que se tenha que pagar o tributo. São coisas diversas, o juízo abstrato jamais pode pretender substituir o concreto, pois, se assim fosse, não seriam necessários tribunais (produtores da norma individual e concreta), mas apenas leis (norma geral e abstrata).
Novamente aos exemplos, citando, mais uma vez, o do artigo 508 do Código de Processo Civil, segundo o qual, “transitada em julgado a decisão de mérito, considerar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e as defesas que a parte poderia opor tanto ao acolhimento quanto à rejeição do pedido”, ou seja, a coisa julgada presume a análise de todas as possíveis alegações. Suponha-se que determinada pessoa combateu judicialmente a cobrança de certo tributo fundada na sua inconstitucionalidade e também na não incidência, por entender que não pratica o fato gerador, tendo a sentença, transitada em julgado, acolhido o pleito unicamente pelo primeiro fundamento. Posteriormente, decide o STF pela constitucionalidade, em abstrato e com efeito gerais.
Segundo o questionado parecer, cessarão os efeitos da coisa julgada, e o Fisco voltará a efetuar a cobrança. Estará criada a única situação que a lei processual, quando trata dos efeitos das decisões definitivas, pretende evitar: a necessidade de rediscussão do que já foi decidido. Nesse caso, o contribuinte teria que renovar o pleito, reafirmando seu segundo argumento (não incidência), o que, à época, não tinha interesse em fazer, pois acolhido o pleito por outro fundamento.
Resta claro, com esses argumentos, que a coisa julgada, ainda que vinculante, mas que decide em abstrato, não faz certa (não torna imutável ou inquestionável) a existência de uma obrigação jurídico-tributária concreta, pelo simples fato de que dela não tratou. Se assim fosse, no citado exemplo, o contribuinte nem poderia propor nova ação pelo segundo fundamento, pois, se se considerar que o STF, em abstrato, decide, com certeza, sobre a relação obrigacional individual, a rediscussão esbarraria no citado artigo 508.
Portanto, a falácia do “elemento novo” está no fato de que toda e qualquer proposição deôntica proferida por quem esteja dotado de autoridade é nova norma, inova a ordem jurídica, não apenas os precedentes do STF. Ao mesmo tempo, o juízo de certeza sobre determinada questão decidida pelo Poder Judiciário é atributo não apenas da coisa julgada produzida pelo acórdão de ministros da Suprema Corte, mas por qualquer decisão judicial que tenha passado em julgado.
Não se poderia dizer que apenas o precedente objetivo do Supremo Tribunal é “direito novo” ou dotado de “elemento novo” ou “juízo de certeza”, como se fosse um atributo especial e exclusivo, quando, na verdade, é comum a muitas normas e muitas decisões, quando passam em julgado.
Todavia, ainda que afastada a ideia de superioridade das decisões constitucionais abstratas frente às coisas julgadas anteriores, o Parecer PGFN/CRJ nº 492/2011 vai além em suas afirmações. Defende que, sendo algo novo na ordem jurídica, a decisão do STF poderia criar novas relações jurídicas, o que se passa a criticar.
2 Usurpação de competências: o Executivo como “superintérprete” e o Judiciário como “superlegislador”
Afastada a ideia de que a decisão do STF ou a coisa julgada dela decorrente tenha algo de especial em relação a todas as demais decisões do Poder Judiciário, no que diz respeito à inovação da ordem jurídica, cabe ainda criticar afirmação mais forte do discutido documento: que seria possível o surgimento de novas relações jurídico-tributárias, de forma geral e abstrata, com base em decisão judicial.
Este segundo ponto parece provocar danos mais graves dentro da estrutura do Estado, ultrapassando a mera questão de conciliação de decisões judiciais para uma potencial inversão de papéis entre os poderes constituídos. Como afirmado no parágrafo 55:
“55. Note-se que, ainda no exemplo acima dado, o reconhecimento da constitucionalidade da lei pelo STF faz nascer uma relação jurídica tributária nova entre o Fisco e o contribuinte-autor, composta por um suporte fático idêntico (mesmos fatos geradores) àquele considerado pela coisa julgada anterior, mas por um suporte jurídico alterado ou diferente (que passará a ser a norma definitivamente interpretada pelo STF em face da Constituição e que, por ter sido considerada constitucional, possui aptidão para incidir); e, por configurar uma relação nova, a eficácia vinculante da anterior decisão tributária transitada em julgado, dada a sua natural limitação objetiva, não é capaz de alcançá-la.” (destaques nossos)
Buscando reconstruir o raciocínio do citado trecho, defende-se que, com a decisão da Corte Suprema, reconhecendo a constitucionalidade de dada norma tributária, surge uma nova relação jurídico-tributária. Quer dizer, o julgado inova a ordem jurídica de forma a instituir um novo tributo, um novo vínculo Fisco-contribuinte, tendo como suporte fático o mesmo fato gerador descrito na norma analisada e, como suporte jurídico, a mesma norma, mas agora revestida de certeza.
Interessa destacar que, nos parágrafos 16 a 19, chega-se a afirmar que o pronunciamento do STF tem um efeito inovador da ordem jurídica idêntico ao das alterações da legislação tributária pelo Parlamento. Quer dizer, ao afirmar a validade de uma lei, o tribunal estaria “reintroduzindo” uma norma de tributação no sistema, substituindo a anterior, reformando a ordem jurídica, ou, em termos claros, fazendo lei.
Seguindo o argumento, as conclusões seguem com facilidade. Havendo nova lei, nova relação jurídica, a coisa julgada anterior, certamente, dela não tratou e sobre ela não tem efeitos. Novamente, é a natural aplicação da máxima rebus sic stantibus, pois as alterações de direito e de fato posteriores não puderam ser apreciadas pelo prolator da decisão passada em julgado.
E assim seguem as afirmações, tendo por fundamento a “novidade” da relação jurídica instaurada por decisão judicial. Se de algo novo se trata, não decidido em juízo, certamente a administração tributária, dotada do poder de autotutela, poderá promover a cobrança da exação decorrente da “nova” relação estabelecida, independentemente de nova decisão judicial. Está-se em um “mundo novo”, um estado de coisas completamente diferente, podendo o Fisco atuar sem observância à coisa julgada antiga, que, de fato, nada teria a dizer sobre a “inovação”.
O parecer é bem claro nesse sentido, em seu parágrafo 61 e seguinte:
“61. A resposta à questão ora analisada – ou seja: saber se a cessação da eficácia vinculante da decisão tributária transitada em julgado, pelas razões acima expostas, opera-se automaticamente ou, ao revés, se depende de prévio pronunciamento judicial – não exige muito esforço para ser encontrada, até porque resulta diretamente dos conceitos e das conclusões já expostas mais acima. É que, conforme exaustivamente demonstrado ao longo deste parecer, o precedente objetivo e definitivo do STF em sentido diverso do sufragado na anterior decisão tributária transitada em julgado faz surgir uma relação jurídica de direito material – sob algum aspecto – nova, que, não tendo sido deduzida pelo autor da demanda e, assim, apreciada na correspondente coisa julgada, não se encontra compreendida em seus limites objetivos. Consequência natural disso é que a eficácia vinculante da decisão tributária transitada em julgado simplesmente não alcança a nova relação jurídica (assim como, pelo mesmo raciocínio, não alcança todas as outras relações jurídicas, de que eventualmente faça parte o autor da correspondente demanda judicial, que não tenham sido deduzidas nessa demanda); daí porque se diz que essa eficácia vinculante deixa de operar dali para frente.
62. Parece certo, portanto, que a cessação da eficácia vinculante da decisão tributária transitada em julgado anterior, ou, dito de outra forma, a sua incapacidade de alcançar a nova relação jurídica de direito material surgida a partir do advento do precedente do STF (ou nascida em razão de qualquer outra circunstância jurídica ou fática nova), não precisa ser objeto de pronunciamento judicial para que se considere verificada, visto que é mera decorrência lógica dos limites objetivos que balizam o alcance da eficácia das decisões judiciais, operando-se, assim, de forma natural e automática.”
Contudo, esse edifício argumentativo certamente não se mantém por falha em seu alicerce, pois ancorado na ideia de uma nova relação de Direito Tributário surgida da decisão do Supremo Tribunal. Então poderia o Poder Judiciário produzir norma tributária, instituir tributo novo, como alega o parecer?
A questão coloca em jogo a mais cara das garantias quando se trata de tributos, a certeza de que a exação tem origem na vontade do povo, na representatividade do Parlamento. O Direito Tributário moderno tem como pilar fundamental o princípio da legalidade, pois é a garantia máxima contra o abuso do ente soberano, limitando os poderes constituídos àquelas hipóteses de tributação previamente avalizadas pelos representantes constituídos do povo. Tem origem histórica na máxima revolucionária americana, “no taxation without representation”,(3) ou seja, não pode haver tributação sem lei.
Apenas o povo, por seus legítimos representantes, pode instituir tributos. Não há soberano, conselho ou tribunal, por mais alto ou privilegiado, que possa criar exações ou fazer nascer relações tributárias. A prerrogativa é única e exclusiva do Poder Legislativo.
Nossa base constitucionalista, que, em muitos e importantes aspectos, bebe da fonte norte-americana, não dispôs de forma diversa, prevendo no texto constitucional de forma expressa:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;”
E a máxima repercute inclusive no normativo infraconstitucional, especialmente no artigo 97 do Código Tributário Nacional, em vigor muito antes da Carta de 1988, que dispõe:
“Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
I – a instituição de tributos, ou a sua extinção;
II – a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
III – a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo;
IV – a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
V – a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas;
VI – as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.”
O cerne da crítica ao posicionamento da Fazenda Nacional está justamente na pressuposição, sem base constitucional, de que a decisão da Corte Suprema, quando declara constitucional determinada lei, acaba por “reeditá-la” ou por criar nova relação jurídico-tributária. No entanto, quando o STF encerra a discussão de validade da norma, não faz mais nada do que afirmar apenas essa validade, que já existia e continuará existindo, mas com efeito vinculante e contra todos.
O pronunciamento judicial não tem o efeito de inovar em matéria tributária, não “recria” o tributo. Mesmo que se possa afirmar ser ele “direito novo”, possuir natureza singular, etc., introduzindo no ordenamento uma normatividade antes inexistente (certeza da constitucionalidade e vinculatividade dessa certeza), ainda não se terá transmutado em lei, no sentido estrito.
A relação jurídico-tributária criada pela lei editada pelo Parlamento é a mesma, tenha ela passado ou não por julgamento definitivo do STF. Quem autoriza o seu surgimento é a existência da lei, não o julgamento de validade desta pela Corte. Pensar de forma diversa é conceder ao Poder Judiciário o poder de instituir tributo, o que não lhe cabe.
Diverso é o raciocínio no caso de declaração de inconstitucionalidade da lei. Nessa hipótese, o tribunal retira do ordenamento a própria lei, considerando-a inválida, pois o Poder Legislativo teria extrapolado os limites da sua competência. Aqui atua o Judiciário na sua esfera própria, não produtiva da lei, mas negativa.
Em outras palavras, ao negar validade à norma tributária, o STF retira do sistema jurídico a base da tributação, o elemento indicativo da representatividade popular, ou seja, a lei, justamente por ter o Parlamento contrariado as normas que regem sua atuação. Por outro lado, ao declarar a constitucionalidade da lei, tem-se o encerramento futuro das discussões sobre o tema, dotando de certeza a resposta dada pela Corte, o que não significa dizer que houve a criação de nova base jurídica para o tributo, mas apenas que não ocorreu a sua retirada do sistema.
Portanto, engana-se a Fazenda Nacional ao afirmar que o pronunciamento cria nova relação jurídica, ou novo “estado de coisas”. Dessa forma, sem inovação, não há falar na aplicação da máxima rebus sic stantibus, justamente por não estar presente “novidade” capaz de alterar uma relação tributária.
Repita-se, não se está a afirmar que o precedente objetivo do STF não produza efeitos na ordem jurídica, como o encerramento das discussões, a certeza da questão, a vinculatividade, etc. O que se defende é não ser ele capaz de instituir nova relação jurídico-tributária (criar novo tributo, ainda que com as mesmas feições da lei analisada), pois efeito próprio e exclusivo da lei posta pelo Parlamento.
O acolhimento do discurso fazendário importaria um cenário de múltipla usurpação de competências dentro da República. De um lado, o Poder Judiciário, pelas decisões do Supremo Tribunal Federal, passaria a instituir, como fala o próprio parecer, “relação jurídica tributária nova”,(4) inovando na ordem jurídica em matéria tributária. Ou seja, o Judiciário usurparia a competência do Poder Legislativo para decidir sobre tributos, desafiando a garantia máxima da legalidade aplicável ao Direito Tributário.
Do outro, o Executivo passaria a poder interpretar e aplicar decisões judiciais novas, proferidas entre determinadas partes ou em ações objetivas (ações diretas), para afastar os efeitos de outras decisões judiciais transitadas em julgado, proferidas em outros processos, envolvendo outras partes, atuando como revisor judicial e usurpando a competência do Poder Judiciário.
Em suma, pelo parecer, em matéria tributária, o Judiciário passaria a “editar leis” e “criar tributos” (“superlegislador”), cabendo ao Executivo “interpretá-las” e “aplicá-los” (“superintérprete”), esvaziando por completo o Poder Legislativo. Ou seja, a única justificativa jurídico-moral para a exigência fiscal, qual seja, a representatividade popular,(5) estaria excluída dessa “nova lógica” da Fazenda Nacional.
3 O Poder Legislativo como solução para a desigualdade tributária decorrente de coisa julgada
De nada serve a pura crítica quando se está a discutir uma questão tão prática como a posta neste trabalho. A recusa em aceitar a solução posta pela Fazenda Nacional, que merece reconhecimento pela iniciativa na busca de uma diretriz, deve vir acompanhada de alternativas. O Direito não se satisfaz com respostas negativas, pois os problemas da vida social sempre demandam um agir direcionado.
Dessa forma, cabem algumas considerações sobre outras vias possíveis de serem trilhadas para a equalização do problema. No entanto, primeiro, é necessário objetivar exatamente que problema é esse, ou seja, qual situação fático-jurídica está em jogo.
A questão resume-se à estabilização, dentro do mesmo ordenamento jurídico, de duas decisões conflitantes em matéria tributária, beneficiando e prejudicando contribuintes diferentes. Dessa problemática podem-se estabelecer duas situações distintas: a existência de coisa julgada favorecendo dado contribuinte que conflita com posterior decisão do STF; e, ao contrário, uma coisa julgada prejudicial ao contribuinte, mas contrária ao posicionamento final da Suprema Corte.
Em ambas, de imediato surgem os questionamentos quanto à isonomia em matéria tributária. A exigência fiscal deve, sob pena de se tornar instrumento para privilégios e favorecimentos, ser uniforme àqueles na mesma situação. A lógica de um sistema tributário nacional exige uma neutralidade subjetiva, pautando-se por critérios abstratos e gerais.
No entanto, ao mesmo tempo, a interpretação e a aplicação desse sistema de caráter nacional, constituído de normas jurídicas, estão sujeitas à jurisdição. Eventualmente, determinadas questões tributárias podem, como cada vez mais o são, ser decididas por magistrados, que são incumbidos, em regra, de resolver individualmente as demandas apresentadas.
Presente, então, o descompasso. De um lado, um sistema constituído pelo Parlamento para ser uniforme; de outro, uma sindicabilidade judicial baseada na demanda (casos individuais) e na independência dos juízes. Nada mais natural que surgissem soluções diversas a casos idênticos, como também nada mais possível que ambas ou todas essas soluções divergentes viessem a ser estabilizadas pela coisa julgada.
Não se pode negar a existência de um real problema jurídico quando uma decisão, transitada em julgado, contraria um entendimento da Corte Suprema em matéria tributária. Contudo, sua ocorrência é própria de um Estado estruturado pela lógica da divisão de poderes, especialmente naquele em que a um deles cabe editar, em regra, normas gerais e abstratas (Legislativo); e, ao outro, individuais e concretas (Judiciário).
A solução da questão, surgida da lógica dos poderes, deve também ser resolvida dentro do mesmo sistema. Quer dizer, a resposta não pode ser obtida pela eliminação do sistema, permitindo que um poder usurpe ao outro, como parece indicar o parecer ora criticado.
Voltando à casuística, tem-se um problema de isonomia fiscal quando determinados contribuintes tenham obtido o reconhecimento da inconstitucionalidade de lei instituidora de tributo, em decisão passada em julgado, sendo que, posteriormente, sua validade foi afirmada pelo Supremo Tribunal em ação objetiva. Ou seja, uma massa de contribuintes estará obrigada ao pagamento, agora com a certeza da sua obrigação (decisão definitiva do STF), sendo que alguns apenas estarão exonerados, protegidos por coisa julgada anterior.
Como já defendido, a decisão posterior da Corte Constitucional não tem o alcance necessário para suspender os efeitos da coisa julgada anterior, bem como não pode instituir “novo tributo”. Assim, como resolver a questão da isonomia e da uniformidade, considerando que o Poder Judiciário, seguindo sua linguagem própria (caso concreto, princípio da demanda, independência de seus membros), produziu normas individuais e concretas, estabilizadas pela coisa julgada, que acabaram por privilegiar um grupo de pessoas?
Tem-se, também, um verdadeiro conflito entre o Poder Executivo, interessado na arrecadação uniforme, e o Poder Judiciário, expressando-se naquelas decisões individuais passadas em julgado. O primeiro pretende ver cumprido o preceito legal de tributação geral, enquanto o segundo, para alguns casos apenas, obsta o seu exercício.
A solução da Fazenda Nacional é conceder ao Judiciário a prerrogativa de, com decisões “especiais” da Corte Suprema, produzir normas gerais e abstratas em matéria tributária, reintroduzindo a relação jurídico-tributária no sistema e, com isso, suspendendo os efeitos da coisa julgada anterior. Contudo, como antes referido, a questão esbarra na máxima da legalidade e distorce a relação entre os poderes.
Então, como solver a iniquidade entre contribuintes? A solução deve passar justamente por aquele poder ao qual é dado decidir, de forma uniforme, geral e abstrata, sobre tributos, qual seja, o Legislativo. Caso pretenda o Fisco voltar a exigir tributo sobre determinada grandeza, cuja incidência, com base na lei vigente, foi negada por decisão transitada em julgado da qual não cabe ação rescisória, deve buscar instituir novo tributo por lei, pela via adequada.
Em outras palavras, se as decisões definitivas do STF não são capazes de alterar a situação jurídica existente ao tempo da formação da coisa julgada, como já sustentado nos capítulos anteriores, pretendendo o Estado a exigência de tributo sobre aquela grandeza, deve fazer uso do caminho ordinário para a alteração da ordem jurídica e a instituição de nova relação jurídico-tributária: nova lei tributária, em sentido estrito, votada e aprovada pelo Parlamento.
Sobrevindo nova lei, ainda que com mesma redação e prevendo os mesmo elementos da exação, poder-se-á falar em “novo tributo”. Apenas quando o Legislativo, no exercício da sua competência própria, cria ou recria a exação se pode falar em nova situação jurídica, capaz de determinar a aplicação da máxima rebus sic stantibus.
Editada a nova lei, sempre com respeito às regras de anterioridade e anualidade, não mais terão efeito as decisões passadas, ainda que protegidas pela coisa julgada, pois tratavam sobre tributo não mais vigente. A nova exação, ainda que incidente sobre a mesma grandeza, não foi objeto da decisão anterior e poderá ser uniformemente exigida de todos os contribuintes. Em resumo, a nova lei “reinicia” a relação entre o Fisco e o contribuinte.
Esse é o papel do Poder Legislativo, o de resolver sobre a conveniência ou não de mudar o panorama jurídico, instituindo novo tributo por nova lei para superar a(s) coisa(s) julgada(s), com a verdadeira aplicação da cláusula rebus sic stantibus. Não cabe ao Executivo, muito menos ao Judiciário, decidir pela mudança ou não da ordem jurídica em matéria tributária, pois a promulgação de nova lei é competência única e exclusiva do Congresso Nacional.
Dar efeitos exacerbados às decisões do STF e permitir ao Executivo, com base nelas, decidir quando é possível deixar de observar a coisa julgada é um atalho que contraria a lógica do sistema. Se o Poder Legislativo tem a função, justamente, de produzir normas gerais e abstratas, de regrar a sociedade de forma uniforme, nada mais razoável que lhe caiba a solução do problema da isonomia em matéria tributária.
Seguindo esse caminho, evita-se que o instituto da coisa julgada seja suprimido por interpretações extensivas das decisões do Supremo Tribunal, a serem feitas pelo Executivo. Ao mesmo tempo, é solução razoável ao problema da iniquidade, introduzindo no sistema nova lei e, com isso, garantindo àquele contribuinte beneficiado pela coisa julgada a segurança decorrente do processo legislativo, que deve observar a representatividade popular e as garantias da anterioridade e da anualidade.
Todavia, pode-se questionar do caso inverso, quando a quebra da isonomia vem em desfavor do contribuinte. Caso determinada lei tributária venha ser julgada inconstitucional pela Corte Suprema, como ficam os contribuintes que, tendo ingressado anteriormente em juízo, foram derrotados por decisão definitiva?
A solução, a toda evidência, não pode ser a mesma, por se tratar de situação totalmente diversa. Como já referido, não cabe ao Judiciário instituir novo tributo, não está na sua esfera de competência produzir norma geral e abstrata em matéria tributária, no entanto, o inverso não é verdade. A exclusão de normas do sistema é sim competência dessa espécie de “legislador negativo”.
Portanto, quando o Supremo Tribunal Federal, em ação objetiva, decide sobre a inconstitucionalidade de certa lei, acaba por retirá-la do sistema jurídico, parando de produzir efeitos. Nessa situação, pode-se sim falar em “nova situação de direito”, pois uma dada norma foi suprimida do sistema. A partir da decisão, a administração deve abster-se de exigir o tributo, pois não possui mais base legal para sua cobrança.
Repita-se, situação muito diferente é a decisão que atesta a constitucionalidade da lei, que nada de novo pode introduzir no ordenamento em matéria tributária, pela simples razão de não ser “nova lei”, mas apenas decisão sobre lei já posta. Ao contrário, a solução pela invalidade da norma implica alteração da ordem jurídica, capaz de atrair a máxima rebus sic stantibus, cessando a eficácia da coisa julgada desfavorável ao contribuinte.
A conclusão para a segunda hipótese nada mais é que a confirmação da primeira. O Supremo Tribunal Federal, no exercício do poder de revisão constitucional, pode atuar no sentido negativo (negando uma norma, parte de uma norma ou mesmo algumas interpretações daquela norma), mas não pode inovar em matéria tributária, criar novas relações antes inexistentes.
Conclusão
A coisa julgada, pela literalidade da norma processual, é mero atributo exclusivo da sentença judicial não mais sujeita a recurso, mas, na prática, foi erigida a verdadeira garantia individual. Está na base do sistema jurídico moderno como indispensável instrumento de finalização dos conflitos, impondo um corte temporal na demanda, de forma a evitar a eterna discussão.
No âmbito do Direito Tributário, marcado pela rigidez dos princípios que o norteiam, em especial a legalidade, a garantia da estabilidade das decisões judiciais também tem a função de assegurar ao contribuinte a certeza dos limites do poder de tributar do Estado. Resolvida a questão em seu favor, é razoável acreditar que não estará mais obrigado ao pagamento da exação sobre dada grandeza, pelo menos enquanto não for estipulada nova obrigação, sempre votada e aprovada pelo Parlamento que o representa.
Os pressupostos e as conclusões do Parecer PGFN/CRJ nº 492/2011 colocam em perigo essa garantia, deixando o cidadão sujeito às inovações da jurisprudência, apesar de ter obtido provimento definitivo após longo processo judicial. O “ressurgimento” da obrigação tributária ficaria nas mãos do Poder Judiciário, que não detém competência tributária ou representatividade, enfraquecendo a máxima da legalidade.
Por tais razões, o problema da isonomia tributária, no caso de conflito entre a coisa julgada e a decisão superveniente da Corte Suprema, é questão a ser solvida pelo detentor da competência para instituir tributos. Ao Parlamento cabe a decisão por reintroduzir a obrigação por nova lei, não cabendo ao Executivo, ainda que baseado em decisões superiores do Judiciário, desconsiderar a coisa julgada.
Em arremate, recentemente, em 11 de março de 2016, o Supremo Tribunal Federal, por meio de seu Plenário Virtual, reconheceu a repercussão geral da matéria constitucional nos termos do voto do Ministro Luís Roberto Barroso. Espera-se, assim, que a questão receba o adequado tratamento jurídico, fortalecendo-se as garantias da legalidade e da segurança jurídica.
Referências
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Notas:
1. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de conhecimento. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 647.
2. O Código de Processo Civil expressamente reconhece o desrespeito à coisa julgada anterior como vício sujeito à rescisória, não podendo a nova coisa julgada ser desconsiderada enquanto não rescindida: “Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: (...) IV – ofender a coisa julgada”.
3. Equivalente, para o Direito brasileiro, à máxima: “não há tributo sem lei”.
4. Parágrafo 55 do Parecer PGFN/CRJ nº 492/2011.
5. Com a afirmação histórica das democracias representativas, com embrião na Revolução Gloriosa inglesa e máxima aplicação na República americana, os fundamentos de legitimação do poder de tributar foram naturalmente substitutos. A acepção divina de uma prerrogativa do soberano deu lugar, aos poucos, à ideia de representatividade ou “vontade coletiva”, nascida em Parlamento, como justificativa à imposição fiscal.
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